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ISSN 2358-6060
A rteda 97
revista

Cen A
O QUE PODE

OF IGURINO NA D ? ANÇA

“What Can the Costumes in Dance?”

Marcilio Souza Vieira*


Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação
Centro de Educação
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

RESUMO: Trata-se de um ensaio sobre o figurino na dança moderna. Neste, questionamos o que veste
o corpo que dança. A reflexão foca o figurino da dança moderna por entender que tal elemento, em
determinado período da história da dança, contribuiu para se pensar em um novo estilo de dança, em
um novo paradigma de corpo. O texto objetiva compreender como a estética do figurino contribui
para o movimento dançado na cena da dança e parte de uma abordagem metodológica da análise de
imagens. Na reflexão, compreendeu-se que, a partir das imagens analisadas, o figurino figura como um
sistema integrador na representação: o espectador, além da dança, aprecia-o como ponto de referência,
como sinalizador da representação.

Palavras-chave: Figurino; Dança Moderna; Intérpretes da cena.

ABSTRACT: It is an essay about the costumes in modern dance. In this, we question what you wear
the dancing body and the reflection takes place in the costume of modern dance for thinking that
such an element in a certain period of the history of dance helped to think of a new dance style in a
new body paradigm. The content of understanding how the aesthetics of costume contributes to the
danced movement in the dance scene and part of a methodological approach to image analysis. On
reflection it was understood that from the images analyzed the costume figure as a system integrator
in the representation; the viewer, in addition to dance, enjoy them as a reference point, as this flag
representation.

Keywords: Costume Design; Modern dance; Interpreters scene.

Marcilio Souza Vieira - O que Pode o Figurino na Dança?


Revista Arte da Cena, Goiânia, v. 2, n. 1, p. 97-108, Dezembro/2015
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Há tempos venho pensando que, na dança, Portanto, nesse trabalho, ler imagens
nos preocupamos com os movimentos elaborados, significa ler seus sentidos. Por serem as imagens
com a consciência corporal, com os tipos/estilos polissêmicas, podemos manter posturas diferentes
de dança, suas técnicas e estéticas, e esquecemo- do olhar. Sobretudo, maneiras diferentes de vê-las
nos do figurino e de sua representatividade e de pensá-las, já que as mesmas se caracterizam
na dança. O que pode o figurino na dança? por se proliferar, sem que haja um horizonte que
O que veste o corpo que dança? Será que já limite sua ocorrência visual (LEITE, 1998).
paramos para refletir sobre esse importante
elemento que configura as danças, quer sejam Assim nosso olhar se dirige às imagens
clássicas, da tradição, folclóricas, modernas ou como o olhar de um apreciador que, imbuído de
contemporâneas? Este elemento serve apenas para uma concepção de mundo, interpreta as obras
vestir ou serve também como cenário ambulante? como um objeto sensível, contextualizado em
Compõe ele uma imagem, uma estética? seu tempo, mas que pode ser ressignificado no
presente. No encontro recíproco entre o apreciador
Tomamos para nossa reflexão o figurino da (pesquisador) e a obra (fontes investigadas), é
dança moderna por achar que tal elemento, em possível o compartilhar de sentidos diversos e
um determinado período da história da dança, a criação de novos horizontes de possibilidades
contribuiu para se pensar em um novo estilo de interpretativas.
dança, em um novo paradigma de corpo; em uma
quebra de barreiras instituída pelo balé clássico e O Corpo Esculpido na Dança
seus “tutus”, fadas, ninfas e príncipes. pela Roupagem Moderna

O texto objetiva compreender como a A forma do corpo vestido como objeto


estética do figurino contribui para o movimento no espaço, em movimento e obtido através de
dançado na cena da dança. Parte de uma sua estética tridimensional, relevos, depressões,
abordagem metodológica da análise de imagens. concavidades e convexidades (que entre curvas
Ler as imagens nesse texto torna-se, assim, uma virtuais se movimenta em várias partes do corpo
ação relevante, uma vez que as mesmas, longe do artista da cena, produzindo ora quadris
de serem objeto neutro, acolhem significados imensos, ora traseiros empinados, contornos
que interferem na codificação e decodificação da sinuosos, movimentos extrapolados, contidos,
mensagem a ser transmitida (LEITE, 1998). alongados, grotescos e sublimes) caracteriza o

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vestir na dança e, em particular, o vestir na dança por este corpo. O figurino, nesta proposição,
moderna. parecia ter extrapolado sua função de invólucro,
para penetrar as camadas internas do corpo,
A dança moderna também rompe com perfurar a “alma”, e criar um estado de constante
questões relacionadas ao figurino, abandonando integração com o outro.
espartilhos, sapatilhas de ponta, dando espaço
para o surgimento de um vestuário leve, sob Tomamos as danças de Fuller, Duncan, St.
influência da vestimenta grega, com pés no Denis e Graham como basilares para se pensar o
chão, fazendo novas proposições estéticas. No figurino na dança moderna.
século XX, a modernidade instaurou um novo
vocabulário estético, junto à criação de um Na dança de Loie Fuller se percebe que os
sistema de dança, que refletiu o pensamento movimentos dançantes não são desprovidos de
moderno, agregando elementos que unem o corpo narrativas. Movimentos e jogo de luz concebem
às forças da natureza, colocam os pés no chão, uma dança, qual poesia, definida em termos de
valorizam a beleza e a perfeição das formas, a pura eminência, corporalizando uma espécie
relação com a gravidade, movimentos de atração, de escrita, fugaz inscrição espaço-temporal
repulsão, resistências e não resistências. (BARIL, (SPALADORE, 2012). A dançarina convertia-
1987, p. 27). se, então, numa entidade que materializava o
efêmero, numa configuração de traços e figuras
Na dança moderna, tal figurino foi em movimento.
emblemático nas produções artísticas dançadas
por Loie Fuller, Ruth Saint-Denis, Ted Shawn, Os desenhos curvos e torcidos de seu
Isadora Duncan e Martha Graham. Esses artistas movimento e de seu figurino, suas referências
da dança criaram coreografias e figurinos que à natureza e seu uso de novos materiais e
retratavam uma época, um período de suas tecnologia foram ingredientes importantes para
criações dançadas. o ascendente estilo Art Noveau. Dançando em
estilo que tinha cuidadosamente desenvolvido
Na dança desses artistas da cena, o figurino por si própria, à margem da tradição de quatro
não servia mais de adereço ilustrativo para os séculos de dança aristocrática europeia, Loie
dançarinos. Tal figurino passava a dialogar com o Fuller estava sendo seriamente considerada como
corpo do intérprete e com os movimentos criados artista (COLLECTIF RM, 2002; CURRENT &

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CURRENT, 1997). multimídia.

Com figurinos esvoaçantes, ela conectava- Sobre a dança dessa artista, Duncan (1986,
se à arte e à vida; seu figurino era composto por p. 76) diz que “[...] diante de nossos olhos ela se
vários metros de tecido, bem como por hastes, a transformava em orquídeas multicores, em flores
fim de alongar os braços e produzir movimentos do mar, ondulantes, em lírios que se lamentavam
mais amplos, além de um efeito de asas. em uma espiral”. Para Isadora Duncan, Fuller
representava a magia, numa fantasmagoria de
Ver-se-á que em seus desempenhos, luzes, de cores e de formas irreais. E continua
girando entre sedas, Fuller transformou o corpo Duncan (1986, p.77):
em cena em uma escultura cinética que mistura o
movimento, a luz e o virtuosismo técnico. Sua(s) [...] todas as noites, eu assistia de um camarote às
danças de Loie Fuller, e era cada vez maior a minha
coreografia(s) criou/criaram as formas fantásticas
admiração pela sua arte maravilhosa e efêmera. Aquela
daquele virtuosismo cênico das primeiras décadas extraordinária criatura tornava-se fluida, incandescia-
do século XX, partituras coreográficas sugestivas se em vida, corria toda a gama das cores, crepitava
numa chama, para finalmente alçar-se ao infinito num
criadas pela manipulação de tecidos e luzes
turbilhão de labaredas.
coloridas.
O que Fuller fazia era construir em cena
Ao movimentar-se com figurino e luz, ela outro corpo, a partir do seu, e fazia isto com
sugeria formas próximas à de nuvens, mariposas, luz, tecido e movimento, produzindo formas
flores, pássaros, chamas e borboletas, dentre de borboletas, chamas, flores, dentre outras. Ela
outras. Fuller criava suas próprias coreografias estudou e investigou cada um destes elementos e
figurinos e iluminação, sendo, para Pimentel os efeitos que conseguia produzir, investigando o
(2008, p.122) “[...] fundamentalmente uma efeito das cores, as formas que poderia construir
criadora de imagens visuais animadas”. A referida dançando, bem como as imagens visuais que
autora argumenta ainda que o conceito de poderia produzir, quando a luz refletia sobre o
movimento, para a artista, não estava relacionado tecido e ela dançava (SPALADORE, 2012).
apenas ao corpo dançante, mas também à luz,
à cor e ao tecido, pois, quando ela dançava, É preciso acentuar que Loie Fuller,
todos estes elementos estavam fundidos pelo americana revolucionária, mais do que lenços
movimento, em uma singular imagem visual e que remetiam à liberdade, ao mar ou ao vento,

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valeu-se de extensões, varetas de madeira, que, importantes em sua dança (SUQUET, 2008).
escondidas sob seu figurino, projetavam seus
braços, produzindo jogos fascinantes com o Outra grande dançarina da modernidade,
tecido e a luz, criando dinâmicas onde o objeto que influenciou este estilo, com seus figurinos,
não mais tinha a necessidade de explicar uma foi Isadora Duncan. Ela dançou de pés descalços,
situação ou remeter a alguma ideia concreta, mas vestida em túnicas gregas, apresentando-se
apenas produzir efeitos abstratos, a partir de seu em solos, tendo como inspiração os desenhos
figurino. A artista era polivalente, pois criava, dos vasos gregos e os movimentos da natureza.
desenhava, arquitetava seus próprios figurinos Voltou às origens gregas para dar forma à sua
(SUQUET, 2008). dança, não para imitá-las, mas para aprender com
movimentos espontâneos da vida.
Os movimentos do corpo em sua dança não
serviam apenas para pôr o tecido em movimento, De túnica e descalça, juntando-se a um
mas para criar imagens animadas. O que ela helenismo captado em figuras de vasos e estátuas
apresenta é uma nova configuração de dança, um com o romantismo musical de Beethoven,
novo modo de pensar esta arte, que une corpo e Chopin, Liszt, Berlioz, Wagner, ela conquistou
tecnologia bem como novos artefatos técnicos, multidões.
que são suas invenções patenteadas. A partir
dela, podemos pensar na dança não apenas como Pesquisadora voraz de sua arte, Isadora
uma linguagem de movimentos corporais, mas Duncan estudou a arte grega para compor suas
como uma linguagem, também, de imagens em coreografias; rebelou-se contra o figurino dos
movimento. repertórios do balé clássico e influenciou gerações
de bailarinos. Em seus escritos autobiográficos,
Se sua dança não expressava sentimentos, diz ter sido dançarina e revolucionária desde a
nem representava ideias. Sua arte era sensorial mais tenra idade. Vivenciando intensamente a
e dizia respeito ao controle do código, do continuidade entre seu corpo e a natureza, ela
movimento e do uso da luz e da cena, todos tão buscou nos fenômenos naturais e na mitologia
importantes em suas criações. Assim, os desenhos modelos de movimentos e disciplinas rítmicas.
curvos e torcidos de seus movimentos e de seu
figurino, suas referências à natureza e seu uso de No Metropolitan, em Nova York, dançou
novos materiais e tecnologias foram ingredientes nua e descalça. Vestida apenas com um xale

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vermelho, ela surpreendeu o público e encerrou desejos, a dançarina refletia:
seu espetáculo dançando o hino nacional
[...] Esse desejo de permanecer no meu atelier e
francês, numa tentativa intensa e desesperada
trabalhar, desesperava o meu empresário. Ele não
de sensibilizar os americanos e chamar atenção sessava de me bombardear com novas propostas [...]
para os efeitos da Primeira Guerra Mundial que e não raro eu o via chegar [...] para mostrar-me jornais

devastava a Europa. que contavam como Londres e alhures se copiavam


os meus cenários, os meus trajes e as minhas danças,
e com essas cópias passavam-se por originais e
Sempre carregando uma túnica em seus obtinham um certo sucesso (DUNCAM, 1986, p. 115).
pertences, Isadora Duncan dançou o Danúbio
Azul, de Strauss, e Ifigênia, de Gluck, aonde de De túnica branca e transparente, ela
túnica e pés descalços interpretava as virgens dançou a música Tannhäuser, de Wagner. Tal
de Cálcis. Criou A Primavera inspirada na tela feito foi um escândalo para a época, pois a túnica
de mesmo nome, de Botticelli. A respeito dessa transparente desvendava todas as partes de seu
criação coreográfica ela diz: corpo, produzindo certo efeito no meio de suas
pernas róseas e das de suas companheiras de baile,
[...] Inspirada nesse quadro, criei uma dança na qual
intimidando, dessa forma, os espectadores que a
procurava reproduzir os suaves e mágicos movimentos
que dele se desprendiam, a delicada ondulação da terra assistiam.
coberta de flores, a ronda das ninfas e o voo dos zéfiros,
tudo concertado à volta da figura central, misto de
O despojamento de seu figurino conferiu
Afrodite e de Madona, a cujo gesto dava-se a eclosão
da primavera. (DUNCAN, 1986, P. 92). a esta artista da cena representar em algumas
de suas coreografias sem acessórios ou artifícios

Artista astuta e audaz, Duncan, dançarina cenográficos. Tal concepção de figurino sai da

dionisíaca, permitiu-se coreografar as ideias de representatividade pictórica decorativa para um

Nietzsche, Locke, Grotius, Montesquieu, Beccaria, décor integral e não incidental. O figurino devia

Russeau, dentre outros que ela admirava. revelar e não decorar o corpo do intérprete da
cena.

Em determinado momento de sua vida, já


reconhecida como dançarina dionisíaca, desejava Isadora Duncan foi, de certa forma, ousada

estudar e prosseguir em suas pesquisas, criar uma para seu tempo, pois rejeitou o uso de espartilho,

dança e movimentos que ainda não existiam, além além de andar descalça e desprovida de artifícios,

de sonhar com uma escola de dança. Sobre esses o que chocou os americanos. Suas danças com

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véus e túnicas soltas trouxeram impacto e ruptura St. Denis trouxe para seus figurinos exóticos e sua
dança a energia da espiritualidade religiosa, “[...] nela
aos conceitos estabelecidos, tanto no que se refere
se abolia a divisão entre corpo e espírito, arte e religião”
ao figurino da dança como à influência que causou (GARAUDY, 1980, p. 74-75).
em outras artes, como a moda.

O que Ruth tinha em comum com Isadora


Com seus figurinos, a artista conferia uma Duncan era a vontade de dar à dança uma
construção narrativa para suas coreografias, significação humana e espiritual profunda. St.
junto a uma cenografia, maquiagem, iluminação Denis, por toda a vida, pretendeu assumir o papel
e direção, própria dos movimentos dançados. de profetisa (GARAUDY, 1980). Dançou Radha
Com tal dança e tal figurino, Duncan estabelecia descalça e coberta com algumas joias, que cobriam
uma comunicação entre sua obra e o público todo seu corpo nu, provocando tanto escândalo
levando em conta fatores como personalidade, quanto Duncan com suas túnicas transparentes.
sentimentos e marcas de uma cultura.

Desprezando o folclore das danças orientais


É pertinente dizer que o figurino faz parte e dando a estas novo sentido, Ruth St. Denis
da cena como a roupa faz parte da vida, entretanto, contribuiu com tais danças em universalidade
ao pensarmos em roupa, muitas vezes percebemos e vitalidade. Se a roupa que veste o dançarino
apenas o aspecto mercadológico e relegamos seu ajuda a compor seu personagem, em Rhada, St.
aspecto cultural. Dentro da dança, o pensamento Denis o compôs com o corpo coberto por jóas,
se assemelha. O figurino é entendido, inúmeras transmudando em seu figurino a dança hindu.
vezes, como um similar da roupa, símbolo do
consumo, o que obscurece sua presença simbólica, Nesta peça de dança, a função do figurino
que agrega à cultura indícios significativos. é contribuir para a elaboração do personagem,
mas seu resultado constitui também um conjunto
Em Ruth St. Denis, percebemos esse de formas que intervém no espaço cênico da
aspecto cultural, quando a dançarina interpreta dança. Observa-se, no exemplo dado, que o uso
várias culturas dançantes, a partir de divindades da indumentária acrescenta um significado ao
míticas egípcias, indianas, japonesas e babilônicas, corpo. Ele ajuda na caracterização e faz com
também utilizando o figurino como elemento de que a intérprete se sinta dentro do personagem.
representação: A postura elegante, sombreada pelo figurino
exuberante, dá a St. Denis o ar da dança religiosa

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por ela interpretada, e tal indumentária, portanto, e dedicada a sua arte, Graham foi responsável
contribui para a atmosfera do espetáculo. Ele tem por criações coreográficas surpreendentes,
uma importância tão grande quanto os cenários e bem como figurinos e cenários inusitados
gestos, porque é um dos elementos fundamentais que, com sua habilidade teatral única, extraía
para a transmissão de uma imagem completa da desses objetos suas propostas fundamentais, e
dançarina para o público. transformava-os em verdadeiras extensões do
corpo e do movimento do dançarino, fazendo-os
A indumentária cênica compõe, dessa participarem ativamente da coreografia.
forma, o conjunto de mensagens não verbais do
espetáculo, e Ruth St. Denis soube se utilizar de Cabe ressaltar que, em Lamentation, seu
tais elementos para compor suas coreografias. figurino é um tubo de stretch que cria o efeito
coreográfico. A peça é sobre uma mulher que
Essa composição de figurino obedece lamenta, mas um pouco sobre a dor própria. O
ao corpo que o veste. Como argumenta Mauss pano roxo serve de tela para as movimentações de
(1974), o corpo é um fato social total, ele é um cabeça e braços, as mãos e seus pés ficam de fora
produto biológico ou psicológico individual, mas do pano. A dança é criada pelos deslocamentos
obedece a regras sociais. O corpo vestido pela dentro do pano.
intérprete para Radha, compõe juntamente com
os cenários, a música e o figurino o espetáculo e Sobre Lamentation, de 1930, Graham (1993,
forma um conjunto em que todos os elementos p. 86) afirma: “Lamentation, minha dança de 1930,
se intercruzam, se hibridizam na cena dançada. O é um solo em que uso um longo tubo de tecido
resultado é uma obra precisa, mística, revirando e para indicar a tragédia que obceca o corpo, a
girando com uma dança que carrega os aspectos capacidade de se esticar dentro da própria pele, de
religiosos de uma determinada civilização, mas testemunhar e testar os perímetros e as fronteiras
que é pontuada por momentos de inacreditável da dor, que é nobre e universal”.
delicadeza cênica.
O figurino apresentava uma mulher que
De maneira análoga às artistas supracitadas, se desejava livre, ou pelo menos com mais
recriando as funções do figurino na dança, cabe direitos e mais dignidade. E representava uma
ressaltar a importância de Martha Graham para grande transformação em relação ao final do
a cena da dança do século XX. Artista voraz século XIX, onde as mulheres da elite, com seu

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vestuário, desenhavam uma postura rígida, com a cama criada por ele é totalmente diferente do
movimentos contidos, vestidos muito pesados mobiliário convencional. É a representação de
e espartilhos que encarceravam o movimento um homem e uma mulher, absolutamente nada
natural. semelhante a uma cama. Tal imagem sugere uma
cama despojada até o esqueleto, até o próprio
Night Journey, balé de 1947, baseada no épico espírito, como faz referência Graham (1993) a
Édipo Rei, de Sófocles, foi concebida a partir de um este objeto.
roteiro de movimentos desenvolvido por Martha
Graham. Nesta peça, ela dramatizou, através da É neste cenário que a peça tem seu desenrolar
dança, o complexo de Édipo, reinterpretando a trágico. É nesta cama que Jocasta comete o pecado
tragédia de Sófocles. do incesto, onde ela conheceu o rapaz que, com
o passar do tempo, aceitou como seu amante,
Em imagens analisadas sobre essa peça, marido e pai de seus filhos. É nesta cama que
Graham demonstra o sofrimento de Jocasta ao sua vida de amor e maternidade se consumou, se
descobrir seu incesto. Graham veste-se em longo passou. Nesse aposento sagrado.
vestido e sobre o colo usa um manto. Nas mãos,
carrega uns ramos dados a Jocasta por Édipo, Graham utilizou cenários e objetos de cena
quando a conduzira da cama para o banquinho, feitos por Isamu Noguchi, especialmente para a
onde se tornou rainha. Tal figurino tem relação peça, mas que traziam em si significações próprias
com a tragédia, com a expressão dramática da e traçavam, por si só, “ecos metonímicos”, no dizer
personagem, com o corpo que se precipita ao chão de Souza (2001), com relação aos objetos que
insistentemente, com o ritmo musical que cria representavam.
um clima tenso, composto, alternando sequências
em adágio e stacatto. Por fim, alguns símbolos Em Night Journey, tais elementos se
convencionais como a corda, os ramos verdes, a hibridizam, intercambiam-se, promovem
cama estilizada, dão contorno específico à peça e, comunicação entre a dança e os elementos que a
por assim dizer, referencializam-na. compõem: cenário = aposentos de Jocasta; corda
= instrumento para enforcar-se (mas também
Faz-se necessário referenciar a cenografia união a Édipo, cordão umbilical); ramo =
criada para esta peça por Isamu Noguchi, que fertilidade; coro = sofrimento; cajado (cego) = lei/
complementa a indumentária dos personagens: destino; cama (dupla/casal) = união matrimonial;

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figurinos = realeza. frente. Toda a sua realeza, toda a sua majestade tomba
com aquela túnica. Ela caminha sobre a túnica, estica-a
nas mãos, até a corda que se torna o cordão umbilical,
Todos esses elementos interagem com a coreografia
ergue-a, estica-a nas mãos, olha-a com profundo amor,
que se transforma em narrativa qualitativa, não
não com ódio, mas com piedade, afeição e trágica
remetendo às ideias concretas, mas sim às imagens
consciência de que ela lhe trouxe beleza e angústia
abstratas, dramas psicológicos e existenciais. Propõe
[...] ela se volta para o fundo, puxa a corda em torno
uma reflexão sobre o homem e sua impotência sobre
do pescoço (GRAHAM, 1993, p. 145, 146).
o destino (que já havia em Édipo Rei) e associa essa
impotência à condição feminina. Tudo isso eleva-se
ao estatuto trágico, que torna Night Journey, essa Tal elemento cênico, como evidenciado em
jornada noite adentro, um símbolo do grito da
parágrafos anteriores ,sinaliza a tripla significação
mulher em sua posição de geratriz: é o útero que
revive pelo movimento a dor da perda do feto que o da corda. Ora representa o cordão umbilical, entre
habitava e o desespero pela constatação do crime de Jocasta e Édipo, ora o laço amoroso que os prende,
incesto (que representa o retorno daquela perda). Tais
ora a mãe incestuosa que se estrangula.
interpretações, cabe salientar, são buscas de sentido às
metáforas do texto, cuja compreensão não é de todo
acessível (SOUZA, 2001, p.179). Certamente outros balés de Graham
demonstram a grandeza de seus figurinos,
Outro elemento evidenciado na peça e contribuindo com a encenação da peça. É
que nos parece uma extensão do figurino da preciso acentuar que tal elemento simboliza a
personagem é a corda. Tal elemento representa multiplicidade de suas intenções, e que permite
nascimento, união e morte: “[...] As cordas são seguir seu desenvolvimento através da ação
de seda, identificáveis com o cordão umbilical coreográfica. Em suma, para Graham, cenários,
[...]” (GRAHAM, 1993, p. 143). Esse elemento música e figurino fazem parte da liturgia
simboliza o seu crime contra a vida e a civilização, coreográfica da artista.
mas também sua consciência, seu amor, sua
união com Édipo, sua fertilidade. Ao descobrir
seu incesto, Jocasta, de posse desse elemento, Considerações Finais
determina sua sorte:
O figurino na dança não é apenas
Ela se adianta lentamente [...] durante essa passagem,
ornamentação, é também linguagem, é um
ela dá passos muito pequenos, muito vazios, enquanto
solta a túnica nas costas. E num determinado sistema constituído de signos que indicam uma
momento, talvez três ou quatro passos, variando forma de expressão. Podemos ver o figurino
segundo a necessidade, ela deixa a túnica cair a sua
na dança como um meio de comunicação e

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instrumento de construção de uma identidade, segundo ele, o figurino está na constituição da
que serve tanto ao indivíduo quanto a um grupo materialidade do espetáculo; logo, é significante. E
social inteiro. Observa-se que tal elemento cênico, é um elemento integrado a um sistema de sentido,
longe de ser figurante, possui fala, forma, cor e logo é significado. Dessa forma, o figurino carrega
espaços próprios. Na dança, ele discute com o vários sentidos que identificam os personagens,
corpo que o reconstrói, a cada instante, novas tornando-os presentes, visíveis e reconhecíveis
formas de pensar a relação corpo-roupa. Ele deve por aqueles que assistem ao espetáculo.
ser pensado como informação relevante a ser
transmitida para o público. Percebeu-se nas imagens analisadas
que os figurinos, assim como os adereços e
Notou-se neste ensaio que o figurino cenários, figuram como um sistema integrador
participa da cena nos corpos dos artistas citados. na representação. O espectador, além da dança,
O figurino desses artistas intérpretes da cena aprecia-os como ponto de referência, como
amplifica seus corpos dançantes, dando-lhes sinalizador dessa representação.
vida e vitalidade, além de servir como uma
cenografia ambulante ou um cenário-figurino.
Ele também ajuda na mobilidade dos movimentos

R
coreografados.

A respeito do figurino, Pavis (2005), ao EFERÊNCIAS


analisar espetáculos de teatro, de mímica, de
performance e de dança, diz serem adereços BARIL, J. La Danza Moderna. Barcelona:
decisivos para a compreensão da representação. Paidós, 1987.

Para o referido autor, o figurino é ao mesmo LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. Texto visual
tempo significante e significado, posto que na e texto verbal. In: FELDMAN-BIANCO; LEITE
(org.). Desafios da Imagem. Campinas, São Paulo:
cena ele apresenta funções de caracterização, de Papirus, 1998.
localização dramatúrgica, de identificação ou
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Marcilio Souza Vieira - O que Pode o Figurino na Dança?


Revista Arte da Cena, Goiânia, v. 2, n. 1, p. 97-108, Dezembro/2015
Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce
A
ISSN 2358-6060
A rteda 108
revista

Cen A
DUNCAN, Isadora. Minha vida. Tradução
* MARCILIO SOUZA VIEIRA é professor
de Gastão Cruls. Rio de Janeiro; José Olympio
da Rede Pública de ensino do munícipio de
Editora, 1986.
Natal/RN. Doutorando do Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade
GRAHAM, Martha. Memória do sangue: uma
Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, Mestre
auto biografia. Tradução de Cláudia Martinelli
em Educação pelo mesmo programa e Graduado
Gama. São Paulo: Siciliano, 1993.
em Artes Cênicas e Educação Física, também pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
GARAUDY, Roger. Dançar a vida. Tradução de
É membro pesquisador do Grupo de Pesquisa
Glória Mariani e Antônio Guimarães Filho. Rio
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