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cena n.

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Cartas sobre a Dança de Noverre:


desordem, transgressões e outros
descaminhos para criação

Airton Ricardo Tomazzoni dos Santos


Doutor em Educação/UFRGS
Diretor do Centro Municipal de Dança da Prefeitura Municipal de Porto Alegre
airtontomazzoni@gmail.com

Resumo Abstract

O objetivo desse artigo é mobilizar con- The purpose of this article is to mobilize con-
ceitos e perspectivas teóricas alinhavadas na cepts and theoretical perspectives outlined on
obra Cartas sobre a Dança, de Jean-Georges Jean-Georges Noverre’s Letters on Dancing,
Noverre, produzida no século XVIII, mas que produced in the eighteenth century, in which in-
apresenta elementos para problematização cludes elements for questioning the poetics of
das poéticas das artes cênicas na contempo- performing arts in contemporary times. His pe-
raneidade. Sua visão peculiar de compreender culiar vision to understand dance as imitation
a dança como imitação da natureza e as impli- of nature and the implications of the percep-
cações de percepção das dinâmicas implícitas tion over implied dynamics in this nature allow
nessa natureza permitem a emergência e valo- the emergence and recovery of aspects usually
rização de aspectos usualmente relegados na- relegated in that period, such as disorder, ins-
quele período, como desordem, instabilidade, tability, multiplicity, uniqueness, indeterminacy,
multiplicidade, singularidade, indeterminação all of them also as structures for the creation
como configuradoras também do processo process. The tension between technique and
de criação. A tensão entre técnica e expres- expressiveness, the question about copying
sividade, a questão entre cópia e inventivida- and inventiveness, the relationship between
de, a relação entre racionalidade e emoção no rationality and emotion in the artistic process,
processo artístico, a proximidade entre arte e the proximity between art and life, attention to
vida, a atenção ao acaso e à irregularidade, ou chance and irregularity, or the dangerous and
ainda o caráter perigoso e subversivo da in- subversive character of inventiveness. Finally,
ventividade. Enfim, um movimento de perce- a movement to realize the scope of the propo-
ber o alcance das proposições e a importância sals and the importance of revisiting this theo-
de revisitar esse material teórico/filosófico/pe- retical / philosophical / educational / artistic
dagógico/artístico ainda pouco valorizado nas material still little valued in current discussions.
discussões atuais.

Palavras-chave Keywords
Dança. Criação. Estética Dance. Creation. Aesthetics
cena n. 20

Alguns movimentos sempre me pareceram Cartas, arrisco afirmar, Noverre revela aspec-
nocivos ao saber: achar que nada deve haver tos que serão valiosos à modernidade, apre-
de importante num material sem nunca se de- sentada na dança, com esse rótulo apenas um
bruçar sobre ele, o ato de se acreditar que a século mais tarde, bem como às problemáti-
literatura mais atualizada é que a realmente cas e análises que cercam a dança e as artes
interessa e a crença de não se autorizar pro- da cena, ainda nos tempos atuais. A tensão
duções teóricas alinhavadas fora de um con- entre técnica e expressividade, a questão entre
texto específico passíveis de diálogo frutífero cópia e inventividade, a relação entre raciona-
com outros contextos artísticos/teóricos. Essa lidade e emoção no processo artístico, a pro-
percepção recorrente revela-se de muitas ma- ximidade entre arte e vida, a atenção ao acaso
neiras na atuação docente/artística, com mui- e à irregularidade, ou ainda o caráter perigoso
tos exemplos que poderiam ser resgatados. e subversivo da inventividade. Ainda que pos-
Mas nesse artigo busco, dentro de limite de tuladas muitas vezes sem utilizar esses termos
um exercício conciso, trafegar por um mate- ou conceitos, pode-se perceber a habilidade
rial dessa linhagem: as Cartas sobre a dança1, em identificá-los, em descrevê-los e em pro-
de Jean Georges Noverre (1727-1810). E sim, blematizá-los sem fugir de suas complexida-
o propósito de insistir em retomadas constan- des.
tes e mais frequentes desse material ainda à Por isso, pretendo pontuar alguns dos mui-
margem como subsídio teórico fértil, amplo, tos aspectos de grande relevância e pertinên-
inquietante e decisivo para se pensar questões cia que suas Cartas oferecem às discussões
estéticas/pedagógicas/políticas que a dança relativas à criação em dança que ainda atra-
continua suscitando para artes da cena con- vessam discussões, pesquisas e fazeres na
temporânea e não apenas para própria dança, contemporaneidade.
campo no qual usualmente é aprisionado No-
verre.
Razão, emoção
Esse mestre de balé do século XVIII talvez
e imaginação
possa representar por si um provocativo ponto
de sinalização do empobrecimento e da cilada Na Carta 4 talvez se tenha um dos trechos
pelas quais nos deixamos muitas vezes levar que conseguem sintetizar de maneira contu-
quando se assume a perspectiva histórica de maz uma série de princípios que envolvem a
alojar artistas/pensadores em períodos crono- criação em dança. Nesse trecho o autor des-
lógicos dos quais podem dar conta.2 Em suas taca que “O êxito nas composições somente
é possível se o coração se inquieta, se a alma
1 Letters sur la Danse teve sua primeira versão editada em com vivacidade se emociona, se a imaginação
1760 em Stuttgart e Lyon, num total de quinze cartas. Essa
edição foi intitulada Letters sur la Danse et sur les ballets. De- se incendeia, se as paixões trovejam e o gê-
pois tiveram as versões de Londres, em 1783; São Petsburgo
nio clareia” (Monteiro, 1998, p. 213). O mestre
(1804), Paris (1807), além de novas edições no século XX.

2 Aqui reconheço o alerta que André Levinson, responsável


pelo prefácio das Cartas na edição de 1927. “Levinson alerta gios, ou melhor, chaves de também entender seus conceitos
para as dificuldades de interpretação das ideias do reforma- que talvez possam fazer sentido ao serem cotejados com
dor, sobretudo se ignorarmos o fato de ele ter sido um criador questões contemporâneas da poética da dança. Uma liber-
plenamente integrado à sua época”(Monteiro, 1998, p.15). dade interpretativa responsável e provocativa, fiel às suas
Mas me permitirei o exercício de leitura que buscas vestí- próprias Cartas de Noverre.

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oitocentista estava já a alertar para que uma que não tem hierarquia de um aspecto sobre o
composição de dança deveria articular aspec- outro. Além da metáfora poderosa, suas colo-
tos muitas vezes ignorados ou negligenciados cações buscam coordenar coração inquietos,
por criadores e mestres de dança daquele pe- com paixões ruidosas e ainda com um pen-
ríodo. Muitas vezes foi dada à razão, em outros samento curioso, inventivo, vívido e emocio-
à emoção a tônica da criação em dança. Por nado. Não é apenas um complexo e ambíguo
um lado, a crença na valorização superior de jogo de palavras, mas uma senha para escapar
uma elaboração mental, encarando emoção e dos determinismos redutores de compreender
sentimento como ameaçadores a esse proces- técnica e performance por vias excludentes ou
so, por outro, o arroubo sentimental traduzido unívocas.
em movimento, em risco de ser maculado por
conceitos e racionalismos perniciosos.
Singularidade e
Historicamente essa dicotomia aparece de
diferença como condição de criação
inúmeras maneiras. Aparece na rivalidade de
duas consagradas bailarinas Marie Camargo Outro dos pilares do balé de ação, preco-
(1710-1770) – considerada de grande habilida- nizado por Noverre, é o de considerar a arte
de técnica - e Marie Sallé (1707-1756) – que da dança como imitação da natureza. E aqui,
brilhava pela dramaticidade e expressividade, não é a imitação representativa do que está na
como se deteve Roberto Pereira (2000). Apa- natureza como rios, nuvens, fogo, animais e ti-
rece na separação simplista de oposição en- pos humanos. Há, na sua primeira carta, a afir-
tre uma dita dança conceitual contemporânea mação da natureza em que a vida humana se
e as catárticas e arrebatadoras performances afirma. E é essa natureza, que se faz de todas
das divas midiáticas do videoclipe. as gradações possíveis, que o autor chama de
Não estaria Noverre tentando propor uma paixões, que incluem comportamentos emo-
nova racionalidade de criação que escapas- cionais, mas também sensações, pensamen-
se dessa polaridade? Uma racionalidade que tos, sonhos, ideais. Uma natureza humana é
não deve excluir nem a engenhosidade, nem também feita da sua capacidade de não se re-
a emocionalidade. Em síntese, Noverre parece duzir a seus instintos de sobrevivência. Com
se recusar a pensar o corpo que dança, sepa- isso, ele reafirma novamente a razão, a emo-
rando razão de emoção, pensamento de senti- ção e a imaginação como balizadores dessa
mento. Como diria, quase dois séculos depois, natureza humana.
o neurocientista Antonio Damásio (1998), em Como aparece na Carta 1:
sua obra O erro de Descartes: “penso e sinto,
As paixões, sendo as mesmas em to-
logo existo”. dos os homens, diferem na proporção
E, ao “fazer as pazes” entre razão e emo- de suas sensações; elas se imprimem
e se exercem com mais ou menos for-
ção, ele complexifica ainda mais a questão es-
ça sobre uns que sobre outros e ma-
tética ao incluir nela a imaginação com igual nifestam-se exteriormente com mais
importância nesse processo. Ou seja, não é a ou menos veemência e impetuosidade
(Monteiro, 1998, p.189).
articulação de um binarismo que liga um pon-
to no outro, mas de uma trama que se tece e

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Sendo todos humanos, somos indivíduos tiva. Novamente ecos de contemporaneidade


com singularidade e diferença de ações. O seu antecipada ou sinalização de que a contem-
balé de ação, portanto, é uma dança que se poraneidade não está restrita ao nosso tempo
anuncia atenta à infinidade de gradações pos- apenas?
síveis que a existência possibilita, sujeita a in- As Cartas permitem notar a sintonia possível
determinações e acasos que definem a diver- com considerações sobre a poética contem-
sidade de modos e alternativas possíveis, reais porânea de dança. “Por outras palavras, trata-
ou imaginadas. se não tanto do que trabalha a dança, mas do
Ele prossegue na Carta 6 reafirmando a que a própria dança trabalha, o meio humano
pluralidade ao dizer que: no qual ela desenvolve as suas possibilidades
e de que ela própria propõe um saber (e uma
[...] um mestre de balé precisa conhe- interpretação)” (Louppe, 2012, p.35). Noverre
cer as belezas e as imperfeições da
natureza, pois esse estudo permitirá esteve atento a esse meio humano no qual a
fazer uma escolha acertada de cenas dança é produzida e sua coerência de ação,
que serão ora poéticas, ora históricas,
ora críticas, ora alegóricas e morais. buscando a natureza intrínseca a essa condi-
Não poderá deixar de inspirar-se em ção e não alheia a ela. A imitação da natureza
modelos tirados de todas as posições
sociais, de dos os estados, de todas proposta por Noverre, incluía aceitar a lógica
as condições” (ibdem, p.227). do “meio humano” no qual da dança é produ-
zida, a lógica na qual cada situação precisa ser
Mesmo que em determinados trechos ele
“resolvida” por ela mesma.
fale em buscar a virtude, proporção, harmonia
e beleza, Noverre assinala que cabe “embele-
zar a natureza sem desfigurá-la”, demonstran- Desordem, desvios,
do uma tensão entre os cânones da época e transgressões e outros descaminhos
os caminhos que ele começa a esboçar, talvez para criação
sem o devido vocabulário para traduzir ambi-
Seguindo por esses aspectos defendidos,
guidades e complexidades envolvidas.
Noverre tenta combater boa parte do forma-
Essa configuração estética que Noverre vai
lismo e rigidez de modelos impostos à criação
desenhando indica alguns desdobramentos
do balé ao longo do século XVIII. Na Carta 10
inerentes a essas asserções: a valorização dos
ele vaticina:
intérpretes na sua individualidade ao invés de
sua padronização, a necessidade de se abrir às Se o port de bras deve ser tão va-
variáveis possíveis e não a modelos (técnica) riado quanto as diferentes paixões
que a dança é capaz de exprimir, as
e recursos limitadores (como perucas e más- regras aprendidas acabam por tor-
caras, como regra obrigatória daquela época) nar-se praticamente inúteis. Será pre-
ciso transgredi-las e delas se afastar
e a habilidade de se resistir a padrões insufi- constantemente, opondo-se sempre
cientes para dar conta dessa dança que flerta que deixarem de seguir exatamente
os movimentos da alma, que não se
com a existência humana. Uma existência feita limitam necessariamente a um número
de modos que não cabem necessariamente limitados de gestos (Monteiro, 1998,
em simetrias, ordenação, previsibilidade restri- p.298).

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Ele não recusa as regras, nem a técnica rece um grau de liberdade que procura outra
aprendida, mas relativiza seus usos e finalida- lógica de organização para o ato coreográfico
des. Como ele sublinha, as posições de braços que pudesse se permitir construir ordens coe-
que o balé estabeleceu como base de sua me- rentes em si e não a priori. Isso soa familiar
todologia de ensino não devem se esgotar ne- quando a dança pós-moderna americana, na
las mesmas. O vocabulário coreográfico deve década de 1960, rebela-se contra a ordem,
ser o princípio e não o fim, devendo servir de mas sem proclamar o caos. “Se a improvisa-
horizonte e não de limite. Aqui são perceptíveis ção levava em conta a liberdade de escolha e
os ecos de um fazer artístico desviante dos cir- de ação, não obstante era qualquer coisa, me-
cuitos oficiais e reconhecidos no século XVIII. nos anárquica” (Banes, 1999, p. 279). O mestre
Talvez o mestre de balé francês estivesse qua- de balé via nos descaminhos usuais da insta-
se postulando um “fazer” que, enquanto faz, bilidade, indeterminação e desordem da vida,
inventa o “modo de fazê-lo”, não totalmente uma nova lógica capaz de indicar caminhos
estranha à perspectiva estética defendida por profícuos para arte da cena.
filósofos do século XX como o italiano Luigi Ainda na primeira Carta pode-se verificar
Pareyson (1993; 1997). Noverre anuncia um essa compreensão em proposições como
outro entendimento para o conceito de técnica “uma cena deve oferecer uma desordem bela”,
e uma outra relação no processo de criação. cogitando que a beleza também se estabele-
E ele não se opõe apenas à técnica na for- ce na suposta desorganização. Também ao
mação, mas à estruturação rígida de criação. criticar a polaridade de uma cena entre dois
Na Carta 13 ataca: “Sim, Senhor, a coreogra- extremos apenas, ele alerta para “quantas gra-
fia amortece o engenho, apaga e enfraquece o dações e degradações a ser observadas para
gosto do compositor que a utiliza, torna-se pe- que desses dois sentimentos resulte uma mul-
sado, sem graça, incapaz de invenção” (Mon- tiplicidade de quadros”. E quando a diversi-
teiro, 1998, p. 350). E aqui a coreografia que dade precisa ser encontrada, a simetria “deve
ele critica é aquela estruturada sempre a partir ser banida”, insiste Noverre. E questiona os
das mesmas danças, das mesmas sequên- “submissos aos hábitos e cheios de precon-
cias, dos mesmos passos, sem espaço para ceitos, se encontram simetria em um bando
que nada se modifique ou permita questionar de ovelhas que procura escapar dos dentes
sua ordenação. mortíferos dos lobos”. Enfim, a dinâmica da
E como enfatiza na sua primeira Carta, ele vida, assumida como se estabelece seja com
questiona a ordem, não pelo gesto anárquico degradações, desordens belas, diversidades e
que pode representar esta oposição, mas por multiplicidades que escapam à formulas em-
compreender que dentro da variedade de or- pobrecedoras.
ganizações possíveis da existência humana,
da vida, da natureza, muitas formas podem
Atenção ao momento
ser estabelecidas ou postuladas. “Não prego
a desordem e a confusão; quero, ao contrário A Carta 13 também acrescenta outro desta-
encontrar regularidade em meio a própria irre- que que aparece com relevo:
gularidade” (ibdem, p. 189). Desse modo apa-

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A conduta e a marcha de um grande sas colocações que falam de ética, falam de


balé, bem desenhado, exige Senhor,
democracia, falam de liberdade, porque falam
conhecimento, espírito, engenho, finu-
ra, um tato certeiro, uma sábia cautela de modos como a vida se manifesta. Vida essa
e um golpe de vista infalível, e todas que Noverre insiste que seja incluída na pauta
essas qualidades não se adquirem
decifrando ou escrevendo a dança da arte da sua dança de ação. E daí seu fascí-
coreograficamente. É o momento que nio e perigo.
determina a composição, e a habili-
dade consiste em captá-lo a contento
(Monteiro, 1998, p. 349).
É perigoso criar
Captar o momento, o instante presente que
Nãos será à toa que Noverre será impedi-
não se coloca antecipadamente, mas apenas
do de atuar inicialmente na Ópera de Paris,
como acontecimento, emergência. Noverre
guardião das normas de um balé praticamente
aponta para a importância dos eventos que se
imutável e soberano. No circuito que escapa a
colocam em sua imprevisibilidade, instáveis,
essa forte normatividade para dança na época
fugidios. Suas coreografias provavelmente
Noverre acaba por encontrar espaço e resso-
ainda operavam longe da noção de improvisa-
nâncias em muitos outros recantos da Europa,
ção ou composição em tempo real, mas inclui
sendo na Inglaterra considerado o Shakespea-
na sua pauta que é nessa direção que se deve
re da dança, tendo suas irrequietas proposi-
direcionar o olhar do criador de dança. Cada
ções reconhecidas e admiradas. Na Carta 15
um desses momentos que fornece elementos
essa indolência é novamente colocada:
para a composição. Noverre reconhece essa
condição a que estamos sujeitos. Na Carta 6, Todos aqueles a quem a imitação sub-
mais uma vez sublinha: “O instante é a alma juga esquecer-se-ão da bela natureza
para pensar unicamente no modelo
dos quadros; é difícil de captá-lo e ainda mais que os toca e seduz... Questione-se
difícil transmiti-lo com veracidade” (ibdem, p. os artistas, pergunte-se a eles porque
não se dedicam a serem originais, dan-
229) do à sua arte uma forma mais simples,
Parecendo dialogar com filósofos e uma expressão mais verdadeira, um
ar mais natural? Responderão, justifi-
cientistas contemporâneos, como Ilya Prigogi-
cando sua Indolência e sua preguiça,
ne que afirma: “temos não só leis, mas tam- que temem cair no ridículo, já que é
bém eventos que não são dedutíveis das leis, perigoso inovar, criar (Monteiro,1998,
p. 386).
mas atualizam as suas possibilidades” (1996,
p. 13). Noverre também em suas Cartas subli- Perigoso para quem cria. Perigoso para
nha a noção de eventos que se atualizam, do quem tem contato com o que é criado fora do
momento ao qual o artista da dança precisa padrão e norma vigente. Isso num período que
estar atento. Afinal, transparece a questão de antecede a Revolução Francesa no qual o ab-
fundo: “como conceber a criatividade huma- solutismo se traduz com perfeição no projeto
na ou como pensar a ética num mundo deter- de balé idealizado, universalizante, ordenado
minista?” (ibdem, p. 14) E, assim, ciência se e controlado. A proposta estética que ele traz
aproxima da arte, que se aproxima da política é a de abrir-se às ordens possíveis ao invés
porque são vetores da mesma natureza, que de fechar-se em estruturas artificialmente na-
operam nesse mundo físico que vivemos. Es-

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turalizadas. Alinhando-se com a noção de ve- nas concordância. Como também percebeu
rossimilhança de Aristóteles, parece reafirmar Monteiro (1998)
que “quando plausível, o impossível se deve
preferir a um possível que não convença” (Aris- [...] o que Noverre perde em estrutu-
ração ganha em porosidade, criando,
tóteles, 1997, p. 48). A sua imitação da nature- através desses espaços intermediá-
za, não é uma ordem redutora, mas amplifica- rios, uma margem de liberdade para
estabelecer, em caráter assistemático,
dora de possibilidades, pois essa natureza se o arcabouço conceitual de sua refor-
estabelece no que se estabelece a cada nova ma da dança” (p. 29)
ação. O seu balé de ação é feito dessas dan-
ças que emergem e se atualizam constante e Não é como o gênero dos manuais, instru-
insistentemente. tivo, mas sim provocativo, combativo, numa
Inclusive há de enfatizar que o estilo episto- escrita atravessada por engenho, emoção e
lar, escolhido por Noverre revela outra coerên- criatividade para fortalecer o caráter argu-
cia e peculiaridade com suas proposições. Ele mentativo sobre aquilo que versa. Por isso me
não publica um manual, com orientações de permito esse exercício de liberdade ao trafe-
passos e instruções do bem dançar e se com- gar por seus conceitos e ideias, por vezes, até
portar3, como era usual naquele período pelos contraditórias. É esta tensão que carrega suas
mestres de balé (Tomazzoni, 2010). Como aler- Cartas também de lacunas e brechas para se-
tou Marianna Monteiro: rem interpretadas.
Lamentável não terem sobrevivido seus
Muitas vezes, vê-se Noverre organi- balés de ação ao longo do tempo. Ou quem
zando os conceitos de forma pura-
mente ornamental, preocupado, so- sabe essa tenha sido a melhor herança que
bretudo com o funcionamento deles hoje impede que sejam tidos como modelos
na elocução. Corre-se o risco de atri-
buir-lhe significados fixos, que nãos
de reprodução ilustrativa. Fica o espaço aberto
e sustentarão quando cotejados com para imaginação, tão valiosa para ele. Quan-
outros trechos em que também são tas gradações teriam sua Medéia pra dançar
empregados (Monteiro, 1998, p. 29).
o dilacerante conflito dessa mãe que mata os
filhos. Que dança terá sido essa? Como seus
As Cartas partem de um desejo de diálo-
preceitos do balé de ação, ele encontrou espa-
go, de confronto de ideias, pois por mais que
ço ou limitações para concretizar seu projeto?
a resposta não venha, é esboçada. Ao lançar
Em que grau ou medida seus conceitos apare-
ideias, esperam-se considerações e não ape-
ciam ou desapareciam na suas obras?
3 Entre essas obras estão: O Tratado dos principaes funda-
Não quero com isso descartar que seus
mentos da dança, escrito por Natal Jacome Bonem, e pub- ideais acabaram mais por operar consolidan-
licado em Coimbra, em 1767: “obra muito útil, não somente
para esta mocidade, que quer aprender a dançar bem, mais do um modelo balético que pouco fugiu das
ainda para as pessoas honestas, e polidas, as quais ensina as normas que criticou. Como observou Monteiro
regras para bem andar, saudar, e fazer todas as cortesias que
convêm”. Ou ainda: A coreografia ou a arte de descrever a (1998): “Quanto à dança acadêmica, Noverre
dança por caracteres, figuras e sinais demonstrativos através
dos quais se aprende facilmente por si mesmo todos os ti-
oscilaria entre uma atitude de compromisso e
pos de dança, (La Chorégraphier ou l´Arte de écrire la danse negação” (p. 15).
par caracteres, figures et signes démonstratifs avec lesquels
on apprend facilment de soy-même toutes sortes de danses , Talvez as condições culturais, sociais e polí-
1700), de Raoul-Auger Feuillet.

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ticas do período em que Noverre criava, como DAMÁSIO, Antonio. O Erro de Descartes. São
também já destacou a pesquisadora Rosa Paulo: Editora Companhia das Letras, 1998.
Maria Hércoles (2005), o impediram a práxis HÉRCOLES, Rosa Maria. Formas de comuni-
desses preceitos de maneira plena e mesmo cação do corpo − novas cartas sobre a dança.
a sua devida difusão, o que em nada impede Tese de Doutorado em Comunicação e Semió-
de se verificar a potencialidade desse material tica. Programa de Pós Graduação em Comu-
para discussões atuais das artes cênicas. Um nicação e Semiótica, Pontifícia Universidade
material que busquei organizar em blocos dis- Católica, São Paulo, 2005.
tintos e sintéticos apenas para destacá-los e
ressaltá-los, mas que se autoreferem e retroali- LOUPPE, Laurence. Poética da Dança Con-
mentam desrespeitando fronteiras por se inter- temporânea. Tradução de Rute Costa. Lisboa:
ligarem e fazerem sentido na sua urdidura que Orfeu Negro, 2012.
atravessam todas as suas Cartas. Um material
o qual me permiti fazer conexões com concei- NOVERRE, Cartas Sobre a Dança. Marianna
tos estéticos, científicos e filosóficos que não Monteiro. São Paulo, Edusp/Fapesp, 1998.
se traduzem por familiaridades ou lógicas teó-
ricas uniformes ou concordantes entre si, mas PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética.
que permitem articular de maneira até mesmo 3a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
caótica ou indisciplinada com os preceitos
das Cartas de Noverre. Mas acima de tudo um ______. Estética, teoria da formatividade. Pe-
material valioso, fértil e atual para promover trópolis: Vozes, 1993.
problematizações ainda necessárias. Um ma-
terial gerado no fazer de bailarino, professor, PEREIRA, Roberto. Entre o céu e a terra. IN:
criador, pesquisador de dança que Noverre foi, Lições de Dança 2. Rio de Janeiro: Editora da
sem separar esses saberes/fazeres/poderes UniverCidade, 2000.
para pensar de maneira crítica e articulada a
arte da dança e instaurar uma poética que se PRIGOGINE, Ylia. O fim das certezas – tempo,
não conseguiu reformular o balé do seu tem- caos e as leis da natureza. São Paulo: Editora
po, introduziu perturbações que ainda ecoam de Universidade Estadual Paulista, 1996.
e desafiam.
TOMAZZONI, Airton. Dançando e aprendendo
a ser: estratégias de subjetivação nos manuais
Referências de dança. Idança Txt – volume 4 – Agosto/
2011. Disponível em http://idanca.net/wp-con-
ARISTÓTELES. A poética clássica. São Paulo: tent/uploads/2011/09/idancatxt_vol4_spread.
Editora Cultrix, 1997. pdf.

BANES, Sally. Greenwich Village 1963. Rio de


Janeiro: Rocco, 1999.
Recebido em: 02/06/2016
Aprovado em: 16/09/2016

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