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Escola de Comunicação e Artes // Universidade de São Paulo

CAC0559 - Práticas Performativas II

2023 / Prof. Marcos Aurélio Bulhões Martins

ALUNO: IVAN CUNHA TEIXEIRA

n⁰ USP: 12506434

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Trabalho Final - Reflexões acerca da matéria Práticas Performativas II

PARTE I - CORALIDADES PERFORMATIVAS

Logo na primeira aula do semestre, em meio a tantos rostos novos, lembro de dizer
em roda que meu contato com a performance era apenas teórico e muito superficial.
Isto é: eu já havia lido o texto da Eleonora Fabião para o vestibular, e também fui
público para amigues e artistas performers. Apesar das piadas que escuto com
frequência do meu melhor amigo (“vocês na USP têm um pezinho na performance,
né?”), eu mesmo nunca havia tentado.
Para mim, esse contato não podia ter vindo em hora melhor. Após um primeiro
semestre estressante, entrar em uma turma com tantas pessoas de outros cursos
foi de certa forma revigorante.
Em roda, muitos tiveram a mesma resposta: estavam ali para tentar algo diferente,
ou para se aventurar, ou para sair da mesmice. Então também criei para mim uma
possibilidade de aventura às quartas-feiras, e me lembrei que havia experimentação
e prazer no fazer artístico.
Meu corpo, porém, era de um iniciante, tanto quanto o de qualquer um ali. Logo
descobri que nessa nova aventura havia uma certa igualdade de pressupostos:
ninguém sabe exatamente o que vai acontecer.
E assim foi ao longo da nossa experimentação na USP, em uma decisão acertada
de começarmos através das coralidades performativas, juntes. Naquela primeira
aula em que saímos pela região ao redor da ECA senti tantas coisas ao mesmo
tempo… Medo, confusão, e também felicidade desenfreada. Um lugar misto, mas
um lugar de ação! A ideia é que não paramos em nenhum momento, e a energia de
um puxava a do outro quando eu menos esperava. Saí dessa experiência muito feliz
e realizado porque algo na proposta me arrancou do lugar de inércia que ao longo
dos anos se tornou tão confortável… e me jogou para o mundo.
O mesmo aconteceu na Praça da República, embora em vibrações diferentes. Lá,
estava eu mais preocupado em absorver o mundo ao meu redor e talvez reagir a ele
do que em manter uma certa obediência ao coletivo. Isso com certeza só foi
possível porque já estávamos mais familiarizados com o programa, com o jogo, e no
geral foi muito interessante descobrir a República sob um novo olhar.
Eu venho de Jundiaí, e apesar da proximidade eu sempre me senti um pouco
estrangeiro em São Paulo. Não sei o quanto isso também não pode se aplicar às
próprias pessoas que moram em São Paulo. Nunca havia ficado tanto tempo
apenas observando os arredores da República e isso me deu uma consciência
maior da cidade onde atuo.
A República é quase como um cenário de literatura distópica, um mundo em
constante mudança, pulsando de novidades, beleza e também temores. Lá é um
lugar de passagem pra muitos, enquanto pra outros é morada. Tem uma escola, e
também tem sempre policiais rondando em cavalos enormes. Tem um lago que eu
nunca notei, com uma ponte pela qual eu também nunca havia passado.
Se nossa primeira incursão revelou um pouco mais sobre a minha natureza ao me
colocar em ação, senti como se a ação desta vez fosse a própria cidade de São
Paulo e todas as suas manifestações, ela também um corpo a ser descoberto. E
também houve prazer em agir nesse espaço.

PARTE II - GREVE

Esse trecho das reflexões foi escrito a algumas semanas atrás, antes da
performance dos olhos.

Em meio ao nosso semestre de estudos das Práticas Performativas no


departamento de Artes Cênicas, os estudantes da USP como um todo votaram pela
paralisação das aulas no campus em uma greve geral que durou pouco mais de um
mês. Quanto a efetividade de nossa luta ainda há muitas dúvidas, e o desfecho das
negociações certamente deixou muitos estudantes decepcionados.
No que tange o campo das coralidades performativas, porém, penso que não
houveram dúvidas quanto à nossa ocupação enquanto alunes.
Ocupação do espaço público universitário, subversão da performatividade cotidiana,
as massas em protesto; nenhuma estratégia foi alheia à nossa luta.
Houveram piquetes de todos os tipos, físicos e sonoros - unindo grupos de pessoas
em um objetivo comum de bloqueio a qualquer acesso cotidiano à produção de
conhecimento da Universidade.
Também foram realizados cortejos em protesto, nos quais os estudantes
estabeleceram uma série de combinados prévios, como vestimentas e músicas a
serem cantadas, além do trajeto a ser percorrido. Houve então esse momento
prévio para pensar o programa de ação do dia seguinte coletivamente, e que
ocorreu no teatro laboratório do CAC.
Ao contrário do que aconteceu, por exemplo, durante a derrubada da grade da
Prainha, cuja ação principal não havia sido previamente combinada. A indignação
estava lá, já plantada ao longo dos anos, e dessa forma os códigos e demandas que
regeram o coletivo naquele momento já haviam sido estabelecidos no imaginário da
luta estudantil a um bom tempo. Então, em um ato performativo improvisado,
estudantes derrubaram uma parte das grades usando a força bruta e o coletivo para
se proteger de possíveis consequências políticas.

PARTE III - O ESPINHO NA GARGANTA

Para o trabalho final, era minha intenção lidar com esta questão pessoal que estava
rondando minha mente a um bom tempo. Acho que foi logo na primeira ou segunda
semana que ouvimos o Bulhões dizer “espinho na garganta” pela primeira vez, um
termo para designar um incômodo muito forte, algo que atravessasse o nosso corpo
e nossa experiência no mundo.
Embora nem sempre de forma nítida, o meu incômodo estava lá comigo, sendo
cultivado, já nessa primeira semana - e eu elaborei uma imagem para explicá-lo.
A ideia era realizar uma foto-performance com olhos, simbolizando minha constante
auto vigilância e medo de desagradar. Essa dificuldade tinha recentemente me
impedido de me posicionar de forma contundente em uma desavença e acabou por
criar uma confusão ainda maior entre as partes.
Após elaborada a imagem, porém, acabei querendo testar o meu corpo ainda mais
para que ele sentisse algum nível de exposição como havia sentido em ambas as
experiências coletivas. A aula com o Oliver me ajudou a encarar essa performance
como minha, a organizá-la de forma mais minuciosa e então, me fez sentir mais no
controle antes de embarcar em uma aventura.
O programa era:

CONCEITOS: Pretendo transformar o meu corpo na imagem de um anjo bíblico, com suas
quatro faces e os mil olhos. Reflito sobre a vigilância imposta sobre corpos queer e minhas
vivências enquanto uma criança viada em uma família de criação cristã-católica. Sempre
preocupado em “compensar” meu jeito afeminado, aprendi a me destacar de outras formas
(através do meu bom comportamento, compreensão excessiva, gentilezas e ousadias
falsas). Meu espinho na garganta é ter dificuldades em saber quando estou agindo
meramente de acordo com a vontade dos outros. E então, a moralidade cristã-católica me
deu medo de desagradar. Pensei na imagem dos anjos: vigilantes sem sexo, com seus mil
olhos e suas mil asas.

O QUE EU QUERO TESTAR COM O MEU CORPO: Colocar a minha estranheza e minha
performatividade de gênero em evidência - me sentir visto, vigiado - e testar a sensação
contraditória de intimidade pública no meu corpo.

QUAL É A AÇÃO: Grudar 400 olhos de artesanato para bonecas pelo meu corpo. Fazer o
percurso a pé entre a minha casa e a Catedral Nossa Senhora do Desterro de Jundiaí. Não
falar ao longo do percurso inteiro. Chegando lá, parar em frente à árvore de Natal. Sorrir e
permanecer no espaço por no máximo 3 horas ou até alguém vir falar comigo. Caso alguém
fale, entregar em papel um texto autoral meu. É permitido que eu fale com a pessoa. Voltar
para casa em silêncio.

TEXTO:

Tudo me remete ao centro de Jundiaí.


A verdade é que eu era pequeno e me empolguei com uma mochila florida linda, aqui por
perto. Gritei alto. A resposta veio ríspida, nítida, “larga de ser viado”.
Censuraram a minha alegria e então me retratei, aprendi a ser apenas anjo.
Bem aqui mesmo, em frente à Catedral.
Você já se imaginou encontrando um anjo?
A antítese absoluta da vida material: um espaço, sem um corpo. Um fantasma, por
definição, daqueles que a nossa mente não consegue compreender, com seus mil olhos e
mil asas. Um anjo! Vivo - mas opaco.
Hoje no caminho até aqui senti seu cheiro novamente. Pensei ter visto você tomando
sorvete do outro lado da avenida e imaginei se você também se lembrava de mim. Ainda te
amo.
Todos os prazeres ainda parecem errados.
Mas cansei de ser um fantasma.
Deus te abençoe.

QUE OBJETOS FAZEM PARTE DESTA AÇÃO: Uma saia + Sombra de olho + Batom +
Olhos de boneca + Um texto autoral

QUAL A DURAÇÃO DA AÇÃO: Percurso inicial dura cerca de 40 minutos, em velocidade de


caminhada padrão. Instalado em frente à Igreja, a ação pode durar até 3 horas, ou até que
alguém venha conversar comigo.

ONDE A AÇÃO ACONTECE: Caminhada pela Avenida Jundiaí até o centro da cidade, na
praça da Catedral.

COMO O PÚBLICO INTEGRA A AÇÃO: Em sua maioria são observadores, transeuntes.


Possivelmente apenas uma pessoa irá receber um texto íntimo.

O QUE PODE ACONTECER/POSSÍVEIS SOLUÇÕES: Eu posso me queimar no Sol (vou


passar protetor); A ação pode acabar muito rápido; Posso sentir vontade de fazer xixi (caso
se torne insuportável eu vou até a Galeria, faço xixi e volto); Os olhos podem descolar do
meu corpo (deixar que descolem); Podem me agredir/ser violentos; Eu posso sofrer um
acidente no caminho e me machucar; Talvez eu sinta sede (vou levar água); Pode chover
(se chover, eu vou ficar molhado).

De certa forma, tudo ocorreu como o previsto. Ao mesmo tempo, foram tantas as
impressões que a experiência me causou que elas não poderiam nunca ser
previstas.
Saí de casa já com a restrição da fala, e mantive meu plano mesmo quando dei de
cara com um vizinho no elevador. Cumprimentei silenciosamente com a cabeça, me
sentindo poderoso por estar vestido de maneira tão escandalosa e impedido de me
justificar. Sobrou apenas esse fantasma entre nós, eu e meu vizinho, não nomeado
por nenhum dos dois, mas com certeza sentido de alguma forma. Pelo menos da
minha parte houve a seguinte conclusão: esse corpo está sendo meu por enquanto,
e se eu não posso justificá-lo, resta relaxar.
E essa foi a experiência. Saí de casa muito nervoso, alguns minutos depois que a
minha mãe havia saído. Pedi a ela que tirasse fotos da maneira mais discreta
possível, para que a performance não fosse revelada a ninguém, o que, na minha
cabeça, faria com que ela perdesse alguma força. Depois de alguns quarteirões, fui
me sentindo mais calmo e no controle. As pessoas ao meu redor, porém, não
estavam no controle.
Foram muitos os olhares de confusão, ou então de espanto, admiração, ou de graça
que me lançaram. Alguns comentários eram maldosos, maliciosos, ou então só
curiosos. Ouvi de um homem “o jovem não tem mais o que inventar hoje em dia…”
e duas mulheres comentando “mas pra quê isso?”. Uma criança gritou “OLHO!” em
certo momento.
Eu apenas me sentia fora do poder quando, de alguma forma, eu avistava a minha
mãe em algum lugar pela rua. Sentia que ela era uma presença que me
tranquilizava de forma excessiva, me colocava em um estado mais próximo do que
eu sinto no teatro e menos do que eu estava querendo sentir ali.
Como se eu estivesse interpretando um papel de mim mesmo, e não simplesmente
SENDO.
O momento mais tenso foi o de aproximação da igreja, quando eu senti os olhares
mais hostis. Minha mãe me confirmou mais tarde que um dos homens que estava ali
parado me olhou com agressividade antes de decidir se afastar.
Mas não durou nem 15 minutos antes de eu ser abordado por uma mulher que
estava de passagem, que simplesmente exclamou “Que lindo!”, e encerrou a
performance com a sua gentileza.
Eu agradeci e entreguei o texto, feliz por tudo ter acabado com uma pessoa tão
doce e gentil. Ela quis saber mais sobre o que era que eu estava fazendo e pediu
um abraço.
Quando nossos corpos se encontraram, os olhinhos começaram a cair pelo chão.
Aqui estão algumas das imagens produzidas:
Em uma nova experiência, eu optaria por uma caminhada um pouco mais lenta.
Sinto que a minha velocidade pode ter atrapalhado que as muitas pessoas mais
distantes me vissem de fato. Também faria a documentação e captação das
imagens de outra forma, ou talvez não faria. Teria sido ainda mais proveitoso se eu
estivesse me sentindo sozinho ao longo desta caminhada. E também (talvez), se eu
estivesse me sentindo mais ousado, optaria por estar ainda mais próximo à igreja do
que eu fiquei.

PARTE IV - CONCLUSÕES

Como estudante do CAC, sinto que essa matéria ampliou a minha apreciação
artística e me deu novas ferramentas para processos criativos. Tem se tornado um
prazer para mim pensar em como incorporar programas de ação à metodologia dos
processos do qual faço parte, como estudo ou como proposta cênica. É muito
prazeroso pensar artisticamente a partir da ação, do sentir, da manipulação dos
materiais disponíveis, e, no geral, lidar com a minha arte da maneira como vi Oliver
fazendo, tornando-se obcecado por cada pequena parte do programa e depois
abrindo-se para o inesperado.
Além disso, devo acrescentar que me tornei um melhor espectador de
performances, sejam elas planejadas ou cotidianas - e viver fica um pouco mais
interessante assim. Meu olhar está mais atento e mais ideias estão fluindo.
Inclusive, mais atento para não perder nenhuma dessas nuances prazerosas no
futuro e me lembrar sempre da qualidade da arte produzida por nós, mesmo por
pessoas que estão seguindo outras carreiras na vida. Porque essencialmente a arte
não pode ser uma exclusividade nossa que vivemos dela.
Que meu coração continue batendo forte como em todas as vezes que me abri para
o inesperado, porque é um tesão enorme isso que fazemos juntes.

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