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10/12/2019 Tr s car as de Clarice Lispec or: o impre is o

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T ca a Ca c L c :
N a Ba aG b
9 b 2017

1K

A i m : Eli a (ao cen o), Tania ( e q e da), e Cla ice, em e emb o de 1927

1. Al , queridíssima

Fa enda Vila Rica, Estado do Rio, janeiro de 1942

A a C a ce L ec , e acaba a de c e a a e e 21 a ,
e c e ea a e d a Ta a.

N e a a da e a ca a de e e e cae c a C a ce a a
a. A ,e ae a ca a f a b cada e Minhas Queridas
( ga ad Te e a M e e b cad e 2007). H e e e 120 ca a
b cada . H a 12 ca a de C a ce b cada e
Correspond ncias ( ga ad a b Te e a M e , b cad e 2002),
e fa e d a a de 132, de e a 180 ca a de e e e c a. A
e d , 48 ca a de C a ce e a ece a da d a a eg a, e d e
ech de a g a de a f a a c de O ga B e ad Clarice
Lispector Esbo o para um poss vel retrato, b cad e a ed aN aF e ae
1981.

E, fe e e, a ca a da a a C a ce a h e a a ece a

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Datadas de 1940, há também duas cartas enviadas a sua irmã Elisa, a mais velha das
irmãs: em 17 de maio, para a querida Elizinha (sic) que se encontrava em Juiz de
Fora, a trabalho; e em 22 de maio, para a querida Elisa , que passava férias em
Miguel Pereira.

Nessa ltima, Clarice dá not cias da doença do pai e da irmã Tania, anuncia que irá ao
baile no sábado, pede not cias dessa irmã Elisa, que carinhosamente chama de
bichinha , à moda nordestina; e lhe dá conselhos para que aproveite bem as férias,
ao não fazer nada . Mas também anuncia fato importante: o conto que encaminhou
à revista Pan será publicado. E comenta: Ou o homem está louco ou sou eu quem
está. Trata-se do conto Triunfo , que foi efetivamente publicado tr s dias depois
dessa carta, em 25 de maio de 1940, e que figura como o marco inaugural de uma
longa carreira de escritora.

E há uma carta de Clarice dirigida à irmã Tania, ao marido de Tania, William


Kaufmann, e à filha de ambos, Marcinha, datada de in cio do ano seguinte, 7 de
fevereiro de 1941, também anterior, pois, à de 1942. Nesta, Clarice se refere a not cias
sobre o seu pr prio trabalho na Ag ncia Nacional, em que reclama da brutalidade e do
autoritarismo dos seus chefes, que parece não aceitarem a reivindicação da moça
Clarice de voltar às reportagens. Clarice, nesse per odo, aguarda a resposta da ag ncia
A Noite, onde efetivamente passará a atuar em breve. No mais, dá not cias da casa da
fam lia Kaufmann, onde Clarice e Elisa passam a morar depois da morte do pai,
ocorrida em agosto de 1940. Faz também refer ncia ir nica ao namoro com o
diplomata Maury: desde que estou namorando o Itamarati tenho ficado com gosto
especial pelas palavras de g ria, bem vulgares Comecei a reagir. E Clarice ainda
afirma que escreve a carta ouvindo Morte de Isolda , que tomará banho e depois irá
almoçar no Praia Bar.

Voltamos à carta que mais nos interessa hoje. A que Clarice escreveu a sua irmã Tania,
em janeiro de 1942. E que escreveu ao passar férias na fazenda Vila Rica, em Avelar,
perto do Rio de Janeiro. Pois bem. Nessa carta, depois de reclamar de ter recebido
apenas duas cartas da irmã, dá not cias mais espec ficas sobre seu estado de esp rito.
E afirma:

Não escrevi uma linha, o que me perturba o repouso. Eu vivo à espera de inspiração
com uma avidez que não dá descanso. Cheguei mesmo à conclusão de que escrever é a
coisa que mais desejo no mundo, mesmo mais que amor.

Eis a um testemunho de que, mal completara 21 anos, a moça não s tinha perfeita
consci ncia do seu desejo o de escrever , mas também considerava essa atividade
como sendo mais importante do que o amor. Estava a praticamente definido o seu
futuro de escritora.

Curiosamente, logo em seguida passa a falar do namorado, de quem recebera cartas


formidáveis , e da briga que com ele tivera, por carta, e porque ele interpretou como
literária uma carta que eu mandei. E explica: Voc bem sabe que isso é a coisa que
mais pode me ofender. Eu quero uma vida-vida e é por isso que desejo fazer um bloco
separado da literatura. E além do mais, eu tinha escrito a carta com uma
espontaneidade integral.

Quanto a separar literatura e vida, eis uma questão com a qual Clarice há de se deparar
ao longo da vida toda, sem conseguir resolver esse dilema. Ao escrever cr nicas para o
Jornal do Brasil, atividade que manteve de 1967 a 1973, volta reiteradamente a esse

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assunto, ciente da dificuldade de separar esses dois territórios. Segundo a própria


cronista, não conseguia deixar de ser pessoal.

Já quanto ao fato de a carta ser ou não ser literária , há aí dois pontos de vista. Seria
literária, do ponto de vista do namorado Maury. Admitindo-se essa hipótese, se
Clarice escrevera a carta com espontaneidade integral , conforme ela afirma, pode-
se concluir que escrevera espontaneamente um texto de qualidade, ou seja, escrevera
como escritora Uma briga entre namorados acaba confirmando, assim, o seu talento
de escritora.

Se o leitor estiver curioso e quiser comprovar a literariedade ou não das tais cartas
da namorada e o diálogo entre os dois, basta percorrer a série de quatro cartas de
correspondência ativa (de Clarice para Maury) e passiva (de Maury para Clarice), todas
de janeiro de 1942, e publicadas no já citado volume Correspond ncias.

De fato, logo no início da primeira carta, a namorada descreve, com tons literários,
sua chegada à estação e o seu percurso, de carroça, até a fazenda. Eis o trecho:

Tudo muito poético. Uma chuva enorme me esperando na estação, um carro


descoberto pra me conduzir à Fazenda ( ). E os solavancos. E a sensação de perigo
(quase nenhum, felizmente) ao atravessar o riozinho. Por um triz uma aventura!
Faltou justamente o carro virar e a donzela cair desmaiada sobre a terra, os loiros
cabelos misturados à lama.

O trecho revela, sim, pendores literários, na descrição da cena poética e já à moda de


Clarice: passa do relato do fato (o percurso da estação à fazenda), para o que não
aconteceu mas poderia ter acontecido (a aventura e a ocorrência de um acidente,
imprevistamente). Essa passagem de um campo mais factual para o do imaginário
haverá de marcar muitas das suas crônicas, como, por exemplo, a intitulada
Esclarecimentos. Explicação de uma vez por todas , publicada no Jornal do Brasil e,
posteriormente, em A descoberta do m ndo. Depois de apresentar alguns dados
biográficos, Clarice passa a indagar: o que seria ela se não tivesse sido quem foi?
Mistério, conclui a cronista.

A suposição desse pendor literário não existe só no ponto de vista do Maury, pois a
própria namorada indaga, mais adiante: Estou sendo literária? Juro, faço o possível
para mergulhar bem fundo dentro de mim e retirar belas coisas simples. Mais um
registro do seu procedimento de escritora ao traduzir o método da pesca da matéria
a ser escrita, extraída nas profundezas da sua intimidade, e flagrada aí em momento
descontraído de uma simples carta de namorada. Que o namorado, de certa forma,
retribui, ao contrário, quando afirma, num post script m em carta de resposta à que lhe
enviara a namorada: Aviso aos leitores. Perigo de vida esta carta está cheia de má
literatura. O namorado sente a diferença de linguagens e de procedimentos.

Mais adiante, a matéria das cartas de Clarice é novamente questionada pelo


namorado, que, diga-se, escreve bem e com ironia. De fato, ele afirma, em carta de 7
de janeiro de 1942: Menina, não bula comigo. Eu sou um bom rapaz, sem sombra de
intelectualismo. Detesto me definir. E mais: Então você pensa que me apanha numa
definição? As definiç es são asfixiantes e eu gosto de liberdade. Mas nas duas cartas
seguintes, depois de se sentir pequeno em relação às quest es universais propostas
pela namorada, pois, segundo o namorado, aquela carta não foi para mim, foi um
panfleto dirigido a toda a HUMANIDADE , o namorado se recomp e: confessa os seus
sentimentos pela namorada e louva o fato de a moça haver assimilado boa
literatura .

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E o casamento com a escritora Clarice acontecerá no in cio do ano seguinte: janeiro de


1943.

Entre afagos e rixas, desvenda-se a escritora Clarice, não s no desejo explicitado de


escrever, que considera mais importante que tudo, at do amor, e sim em certos
procedimentos que anunciam a futura Clarice ficcionista: o dilema entre ser ou não
ser pessoal naquilo que escreve; a tend ncia a escapar do factual para mergulhar no
imaginário; a busca de mat ria no mergulho da sua pr pria intimidade; e a vocação
para abordar grandes quest es que afetam a humanidade.

2. Fe nand

Washington, 21 setembro 1956, sexta-feira

Essa carta de Clarice Lispector endereçada a Fernando Sabino escrita um dia depois
de receber as notas ou observaç es do amigo referentes ao seu romance A eia no
l o, terminado enquanto Clarice morava nos Estados Unidos e que será publicado
depois de longa espera, apenas em 1961, com o t tulo de A ma no e c o.

A amizade entre esses dois escritores tem vida longa. Fernando Sabino ganhara um
exemplar de Pe o do co a o el agem com dedicat ria datada de 8 de janeiro de 1944,
quando tinha vinte anos. Mas s foi apresentado à escritora quando ela voltou ao
Brasil, em 1946, num intervalo entre sua estada em Nápoles e a futura estada de tr s
anos em Berna, onde ficaria at 1949 acompanhando o marido diplomata. E foi Rubem
Braga que a conheceu enquanto ela morava na Itália, durante a Segunda Grande
Guerra que os apresentou, um ao outro. Posteriormente, na casa de Fernando
Sabino, Clarice conheceu os amigos mineiros do amigo mineiro Fernando: Otto Lara
Resende, Paulo Mendes Campos. Mais tarde conheceria tamb m outro mineiro, H lio
Pellegrino.

De volta a Berna, inicia-se um per odo de 33 anos de troca de correspond ncia,


somando um total de 50 cartas, o maior conjunto de cartas de Clarice com diálogo (ou
seja, de correspond ncia ativa e passiva) de que se tem not cia e que foram reunidas
no volume Ca a e o do co a o, organizado pelo pr prio Fernando Sabino e
publicado em 2001.

A hist ria dessa correspond ncia tamb m a hist ria de uma amizade profunda entre
jovens que foram se acompanhando, por carta, at se tornarem adultos: quando se
conheceram, contava ela 25 anos de idade, e ele, 22. E as ltimas são escritas na
maturidade. A ltima carta de Clarice a Fernando Sabino data de 11 de março de 1959,
contava ela 38 anos, escrita de Washington, onde permaneceria at junho desse ano. E
a ltima carta de Fernando Sabino para Clarice será escrita dez anos depois, em 29 de
janeiro de 1969, ele com 45 anos, emitida do Rio de Janeiro, com suas impress es
sobre o livro Uma a endi agem o O li o do a e e , publicado nesse mesmo ano de
1969, carta que o amigo escreve logo em seguida a uma absorvente e perturbadora
primeira leitura desse romance.

A amizade revela-se não s na regularidade das cartas ao longo de 23 anos, mas no


que vem dentro delas: relato de momentos bons e de momentos ruins; impress es
sobre qualquer coisa, desde livros lidos, at descriç es de pessoas vistas na rua,
lugares percorridos, not cias de amigos comuns, opini es cr ticas de cada um
referentes a textos escritos pelo outro.

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Entende-se a razão pela qual o amigo Fernando dedica-se a ler com tanto empenho o
romance que Clarice lhe envia então com o título A eia no p lso: a amizade e
admiração, tantas vezes por ele explicitada ao longo dessa correspondência. Pelos
mesmos motivos, inclui em carta datada de setembro de 1956 nada menos que 204
notas de leitura ou sugest es que Clarice acata e comenta. E a amiga romancista
afirma, comovida, quando recebe dele um telegrama, em que tece elogios ao livro:
( ) para dizer a verdade, parece que me emocionei ainda mais com a amizade que
com a referência ao livro.

De fato, a carta de 21 de setembro de 1956, escrita sob o impacto das anotaç es que
recebera do amigo, leva-a a questionar certos procedimentos que adotara na escrita
do romance, alguns referentes a um tom conceituoso.

Eu queria me p r completamente fora do livro, e ficar de algum modo isenta dos


personagens, não queria misturar minha vida com a deles. Isso era difícil. Por mais
paradoxal que seja, o meio que achei de me p r fora foi colocar-me dentro
claramente.

E, no final, esclarece: Todo mundo sabe que alguém está escrevendo o livro, por
que então não admiti-lo? .

Ao que Fernando responde, em carta seguinte, datada de 26 de setembro do mesmo


ano, ao contestar que tenha considerado o livro conceituoso, a não ser em certas
express es, por ele anotadas:

Ora, seu livro, da primeira à ltima linha, não é outra coisa senão alguém escrevendo
um livro e isso devido à sua concepção peculiaríssima, à técnica que você adotou,
etc. nunca porque você o diga a toda hora. O importante não é dizer, é saber.

E finaliza, com mestria.

Certas coisas não se dizem, porque dizendo, deixam de ser ditas pelo não-dizer, que
diz muito mais.

Não s pelo que escrevem como pelo que não escrevem, em romances e cartas, parece
estarem juntos, tal como observou Clarice, em carta ao amigo datada de 8 de janeiro
de 1957: a prop sito do romance Encontro marcado, reconhece alguma coisa essencial
que você pegou, e que me deu essa impressão de estarmos todos no mesmo barco .
Ao que Fernando responde, logo em seguida, no mesmo mês: Nada melhor você
poderia dizer do que descobrir afinidade entre meu livro e o seu. E completa: Enfim,
estamos maduros E Clarice responde, em 27 de janeiro:

O meu livro é uma verdade minha, mas errei, e por covardia tornei dentro de mim
uma verdade apenas de arte . Me escondi de mim o quanto pude. Sofri com ele e nele,
mas não saí livre. E conclui: O livro que você escreveu pareceu me libertar mais do
que o livro que eu pr pria escrevi. Eu não sei me dar . Você soube se dar .

Essa hist ria de correspondência não é s , pois, uma hist ria de amizade, de profunda
amizade. É também uma hist ria de afinidade. Um se encontrando no outro ao
compartilharem ideias, opini es, sugest es, mediante diálogo respeitoso, profícuo,
enquanto troca intelectual e sem assumirem ares de profissionalismo.

A carta de agradecimento de Clarice às sugest es que recebe terão efeito prático: refaz
oitenta e três páginas do romance, dentre as mais de quatrocentas. E de Chevy Chase,
perto de Washington, onde residia, envia as alteraç es ao amigo, para que ele as

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registre nos originais. Aliás, é esse amigo que, além de ler o romance e fazer
sugest es, registra as alteraç es acatadas e enviadas pela amiga e ainda não mede
esforços para conseguir um editor para o romance.

Entre amigos envolvidos por tamanha proximidade afetiva e intelectual, cabia


também escrever cartas até sem se ter o que dizer. Um ano depois que Clarice parte
para os Estados Unidos, Fernando Sabino lhe escreve carta datada de 8 de agosto de
1953 em que lhe comunica as providências que ele estaria tomando para que ela
publicasse crônicas na revista Manchete, o que, na verdade, nessa ocasião, acaba não
acontecendo. Ao iniciar a carta, afirma: Infelizmente a carta que eu queria escrever a
você não posso escrever. E mais: Eu não devia mandar esta carta. Tenho tanta coisa
para lhe dizer.

Fernando Sabino reluta em mandar a carta que, segundo seu entendimento, não
traduz o que ele quer dizer. Também Clarice, cercada de neve, no inverno de
Washington de 11 de janeiro de 1954, arrepende-se de escrever uma carta ao amigo e
lhe conta, um tanto desesperada:

Onde estava você? ( ) Aonde você está, heim, Fernando? Que sensação engraçada:
não sei se esta carta chega ou não, e gasto quase uma página para dizer isso.

E acrescenta, finalmente:

Nunca esqueci de um filme que vi há séculos, em que uma pessoa bota uma carta no
correio e se arrepende e sai correndo atrás dos cavalos na neve e não consegue
recuperar a carta.

Cartas que não foram escritas. Cartas que foram escritas mas não deveriam ter sido
enviadas porque não se disse o que se queria ou porque se disse o que não se queria
dizer. Cartas que foram enviadas, mas, depois de um arrependimento pelo envio, não
foram recuperadas a tempo. Cartas que foram escritas, foram enviadas, em que se
disse o que se queria dizer, mas não foram recebidas.

Como toda escrita, a carta, desenhada nesse vaivém da ausência, não foge ao jogo das
disjunç es entre o desejo e o que efetivamente se tem, entre o que se quer e o que se
consegue ou não se consegue atingir.

É desse desencontro marcado que vem o elogio de Fernando Sabino a uma das cartas
que lhe escreve Clarice Lispector. Depois de curto período no Brasil, de janeiro a
setembro de 1954, ao voltar para os Estados Unidos com o marido, Clarice estranha
que Fernando Sabino não tenha lhe telefonado, já que ela lhe pedira para não ir ao
aeroporto. Por causa disso, ela lhe escreve logo após sua chegada em Washington,
tentando desmanchar esse desconforto. E ele responde, em 19 de outubro de 1954,
refutando as complicaç es , que não são tolas, mas in teis , e afirma:

Mas valeu o desencontro porque forçou uma carta tão boa que parecia uma carta de
Mário de Andrade: isso é elogio.

Logo em seguida, em carta de 25 de outubro, Clarice afirma: Estou escrevendo pra


você mas também não tenho nada o que dizer. Acho que é assim que pouco a pouco os
velhos honestos terminam por não dizer nada. Mas o engraçado é que não tendo
absolutamente nada o que dizer, dá uma vontade enorme de dizer. O quê? Quando não
tenho o que dizer, fico com vontade de passar a limpo tudo ou então de apagar tudo
e recomeçar, recomeçar a não ter o que dizer. ( ) E assim é que, por não ter

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absolutamente nada o que dizer, até livro já escrevi, e você também. Até que a
dignidade do silêncio venha, o que é frase muito bonitinha e me emociona
civicamente.

E num o c i m, afirma, ainda ironicamente: Com o maior tato e a oi -fai e,


informo-lhe que deve existir à venda nas boas casas do gênero algum manual de
perfeito correspondente e que ajuda muito nas missivas sobretudo quando não se tem
o que dizer.

Fica um mistério, algo não nominado, que lembra a observação de Richard Ellmann (o
biógrafo de Joyce e Oscar Wilde): O biógrafo moderno está ciente de que a carta é
uma forma literária através da qual o escritor e o que recebe jogam um jogo de
dissimulação e revelação. O que temos de ler na correspondência é o que não está
escrito lá. Abre-se a perspectiva para se considerar que na ficção o escritor mais
abertamente se revela, livre de press es interiorizadas.

Coincidentemente, tal afirmação nos remete à própria produção jornalística e ficcional


de Clarice: quando não fala de si, parece falar; quando fala, parece sempre escapar do
nosso alcance e nos ludibriar.

3. O ga B e

[Rio de Janeiro], 11 de dezembro de 1970

A carta que escreve para Olga Borelli em 11 de dezembro de 1970, publicada em 1979
na revista paulistana Polímica e em 1988 na revista madrilenha El Paseante, não leva
o nome da destinatária. Por que essa omissão? De qualquer forma, é um dado
imprevisto, uma exceção à regra desse tipo de gênero epistolográfico. Eis um primeiro
imprevisto que encontramos nessa carta.

Numa primeira linha Clarice explica as circunstâncias em que escreve: Datilografo


esta carta porque minha letra anda péssima. De fato, nessa época Clarice tem
dificuldades de escrever tanto à mão quanto à máquina, em decorrência de um
acidente ocorrido no seu apartamento, em 1966: dormiu com o cigarro aceso, tentou
apagar o fogo com as mãos, ficou gravemente ferida e teve de fazer algumas cirurgias
reparadoras.

Também por esse motivo, precisou recorrer à ajuda de pessoas justamente para
secretariá-la no registro dos seus textos. Esse foi o papel que Olga desempenhou
desde quando recebeu essa carta até o falecimento de Clarice, em 9 de dezembro de
1977.

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Ca a Ca aO aB , b 1970 (A N a Ba aG b)

O gesto inicial parte de Olga Borelli, q e, depois de er Clarice n m programa de


tele is o, con ida-a a a tografar se s li ros para crian as acolhidas na F nda o
Rom o de Matos D arte. Clarice aceita. Em seg ida Clarice con ida Olga a ir ao se
apartamento. Ao l chegar, seg ndo depoimento da pr pria Olga Borelli, Clarice lhe
di : Entre. Sente-se. E lhe entrega a carta, q e dei a Olga m ito s rpresa. Mais m
dado impre isto, o seg ndo: entregar pessoalmente a carta ao destinat rio.

E h mais o tros dados q e poderiam ser considerados impre istos e q e s rgem no


trecho seg inte da carta.

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Eu achei, sim, uma nova amiga. Mas você sai perdendo. Sou uma pessoa insegura,
indecisa, sem rumo na vida, sem leme para me guiar: na verdade não sei o que fazer
comigo. Sou uma pessoa muito medrosa. Tenho problemas reais gravíssimos que
depois lhe contarei. E outros problemas, esses de personalidade. Você me quer como
amiga mesmo assim?

Ao dirigir-lhe o convite, tenta esboçar um autorretrato da intimidade pautado não na


sua força, mas nas suas fraquezas. É o que aparece lindamente resumido na frase:
Não tenho qualidades, só tenho fragilidades. Apontar para vícios e não virtudes
poderia ser mais um dado imprevisto, caso não fosse Clarice a autora da carta. Pois
aflora aí um dos traços marcantes da sua personalidade: a consciência da falta, da
frustração, como elemento instigador da própria criação – de textos e de amizades. E
depois de observação mais banal referente à acentuação de palavras do seu texto, feita
não por ela própria, mas pelo tipógrafo, recai em dois pilares fortes: a esperança e a
morte, além das qualidades da amiga.

Mas às vezes (não repare na acentuação, quem acentua para mim é o tipógrafo) mas
às vezes tenho esperança. A passagem da vida para a morte me assusta: é igual como
nascer do ódio, que tem um objetivo e é limitado, para o amor que é ilimitado. Quando
eu morrer (modo de dizer) espero que você esteja perto. Você me pareceu uma pessoa
de enorme sensibilidade, mas forte.

E finaliza lembrando o dia do seu aniversário.

Você foi o meu melhor presente de aniversário. Porque no dia 10, quinta-feira, era
meu aniversário e ganhei de você o Menino Jesus que parece uma criança alegre
brincando no seu berço tosco. Apesar de, sem você saber, ter me dado um presente de
aniversário, continuo achando que o meu presente de aniversário foi você mesma
aparecer, numa hora difícil, de grande solidão.

Mas o final da carta revela mais uma surpresa, ou melhor, mais um dado referente ao
imprevisto.

Precisamos conversar. Acontece que eu achava que nada mais tinha jeito. Então vi o
anúncio de uma água de colônia da Coty, chamada Imprevisto. O perfume é barato.
Mas me serviu para me lembrar que o inesperado bom também acontece. E sempre
que estou desanimada, ponho em mim o Imprevisto. Me dá sorte. Você, por exemplo,
não era prevista. E eu imprevistamente aceitei a tarde de autógrafos.

Sua,

Clarice

Nesse final de carta não é só a ‘candidata a amiga’ que escreve. É a escritora que
recorre a um simples perfume barato para traduzir com otimismo a possível surpresa
de um ato que pode ter efeitos positivos.

Aliás, é o que acontece em muitas ações de personagens de sua ficção. No romance A


paix o segundo G. H., a personagem G. H. acaba inusitadamente comendo o interior de
uma barata e assim experimenta a selvageria da matéria ‘viva’ pulsando, de que todos
nós, humanos e não humanos, somos feitos. E segundo depoimento da autora Clarice,
ela também ficou surpresa com esse final, que surgiu inesperadamente.
Imprevistamente.

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A essa altura, a fragrância de um perfume traduz mais que uma sensação: revela uma
poética, ou o modo como o artista é, ele próprio, flagrado pela sua arte. E como cultiva
essa técnica, ao usar essa espécie de poção mágica que reativa os fluidos positivos do
curso da vida.

Olga Borelli cumpriu o destino desejado por Clarice, pois acompanhou os últimos
momentos de vida da amiga. E lhe fez homenagem digna, quatro anos depois da sua
morte: publicou em 1981 o livro Cla ice Li ec , e b a a m el e a , em que
tenta registrar, segundo palavras da própria Olga no prefácio, a trajetória espiritual
de Clarice. Trata-se de uma primeira incursão na vida da escritora , que abriu
perspectivas para se conhecer os seus hábitos quando e como escrevia, o que
pensava sobre vários assuntos, mediante depoimentos tanto de Clarice quanto de Olga
a respeito de Clarice. E na parte final do livro incluiu cartas de Clarice às irmãs, pela
primeira vez levadas a público. O livro ganhou edição francesa, em 2003, com o título
de D e ie l a e, com tradução de Marivonne Pettorelli e Véronique Basset. Esse
livro constitui um marco histórico e merece ser reeditado em português.

Três cartas, três diferentes destinatários, em três diferentes décadas, com três
diferentes propostas. Numa primeira, Clarice, em carta para a irmã Tania Kaufmann,
anuncia seu projeto de vida: a literatura. E discute as relações entre literatura e vida.
Numa segunda, Clarice, em carta para o amigo Fernando Sabino, acata as tantas
sugestões que ele lhe faz sobre o seu romance A eia l , que ganharia o título de
A ma e c . E discorrem sobre as cartas sem assunto. Numa terceira, Clarice
envia convite para que uma determinada pessoa, Olga Borelli, se torne sua amiga.
Discorre sobre a esperança e a morte. E anuncia um modo de se reagir diante de
momentos difíceis, ao ser tocada pelo Imprevisto.

Entre irmãs, o pendor para a literatura, que aflora com ímpeto. Entre escritores,
também amigos, a crítica que vem e que é bem recebida. Entre amigas, uma estratégia
de ação positiva, enquanto lição de vida e procedimento poético.

Em todas elas, a presença da literatura, ora como um projeto de vida, ora como um
exercício crítico, ora como uma estratégia de ação na rotina e na arte. É a força da
vocação de escritora, que se revela em diferentes instâncias do seu repertório
epistolográfico.

DIA BA ELLA G LIB é professora livre-docente da Usp, autora de Cla ice, ma


ida e e c a (Edusp) e Cla ice f bi g afia (Edusp)

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T ITTER

T ee por @re is ac l

Re a CULT
@ e i ac l
Nos 99 anos de Clarice Lispec or, liberamos o acesso aos ar igos e ensaios j p blicados pela C l sobre a escri ora,
dona de ma obra igorosa q e con in a i ssima. Acesse: re is ac l .com.br/ ag/clarice-li #re is ac l

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