Você está na página 1de 10

Universidade Federal do Rio Grande – FURG

Instituto de Letras e Artes


Literatura do Rio Grande do Sul I
Prof. Mauro Nicola Póvoas

ALGUNS POETAS SUL-RIO-GRANDENSES DO SÉCULO XIX E COMEÇO DO SÉCULO XX

Fontoura Xavier – Cachoeira do Sul/RS, 1856; Lisboa/Portugal, 1922.


Poemas retirados de: XAVIER, Fontoura. Opalas. Porto Alegre: Centro de Pesquisas Literárias
da PUCRS, 1984. A 1ª edição é de 1884. Este livro é considerado o iniciador do Parnasianismo
no Rio Grande do Sul.

Estudo anatômico
Entrei no anfiteatro da ciência,
Atraído por mera fantasia,
E aprouve-me estudar anatomia,
Por dar um novo pasto à inteligência.

Discorria com toda a sapiência


O lente numa mesa onde jazia
Uma imóvel matéria, úmida e fria,
A que outrora animara humana essência.

Fora uma meretriz: o rosto belo


Pude tímido olhá-lo com respeito
Por entre as negras ondas de cabelo.

A convite do lente, contrafeito,


Rasguei-a com a ponta do escalpelo
E não vi coração dentro do peito!

Glossário
Lente: professor
Escansão de “Estudo anatômico”

Soneto, com versos de 10 sílabas poéticas (decassílabos).


Rimas no esquema ABBA ABBA CDC DCD.

En / trei / no an / fi / te / a / tro / da / ci / ên / cia,


A / tra / í / do / por / me / ra / fan / ta / sia,
E a / prou / ve- / me es / tu / dar / a / na / to / mia,
Por / dar / um / no / vo / pas / to à in / te / li / gên / cia.

Dis / co / rri / a / com / to / da a / sa / pi / ên / cia


O / len / te / nu / ma / me / sa on / de / ja / zia
U / ma i / mó / vel / ma / té / ria, ú / mi / da e / fria,
A / que ou / tro / ra a / ni / ma / ra hu / ma / na e / ssên / cia.

Fo / ra u / ma / me / re / triz: / o / ros / to / be / lo
Pu / de / tí / mi / do o / lhá- / lo / com / res / pei / to
Por / en / tre as / ne / gras / on / das / de / ca / be / lo.

A / con / vi / te / do / len / te, / con / tra / fei / to,


Ras / guei / -a / com / a / pon / ta / do es / cal / pe / lo
E / não / vi / co / ra / ção / den / tro / do / pei / to!
À liça
Bardo! o cantar somente o colo nu da amante
Não diz co’a evolução do século gigante!
Enquanto tu sorris
De uns olhos sensuais,
Nos lôbregos covis,
Nas furnas imperiais,
Acende a realeza a cólera tigrina
E sedenta e feroz! na luta que a domina
Arroja-se de encontro à nossa irmã Justiça
Tentando-a sepultar no chão da enorme liça!

E, sabes, a Justiça é o sol da Nova-Ideia,


A Musa varonil da homérica epopeia!...

Glossário
Liça: luta; local de grandes torneios
Lôbregos: tristes, soturnos, lúgubres
Escansão de “À liça”

Poema de duas estrofes: a primeira com dez versos, de 12 e 6 sílabas poéticas


(dodecassílabos e hexassílabos); a segunda com dois versos, de 12 sílabas poéticas
(dodecassílabos).
Rimas no esquema AABCBCDDEE FF.

Bar / do! o / can / tar / so / men / te o / co / lo / nu / da a / man / te


Não / diz / co’a e / vo / lu / ção / do / sé / cu / lo / gi / gan / te!
En / quan / to / tu / so / rris
De uns / o / lhos / sem / su / ais,
Nos / lô / bre / gos / co / vis,
Nas / fur / nas / im / pe / riais,
A / cen / de a / re / a / le / za a / có / le / ra / ti / gri / na
E / se / den / ta e / fe / roz! / na / lu / ta / que a / do / mi / na
A / rro / ja / -se / de en / con / tro à / no / ssa ir / mã / Jus / ti / ça
Ten / tan / do-a / se / pul / tar / no / chão / da e / nor / me / li / ça!

E, / sa / bes, / a / Jus / ti / ça é o / sol / da / No / va-I / dé / ia,


A / Mu / sa / va / ro / nil / da ho / mé / ri / ca e / po / pé / ia!...
Marcelo Gama – Mostardas/RS, 1878; Rio de Janeiro/RJ, 1915.
Poemas retirados de: GAMA, Marcelo. Via sacra e outros poemas. Rio de Janeiro: Sociedade
Felipe d’Oliveira, 1944. A 1ª edição de Via sacra de 1902. Este livro é considerado o iniciador
do Simbolismo no Rio Grande do Sul.

Via sacra
O caminho sagrado, esse dos sonhadores
que sobem, a cantar, a montanha das dores,
tendo os pés a sangrar e uma lira por cruz!
Caminho do ideal, estrada que conduz
a uma terra de amor e de dias risonhos,
desde muito sonhada em mentirosos sonhos,
e onde querem chegar, subindo entre alcantis,
surdos à multidão eterna de imbecis,
os poetas, os bons, os visionários todos
que acreditam no sonho e na quimera... – doudos!
jardineiros da dor, coveiros da ilusão,
que a regar e a enterrar, já têm, no coração,
– um viçoso jardim, e nalma – um cemitério;
malditos, para quem a ventura é um mistério,
porque quando supõem haver chegado o – Enfim!
surge mais uma curva... o caminho é sem fim.

Glossário
Alcantis: rochas, despenhadeiros
Escansão de “Via sacra”

Poema de uma única estrofe, com versos de 12 sílabas poéticas (dodecassílabos).


Rimas emparelhadas no esquema AABBCCDDEEFFGGHH.

O / ca / mi / nho / sa / gra / do, es / se / dos / so / nha / do / res (A)


que / so / bem, / a / can / tar, / a / mon / ta / nha / das / do / res, (A)
ten / do os / pés / a / san / grar / e u / ma / li / ra / por / cruz! (B)
Ca / mi / nho / do i / de / al, / es / tra / da / que / con / duz (B)
a u / ma / te / rra / de a /
mor / e / de / di / as / ri / so / nhos, (C)
des / de / mui / to / so / nha / da em / men / ti / ro / sos / so / nhos, (C)
e on / de / que / rem / che / gar, / su / bin / do en / tre al / can / tis, (D)
sur / dos / à / mul / ti / dão e / ter / na / de im / be / cis, (D)
os / poe / tas, / os / bons, / os / vi / si / o / ná / rios / to / dos (E)
que a / cre / di / tam / no / so / nho e / na / qui / me / ra... / – dou / dos! (E)
jar / di / nei / ros / da / dor, / co / vei / ros / da i / lu / são, (F)
que a / re / gar / e a en / te / rrar, / já / têm, / no / co / ra / ção, (F)
– um / vi / ço / so / jar / dim, / e / nal / ma – um / ce / mi / té / rio; (G)
mal / di / tos, / pa / ra / quem / a / ven / tu / ra é um / mis / té / rio, (G)
por / que / quan / do / su / põem / ha / ver / che / ga / do o – En / fim! (H)
sur / ge / mais / u / ma / cur / va... o / ca / mi / nho é / sem / fim. (H)
Eu (trechos)
Sou feio se não mente o juízo dos espelhos,
nem é falsa a expressão do que olha para mim!
Também, onde habitar, senão num corpo assim,
esta alma que me põe sangrentos os joelhos?
Porque eu vou me ferindo entre abrolhos e cardos,
que tal é, neste mundo, o fadário dos bardos!

Nasci à beira-mar numa noite aziaga,


e comigo este mal incisivo e profundo.
Se eu ouvi, mal cheguei, por desgraça, a este mundo,
uns gemidos de mãe e os soluços da vaga!...
Como não há de ser cheia de dissabores,
vida que despontou com lamentos e dores?

Já sem brilho e sem luz, já de um verde apagado,


os meus olhos vêm tudo através de atro véu.
Se eu tivesse, ao nascer, volvido-os para o céu,
talvez fossem azuis e melhor o seu fado...
Porém, mal os abri, refleti-os no mar,
e eis que verdes os tenho e exaustos de chorar.
(...)
Hostilizo o burguês, mas confesso, entretanto,
que acho um belo ideal o da vida burguesa:
ter dinheiro, conforto, amigos, boa mesa,
e bocejar ouvindo as misérias que eu canto!...
Antes burguês e mal saber firmar o nome,
do que ser invejado e agonizar de fome. (...)
Alceu Wamosy – Uruguaiana/RS, 1895; Santana do Livramento/RS, 1923.
Poemas retirados de: WAMOSY, Alceu. Poesia completa. Porto Alegre: EDIPUCRS; IEL; Alves
Editores, 1994.

Duas almas
A Coelho da Costa
Ó tu, que vens de longe, ó tu, que vens cansada,
entra, e, sob este teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho,
vives sozinha sempre, e nunca foste amada...

A neve anda a branquear, lividamente, a estrada,


e a minha alcova tem a tepidez de um ninho.
Entra, ao menos até que as curvas do caminho
se banhem no esplendor nascente da alvorada.

E amanhã, quando a luz do sol dourar, radiosa,


essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua,
podes partir de novo, ó nômade formosa!

Já não serei tão só, nem irás tão sozinha:


Há de ficar comigo uma saudade tua...
Hás de levar contigo uma saudade minha...
(De Coroa de sonho, 1925)
De poetas
Ainda hoje em dia existe honrada e boa gente,
Que pensa que ser poeta é coisa muito feia,
Muito rico burguês, que vive honestamente
E que aconselha à filha ingênua que não leia...

– Sim, tu não deves ler, donzela. Ainda está cheia


De sonhos de criança, a tua alma inocente...
E os poetas são o diabo – e se lhes dá na veia
Dizerem coisas más, dizem-nas claramente!

Mas eu que já perdi na estrada da existência,


Nos abismos letais do ódio e do pecado,
Os sonhos virginais e os lírios da inocência;

Eu prefiro, alma ingênua, a todo o peregrino


Tesouro sem igual do teu pai honrado,
Um poema lapidar, um verso alexandrino!
(De Flâmulas, 1913)
Via crucis
“Dolce mal, dolce affanno, dolce peso”1, Petrarca
Ó Calvário do Verso! Ó Gólgota da Rima!
Como eu já trago as mãos e os tristes pés sangrentos,
De te escalar, assim, nesta ânsia que me anima,
Neste ardor que me impele aos grandes sofrimentos...

Esta mágoa, esta dor, nada existe que exprima!


Sinto curvar-me o joelho a todos os momentos!
E quanto falta, Deus, para chegar lá em cima,
Onde o pranto termina e cessam os tormentos...

Mas é preciso! Sim! É preciso que eu carpa,


Que eu soluce, que eu gema e que ensanguente a escarpa,
Para a esse fim chegar, onde meus olhos ponho!

Hei de ascender, subir, levando sobre os ombros,


Entre pragas, blasfêmias, gemidos e assombros,
A eterna Cruz pesada e negra do meu Sonho!
(De Na terra virgem, 1914)

Glossário
Gólgota: do Aramaico, é a colina em que Jesus foi crucificado;
também é conhecido como Calvário, do Latim.

1
“Doce mal, doce ânsia, doce peso!”

Você também pode gostar