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D E R I VA S # 0 3

I N V E S T I G AÇ ÃO E M E D U C AÇ ÃO A R T Í S T I C A
R E S E A R C H I N A R T E D U C AT I O N
A N O / Y E A R I I : D E Z E M B R O / D EC E M B E R 2 017
D E R I VA S # 0 3
I N V E STI GAÇ ÃO EM EDUC AÇ ÃO A RTÍSTI C A
R E S E A R C H I N A R T E D U C AT I O N
A N O I I : D E Z E M B R O / D EC E M B E R 2 0 17

D E R I VA S
R E V I S TA D O S P R O G R A M A S D E P Ó S - G R A D U A Ç Ã O
E M E D U C A Ç Ã O A R T Í S T I C A D A U N I V E R S I D A D E D O P O R TO
FA C U L D A D E D E B E L A S A R T E S

EDITORES / EDITORS
Catarina S. Martins (i2ADS/FBAUP)
José Carlos de Paiva (i2ADS/FBAUP)

E D I T O R E S A S S O C I A D O S / A S S O C I AT E D E D I T O R S
Catarina Almeida (i2ADS)
Tiago Assis (i2ADS/FBAUP)

CONSE LHO E DITORIAL / E DITORIAL BOARD


M E M B R O S N A C I O N A I S / N AT I O N A L M E M B E R S
Alice Semedo (CITCEM/FLUP)
Daniela Coimbra (i2ADS/ESMAE)
Fernando José Pereira (i2ADS/FBAUP)
Henrique Vaz (CIIE/FPCEUP)
João Paulo Queirós (CIEBA /FBAUL)
Joaquim Coimbra (CPUP/FPCEUP)
Jorge do Ó (IE/UL)
José Alberto Correia (CIIE/FPCEUP)
Manuela Terrasêca (CIIE/FPCEUP)
Mário Bismarck (i2ADS/FBAUP)
Natércia Pacheco (i2ADS/FPCEUP)
Sílvia Simões (i2ADS/FBAUP)
Teresa d’Eça (InSEA , i2ADS)
Teresa Medina (CIIE/FPCEUP)
M E M B R O S I N T E R N A C I O N A I S / I N T E R N AT I O N A L M E M B E R S
Dennis Atkinson (GOLDSMITHS UNIVERSIT Y OF LONDON)
Felicity Allen (WHITECHAPEL GALLERY, UK)
Fernando Hernández (UNIVERSIDADE DE BARCELONA)
Inès Dussel (CINVESTAV, MEXICO)
John Baldacchino (DUNDEE UNIVERSIT Y, SCOTL AND)
Leão Lopes (M _ EIA , CABO VERDE)
Moema Rebouças (UFES, BR ASIL)
Nora Sternfeld (A ALTO ACADEMY, FINL AND)
Rachel Fendler (UNIVERSIDADE DE BARCELONA)
Rejane Coutinho (UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA , BR ASIL)
Rita Irwin (COLUMBIA UNIVERSIT Y, CANADÁ)
Rita Bredariolli (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO)
Sumaya Mattar (UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO)
Thomas S. Popkewitz (UW- MADISON, USA)

P R O P R I E DA D E / P R O P E R T Y
i2ADS. Instituto de Investigação em Arte Design e Sociedade
FBAUP. Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto

S E C R E TA R I A D O / S E C R E TA R I AT
Margarida Dourado Dias

DESIGN GRÁFICO / GRAPHIC DESIGN


Susana Fernando

I M PRE SSÃO
Print4You, Centro de Impressão Digital

E DI Ç ÃO / PU B LISH E R
i2ADS – nEA
Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto
1a edição, Porto, Dezembro 2017
I S S N 2183-3524
D L 38 0 439/14
0 05 Editorial
Os textos escrevem-se com outros textos
HELENA CABELEIRA

017 Uma solidão sem exílio


ANA CRIstINA DIAs

029 Um olhar sobre os discursos da morte


M A R g A R I DA D O u R A D O D I A s

0 47 ‘Então, o Pinocchio sou eu?’


Programação artística para a infância
M A DA L E N A WA L L E N s t E I N

0 69 DRAW IN
Drag to model
R I C A R D O P I s tO L A

083 Lab Color Sense:


a new approach to color
susANA RIBEIRO

0 95 Homo Musicalis
Retrato do Homem-Músico com vista para a Escola e para o Mundo,
entre o proviso e o improviso, entre o determinado e o indeterminado
MáRIO AZEvEDO + RuI LEItE

117 Discursos educativos em museus:


Práticas e discursos educativos do Museu do Douro
_ O Projeto BIOS.
M A R tA CO E L H O vA L E N t E

131 Play / Stop


Discursos sobre o Contemporâneo
DA N I E L A R O s á R I O

143 Notas Biográficas


Editorial
Os textos
escrevem-se
com outros
textos

HELENA CABELEIRA
F B Au L ( FAC u L DA D E D E B E L A s A R t E s DA u N I v E R s I DA D E D E L I s B OA )
Os textos escrevem-se com outros textos. Ou exigência (obrigação!) que se impõe a quem
melhor dito: todos nós escrevemos os nossos escreve e, sobretudo, a quem quer publicar
textos com textos escritos por outros. É isto aquilo que escreve. Sobre esta questão da
que me ocorre dizer, em primeiro lugar, a ‘maioridade’ e ‘menoridade’ das línguas em
respeito dos oito artigos que integram a pre- que escrevemos e publicamos (pensamos!),
sente Derivas. Escrever sobre vários textos, muito haveria a dizer… sobretudo quando
mais do que uma tarefa ingrata (ou inglória!) nessas hierarquias (ou rankings) também
é um empreendimento impossível, e que se joga aquele que é o estatuto ‘maior’ ou
corre sempre o risco de defraudar as inten- ‘menor’ de certos objectos de estudo e de cer-
ções (de produção de sentido) e as expectati- tas disciplinas ou campos de conhecimento
vas (de leituras) de quem os escreveu. Ainda (como é o caso da própria educação artística).
assim, arrisco, lançando-me nesse espaço
desconhecido que é este conjunto de textos Quanto aos tipos de objectos e fontes tra-
escritos por outros que não eu. Logo à parti- tadas pelos autores desta Derivas, a di-
da, um dado que não me parece de todo irre- versidade impõe-se e distribui-se pelas
levante, prende-se com o facto de seis desses categorias possíveis da educação artística nos
artigos serem assinados por mulheres e ou- seus (im)possíveis cruzamentos com a in-
tros dois serem assinados por três homens vestigação em artes (dança, música, desenho,
(sendo um deles assinado por dois autores). pintura, multimédia, cinema, etc.): desde
Temos nove autores, portanto. A chamada a educação em museus e centros de artes
escrita colaborativa (em sistema de co-au- contemporânea (Fábrica das Artes, CCB ;
toria) não é de facto uma prática corrente Museu do Douro) até ao ensino superior
nesta revista (em particular), como de resto especializado (FBAUP), passando por uma
não o é na chamada ‘escrita académica’ (em gama de cenários mais ou menos (in)formais,
geral). Outro dado que também me parece no sector público ou privado (Viarco Pencil
relevante mencionar, tem a ver com a esco- Factory). Todos, a seu modo, falam da sua
lha da ‘língua’ por parte dos autores: dois solidão, embora as suas vozes ‘autorais’ so-
artigos (respectivamente de Ricardo Pistola bressaiam tanto mais quanto mais se afogam
e Susana Ribeiro) surgem escritos em inglês. e diluem no mesmo mar de textos e autores
A esse respeito não será despropositado re- em que todos mergulharam. Ana Cristina
ferir como, no universo da publicação aca- Dias fala-nos dessa solidão sem exílio a partir
démica (em regime peer-review), cada vez da qual procura ensaiar uma aproximação da
mais se impõe que abdiquemos de escrever escrita à dança contemporânea. O problema
na nossa língua materna, e privilegiemos a da escrita afirma-se, neste ensaio, como uma
escrita naquela que é a língua de maior cir- prática assumidamente ‘tacteante’ que re-
culação e legibilidade (ou visibilidade) inter- sulta de um ‘esforço’ no sentido da transgres-
nacional – o inglês, essa espécie de esperanto são das fronteiras entre ‘leitor/escritor’ e
académico. Escrever em inglês é hoje a maior ‘espectador/criador’. Nesse espaço vazio que

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vai do corpo até à folha-ecrã-palco, a escrita encontrar uma resposta minimamente sa-
começa por se ensaiar ao questionar-se, em tisfatória que lhe permita superar (ou deixar,
primeiro lugar, acerca da sua própria prática de uma vez por todas, de tentar responder a)
enquanto ‘gesto autoral’ ou ‘assinatura co- esta pergunta: “Porquê, então a dificuldade
reográfica’. A aproximação da escrita à dança da escrita?”.
coloca o corpo que escreve-dança perante a
exigência (a obrigação) de se pensar enquan- Mas são também os fantasmas, o medo do fa-
to ‘processo de criação’ sempre inacabado e lhanço, e toda a sorte de glórias e misérias que
sempre assombrado por ‘medos’ e ‘fantasmas’ assombram a “figura mítica do autor”, que
que lhe murmuram ao ouvido a iminência do nos aparecem, de soslaio, n’Um olhar sobre
seu ‘falhanço’, a inevitabilidade da sujeição os discursos da morte, de Margarida Dourado
desse corpo escrevente-dançante às leis da Dias. Propondo-se analisar os discursos pro-
gravidade ‘autoral’ que o impelem constan- duzidos pelos diversos saberes disciplinares
temente para a queda, a morte, o desapareci- (a filosofia, a psicologia e a arte), e o modo
mento. “O que me paralisa é a promessa? (…) como estes procuraram ‘regular’ o seu pró-
O que pode o olhar do outro?” – pergunta Ana prio discurso sobre a morte, Margarida Dias
Cristina enquanto ensaia a escrita de si. A es- lança mãos a um trabalho assumidamente
crita (entendida, também, como coreografia) ‘histórico’ e ‘arqueológico’ que consiste em
afirma-se nessa estranha negociação, feita escavar – quer nas profundezas do imaginá-
de negações e resistências, do corpo-dançan- rio científico colectivo, quer na superfície da
te com o corpo-escrevente. Escrever a dança cultura visual ocidental –, as origens dessa
(ou dançar) não é o mesmo que escrever sobre vontade de poder-saber que fez nascer a ne-
a dança (ou sobre o dançar). Mas escrever já é, cessidade de ensinar a vida à criança, por
de certo modo, coreografar: impor ao corpo intermédio de escritas e pedagogias que vi-
uma disciplina. O corpo que dança resiste savam, justamente, ocultar e/ou explicar a
a tornar-se escrita (ou a resumir-se a ela). morte às crianças. Nesse trabalho de escava-
Porque o corpo que dança, não é o mesmo ção, vemos como a emergência de uma lite-
corpo que escreve. A exigência que a escrita ratura sobre a morte se tornou constitutiva
impõe ao corpo-dançante é precisamente não apenas da possibilidade de generalizar
essa: o acto de escrever obriga a que o corpo a “evolução cognitiva da morte” mas, so-
não dance. Daí, também, o “redobrado risco, bretudo, da possibilidade de transformar a
redobrada culpa” do corpo dançante en- morte num objecto de conhecimento e num
quanto responsável pela morte da dança às fenómeno cognitivo (mais do que biológico).
mãos da escrita. À pergunta “o que seria uma Se, como “artista”, começou por “pensar a
leitura para alimentar uma escrita?” talvez morte como metáfora”, como “investigadora”
se pudesse responder com outra: o que seria Margarida encontrou “o grão de areia que,
uma escrita para alimentar uma dança? Será pelo desconforto criado no sapato” a obrigou
que algum dia um corpo-dançante poderá “a retirá-lo para o observar com outro olhar”.

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Começando por explicar as origens do seu in- Numa sociedade em que se adquiriu “o direi-
teresse neste tema: “desde criança que me per- to (ou obrigação?) a viver, mas não a morrer”,
gunto porque têm as pessoas tanto medo da a criança – ou a infância enquanto promessa
morte”, aquilo que a Margarida-criança aca- da vida na sua máxima potência – tornou-se
baria por descobrir no seu processo de devir o objecto de conhecimento por excelência e
Margarida-adulta, e mais especificamente, o alvo inevitável das ideias dos adultos quan-
no seu devir Margarida-artista e Margarida- to à esperança de vida do seu próprio mundo,
investigadora: “há muito que o medo da morte e quanto à própria responsabilidade do
me abandonou. Morreu por pensar sobre ela”. adulto em salvá-lo por via do amor à crian-
Mas essa descoberta não se deu por um mero ça. É em nome (e em consequência) dessas
acaso enquanto Margarida se dedicava, pura fantasias adultas sobre o mundo infantil (e
e simplesmente, a viver a sua vida como uma sobre o que pode, deve – ou não – ser esse
experiência singular, ou a transformá-la num mundo) que Madalena Wallenstein pergun-
objecto de estudo: “a fonte da minha apren- ta (como quem responde afirmativamente à
dizagem sobre a morte passou pela literatura, sua própria questão): Então, o Pinocchio sou
porque só ela me falava.” Nesse processo de eu? Aqui a identificação de Madalena com o
“desmistificação da morte” e desvendamen- célebre personagem de ficção que inundou
to das narrativas de “salvação” que, ao longo de memórias e morais o nosso imaginário
dos tempos (e das escritas) foram afirmando infantil, não se resume a um mero percepto
a necessidade do seu conhecimento como ou artifício da escrita. Pinóquio tem, afinal,
condição da própria “vida” e da sua “produ- um rosto visível e um nome próprio de ser
tividade”, Margarida afirma (a propósito dos amado. Pinóquio é Madalena, mas é sobretu-
vários autores já mortos a cujos textos teve de do o seu irmão gémeo, Miguel, a prova viva
recorrer para escrever a sua própria história que parece suplantar a realidade que nem
da morte): “estas entradas são feitas a partir em romance nos parece possível: “recusou-
de leituras de escritos que nunca se ficam só -se à submissão escolar e perseguiu a liber-
pelo discurso do autor, mas referem-se sem- dade e o desejo no encontro consigo, com os
pre a outros autores.” E pergunta: “Será aliás outros e a natureza”...”um ativador de pra-
possível falar sem a voz dos outros incluída zeres”. Miguel é o sonho de Pinóquio. Mas
na nossa?” A morte é esse outro da vida e, tal Miguel é para Madalena (tal como Pinóquio
como a morte do autor (a morte de toda a au- é para todos nós) aquilo que Madalena vê
toria e autoridade) é a condição (o alimento) nele: é o seu personagem de ficção, o seu
da própria possibilidade da escrita, da escrita “herói”, ou seja, uma potência de vida fantás-
como possibilidade de uma vida outra. De um tica, uma espécie de gigante, uma exagera-
modo paradoxal: pensarmos (escrevermos) ção da vida. Mais do que perceptos, Miguel
sobre (com) a morte, é libertarmo-nos dela. e Pinóquio são afectos e, como tal, devem
Freud dixit: “Se queres suportar a vida, prepa- pagar o seu preço pela exorbitância, pela ex-
ra-te para a morte”. centricidade que impõem à normalidade da

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existência dos outros. Os afectos são esses Como pode a arte ou a “experiência artística”
devires que transbordam daquele (e exce- contrariar ou resistir a esta força da repetiti-
dem aquele) que passa por eles. Pinóquio vidade educativa e escolarizada (a nora) e, ao
e Miguel, como uma música, fazem-nos mesmo tempo, ativar “pequenas emancipa-
ver várias cores. Essa música e essas cores ções de infância agrilhoadas em si mesma”?
são grandes criadoras de afectos que nos Será algum dia possível que nem todos os
arrastam para potências acima da nossa caminhos vão dar à escola?... “Era uma vez
compreensão. É também por isso que a pos- um bocado de madeira!”… que foi parar à
sibilidade de uma programação artística “Terra dos Tolos”…Nas palavras de Madalena
para a infância não pode ser pensada sem Wallenstein: “Pinocchio oferece-se hoje
que se interroguem, por um lado, as nossas como um lugar abissal para pensar o infantil,
convições e afectos sobre a infância e, por a educação, o crescimento, a procura do seu
outro, a razão pela qual nos é tão difícil ima- interior e de um lugar no mundo”.
giná-la fora das categorias científicas e artís-
ticas que a fazem oscilar entre os dois pólos “Repetition changes nothing in the subject
da insubmissão e normalidade. Imaginar a repeated, but does change something in
criança como “público”’ ou “espectador” ou the mind, which contemplates it” – citando
imaginar que a infância é, afinal, “identificá- Gilles Deleuze em Difference and Repetition,
vel em todas as idades” – “as infâncias” – não é nestes termos que Ricardo Pistola conclui
será ainda remetê-las ou confiná-las aos es- o seu ‘ensaio visual’ cujo objeto consiste num
tereótipos que as prendem à “noção de de- experimento realizado a partir da exploração
senvolvimento” elaborada pela psicologia e das potencialidades técnicas de um ‘mate-
esteticizada pelos dispositivos educacionais rial de desenho’ (ArtGraf Nº1). Inserindo-se
da arte contemporânea do século XXI? Será quer no contexto de um projecto de doutora-
que somos mesmo capazes de sonhar (entre mento em educação artística, quer no con-
o pesadelo e o medo) a infância – o “devir texto ‘industrial’ da Viarco Pencil Factory,
criança” – como uma potência que é tanto a ‘experimentação’ foi ‘levada a cabo pelo
mais potente quanto mais se escapa não só à investigador no contexto de atelier’ e apre-
nossa capacidade (adulta) de pensá-la como, senta-se numa série de imagens que do-
sobretudo, se escapa à nossa vontade de an- cumentam a ‘experimentação’ enquanto
tecipá-la ou programá-la, para melhor poder processo de exploração das ‘propriedades fí-
controlá-la nesse seu potencial de ser e não sicas e mecânicas’ daquele material de dese-
ser o “boneco” transformado em ‘menino de nho. Ou seja, as imagens que ‘apresentam os
verdade’ que dela esperamos? Não será, afi- resultados’ e o ‘comportamento’ do material
nal, a “criança” essa “quimera inviável” que ‘em diferentes superfícies de papel’, falam por
dentro de cada um de nós pergunta (como si mesmas (e de si mesmas), sendo que a sua
quem responde afirmativamente à sua pró- ‘conexão com o texto’ (propriamente dito) do
pria pergunta): “educar é negar o infantil?”. ensaio visual foi ‘estabelecida através das

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preocupações metodológicas que surgiram última instância, se traduz numa impossi-
durante o processo de investigação’. Mas é bilidade de pensar uma educação artística
precisamente a intradutibilidade do acto de capaz de problematizar a noção de autoria ou
desenhar enquanto ‘ação presente’ – decor- autoridade como padrão regulador – ou es-
rente da experimentação individual ou ex- pécie de homeostasia – da nossa prática (e da
periência solitária do ‘investigador’ –, que nossa própria existência) enquanto artistas,
acaba por sobressair nos próprios conceitos professores ou investigadores. Talvez seja
(draw in, drag to model, grasp) que servem tempo de transformarmos a repetitividade
de pretexto para fundamentar teoricamen- desta noção – que é, também, a estrutura es-
te a possibilidade de uma metodologia que truturada e estruturante dos nossos modos de
visa demonstrar que a ‘experimentação’ e os subjectivação – num objecto de investigação.
seus ‘resultados’ constituem, em si mesmos Isto é, partindo do princípio que podemos
(e por si mesmos) um ‘processo de inves- (ou queremos), de facto, mudar alguma coisa
tigação’. Ricardo Pistola apresenta-nos as nas nossas mentes. Ricardo Pistola confir-
suas ferramentas teóricas: “Draw in define ma: “To draw is conceived as private affair in
o campo de acção onde to draw (como verbo) the sense that it is contingent to the research
é abordado como uma acção presente; e drag context. As a society we always try to unders-
é o processo que opera através da proposi- tand each other and work within rules upon
ção to model”. Por outro lado, apresenta-nos which we agree”. É nesse reconhecimento
os seus procedimentos metodológicos, ou das regras que efetivamente tornam possível
melhor, a sua experimentação metodológica: o experimento enquanto entidade fenomeno-
“the action is repeated through the proposi- lógica autónoma controlada pelo investigador,
tion drag to model, made in order to inform que o atelier do artista se transforma no labo-
and, to translate through visual means the ratório do cientista: “notwithstanding, repe-
result of the interaction of subject (resear- tition can only be ensured in the experiment
cher) and his or her material.” E assim fica- if it is conducted within a close environment
mos esclarecidos quanto à definição e papel where the phenomenon is defined in terms of
metodológico desempenhado pela noção de chosen factors”.
autoridade na possibilidade de transformar
experimentação em investigação: “authority Tendo como horizonte de expectativa ‘ajudar
is construed as a power relation present in os artistas a alcançar um melhor entendi-
scenarios of interaction. (…) The notion of au- mento da cor e de si mesmos’, o experimento
thority, (…) is perceived as the force bounding Lab Color Sense: a new approach to color de-
the research.” Em suma, vemos neste ensaio safiou um grupo de estudantes de pintura
visual como, através da noção de autoria ou da FBAUP a analisarem a sua percepção
autoridade, se afirma (ou confirma) a potên- cognitiva da cor na sua prática de pintura.
cia de um impensável da arte (e dos modos de Por sua vez, os ‘resultados’ foram analisa-
criação-experimentação artística) que, em dos pela investigadora a partir da aplicação

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de questionários aos estudantes e através autonomia na prática da educação artística’
de registos fotográficos e vídeo das sessões que, por sua vez, tornam possível ‘a cons-
de discussão que tiveram lugar a seguir ao trução de um conhecimento heterogéneo’
experimento. Do contacto entre estudantes capaz de transformar ‘a escola’ num espaço
e cores (um estudante, uma cor) resultou que vai para além da ‘mera transmissão de
a constatação: ‘generally, there are diffe- conhecimento’. Dito de outro modo: “it is
rent emotions caused by these two kinds of essential that schools recognize their stu-
perceptions: Visual Perception and DOP dents’ right to their own experiences and
[Dermo-Optical Perception]’. Partindo do perceptions (…). Only through a reflexive
principio de que ‘a cor’ é ‘o aspecto mais ime- activity on the process of training and lear-
diatamente visível da pintura’ e ‘a preocu- ning, is the educator allowed to build their
pação estética essencial de muitos artistas’, knowledge, crossing theoretical and practi-
Susana Ribeiro reconhece, no entanto, que cal experiences”. Porém, é com base na pos-
foi o seu próprio ‘fascínio pela a dinâmica sibilidade de demonstrar as potencialidades
de causa/efeito, repulsão/atracção excerci- metodológicas da ‘reflexão sobre a prática’
do pela cor’ que a impeliu a uma ‘inevitável ou ‘reflexão na acção’ – entendida como va-
reflexão’ sobre o ‘diálogo entre corpo e cor’ lorização da “naïve curiosity” ou capacidade
que ocorre na ‘prática criativa da pintura’, e do aluno em ‘voltar-se sobre si mesmo’ e, em
no qual a pintura é o ‘meio de produção de última instância’, ‘tornar-se crítico’ –, que o
conhecimento’. Porém, o seu interesse não experimento (e o próprio artigo) visa confir-
está tanto na pintura enquanto ‘produção mar “the basic principle of reflective lear-
de conhecimento’, mas no ‘comportamento ning as critical role of emerging challenges
interactivo’ ou ‘processo reflexivo’ (auto- to the act of knowing in action” [itálicos meus].
-conhecimento, auto-experiência, auto-aná- Concentrando-se nesse ‘processo cíclico de
lise) que decorre dessa prática. Susana quer acção-reflexão-acção’, Susana Ribeiro obser-
compreender a ‘sensibilidade cognitiva’, ou va: “a world of natural and cultural pheno-
seja, aquilo que se esconde ‘por detrás da mena waiting to be seized exists outside of us.
interacção entre corpo e cor’ durante o ‘pro- The interaction with all that exists outside
cesso coletivo da pintura’ enquanto ‘prática’ of us constitutes an objective and sensitive
e ‘introspecção’ sobre a cor: “the union body/ world.” É também sob este ponto de vista,
mind/spirit is the fundamental basis of this simultaneamente objectivo e sensível, que
experiment”. Segundo a investigadora, as Susana enquadra o seu ‘estudo de caso’ – e a
questões que a cor desperta no ser humano sua própria ‘atitude’ enquanto ‘mediadora’ e
acerca das ‘relações entre corpo, mente e es- ‘investigadora em acção’ –, num ‘processo me-
pírito’ são cruciais não apenas para ‘um real todológico’ que designa como “action resear-
entendimento da verdadeira grandeza da cor ch through experience”. Este permitiu-lhe
para cada individuo a ela exposta’, como para ‘observar’ e ‘registar’ todos os processos de
a ‘criação de espaços de reflexão, liberdade e ‘interação/observação/gravação da análise

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fenomenológica da percepção relacionada Ecoando o “soundbyte: primeiro o fazer e
com a cor’, sem outra ‘ambição’ que não fosse só depois o entender” – cuja recorrência pa-
a de ‘descrever esses processos com a maior rece constituir, mais do que um mote, uma
precisão possível’. Nas suas palavras: “this espécie de banda sonora para a investigação
action research attempts to abstract oneself em educação artística –, Homo Musicalis:
from their own experience, wherein the me- Retrato do Homem-Músico com vista para
thodological process was to investigate how a Escola e para o Mundo, entre o proviso e o
students create their own methodology which improviso, entre o determinado e o indetermi-
led their actions/experiences with color. It is nado é o único artigo a surgir assinado nesta
a circular movement, an evolutionary spi- Derivas em regime de co-autoria por Mário
ral which results in knowledge increasingly Azevedo e Rui Leite. O texto confronta-nos
comprehensive and extensive. In this pro- (ou confronta-se?), precisamente, com os
cess, the methodology, as an individual crea- impensáveis da nossa experiência escolar
tion, is not replaceable or teachable, instead e o desconhecimento de nós mesmos (e da
it consists of procedures that generate a me- nossa história) enquanto sujeitos produzi-
thodology. The importance of this project is dos pela escola, a partir de um “território do
assigned to the experience of color by pain- sensível”: a música. Começando por traçar
ting made by students, in order to interact como objectivo a possibilidade de “obser-
with the phenomena and try to understand var as razões que levam à marginalização
it” [itálicos meus]. Sendo esse espaço onde e ao afastamento precoce dos conceitos de
tudo se torna possível – situado entre o improvisação, indeterminação e acaso” nos
comportamento interactivo, a introspeção, “currículos escolares e métodos pedagógicos”
a curiosidade ingénua, a análise fenomeno- da educação musical, os autores declaram
lógica, a actividade reflexiva, a ação do pen- a sua “responsabilidade” nessa “empresa
samento, o conhecimento através da acção, de improvisar” e – “a quatro mãos e a duas
etc. –, a ‘auto-expressão artística’ revela ‘os vozes” – explicitam o objecto da ambição his-
aspectos do eu’ ao mesmo tempo que nos tórica (ou historiográfica) que os anima na
conecta com as nossas ‘emoções’ e oferece a sua “breve análise sobre os processos de en-
possibilidade de ‘transformar a prática edu- sino/aprendizagem da música” em Portugal:
cacional’. Sem necessidade de mais palavras “o porquê de, na sua caminhada evolutiva, o
para explicar as ferramentas e os lugares a Homo Musicalis vacilar entre proviso e im-
partir dos quais vemos-fazemos-escreve- proviso, entre determinado e indetermina-
mos ‘o mundo’, continuamos, assim, nesta do e entre acaso e necessidade”. Mas é sob o
espécie de movimento circular ou espiral imperativo ético e político do presente que
evolucionária que sistematicamente nos os autores, por um lado, observam esse ob-
mantém na impossibilidade de pensarmos jecto desconhecido – o Homo Musicalis – e,
a nossa experiência como conhecimento (ou por outro, fazem emergir o seu desconhe-
vice versa?). cimento no presente como um problema

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de investigação: “a urgência de reforçar a atores/vítimas ‘voluntárias’ do inferno do
presença dos conceitos supracitados enalte- igual”. Ou seja, ainda que sejamos capazes de
cendo assim o aberto que nos habita”. Mas é, imaginar respostas para as dúvidas e ansie-
sobretudo, um paradoxo – para não dizer, um dades que ciclicamente assolam (ou assom-
desconforto – que encontramos desde logo bram) a nossa existência – ficcionada por nós
na origem dessa possibilidade de pensarmos –, ainda não somos efetivamente capazes de
a figura do Homo Musicalis como um ser “ao colocar em crise (ou em vias de extinção)
lado ou mesmo dentro do Homo Sapiens os “ingredientes alquímicos” que ativam
Sapiens” mas, sobretudo, como uma espécie em nós “a consciência de nós mesmos”, ao
de “constructo” das escritas que, ao longo mesmo tempo que operam a ‘naturalização
do tempo, visaram produzi-lo enquanto tal, de um discurso comum a todos’. Será que
e inscrevê-lo na realidade escolar como im- algum dia os nossos cérebros conseguirão
possibilidade. Tal como os próprios autores finalmente atingir um estado de evolução
constatam, “em jeito crítico”, na introdução natural (ou iluminação transcendental) que
ao texto: “enquanto educadores e pedagogos nos permita pensar a educação artística na
musicais parece-nos fundamental dar conta sua possibilidade de devir coisas diferentes
do conforto que é imaginar a improvisação, daquelas para que foi inventada: “uma tábua
o acaso e a indeterminação como parceiros de salvação – acto salvífico”, “um exercício
fundacionais e seguros. (…) Espantados e reflexivo sobre as narrativas e as roupagens
consternados ficamos quando os pressupos- que vão vestindo quem somos e o que faze-
tos anunciados raras vezes são expostos nos mos”? Será que algum dia poderemos devir
bancos de escola (…) e, quase sempre, afas- outra coisa que não o “homem-que-aí-vem”
tados desses mesmos currículos”. Enquanto ou o “homem idealizado enquanto perso-
protagonistas desse aberto que nos habita, a nagem universal”? Talvez haja esperança…
improvisação, a indeterminação e o acaso até porque, “como sabemos hoje, não há um
enaltecem, segundo Azevedo & Leite, “as homem único. Há sim, homens e no plural”.
respostas a dar à singularidade de cada um” E também já há, cada vez mais, mulheres…
e, ao mesmo tempo, dão-nos “uma resposta
efetiva ao apelo polifónico da vida”. A prova Em Discursos educativos em museus: Práticas
de que “não estamos sós no que fazemos e e discursos educativos do Museu do Douro_o
pensamos”, surge naquela que é a constata- projeto BIOS , Marta Coelho Valente propõe-
ção – e, porventura, a grande evidência re- -se discutir a possibilidade de um “museu
petida por quase todos os artigos presentes contemporâneo, artístico ou não” que, para
nesta Derivas – que nenhum de nós, profes- além de poder ser “um espaço de legitima-
sores, artistas, investigadores, ousa ques- ção”, “exibição”, “conservação”, deve ser
tionar: “os currículos mais não são do que “cumulativamente” encarado como “um
a evidência da vigilância que nos tolda a li- espaço de experimentação”, “investigação”
berdade, nos manieta e nos transforma em e “produção de conhecimento partilhado”

01 3 D E R I vA s # 0 3
e “transformação social”. Mas é a partir de necessidades dos cidadãos, afirmando dis-
um enquadramento institucional específi- cursos ainda carentes de significado efec-
co – o Serviço Educativo do Museu do Douro tivo para as pessoas”. Resumindo: embora
– que Marta territorializa os seus próprios nas últimas décadas se tenha acentuado, do
“modos de pensar os públicos” e respectivas lado das instituições culturais (e respecti-
“possibilidades de participação” e “envolvi- vos serviços educativos), o “esforço em ten-
mento” nas “estruturas culturais”, devida- tar transgredir os tradicionais modelos de
mente “integradas nas políticas e práticas transmissão unilateral de um saber especí-
culturais e educativas”. Corporificando os fico, de carácter hegemónico e colonialista”
valores subjacentes à “missão” do referido (de modo a “dissipar a fissura existente entre
Museu, as práticas educativas dobram-se públicos e museus”), na realidade verifica-se
e desdobram-se no interior do discurso da que a “distância” entre aquilo que os museus
“preservação”, “divulgação” e “investigação” pretendem e aquilo que eles significam para
do “património cultural” e da “promoção da a maioria dos cidadãos, acabou por tornar-
participação da comunidade” no “encontro -se num “abismo”. É no meio desta contradi-
com o território e a paisagem”. É também ção – que assombra “o lugar do educativo nos
nesse filão discursivo que emergem as “pos- museus” [itálicos meus], acabando por fun-
sibilidades pedagógicas onde convergem, de cionar como uma espécie de posicionamen-
uma forma inesperada, várias áreas do saber, to metodológico da investigação – que Marta
práticas artísticas contemporâneas e o sub- se propõe revisitar as propostas educativas
jetivo”. Mas é “a partir da exploração teórica implementadas pelo Serviço Educativo do
do princípio de participação” e “suas poten- Museu do Douro, particularizando o projec-
cialidades na relação das instituições com os to BIOS (desde 2011), e suportando-se numa
públicos”, que Marta define “um posiciona- “leitura analítica dos documentos produzi-
mento” para a sua “investigação”, que come- dos pelo Museu” (desde 2006). Mas é preci-
ça por dar conta de uma realidade paradoxal: samente aí, nessa “leitura analítica”, que as
por um lado, a contemporaneidade de um fissuras, as distâncias e os abismos entre as
discurso (ou, mais propriamente, de uma nossas teorias e as práticas concretas com
retórica) que celebra “o abrir-se às comuni- que as incorporamos naquilo que fazemos se
dades” e “às diversas subjectividades” como revelam, e o posicionamento do investigador
condição de sobrevivência e sustentabilida- perante aquilo que investiga, se esclarece:
de do próprio museu enquanto instituição de “será pertinente realçar que a análise esta-
utilidade pública (mesmo quando responde belecida surge do que se pressente dos docu-
a fins particulares ou privados) e, por outro mentos analisados, devendo-se ressalvar que,
lado, a constatação de que “muitos projec- de forma natural, tais documentos reflectem
tos educativos implementados carecem de sempre uma imagem do que se faz” [itálicos
proximidade com o contexto que os envolve meus]. Daí, também, a nossa impossibilidade
e evidenciam dificuldade em responder às – enquanto investigadores – de pensarmos o

014 D E R I vA s # 0 3 EDITORIAL
“lugar do educativo” (artístico ou não), como que as “obras” de Aernout Milk (2009),
“um lugar que investiga e se posiciona política Sharon Lockhart (2008) e Sarah Wood
e criticamente no contexto onde reside e onde (2014) tornam possíveis ao ativarem no “vi-
atua” [itálicos meus]. Se investigar é, antes sitante” e/ou “espectador” (?) a sua própria
de mais, construir uma “paisagem”, então disposição para construir “a obra enquanto
como poderemos “entendê-la como tal” se se identifica e a significa”. Dizer que “é a lei-
não questionarmos, antes de mais, “quais tura que se faz da obra que a transforma”, é
os valores, os métodos, os modelos através admitir a imagem como uma superfície cuja
dos quais a olhamos”? Será que não estamos legibilidade é sempre provisória e circuns-
sempre a correr o risco de, ao “mergulhar nas tancial: “‘history is what we are making
singularidades do eu e das coisas do mundo”, right now’ (I’m a spy, 2014)”. Mas é sobre-
irmos parar aos mesmos “lugares que passa- tudo o ponto de vista a partir do qual lemos
mos todos os dias e não vemos com atenção”? (ou vemos), que faz com que “a obra” trans-
De que serve perguntar “que espaço existe forme (ou não) o nosso próprio pensamento.
para uma participação efectiva?” se nós mes- Embora de uma forma contida e arbitrária,
mos (enquanto educadores e investigadores) este texto fecha o círculo iniciado no artigo
não estivermos implicados nesse trabalho de Ana Cristina Dias ao retomar a questão
que consiste em colocar em perigo o nosso da inescapabilidade do corpo ao “diagra-
próprio lugar nesse “discurso desconstruti- ma de relações” de poder disciplinar que o
vo” que “traduz uma atitude reflexiva e críti- constituem como imagem, representação,
ca em relação aos modos de pensar e agir no presença, resistência e pertença, e ao cha-
campo educativo”? mar a atenção para a “natureza política da
experiência estética” que faz desse corpo a
Sob a forma de três ensaios fílmicos que esca- sua seta e o seu alvo, o seu arquivo ou recep-
pam à “linguagem fílmica convencional” para táculo, a sua superfície de inscrição e pro-
encaixarem na categoria de “obras híbridas”, blematização. O corpo (tal como as imagens
Play/Stop: Discursos sobre o Contemporâneo que o representam ou apresentam) é essa
explora “a questão: como pensar o contem- plasticidade, sempre moldável, consoante
porâneo através da imagem?” a partir da pos- as forças do olhar que dele se apropriam. Às
sibilidade de, por um lado, “problematizar o páginas tantas, a possibilidade de responder
dispositivo cinematográfico no que diz res- à pergunta inicial acaba por se diluir numa
peito ao seu regime histórico e conceptual” e, outra pergunta, sem que alguma delas
por outro, identificar “novas formas de pen- tenha sido questionada na própria escrita:
sar a imagem” como “jogo” ou “teia de rela- “Will art always remain a fiction, or can it,
ções enunciativas, discursivas e sensoriais”. in fact, generate societal change?”. Mas é a
Tendo em mente o “diálogo entre cinema e pergunta seguinte que deixará, indefinida-
as artes plásticas”, Daniela Rosário procura mente, a sua possibilidade de resposta em
questionar as “articulações e plasticidades” aberto: “Que relação têm estas imagens com

01 5 D E R I vA s # 0 3
a minha contemporaneidade?” Prolongando
e torcendo esta mesma pergunta: que re-
lações têm entre si todos estes artigos aqui
presentes nesta Derivas, e qual o conjunto
de questões por eles levantadas quanto aos
modos de investigar-escrever-pensar a edu-
cação artística na contemporaneidade?

016 D E R I vA s # 0 3 EDITORIAL
Uma solidão
sem exílio

ANA CRISTINA DIAS


I 2 A D s ( I N s t I t u tO D E I N v E s t I g Aç ãO E M A R t E , D E s I g N E s O C I E DA D E )
F B Au P ( FAC u L DA D E D E B E L A s A R t E s DA u N I v E R s I DA D E D O P O R tO)

B O L s A D E D O u tO R A M E N tO
DA F u N DAç ãO PA R A A C I ê N C I A E A t EC N O LO g I A
RESUMO A B S T R AC T
Este artigo é a afirmação de uma escrita tac- This article is the statement of a groping writ-
teante que resulta do esforço de transgredir ing that results from the effort to transgress
a fronteira leitor/escritor, espectador/cria- the boundary reader/writer, viewer/creator.
dor. São levantadas aqui, mais do que res- There are raised here, more than answered,
pondidas, questões sobre o gesto autoral, o questions about the authorial gesture, the
assombramento de medos e de fantasmas no haunting fears and ghosts in the creation
processo de criação e a tentativa da sua supe- process and the attempt to overcome it, in a
ração, dentro de uma ideia de inacabamento. sense of incompleteness. It is also tested an
É ainda ensaiada uma aproximação da escri- approach of the writing towards the contem-
ta à dança contemporânea. porary dance.

PA L AV R A S - C H AV E KEY WORDS
escrita writing
medo do falhanço fear of failure
assinatura coreográfica choreographic signature

018 D E R I vA s # 0 3 UM A SOLI DÃO SEM E XÍ LIO


Dois territórios
Aquilo que se aprende vem do nosso próprio Imagino uma fronteira – de um lado uma
ensino, vem da pergunta; vão-se aprendendo, minoria, os eleitos, inspirados, bafejados
pelas esperas, pela imobilidade às portas, por uma genialidade ou predestinação que
pela invisibilidade dos rostos depois de vis- os torna sujeitos transcendentes; e do outro
tos tão prometedoramente, pela emenda uma maioria, de comuns mortais, onde
sucessiva, pela insónia sucessiva dos olhos e estou incluída. Essa fronteira separa os es-
das figurações, sempre, vão-se aprendendo critores dos leitores, os artistas dos espec-
sempre as maneiras da pergunta. Uma per- tadores. Pensar em transpor essa barreira
gunta em perguntas, um poema em poemas, é da ordem do interdito, possível apenas
uma rebarbativa constelação de objectos como acto transgressor e passível de pena
ofuscantes. Aprende-se que a pergunta se criminal. Então, talvez por isso, sinta na es-
desloca com a luz inerente; ilumina-se a crita a inquietação de alguém que poderá ser
si mesma a pergunta constelar; ensina a si apanhado em flagrante delito, com a agra-
mesma, ao longo de si mesma, os estilos de vante do gesto constituir a própria prova
ser dotada dessa luz para fora e para dentro. do crime. Isto é mais verdadeiro quando se
Herberto Hélder, tenta escrever de forma tacteante, errante.
As turvações da inocência, 1990, p.30 Redobrado risco, redobrada culpa.

Na dança, bem como em outras áreas artís-


ticas estão vivos os mitos da originalidade,
da inspiração, da genialidade, para referir
apenas alguns. O endeusamento do artista
contribui para que a fronteira se mantenha
e que cada um ocupe o seu devido lugar. Os
da maioria nunca poderão produzir objec-
tos artísticos a não ser que se concebam a si
próprios como artistas, muito predestinados,
eleitos ou inspirados. Os da minoria operam
numa certa opacidade. O papel de cada um é
reforçado por ambas as partes. De uma forma
directa ou indirecta, a romantização da prá-
tica artística e as suas consequências estão
na antecâmara da escrita destas palavras.

Esta dicotomia entre artista e espectador


poderia ser transferida para as esferas da es-
crita e da leitura.

019 D E R I vA s # 0 3
Derrida (1975, pp.54, 55) coloca uma impos- máximas da sociedade actual, o falhanço pa-
sibilidade civilizacional, sugere que há uma rece ser, efectivamente, algo a evitar a todo o
espécie de anterioridade da escrita sobre a custo, a qualquer custo. E o medo entranha-se,
leitura. Estaríamos aqui convidados a con- aloja-se nas trabéculas dos ossos.
ceber uma escrita impulsionada não por
um saber enciclopédico, mas por um motor Dando um passo atrás, o meu primeiro gesto
interno, um tema, uma pergunta, um dese- em direcção à escrita foi no sentido de ad-
jo, que vai procurar nos textos aquilo que de quirir a erudição que imagino ser necessá-
particular lhe interessa. É neste sentido que ria, mais premente ainda quando se deseja a
Jorge Ramos do Ó pergunta ‘O que seria uma intertextualidade, a interferência de várias
leitura para alimentar uma escrita?’!1 vozes. O meu primeiro passo foi afinal em
direcção à leitura.
Preciso de socorrer-me deste começo para
poder expor as minhas dificuldades, alguém A dada altura M. perguntava: ‘A que distân-
ainda paralisado com a ideia de domínio de cia estamos das leituras quando escreve-
leituras, dos autores, dos conceitos, das cor- mos?’!2 Esta pergunta remete-me para outra
rentes filosóficas, enfim, do universo inteiro, que atravessa a minha relação ambígua com
antes de se sentir preparado para escrever. a leitura. Será que nos sentimos próximos
do pensamento e da emoção, do que lemos,
O desejo de abarcar uma totalidade, impossível mas distantes da figura mítica do autor, que
de abarcar, resulta naturalmente num impasse. queremos porventura matar, sem sabermos
como, para podermos nascer como escrito-
Poderia pensar-se como Derrida numa es- res? Ou sentimos o contrário, uma espécie
crita que precede a leitura? Uma escrita que de empatia pela vida e figura do autor, mas
abra e conduza o trilho? Uma dança que an- uma distância relativamente à sua escrita?
tecipe a sua própria coreografia?
Só consigo escrever estas e as palavras que
Os fantasmas que assolam a minha escrita se seguem, imaginando que é um rascunho,
serão os mesmos que assolam a minha cria- ou o esboço de um trabalho que precisa de
ção coreográfica? tempo para amadurecer.

A lista dos fantasmas, se a fizermos como exer- Sinto-me sempre a começar, como se não
cício mental, afigura-se extensa, mas os fan- fosse possível ainda passar do desejo à acção.
tasmas parecem ser, afinal, para mim, várias Afinal de quantos começos preciso?
faces de um mesmo receio: o medo do falhanço.
Numa sociedade fortemente orientada para o Barthes (1974, p.33) denuncia um divórcio
sucesso, a proactividade e o empreendedoris- entre o leitor e o escritor: ‘há, de um lado,
mo, para referir apenas algumas das grandes alguns escribas, ou alguns escritores, e do

1. seminário de Leitura orientado pelo Professor Jorge 2. M. frequenta, como eu, o seminário de
Ramos do Ó, Instituto de Educação, Lisboa, 5.04.16. Escrita Científica, orientado pela Professora
Catarina Martins, FBAuP, 24.04.16.

020 D E R I vA s # 0 3 UM A SOLI DÃO SEM E XÍ LIO


outro uma grande massa de leitores. E aque- comportar sob esse aspecto como sujeito
les que lêem não escrevem. O problema está livre. Ora, é preciso (e este é preciso está ins-
aí, não está? Os que lêem não escrevem.’ crito diretamente na herança recebida), é
Aquilo para que Barthes finalmente aponta preciso fazer de tudo para se apropriar de um
é para a possibilidade de ‘fazer do leitor um passado que sabemos no fundo permanecer
escritor’ (Barthes, 1974, p.36). inapropriável, quer se trate aliás de memória
filosófica, da precedência de uma língua, de
A dificuldade da escrita poderá então estar uma cultura ou da filiação em geral.
relacionada com a difícil passagem do lugar
de leitor, a que a escola nos habituou, para o O risco que se corre quando se procura co-
lugar de escritor. nhecer bem a precedência é perceber que
as referências são como cerejas, com cau-
Mas ninguém parece explicar como se faz les entrelaçados, infindáveis. Procuram-se
essa transição, parece um processo iniciático, na abordagem aos que nos precederam, na
é um mistério. Na verdade até revelam que história da dança, por exemplo, relações
é escrevendo persistente e obsessivamente, causais ou linearidades que ajudem a expli-
mas faltam pedaços, partes que ninguém diz. car as diferentes possibilidades de aborda-
gem à dança contemporânea, no presente.
Procuro com urgência dentro de mim, nos Mas essa abordagem parece ter já caducado.
espaços onde encontro a escrita, um lugar Dissolvida a ideia de linearidade, é como se
que diga ‘escrita académica’, e nada, só um cada um tivesse que resolver em si os desa-
volumoso nada, cheio de dúvidas e ansie- fios que se apresentam. ‘Se virmos formas
dades. Assim, volto-me novamente para os de trabalho coreográfico enquanto conjunto
textos onde procuro a coragem prometida de práticas, começar com uma ontologia do
de um impulso, que esmorece, mal seguro a presente foi talvez o verdadeiro investimen-
caneta ou pouso as mãos no teclado. Procuro to do encontro. Como é que quer trabalhar
dentro de mim a escrita coreográfica a partir hoje?’ (Peeters, 2007-2008, p.58).
do meu impulso de dança.
Na escrita e na dança, a ideia de totalidade,
Porquê então a dificuldade da escrita? Uma de erudição, é uma ideia-travão, uma ideia
das razões possíveis é o desejo de nos apro- que pode impedir a acção.
priarmos de um passado inapropriável, de
que nos fala Derrida e Roudinesco (2004, Demoro demasiado tempo a tentar perce-
p.12), na seguinte passagem: ber a precedência. Há qualquer coisa que me
atinge violentamente, uma impossibilidade.
...é preciso primeiro saber e saber reafirmar o Encontro-me assim, imóvel diante de um por-
que vem ‘antes de nós’, e que portanto rece- tão fechado. Mas tal como o homem do campo,
bemos antes mesmo de escolhê-lo, e nos diante da lei, no conto de Kafka, eu aguardo

0 21 D E R I vA s # 0 3
permissão para entrar, apesar de uma proi- O sair de um impasse passará, naturalmente,
bição (Kafka, 2015, p.250). Suspeito poder por alguma espécie de movimento, mesmo
passar sem autorização, sem que uma figu- que pequeno e desajeitado. Uma eventual
ra paternal me valide e autorize a transpor a sacudidela da serpente. Embora não pareça
fronteira, pois parece que é disso que se trata. prudente, a solução estará num impensado
qualquer, numa iminente imprudência.
Em ‘A escrita de si’ Foucault revisita a cul-
tura greco-romana, centrado nas práticas Terei como Derrida (2002, p.15), no seu en-
ligadas ao governo de si e dos outros e não contro com o olhar do gato, vergonha de
em linearidades. É desse lugar que nos traz saber-me olhada nua? Sim, porque na escri-
os hypomnemata, livros onde se acumula- ta exponho o avesso de mim, do meu pensa-
vam fragmentos de coisas lidas, ouvidas ou mento, desta trajectória. O pudor não advém
pensadas (Foucault, 1992, p.135). A ideia do olhar do gato, que talvez visse na minha
sugerida pelos hypomnemata era poder nudez a coisa mais banal, mas do olhar desse
transformar “a coisa vista ou ouvida ‘em ‘outro’ que imagino poder censurar-me.
forças e em sangue’”. Ou seja, torná-las
suas, parte integrante do seu próprio corpo Não ter pudor, não ter vergonha. Seguir ten-
(Foucault, 1992, p.143). tando voltar ao momento pré-serpente no pa-
raíso. Seguir tentando evitar colocar no outro
É-me apontada aqui uma saída, um posicio- o meu próprio olhar, censurador, diminuidor.
namento que não se aflija com a pluralidade O que pode o olhar do outro? Fazer-me sen-
ou o volume das vozes, mas que procura di- tir ridícula, inautêntica. Barthes, referindo-
geri-las e integrá-las. se à sensação de inautenticidade quando
o fotografam, refere ‘Os outros – o Outro –
O que me paralisa é a promessa? Será que é desapropriam-me de mim próprio, fazem fe-
pelo efeito encantatório daquilo que leio? rozmente de mim um objecto, têm-me à sua
Será por um excesso de emoção? Didi- mercê’ (Barthes, 1980, p.31). É esta fragilidade
Huberman (2015, p.23) sugere-me uma que me assombra, esta desapropriação violen-
possibilidade: ta que torna tão penoso o momento de ser fo-
tografada ou filmada, quando danço. É como
A emoção será portanto um impasse: impasse se a fase de aventura e risco, da experimen-
da linguagem (quando, comovido, fico tação, da improvisação fosse abruptamente
mudo, não conseguindo encontrar palavras; cortada e substituída pelo gesto confortável, o
impasse do pensamento (quando, comovido, já conhecido, o movimento porventura mais
perco todas as minhas faculdades); impasse desinteressante, mas mais seguro.
do ato (quando, comovido, fico com os bra-
ços pendentes, incapaz de me mexer como se
uma serpente invisível me imobilizasse.

022 D E R I vA s # 0 3 UM A SOLI DÃO SEM E XÍ LIO


Movendo a fronteira Talvez não seja preciso escrever nem mais
Há qualquer coisa de aventureiro na escrita, uma linha, pois parece que tudo aquilo que
nesta escrita que se pretende experimental. merecia ter sido escrito, já o foi.
Um abismo, uma vertigem, um desconhe-
cido. A convivência com o desconhecido A escrita será salva não em virtude de seu
precisa de ser, no mínimo, relativamente destino, mas graças ao trabalho que terá cus-
tranquila, repito baixinho. O deparar-me tado. Começa então a elaborar-se numa ima-
com uma encruzilhada parece ser, afinal, gística do escritor-artesão que se encerra
um aspecto intrínseco do processo. num lugar lendário, como um operário que
trabalha em casa, desbasta, talha, dá poli-
De alguma forma a escrita captura e aprisio- mento e incrusta a sua forma, exatamente
na um pensamento móvel, um pensamento como um lapidário extrai a arte da matéria,
de dança, um corpo que afecta e é afecta- passando nesse trabalho horas regulares de
do. Um corpo, um lugar onde acontecem solidão e de esforço… (Barthes, 2001, p.54)
variações de intensidade e de velocidade, a
maioria das vezes imprevisíveis. Para acom- Tendo começado pelas leituras, percorrido
panhar o sentido desse movimento, como esse labirinto de vozes, quero saber o que
construir este texto sinuoso que quer seguir ficou depois de ter esquecido, o que resta nos
da solidão em direcção ao encontro? Este interstícios. O que me afectou, o que arrasto
texto quer passar para diante. Gostava que para a escrita. Se me aproximo desta imagem
esta escrita fosse de afectos e de afecções, de escritor-artesão é para consolar-me com a
como quando danço. Procuro assumir uma ideia de um trabalho solitário de muitas horas
atitude coreográfica, que antecede a coreo- regulares. É para poder inverter o arranque e
grafia: a fase de improvisação, de procura, de colocar a escrita adiante, a escavar terreno. É,
reflexão e de selecção. Procuro ainda inte- ainda, para poder travar a urgência e conquis-
grar as disciplinas do corpo. Pretendo guar- tar o mergulho nos fios, na trama, no tecido
dar na memória para poder regressar, uma e que a escrita é. E a coreografia, seguindo o
outra, e outra vez. sentido originário do termo, é uma escrita do
movimento no espaço. Tal como um texto.
Claude Coste introduzindo o pensamento de
Roland Barthes coloca a seguinte pergunta: Neste sentido a minha dificuldade na escrita
‘a que distância dos outros devo manter-me, é simétrica à minha dificuldade coreográ-
para construir com eles uma sociabilida- fica. Sendo o meu lugar o da dança, esta é
de sem alienação, uma solidão sem exílio?’ uma dança em busca das suas coreografias.
(Barthes, 2003, p. XXXVIII). Mas ao mesmo Assim como tem sido até agora o meu lugar,
tempo, sendo solitário, como se podem aco- o de leitor, estas leituras podem fazer mais
modar e ressoar em nós tantas vozes? sentido se aspirarem à escrita, ou se vierem
depois da escrita.

023 D E R I vA s # 0 3
Quando encontro esta passagem, relativa escolhesse a aventura, mesmo a contragosto,
à forma de trabalhar de Pina Bausch, tran- ainda que transportasse pouco mais do que
quilizo-me: ‘todas as partes envolvidas no a capacidade de ser afectada.
processo criativo partilham a premissa – e
a promessa – de ‘não saber’ como ponto de Regresso por isso à ideia de afectos e de
partida” (Peeters, 2007-2008, p.57). afecções que referi antes. Escuto a voz de
Espinosa (1992, p.267):
Assim, este lugar de ‘não saber’ não é uma
novidade e não é um espaço solitário, embo- Por afecções, entendo as afecções do Corpo,
ra pareça. Faz-me sorrir a ideia de promessa pelas quais a potência de agir desse Corpo é
de ‘não saber’. aumentada ou diminuída, favorecida ou entra-
vada, assim como as ideias dessas afecções.
Durante os ensaios, Pina Bausch colocava
aos bailarinos pequenos desafios, questões Quando, por conseguinte, podemos ser a
como: ‘o que acham belo em vocês?’; ‘como causa adequada de uma dessas afecções,
reagem quando alguém faz projectos a vosso por afecção, entendo uma acção; nos outros
respeito?’; ‘o que acham que os outros que- casos, uma paixão.
rem modificar em vocês?’; ‘como se refugiam
junto de alguém quando têm medo?’. Ou pe- Na verdade, a possibilidade de agir do corpo
quenas tarefas: ‘transportar alguém’, ‘fazer é sempre um agir em direção ao outro, um
qualquer coisa quando se quer ser amado’, movimento de relação, uma gestão de dis-
‘armar-se em modesto’, ‘recomeçar do prin- tâncias, que tanto pode ser de encurtamento
cípio’. (Bentivoglio, 1994, p.36) As respostas quanto de ampliação.
constituíam o material para as coreografias.
As biografias, as experiências individuais e Na fronteira – o encontro
íntimas de cada bailarino eram depois or- Um dos aspectos que me interessa na dança
questradas por ela. Bausch organizava esse contemporânea é o encontro, a relação entre
material, de facto, como encenadora, mas bailarinos. São utilizadas formas muito di-
as vozes eram dos intérpretes. Como é que ferentes e muitas vezes surpreendentes de
Bausch construía o sentido coreográfico? tratar essa questão essencial: ‘o outro’ e a
Com esse material mas também com os in- relação com a alteridade. Que escuta precisa
terstícios entre cenas. de estar presente?

Pergunto-me então, se eu tivesse que es- Neste movimento de arrastar a escrita na di-
crever um primeiro artigo, nesse ‘não saber’ recção da coreografia, ou do encontro, convo-
como o faria? Será que escolheria também co dois exemplos, Salto!3 de André Mesquita
o gesto mais seguro, o espaço conheci- e Wasteland 4 da dupla de criadores António
do, em vez de me lançar no abismo? Talvez Cabrita e São Castro, ACSC . Neste arrastar

3. Coreografia apresentada pela primeira vez em 2013,


teatro Nacional são João.

4. Coreografia apresentada pela primeira vez em 2012,


teatro Municipal de Almada, Ciclo sala Experimental.

0 24 D E R I vA s # 0 3 UM A SOLI DÃO SEM E XÍ LIO


talvez procure o ADN do gesto autoral. Se me aproximo dos autores, já que também eles
conseguir retirar do meu olhar a técnica dos são autores. Mas ao mesmo tempo, é com di-
bailarinos, excluir logo à partida as suas ca- ficuldade que consigo articular pensamento,
pacidades de execução, se é que isso é possível, um pensamento de arranque, depois de ter
restam outras coisas e é sobre elas que recai contactado e me ter deixado impactar com o
o meu interesse. Ou então, olhar e pensar in- sensível presente nas suas obras.
cluindo a técnica, deixá-la ficar porque per-
tence ao que me é contado. Pergunto-me: no Na penumbra do teatro, entre sombras adi-
imenso repertório que o corpo pode ter, por- vinhadas, e esferas ao longe pousadas, sobre
que foram escolhidos aqueles gestos, aquelas uma cadeira vermelho vivo sentada, sinto-
velocidades? Como é que as peças são monta- me quase imediatamente em suspensão. A
das? Como é que essas frases de movimento distância entre mim e o bailarino em palco
se encadeiam para criar imagens, sensações, reduz-se, mal ouço: ‘Spinning like a ghost on
possibilidades? Talvez me aproxime dos co- the bottom of the top I’m hunted by all the
reógrafos com a mesma curiosidade com que space that I will live without you.’!5

Na imagem: 5. Excerto do texto que é utilizado


Salto de André Mesquita. no espectáculo Salto de André Mesquita.
Bailarinos: Teresa Alves da Silva e Miguel Oliveira.
Créditos fotográficos: José Alfredo.

025 D E R I vA s # 0 3
Salto, coreografia de André Mesquita, é bem Wasteland, suposta terra devastada, surge
exemplo da relação de intimidade que por no trabalho de António Cabrita e São Castro,
vezes se estabelece entre este espectador e como terra fértil, terra de encontro, de respi-
os bailarinos. Neste caso, essa proximida- ração partilhada.
de é oferecida muito por uma distensão do
tempo, pela presença da voz, do texto que ‘Há qualquer coisa que se joga quando duas
se repete, como um pensamento recorren- pessoas respiram em simultâneo’ afirma
te, as sincronias e des-sincronias dos dois Joris Lacoste!6 . Esta frase parece aplicar-se
corpos, as luzes coreografadas e os figuri- na perfeição a Wasteland. Mas essa capacida-
nos com um traço oriental, a remeter para de de respirar junto, não é a única força deste
a interioridade. trabalho. Ainda assim, pergunto enquanto
fixo o olhar: o que fará dois corpos desenha-
Pela dilatação dos movimentos, a repetição rem tantas vezes, em simultâneo, os mesmos
de um pensamento, a espessura de um am- movimentos? Dois já são uma comunidade.
biente, Salto é um salto para o interior. Confesso que estes momentos me aceleram

Na imagem: 6. Cit. por Tiago Bartolomeu Costa, ”A palavra


Wasteland de António Cabrita e são Castro. ao poder”, em Ipsilon, Jornal Público, 16.05.14.
Bailarinos: António Cabrita e são Castro.
Créditos fotográficos: Augusto Cabrita.

0 26 D E R I vA s # 0 3 UM A SOLI DÃO SEM E XÍ LIO


a frequência cardíaca, inquietam-me, entro Salto toca a presença expondo uma ausência,
em apneia. Como é possível reduzir a distân- uma nostalgia do afecto, um fantasma que
cia com o outro e estar com ele e ser ele, ser paira na penumbra.
um e dois ao mesmo tempo?
Wasteland traz o encontro para o presente, a
Os bailarinos medem o pulso à terra que os presença. Testemunhas da respiração parti-
acolhe e que os repele e o meu corpo também se lhada, respiramos juntos, participo das rela-
lança com eles. Mordemos o que resta da terra ções compassadas com a gravidade, com as
devastada. Partilhamos essas alternâncias intensidades, com um ritmo.
entre o fora e o dentro. Esquecida dos corpos a
meu lado, das tosses nervosas, dos telemóveis, O que será que procuro nestas obras? Neste
dos quais me apercebo lá longe, no fim da cons- momento talvez já não se trate de ensaiar a
ciência, procuro o que fazer com este chão que possibilidade de um corpo-arquivo!7, mas de
me obriga a despojar, a transformar. me debruçar nos aspectos do sensível, pa-
tentes nestas coreografias.
Como é que os coreógrafos chegam aqui?
Como constroem a sua linguagem? As linhas encontram-se apenas tenuemen-
Como constroem uma assinatura? te traçadas. Não estou segura de procurar
Porque me tocam? perceber como se democratizam as práti-
cas artísticas ou como se combate a ideia
Barthes, a propósito da sua relação com a fo- do artista predestinado, embora isso possa
tografia traz-me duas palavras em latim que eventualmente vislumbrar-se lá muito ao
podem de alguma forma ajudar-me neste longe. Sinto-me mais inclinada para a possi-
ponto. A primeira é studium, ‘que não sig- bilidade de estar num processo muito mais
nifica imediatamente, ‘o estudo’, mas a apli- pessoal, da pele para dentro e da pele para
cação a uma coisa, o gosto por alguém, uma fora, a procurar extrair sentido dos meus
espécie de investimento geral, empolgado, órgãos mais profundos, quanto a inquieta-
evidentemente, mas sem acuidade particu- ções antigas, desejos esboroados pelo tempo,
lar’ (Barthes, 1980, p.46). Depois existe o inquietações recentes. Como se procurasse
punctum, a segunda palavra, que vem per- aumentar com a escrita a potência de agir do
turbar o studium, como uma seta que salta meu próprio corpo, não a partir da assunção
da cena, trespassando, causando picada, ou de uma identidade prévia, mas de uma que
ferida (Barthes, 1980, pp.46,47). se está a construir.

Os dois exemplos que trago, a minha relação Espero que este texto tenha deixado visível
com estas duas coreografias são do tipo punc- parte do meu desejo de desalojar-me, de de-
tum. Sinto-me tocada, atravessada por elas. salojar os espaços conhecidos em direcção a
um aberto, a um desconhecido. Este lugar de

7. Embora esteja a introduzir aqui o conceito de


corpo-arquivo, ele mereceria um tratamento
mais desenvolvido e autónomo uma vez que a
expressão joga com dois conceitos: o de arquivo
que remete para uma origem de estabilidade e a
do corpo, que remete para fluxos, para a acção
e é o lugar de afecções, seguindo Espinosa.

0 27 D E R I vA s # 0 3
incertezas, mesa de montagem, de inacaba-
mento, mas também de potencial, que pede REFERêNCIAS
para ser habitado com mais tranquilidade, Barthes, Roland (1974). Escrever… Para quê? Para quem?
pois é o lugar da errância e não da linha recta. Lisboa: Edições 70

Barthes, Roland (1980). A câmara clara. Lisboa: Edições 70


Este esboço é a tentativa do gesto primeiro
em direcção a uma escrita que se rebela e se Barthes, Roland (2001). O grau zero da escrita. são
Paulo: Livraria Martins Fontes Editora
revela, que quer seguir adiante. Partindo de
um lugar de impasse, onde as dificuldades de Barthes, Roland (2003). Como viver junto: simulações
assumir o lugar de escritor pareciam ser eter- romanescas de alguns espaços cotidianos: cursos e
seminários no Collège de France, 1976-1977. são Paulo:
namente paralisantes e angustiantes, procu-
Livraria Martins Fontes
rei ensaiar três pequenos movimentos, um
de cada vez: o primeiro consistiu em sacudir Bentivoglio, Leonetta (1994). O Teatro de Pina Bausch.
Lisboa: Fundação Calouste gulbenkian, Acarte
o labirinto de leituras, voltando costas à am-
bição de totalidade; o segundo, o de colocar a Cabrita, António & Castro, são (2012) Wasteland [vídeo
escrita à frente, a abrir caminho, pensando promocional]. Acedido em
https://www.youtube.com/watch?v=0g-YKnB8-SU
como ela poderia ajudar-me a medir distân-
cias, a regular a solidão; e o terceiro consistiu Costa, tiago Bartolomeu (2014, Maio 16). A
em procurar aproximar a escrita à dança, ou a palavra ao poder. Ípsilon, Jornal Público. Acedido
em https://www.publico.pt/culturaipsilon/
permitir que a dança estivesse na escrita para
noticia/a-palavra-ao-poder-334441
pensar melhor o que me toca na dança.
Derrida, Jacques (2005). A Farmácia de Platão. são
Paulo: Editora Iluminuras
A escrita como phármakon : !8

remédio ou veneno? Derrida, Jacques & Roudinesco, Elisabeth (2004). De que


amanhã... Diálogo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor
O artigo exprime o paradoxo do medo da es- Derrida, Jacques (2002). O animal que logo sou. são
crita-escrevendo; o medo de fazer-fazendo; o Paulo: Fundação Editora da uNEsP (FEu)
medo de ser vista, mostrando-me, o medo de Derrida, Jacques (1975). Posições. Lisboa: Plátano Editora
errar-errando; procurando assumir, e não
Didi-Huberman, georges (2015). Que emoção! Que
mascarando, a ideia do medo do fracasso.
emoção? Lisboa: KKYM

É isto um artigo? Espinosa, Bento de (1992). Ética. Lisboa: Relógio D’água

Foucault, Michel (1992). A escrita de si. Em O que é um


autor? (pp.129-160). Lisboa: Passagens

Helder, Herberto (1990, Dezembro 4). As turvações da


inocência, Auto entrevista. Jornal Público, 29-32

Kafka, Franz (2015). O processo. Lisboa: Bertrand Editora

Mesquita, André (2013) Salto [vídeo promocional].


Acedido em
https://www.youtube.com/watch?v=JOZZYiJAvEE

Peeters, Jeroen (2007-2008). ‘Como é que quer


8. Segundo Derrida (2005, p.17), esta palavra trabalhar hoje? Observações sobre uma forma
encontrada no início de Fedro, de Platão, pode coreográfica alternativa para a produção de discurso’.
significar remédio ou veneno. Aqui a escrita Obscena, Dez. 2007 - Jan. 2008, 54-59
ou ‘a escritura é proposta, apresentada,
declarada como um phármakon’.

028 D E R I vA s # 0 3 UM A SOLI DÃO SEM E XÍ LIO


um olhar sobre
os discursos
da morte

M A R G A R I DA D O U R A D O D I A S
I 2 A D s ( I N s t I t u tO D E I N v E s t I g Aç ãO E M A R t E , D E s I g N E s O C I E DA D E )
F B Au P ( FAC u L DA D E D E B E L A s A R t E s DA u N I v E R s I DA D E D O P O R tO)

029 D E R I vA s # 0 3
RESUMO A B S T R AC T
Inerente à vida, a morte faz parte de múlti- Inherent to life, death is part of multiple
plos discursos, tais como a filosofia, a psico- speeches, such as philosophy, psychology
logia e a arte, cada área tratando de regular and art, each one taking care in regulating
o seu discurso sobre o assunto. Este artigo é their discourse about it. This article is devel-
desenvolvido com uma reflexão: oped with a thinking about:

sobre como, quando, onde e quem desenvol- how, when, where and who developed dis-
veu discursos sobre a morte no século XX e courses about death in the 20th and 21st
princípio do XXI espelhados num mapea- century, presented in a map;
mento que visa simplificar a leitura através what relations these discourses (in the
da visualidade; area of psychology and philosophy) have
em que se ponderam as ligações que estes with the children’s learning about death;
discursos (da área da psicologia e filosofia) and about my own point of view regarding
têm com a aprendizagem sobre a morte por these speeches.
parte das crianças;
final, com o meu olhar sobre o levantamen- Some common concepts (such as universal-
to destes discursos. ity/inevitability; irreversibility; cessation or
no functionality) are referred because they
Alguns conceitos comuns (como universali- generalize the death’s cognitive evolution
dade/inevitabilidade; irreversibilidade; e ces- (through targeted studies) and others (such
sação ou não funcionalidade) são referidos por as no control and negativity of death; death’s
generalizarem a evolução cognitiva da morte unconsciousness and the lie of life; and toler-
(a partir de estudos direcionados) e outros ated death) to filter the attitudes that the hu-
(como não controlo e negatividade da morte; manity have been showing more frequently.
inconsciência da morte e mentira da vida; e The work of the particular and of the general
morte tolerada) para filtrar as atitudes que o are methods of psychological and philosoph-
‘ocidental’ tem evidenciado mais frequente- ical investigation, respectively, that tend to
mente. O trabalho do particular e do geral são universalize all the relation with death. The
métodos de investigação psicológica e filosófi- article is concluded with my view on the pre-
ca, respetivamente, que tendem a universali- sented speeches.
zar toda a relação com a morte e o meu olhar
recai sobre a evolução destes discursos.

PA L AV R A S - C H AV E KEY WORDS
morte death
educação/aprendizagem education/learning
discursos discourses
criança child

030 D E R I vA s # 0 3 UM OLHAR SOBRE OS DISCU RSOS DA MORTE


introdução sempre de uma mesma base, de um mesmo
Sou filha, mãe e neta já o fui. Desde criança autor. A temática da morte não escapa ao
que me pergunto porque têm as pessoas tanto pensamento humano, e, desde que existem
medo da morte. A fonte da minha aprendi- testemunhos de outros tempos, que existem
zagem sobre a morte passou pela literatura, também memórias gravadas e transmitidas
porque só ela me falava, mesmo que através para o presente. A morte é considerada há
de contos a morte pudesse sempre ser afu- muito como um tema tabu pelas atitudes
gentada, contornada (enganada) e só servisse que se têm destacado e como o referem au-
de consolo como castigo para quem a merecia. tores como Michel Foucault (1988/1999) e
Com a juventude continuei a questionar-me Georges Bataille (1962). E talvez por estas
sobre a morte e o meu pai sempre a equipa- atitudes é que inúmeras pessoas exploraram
rou a um ponto final. Quando mãe, quis que a temática, refletindo como poderiam contri-
os meus filhos e filha não tivessem medo da buir para a desmistificação da morte, para a
morte e que começassem a ter uma relação aceitação desta quer através da religião, quer
natural com esta: que não a esquecessem, através da condição de vida, quer através da
mas que também não a tornassem tão pre- necessidade de salvação. A inevitabilidade da
sente que não lhes permitisse viver. Como ar- morte na vida cria uma relação direta com
tista, há muito que comecei a pensar a morte esta, mais cedo ou mais tarde, quer através
como metáfora, como passagem necessária, do luto direto, como indireto. Se individual-
tal como morreu a minha infância (cronoló- mente evita-se comummente falar da morte,
gica) para nascer a minha fase adulta. Como para não a atrair ou por não se saber o que
investigadora, encontrei o grão de areia que, dizer, ninguém lhe escapa e a tendência é
pelo desconforto criado no sapato, me levou a para que a sociedade se interesse na resolu-
retirá-lo para o observar com outro olhar. Há ção do problema de como lidar com a morte.
muito que o medo da morte me abandonou.
Morreu por pensar sobre ela. Explorar os discursos da morte propõe-me
o mapeamento no tempo (quando), no espa-
discursos da morte ço (onde), no sujeito (quem) e no conceito (o
A escrita (textual e visual) tem sido um dos que) da produção escrita de livros e artigos
grandes suportes de proliferação de discur- que abordam a morte e a relação das crian-
sos (ideias, pensamentos, julgamentos, …), ças com esta, centrando-me nas áreas da
quer através de textos literários, como cien- filosofia e psicologia nos séculos XX e XXI .
tíficos, religiosos, políticos, e de outros gé- Neste estudo não são tidos em atenção nem
neros culturais e sociais. Se a tradição oral os estudos políticos, nem religiosos (apesar
é sujeita a transformações mais de acordo de estarem embutidos nos textos), mas sim
com quem a transmite, na escrita as modifi- os de filosofia e psicologia neste contexto
cações são dadas pelo leitor conforme o mo- temporal ocidental específico por estar mais
mento histórico e contextual, mas partindo próximo da análise da produção literária

0 31 D E R I vA s # 0 3
– os álbuns ilustrados – a que me proponho mencionassem as atitudes perante a ideia
como investigadora num contexto doutoral de morte e com a procura do questiona-
e na minha procura artística do meu discur- mento das atitudes das crianças perante a
so sobre a morte. E se a filosofia existe desde mesma. Os autores base na ‘filosofia’ que me
a antiguidade grega (que irá, sem dúvida, levaram aos outros e que já me têm acompa-
influenciar a subsequente produção filosófi- nhado há alguns anos, desde a minha inves-
ca), a psicologia, como ‘nova’ ciência do séc. tigação no mestrado 1, foram Philippe Ariès,
XIX , marcará na prática as atitudes perante Jean Baudrillard, Edgar Morin. A releitura
a morte quando começa a criar padrões de destes autores deu-me pistas para outros
normalidade e de anormalidade, de sistema- autores e livros, e tal como Baudrillard li-
tização da humanidade. ga-se a Bataille, Pascal, Hegel, Kierkegaard,
Heidegger, Camus, Freud, Marcuse, Paz,
1. mapeamento dos discursos sobre a Weber, Foucault entre outros, também eu
morte entre os séculos XX e XXI me ligo a eles, mas com um olhar direciona-
do para os meus questionamentos. O pro-
‘…o livro lido não é um objeto realmente blema neste tipo de abrangência (de querer
distinto de mim mesmo, com o qual teria escutar as vozes de todos) é a brevidade da
uma verdadeira relação de objeto: ele é vida e a impossibilidade de se conseguir a
eu e não-eu, uma not-me possession.’ totalidade. Assim, centrei-me numa escolha
Antoine Compagnon, O trabalho da citação, 2007, p.17 mais ‘íntima’ – naqueles que me poderiam
falar do meu interesse. Do que eu quero por-
Pensar num mapa como forma de transmis- que sou eu que escrevo este discurso e que
são cartografada da informação, em que traço novas leituras dos autores; porque não
todas as entradas são tão exatas como um vou falar de quem não me fala.
exame cardíaco, leva-me a usar uma grafia se-
melhante na tentativa de criar (ou imaginar?) O meu levantamento de algumas das pu-
um paralelismo entre a vida e a criação dos blicações relacionadas com a indagação da
escritos sobre a morte, separando as áreas morte e com a relação das crianças com esta
de investigação em campos distintos, mas distribui-se entre livros, artigos e revistas
que estão todas unidas pelo tempo (mapa (que começam a surgir no século XX ) e entre
o que!–!quando). Estas entradas são feitas a a área da psicologia e, diria, de um ‘aglomera-
partir de leituras de escritos que nunca se do’ embutido na filosofia, que inclui a antro-
ficam só pelo discurso do autor, mas referem- pologia, a sociologia, a literatura e a história
se sempre a outros autores. Será aliás possível das culturas. Esta junção (que se situa na
falar sem a voz dos outros incluída na nossa? parte superior relativamente à linha tem-
poral no mapa o que!–!quando) era, no início
Recolhi autores ocidentais com a intencio- da minha construção do mapa, somente a
nalidade da descoberta de textos em que área da filosofia, no entanto a importância

1. ‘O ritual do Dia dos Mortos na aldeia transmontana


de Meixide: a expressão estética da lembrança e a
procura da imortalidade’, 2009, Universidade do Minho

0 32 D E R I vA s # 0 3 UM OLHAR SOBRE OS DISCU RSOS DA MORTE


de alguns textos na formação do concei- Psychology, em 1973 , e American Journal of
to da morte e a dificuldade da distribuição Orthopsychiatry, em 1974).
exata por áreas específicas (como catalogar/
classificar textos que abrangem mais do que Se a partir dos anos 40 do século XX a pre-
uma das áreas?) levaram-me a associá-los ao dominância de textos filosóficos é notável
grupo da filosofia. Escritores que também quando comparada com o arranque da pro-
foram filósofos, historiadores que não deixa- dução da psicologia no início do século (que
ram de ser antropólogos ou sociólogos, mis- iniciava um percurso autónomo no campo
turam-se neste caso numa mesma trama de científico), a tendência nas últimas décadas
escrita sobre o ser humano, mas distinguin- volta-se para este último campo. Se analisar
do-se da área de psicologia em que, a experi- a situação geográfica no mapa quem-onde,
mentação, observação e classificação a partir evidenciam-se dois mundos ocidentais e
de amostras práticas criam modelos de com- países mais destacados nestas publicações:
portamentos de normalidade e anormalida- a Europa é representada pela França e a
de, havendo um objetivo final de ‘salvação’ ou América do Norte pelos EUA . O núcleo geo-
‘reparação’ do humano. gráfico onde surgem os textos sobre a morte
está situado principalmente na Europa
A grande maioria dos textos de psicologia Central – atual República Checa, Áustria,
que encontrei tem a forma de artigos publi- Alemanha, Suíça, Austria e Hungria – inde-
cados em jornais científicos ou de medicina, pendentemente de se tratar de estudos no
havendo casos de compilações de artigos campo da psicologia ou filosofia.
de diferentes autores num mesmo livro que
aborda a mesma temática, como no caso de É de referir que no caso de França, nos sé-
Feifel (1959 e 1977), de Yamamoto (1978) e de culos XVI e XVII, foram escritos livros que
Malpas e Solomon (1998). No caso de livros serão referências quanto à indagação sobre a
em que aparece o editor, o país representado morte, como o caso dos Ensaios (Livro 1, capí-
é o da primeira publicação, dada a multiplici- tulo XIX) de Michel de Montaigne e o Sermon
dade de escritores e as dificuldades inerentes sur la mort et brièveté de la vie de Jacques-
da pesquisa. No caso dos autores com dupla Bénigne Bossuet. Referências porque res-
nacionalidade, o país considerado para a surgem em inúmeros textos filosóficos,
análise é o da publicação do livro, mesmo demonstrando a importância que tiveram
que apareçam as duas nacionalidades no na formação das reflexões. A Alemanha, com
mapa quem-onde. Relativamente à conta- grande tradição filosófica, é também a base
gem dos escritos/discursos, todos foram para o desenvolvimento destes textos no
considerados em separado, à exceção de dois mundo europeu, como também, se recuar-
artigos de G. Koocher que tinha apresenta- mos no tempo, são os textos clássicos dos
do o mesmo artigo com ligeiras alterações fundadores da filosofia – Sócrates, Seneca e
em dois jornais diferentes (Developmental Eurípedes, por exemplo.

033 D E R I vA s # 0 3
034
1910

D E R I VA S # 0 4
A Nossa Atitude Diante da Morte (01)
O QUE —

Das Kind und seine Vorstellung vom Tode (02)


QUANDO

20’s
The problem of anxiety (01) (03) The poet’s guide to life
O mal-estar na civilização (01) (04) Ser e Tempo
The child’s conception of the world (05)

30’s
The attitude of children towards death (06)

UM OLHAR SOBRE OS DISCU RSOS DA MORTE


40’s

The child discovery of death (07) (08) O ser e o nada


The child’s theories concerning death (09) (08) Mortos sem sepultura
(10) Attitudes devant la vie et devant la mort du XVII e au XIX e siècle,
quelques aspects de leurs variations
50’s

Eros and Civilization: A Philosophical Inquiry into Freud (13) (11) Way to Wisdom: An Introduction to Philosophy
Life Against Death: The Psychoanalytical Meaning of History (15) (12) L’Homme et la mort
The meaning of death (16) (04) Da Pergunta sobre o Ser
(14) O erotismo
60’s

The child’s attitude to death (18) (11) Introdução ao pensamento filosófico


Children’s reaction to bereavement (19) (17) La mort
On death and dying (20) (14) Le mort
70’s

The concept of death in early childhood (21) (14) Teoria das religiões
The psychology of death (22) (23) The denial of death
Childhood, death and cognitive development (24) (23) Escape from evil
Talking with children about death (24) (25) Trompe-la-mort
Factors influencing children’s concepts of death (27) (25) L’économie politique de la mort
New meaning of death (16) (25) Le cadavre en spirale
Psychological perspectives on death (29) (25) L’Échange symbolique et la mort
Death in the life of children (30) (26) Mourir autrefois. Attitudes collectives devant la mort
Death education: what students want and need (31) aux XVII e et XVIII e siècles
(10) Essais sur l’histoire de la mort en Occident:
du Moyen Âge à nos jours
(10) L’Homme devant la mort
(28) Anthropologie de la mort
80’s

Children’s understanding of death: (26) Rediscovery of death since 1960


a review of three components of the death concept (33) (10) Images de l’homme devant la mort
(32) Dying and the Meanings of Death: Sociological Inquiries
(26) La Mort et l’Occident de 1300 à nos jours
(34) Logique de la mort
90’s

The development of children’s understanding of death (33) (25) L’immortalité


(35) Donner la mort
(35) Apories
(17) Penser la mort?
(36) Ist der Tod eine Frau?: Geschlecht und Tod in Kunst und Literatur
(37) Very Little… Almost Nothing. Death, Philosophy, Literature
(38) Death and philosophy
2000

Dying and death in childhood and adolescence (39) (40) Death, mourning, and burial: a cross-cultural reader
Death Understanding and Fear of Death in Young Children (41)
The development of children’s understanding of death:
cognitive and psychodynamic considerations (42)
10’s

The Grieving Student: A Teacher’s Guide (43)


Speaking Honestly with Sick and Dying Children
and Adolescents: Unlocking the Silence (44)
ONDE — QUEM
CZE (01) Sigmund Freud
AUT (02) Hermine Von Hug-Hellmuth
CZE (03) Rainer Marie Rilke
DEU (04) Martin Heidegger
CHE (05) Jean Piaget
USA (06) Paul Schilder e David Wechsler
GBR (07) Sylvia Anthony
FR A (08) Jean-Paul Sartre
HUN (09) Maria Nagy
FR A (10) Philippe Ariès
DEU (11) Karl Jaspers
FR A (12) Edgar Morin
USA (13) Herbert Marcuse
FR A (14) Georges Bataille
ME X /USA (15) Norman O. Brown
USA (16) Herman Feifel (ed.)
FR A (17) Vladimir Jankélévitch
USA (18) Marjorie Editha Mitchell
USA (19) Saul Harrison, Charles Davenport e John McDermot
CHE (20) Elisabeth Kübler-Ross
USA (21) Perry Childers e Mary Wimmer
USA (22) Robert Kastenbaum
USA (23) Ernest Becker
USA (24) Gerald P. Koocher
FR A (25) Jean Baudrillard
FR A (26) Michel Vovelle
USA (27) Margot Tallmer, Ruth Formanek, Jill Tallmer
SEN/FR A (28) Louis-Vincent Thomas
USA (29) Robert Kastenbaum e Paul T. Costa
USA (30) Kaoru Yamamoto (ed.)
USA (31) Charles R. O’Brien, Josephine L. Johnson, Paul D. Schmink
USA (32) John W. Riley, Jr
USA (33) Mark W. Speece e Sandor Barry Brent
FR A (34) Pierre Michel Klein
DZ A / F R A (35) Jacques Derrida
D E U/ U S A (36) Karl S. Guthke
GBR (37) Simon Critchley
GBR (38) Jeff Malpas e Robert C. Solomon (ed.)
USA (39) Melvin Lewis e David Schonfeld
USA (40) Antonius C. G. M. Robben (ed.)
AUS (41) Virginia Slaughter e Maya Griffiths
USA (42) Dunya Y. Poltorak e John P. Glazer
USA (43) David Schonfeld, Marcia Quackenbush e MaryEllen Salamone
DEU (44) Dietrich Niethammer

035 D E R I VA S # 0 4
No campo da psicologia, as publicações de O que foi produzido no século XX e princí-
artigos é predominante, enquanto na filo- pios de XXI, isto é, a área onde se pode en-
sofia, mais livros se escreveram sobre o as- caixar a publicação dos textos sobre a morte
sunto, o que indica que esta diferente forma e sobre a relação com a criança, permite-me
de escrever sobre a morte, reflete-se nos concluir que no mundo ocidental entre os
produtos finais. A escrita de artigos pode ser anos 1940’s e 1990’s (inclusive), a escrita
uma forma de trabalhar exemplos particula- evidencia-se mais nos campos de reflexões
res dentro de um conhecimento; no caso da filosóficas, históricas, sociológicas, enquan-
psicologia, o seu desenvolvimento baseia-se to que nos restantes períodos evidencia-se a
na análise de casos específicos, daí que a sua psicologia. O início do século XX é marcante
produção escrita também esteja relacionada para a criação e florescimento da psicologia
com a apresentação das experiências e não através de Sigmund Freud e Jean Piaget.
com indagações ‘abstratas’. Mas este tipo de
conhecimento (o da psicologia) não significa Relativamente à escrita específica da relação
que seja mais ‘verdadeiro’ ou ‘universalista’. da criança com a morte, que só foi trabalha-
O facto de se basear em casos concretos, não da no campo da psicologia, são publicados os
significa que seja possível criar um padrão textos em 1912 , 1929, 1934 , 1940 e 1948 e de-
que seja aplicável a todo o ser humano. pois continuam a intensificar-se entre 1967
e 1984 , sendo que no século XXI é predomi-
Analisando a evolução cronológica da publi- nante a focagem neste campo de estudo.
cação escrita (mapa o que!–!quando), verifico
que a grande explosão de publicações deste Falar da escrita sobre a morte – do como,
género de livros se dá nos anos 70, haven- quem, onde, o que e porquê – leva-me a falar
do destaque também para os períodos pós- também de outras publicações específicas,
guerra (pós Primeira e Segunda Guerras como as revistas que se dedicam inteiramen-
Mundiais). A perda de alguém próximo conju- te ao assunto. Estas não estão representadas
gada com os conflitos militares, como no caso no mapa (o que-quando), mas dada a impor-
da morte do pai de Jean-Paul Sartre quan- tância que têm a nível de proliferação de es-
do este tinha 2 anos de idade e a situação de tudos ou de reflexões com uma frequência
prisioneiro num campo de concentração na mais cíclica, insistem em acompanhar o meu
Segunda Guerra Mundial, ou simplesmente levantamento das peças deste puzzle de dis-
a existência das guerras (a Primeira Grande cursos sobre a morte. Deste modo, apresento:
Guerra no caso de Freud) e momentos violen-
tos (o assassinato de J. Kennedy no caso de Etudes sur la Mort (1967-). Editions l’Esprit du
Harrison, Davenport e McDermot) poderão Temps. Sociedade de Tanatologia. França.
ser alguns dos motivos pelo qual a reflexão OMEGA!–!Journal of Death and Dying (1970-).
sobre a morte e a existência humana acompa- Sage Publications. EUA.
nha os escritores e psicólogos.

036 D E R I VA S # 0 3 UM OLHAR SOBRE OS DISCU RSOS DA MORTE


Death Education (1977-1984), posteriormente especiais relacionados com as crianças e a
Death Studies (1985-). Editora Taylor & Francis, morte, como no caso do vol. 3, nº2, de 1974,
Routledge. EUA. andando em torno da educação para a morte
Frontières (1989-). Canadá. e a compreensão do conceito da morte pela
Journal of Personal and Interpersonal Loss criança (‘Psychology and the death-aware-
(1996-2000) passando para Journal of Loss ness movement’; ‘Death education for chil-
and Trauma (2001-). Editora Taylor & Francis, dren and youth’; ‘Childhood: The kingdom
Routledge. EUA. where creatures die’; ‘Intimations of morta-
Mortality. Promoting the interdisciplinary study lity’; ‘Factors influencing children’s concepts
of death and dying (1996-). Editora Taylor & of death’; ‘Conversations with children about
Francis, Routledge. death — Ethical considerations in research’).
Grief Matters: The Australian Journal of Grief
and Bereavement (1996-). Austrália. Mais uma vez: existe uma concentração dos
Death Magazine (2010-2012). Edição artigos relacionados com a questão das crian-
independente (Forrest Martin). EUA. ças principalmente nos anos 70; e destacam-se
dois polos geográficos – a França (pioneira nas
A revista Etudes sur la Mort publicou artigos publicações) e os EUA (que, a título de curio-
relativos à arte, à morte e à educação sobre a sidade, dentro da mesma editora tem três re-
morte às crianças, existindo os seguintes ar- vistas diferentes que abordam o mesmo tema)
tigos específicos: em 1974 (nº27) ‘La peinture – como grandes propulsionadores de estudos
et la mort’; em 1975 (nº30) ‘Problèmes édu- sobre a morte. A grande maioria está relacio-
catif posés aux parents par la mort’; em 1995 nada com a psicologia, excluindo-se a Death
(nº103/104) ‘Parler de la mort avec votre en- Magazine que procurou, apesar da sua breve
fant’; em 1998 (nº113) ‘Parler de la mort avec existência, explorar o campo da literatura
les adolescents?’; em 1999 (nº115) ‘L’enfant et e das artes visuais na temática, sem nenhu-
la mort, ses conceptions de la mort’, ‘Parler ma relação com a psicologia. À exceção desta
de la mort aux enfants’ e ‘Lecture de la mort última revista que é mais recente, as restan-
chez l’enfant. Questions-réponses sous la tes surgem na segunda metade do século XX
forme d’un conte’; em 2011 (nº139) núme- (entre 1967 e 1996), corroborando a teoria de
ro dedicado ao tema ‘La mort dans les jeux Kastenbaum (2000) de que as publicações de
vidéo, mort et cinéma’. A partir destes títulos jornais e revistas sobre a morte só surgem nos
de artigos, reparo que a maior problemática anos 70 (p.14), já que a atitude sociocultural
é sobre a comunicação com a criança sobre a de não falar de algo, porque não se sabia como
morte, isto é, a preocupação com a questão o fazer, poderia ser a mais comum. Os temas
de educação (numa perspetiva da psicologia). específicos onde são desenvolvidos os textos
nas revistas de psicologia são: as ciências do
Algumas revistas como o Journal of Clinical comportamento; o aconselhamento (a adul-
Child Psychology chegaram a dedicar números tos e crianças); estudos da morte; sociologia

0 37 D E R I vA s # 0 3
médica; saúde mental; ciências sociais; socio- de intervenção de tratamento ou aconselha-
logia e política social. mento psicológico, isto é, dando um objetivo
‘utilitário’ à atividade. A forma de criação dos
2. os focos e os interesses dos discursos discursos da psicologia é uma forma de con-
tribuir e regular diretamente a sociedade,
2.1 psicologia pois a partir do momento em que estabelece
regras de normalidade e de anormalidade já
Se queres suportar a vida, está a fazer uma seleção que terá repercus-
prepara-te para a morte. sões na vida prática.
Freud, Nossa atitude para com a morte, 1915
A compreensão da natureza dos textos de
A divisão dos textos que proponho no pre- psicologia, incitam-me a refletir, antes de
sente artigo indica que, para poder avançar mais, sobre quem iniciou estes discursos e
na análise dos discursos, devo apresentar as observações que deram azo para a sua ela-
as linhas gerais da psicologia e da filosofia boração. A análise da mente das crianças foi
que mais são seguidas. Os propósitos das iniciada de forma informal, com psicanalis-
diferentes áreas ditam o surgir e o desen- tas a aproveitarem os materiais recolhidos
volvimento destes, bem como os resultados dos próprios filhos e filhas, como no caso de
finais, questionando para quem são desti- Sigmund Freud e Ana, ou Carl Jung e Agathli
nados estes escritos. No caso da psicologia (entre outros casos), mas são mulheres –
– estudo da alma -, que se separou da filoso- Hermine von Hug-Hellmuth, Anna Freud
fia – amigo da sabedoria – (renunciando si- e Melanie Klein – que iniciam a psicanálise
multaneamente todo o conhecimento sobre das crianças, que até aqui se julgava ser pos-
a morte de filósofos e teólogos, como o re- sível de ser aplicada somente a adultos, por-
feriu Kastenbaum (2000, p.13)) e iniciou o que Freud acreditava que era imprescindível
seu percurso autónomo nos finais do século a maturidade do analisado. Mesmo do outro
XIX , existe um objetivo primordial que é o lado do Atlântico, o psicólogo Granville
de beneficiar a sociedade através do estudo Stanley Hall (1844 -1924), refletindo sobre
do indivíduo (dos comportamentos, dos pro- vários estádios do desenvolvimento infantil,
cessos fisiológicos e biológicos que influen- especializou-se na psicologia e na educação
ciam as funções cognitivas) e da sociedade focada mais na adolescência do que na in-
que o representa. Para servir a sociedade, a fância. O reconhecimento desta especiali-
psicologia estuda ‘objetivamente’ (de certo zação da psicanálise demorou a acontecer
modo, artificialmente) a partir dos indivídu- possivelmente porque no início do século
os, como já tinha referido, criando princípios XX o papel das mulheres estava confinado
universais com o propósito da ‘descoberta’ quase exclusivamente ao mundo doméstico,
de padrões de comportamento e de evolução incluindo o cuidar das crianças, e a entrada
cognitiva que indicam a necessidade ou não delas no mundo da profissão médica não era

038 D E R I vA s # 0 3 UM OLHAR SOBRE OS DISCU RSOS DA MORTE


propriamente bem aceite (Camarotti, 2010, de consciência e movimento, mas não espe-
p.50). Por outro lado, a temática da morte cificamente o conceito de morte. Será que
no campo da psicologia também demorou a relação maternal das mulheres foi deter-
tempo a inserir-se por ter sido considerada minante para a dedicação a estes estudos?
irrelevante como estudo sistemático, segun- Será que a educação da criança teve alguma
do Kastenbaum (2000, p.14), pois na época influência na preocupação com a abordagem
do aparecimento da psicologia ainda não do tema da morte?
havia forma de tornar a psicologia da morte
útil para a sociedade (não existiam nem cen- Da recolha dos textos da área da psicologia
tros de prevenção de suicídios, nem apoio que apresentei no mapa o que!–!quando sin-
personalizado a enlutados). tetizo os discursos em alguns momentos
chave. Primeiro, todos se preocupam com o
Deste modo, em relação à compreensão da desenvolvimento da perceção da morte no
formação do conceito de morte, o traba- ser humano e especificamente na criança,
lho pioneiro surge com Hermine von Hug- interagindo com estas em estudos criados
Hellmuth, discípula de Freud. Em 1912 para tal e partindo, segundo Kastenbaum
publica o seu artigo ‘The child’s concept of (2000, p.37), da proposição de que nenhuma
death’, no jornal em língua alemã Imago, que criança seja capaz de compreender a morte.
estava sob a direção editorial dos psicanalis- Segundo, todos tentam criar um padrão de
tas Freud, Otto Rank e Hanns Sachs. Este desenvolvimento desta perceção através de
trabalho denota a originalidade e a impor- etapas específicas e em idades específicas, de
tância na época por ter sido aceite no jornal acordo com a psicologia do desenvolvimento
e a preocupação com a (educação da) criança e a teoria cognitiva. Estas etapas, a serem al-
continuou a ser de interesse por parte das cançadas com o desenvolvimento humano/
mulheres na primeira metade do século XX, cognitivo e que são acordadas pela maioria
à exceção dos trabalhos de Jean Piaget, de dos autores (Schonfeld, Quackenbush &
1929, e de Paul Schindler e David Wechsler, Salamone, 2010 ; Speece & Brent, 1984), são:
de 1934 . Mesmo o livro de Piaget (1929/1971)
não fala especificamente da morte, mas vai a universalidade/inevitabilidade (compreen-
ao longo do texto apresentando algumas são e reconhecimento de que a morte tem que
questões das crianças relativas à morte, tais acontecer a todos os seres vivos);
como: o medo da morte (p.136); a relação
que a criança faz entre a morte e o (re)nas- a irreversibilidade (reconhecimento de que
cimento a partir das crenças incutidas nela um morto não volta à vida);
(pp.362 e 372); e a relação da morte com o
não-movimento e a inconsciência. Piaget cessação ou não funcionalidade (a morte
(1971 , pp.194 -206) explora o conceito de é caracterizada pela cessação das funções
vida para a criança, que a vê como sinónimo do corpo).

0 39 D E R I vA s # 0 3
Nestes estudos procura-se perceber a razão a Filosofia, de fato se preparam para morrer,
que interfere no alcance das diferentes eta- sendo eles, de todos os homens, os que menos
pas, que seguem a teoria cognitiva piage- temor revelam à ideia da morte.
tiana, e considera-se ora a importância da Platão, Fédon
idade, ora a maturação da mente (Koocher,
1973 , referido por Kastenbaum, 2000, p.54), Raro será o filósofo que não se tenha debruça-
ora ainda a experiência da criança como do sobre a questão da morte, havendo, no en-
retardadora ou aceleradora da compreen- tanto, divergências quanto à razão pela qual
são do conceito de morte (Poltorak e Glazer, esta surge. De acordo com Freud (1915/s.d.),
2006 , p.569; Becker, 1973). na ideia dos filósofos a causa determinante
foi o vislumbrar da morte de outrem. A opi-
Para chegar a estas etapas do desenvolvi- nião de Freud, contudo, apoia-se no conflito
mento cognitivo, os psicólogos recorreram a de sentimento quando alguém amado morre
estratégias que envolviam: entrevistas, que (e não a morte de qualquer um). O aconteci-
poderiam ser repetidas ciclicamente (Piaget, mento de morte faz com que a morte se torne
Koocher); desenho e/ou composições (Nagy real e presente, mas ao mesmo tempo negan-
(1948); Childers & Wimmer (1971) em do o significado de aniquilamento. Esta pos-
Speece & Brent, 1984); jogos (Hug-Helmuth, tura originou o que mais tarde seria a base
em Geissmann & Geissmann, 1992/1998 ; idealista das religiões:
Rochlin (1967); Hansen (1972-3); Weininger
(1979) em Speece & Brent, 1984); e tarefas a invenção dos espíritos – o sentimento de
não-verbais (Hornblum (1978) em Speece culpa e a ética;
& Brent, 1984). Estes estudos centraram-se a divisão do indivíduo em corpo e alma – a
principalmente nas idades entre os 5 e os doutrina da alma;
12 anos, abrangendo os géneros feminino e e a conceção de novas formas de existência
masculino, bem como diferentes estratos após a morte – a crença na imortalidade.
sociais, mas a forma como ‘universaliza-
ram’ as suas ‘descobertas’ são bastante li- O contacto com a morte do outro é princí-
mitadas cronologicamente, espacialmente e pio para a indagação sobre a morte, quer se
culturalmente. trate de filósofos, como de crianças (segundo
os estudos de psicologia é sempre posterior
2.2 filosofia o reconhecimento da morte do próprio). A
morte (como a vida e a doença) sempre acom-
Embora os homens não o percebam, é possí- panhou as civilizações, mas o que dizem os
vel que todos os que se dedicam verdadeira- pensadores desde o século XX ao XXI, é um
mente à Filosofia, a nada mais aspirem do que reflexo de como o conceito continua a inter-
a morrer e estarem mortos. […]. Logo, Símias, rogar qualquer um. Os escritos procuram
continuou, os que praticam verdadeiramente entender a relação da atitude humana com

040 D E R I vA s # 0 3 UM OLHAR SOBRE OS DISCU RSOS DA MORTE


a morte, exploram uma construção históri- um facto positivo e a morte como a encarna-
ca dessas atitudes e refletem sobre como as ção da negatividade (1997, p.44). Se a vida é
mudanças dos tempos interferem. um acumular de identidades, experiências
e bens, com a morte a perda é visível. E se a
Alguns conceitos são comuns entre estes ciência/medicina está tão avançada e tudo
pensadores, por isso julgo importante parti- pode ser explicável, a morte torna-se ‘aci-
lhá-los para se compreender o foco dos seus dental’, como Baudrillard a intitula a partir
discursos. Contudo, centrar-me-ei somente de Octávio Paz (1976/1997, p.66), em que al-
naqueles que terão relação com a aprendiza- guém ou algo externo é culpado pelo ‘crime’.
gem sobre a morte pela criança e no tempo Não se aceita ou não se quer aceitar a morte
em que os discursos foram elaborados, já e mesmo a morte natural ‘é inumana, irra-
que todo o meu texto roda em torno disto. cional, insensata, como a natureza quando
não é domesticada…’ Baudrillard (1976/1997,
a) Um dos conceitos mais comuns é o do p.68). Tem-se o direito (ou obrigação?) a
não controlo da morte e a negatividade que viver, mas não de morrer. Ainda que o ser
lhe advém. Os avanços tecnológicos, cien- queira a morte, a sociedade não deixa morrer
tíficos e médicos permitem enganar, adiar e prolonga ao máximo a vida, por mais ab-
(e até prolongar) o momento da morte que surda que a existência possa ser. A socieda-
outrora assaltava todo o ser humano a todo de tenta controlar todos os aspetos da vida,
o momento, no entanto, por muito que se mas a morte e também o sono continuam a
‘deseje’ que as pessoas deixem de morrer, a escapar-lhe das mãos. Regulam-se e corri-
morte continua a fazer parte da vida não gem-se os vivos, mas não se ‘desperdiçam’ as
havendo controlo sobre ela. O contacto vidas pois existe a esperança numa salvação,
com a morte vai-se distanciando e as me- ou mesmo que a morte surpreenda, existe a
didas de proteção da vida vão aumentando possibilidade de lucrar com ela no neolibe-
(Foucault, 1988/1999). Protege-se a vida ralismo (Crary, 2013 , p.44). Jonathan Crary
não só controlando pela ‘bio-política da po- (2013) ao examinar a evolução da atitude
pulação’ (Foucault, 1988/1999, p.131), como humana para com o sono, de como este ten-
‘protegem-se’ as pessoas ocultando a presen- dencialmente e tendenciosamente tende a
ça ou possibilidade de morte (Baudrillard, ‘desaparecer’ em prol da produtividade, do
1976/1997), principalmente às pessoas mais consumismo e do desperdício, entra em con-
vulneráveis ou excluídas como os doentes e tacto direto com a atitude perante a morte. A
as crianças. Inventam-se sinónimos para a diferença entre o sono e a morte está na pos-
morte sem a evocar, como ‘adormeceu’ e ‘foi sibilidade e impossibilidade de futuro, res-
viajar’. Baudrillard considera que esta atitu- petivamente (2013 , p.127). Mas quer no sono,
de de ocultação está enraizada em interesses quer na morte:
maniqueístas (de ordem religiosa, científica
e económica) que consideram a vida como

0 41 D E R I vA s # 0 3
o correr da vida para e deixa-se de entrar também chegou à conclusão de que na pas-
ativamente na sociedade, interferindo ne- sagem para o séc. XX a morte passou a ser
gativamente com o capitalismo e o neolibe- selvagem, contrariamente à ‘domada’, fa-
ralismo – o indivíduo explorado só o pode miliar e próxima (p.40). Simultaneamente,
ser se for ativo e disponível na sociedade Freud (1915/s.d.) defende que o inconsciente
(se lhe for ‘natural’ precisar de produzir, (inalterável com os tempos) apaga tudo o que
consumir e desperdiçar); é negativo, o que faz com que o indivíduo não
reconheça a sua morte por esta ter conteú-
não os deixar acontecer é uma forma de do negativo. Mas esta negatividade, não será
tortura – para prisioneiros como forma de uma produção da sociedade ocidental?
extração da ‘verdade’ e para os moribundos
que são alvo de atenções extremas de natu- b) Outro dos conceitos comuns nos discur-
reza médica (intubação, pacemakers etc.) sos é o da inconsciência da morte e mentira
para aguentarem a vida até ao máximo; da vida que provocam o medo. A exclusão
da morte pela segregação, relegando-a para
existe um paralelismo com o lado ‘obscuro’ espaços cada vez mais distantes do espa-
da vida – esta foi sempre associada à ‘luz’ e ço familiar e interior (morre-se nos hos-
ao ‘dia’ nas religiões, sendo comum relacio- pitais, sozinhos; é-se sepultado cada vez
nar o adormecer com o morrer como forma mais na periferia das localidades ou então
de expressão que suaviza a ocorrência ou nem sepultura existe, pois com a cremação
como tentativa de explicação pacificadora; também se possibilita o desaparecimento
imediato quando se lançam as cinzas na na-
observa-se um modelo paternalista de vigi- tureza), constitui uma dupla repercussão
lância pela insegurança que se sente – não social: a morte deixa de fazer parte da vida;
se abandonam os mortos ‘significantes’ em e o sentido da vida passa a ser o da sobrevi-
qualquer lugar, mas em lugares que se con- vência à morte. Vive-se não pela vida, mas
trolam (os cemitérios têm uma organização para escapar à morte recalcando-a. E é esta
própria e com um horário restrito de aces- negação da morte que produz a angústia da
so), como a desproteção voluntária do sono morte, segundo Baudrillard (1976/1997, p.
dos sem-abrigo é uma forma de castigo por 25). Rainer Marie Rilke (2005) criticou as
não se enquadrarem no esquema societal. religiões pelo papel ativo que tiveram no
mascarar da morte, o que bloqueou a rela-
A própria morte ficou excluída da vida, pois ção natural das pessoas com esta. Por se ter
foi transformada no limite: na “linha de criado o preconceito de estranheza e hosti-
demarcação social que separa os ‘mortos’ lidade da morte, o olhar foca-se na ideia de
dos ‘vivos’” (Baudrillard, 1976/1997, p.13); e que se trata de um inimigo da vida, nunca
como existência privada que escapa ao poder se acreditando na própria mortalidade.
(Foucault, 1988/1999). Ariès (1977/2000) Vive-se na ‘periferia’ (Rilke, 2005) – nem

042 D E R I vA s # 0 3 UM OLHAR SOBRE OS DISCU RSOS DA MORTE


como um vivo, nem como um morto – pois reflexão final
falta a consciencialização da morte como Passados 100 anos, continua-se a entrevistar
parte da vida. Por outro lado, o discurso as crianças e a tentar perceber o seu olhar
religioso sempre investiu na crença da im- sobre a morte. Talvez as dúvidas dos adul-
possibilidade da morte (da alma). Edgar tos procurem respostas nas crianças, pois
Morin (1951/1988, p.27) junta-se à crítica não sabem como falar do assunto. Talvez
das religiões, mas não porque estas tenham a inocência ou facilidade das crianças em
tornado a morte terrível, mas porque é do falar sobre a morte (Kastenbaum, 2000,
terror da morte que se serve. Um terror que p.36) incite os adultos aprenderem com elas.
Eurípedes dizia ser comum a todos os seres Talvez a propensão das crianças em falar
humanos desde a idade da criança (Morin, abertamente dos assuntos, desprezando as
1951/1988, p.31) e que Ernest Becker tam- proibições do mundo dos adultos (Freud,
bém irá defender. Para este antropólogo 1915/s.d.) abra a curiosidade destes para
o medo da morte é natural e universal, auscultar o que não lhes é permitido parti-
mesmo que possa ser disfarçado ou que lhar. Compreendendo a mente das crianças,
não esteja sempre presente na vida, apre- espera-se (?) compreender a manipulação
sentando argumentos nas áreas da biolo- das ideias dos adultos. A partir do momen-
gia, evolução e na psicanálise (1973, p.31). A to em que a psicologia entrou no mundo
vontade inata é a de negação e vencimento educativo e a partir do momento em que
do destino perante o dualismo existencial quis ‘salvar’ as crianças – primeiro com a
– por muita ciência que se desenvolva, con- atitude de afastamento da morte, porque se
tinuamos mortais (p.40). julgava prejudicial, e, de seguida, resolven-
do que o melhor seria as crianças falarem
c) A morte tolerada é um dos apoios que o ser do assunto, já que é natural a curiosidade
humano tem para ter alguma paz na vida. sobre a morte e a vida, mesmo que, como o
Recorre-se às artes, à ficção (literatura e diz Anthony (Kastenbaum, 2000, p.48-49) e
cinema) e ao jogo para contemplar outras Nagy (Childers e Wimmer, 1971 , p.1299) não
mortes que enganam sempre a realidade e haja trauma envolvido – o foco virou-se para
que oferecem sossego pela sua irrealidade. a tentativa de salvar o adulto na prevenção.
Posso vestir a pele de quem quiser que no fim Prevenir os problemas começando pela raiz.
da ‘história’ continuo viva, tal como quando
somos crianças que brincamos às mortes e Com o mundo em contínua e rápida transfor-
rimo-nos sempre no final. Esta experiência mação, os conceitos de morte e de vida vão-se
através da morte fingida permite uma tole- adaptando, e talvez seja essa a razão pela qual
rância à morte que é difícil de obter com uma a psicologia continua este trabalho de pre-
morte real e próxima. A oportunidade de venção e a filosofia continue a refletir sobre o
viver novamente passa a ser real e as mortes assunto. As respostas das crianças apresenta-
passadas tornam-se irrelevantes. das nos estudos de Piaget (1929) dificilmente

0 43 D E R I vA s # 0 3
poderiam acontecer nos dias de hoje na nossa da verdade da vida, mas a ação da psicologia
cultura, nem nenhum estudo poderá ser ge- contribuiu para que na viragem deste último
neralizado. Cada vez mais informações sur- século se tenha começado, a todo o vapor, a
gem nos écrans, nos livros, nas escolas, o que publicar livros para a infância como instru-
não indica que de repente o mundo passou a mentos de comunicação da morte, aliviando
ficar mais claro e que se tenha alcançado res- a tarefa aos pais e educadores. Mas este as-
postas. A ‘escuridão’ e ‘confusão’ que a morte sunto merecerá uma oportunidade para ser
provoca nas pessoas continua. desenvolvido noutra ocasião.

O silêncio em torno da morte só transmite Não pretendi nesta minha reflexão apro-
o ‘tabu’ (Koocher, 1974 , p.410), mas tam- fundar os estudos da psicologia, nem os de
bém abre a curiosidade de se pensar, mesmo filosofia. Pretendi antes dar um olhar a estes
que não se fale. Ao se questionar porque dois mundos e discursos, na tentativa de
não se pode falar da morte, inevitavelmen- perceber a relação que estabeleceram com a
te já estamos a falar dela. E é essa vontade morte e que repercussões tiveram na gestão
de transgressão que possivelmente tenha das atitudes humanas ocidentais.
influenciado a grande explosão de discur-
sos em torno desta temática, independen-
temente dos géneros. Se a aprendizagem
sobre a morte na infância tenha começado
por parte de mulheres, a partir da segunda
metade do século XX já não temos essa dis-
crepância, pois também o papel da mulher
na sociedade se tinha alterado. Todos os
autores considerados neste artigo escrevem
sobre a morte, cruzando os textos uns dos
outros na tentativa de busca de uma solução
de comunicação e todos falam do pavor da
morte. Deixa-se publicamente de lado a von-
tade de esconder das crianças a morte [da
mesma forma como já Piaget criticava o mal
das mentiras que se dizia às crianças sobre
o nascimento (1929/1971 , p.362)], mas con-
tinua-se a não expô-la em privado. Digo pub-
licamente porque quem fala da morte são os
‘estudiosos’ e em privado só interessa falar da
razão detalhada do acontecimento maldito.
Continua-se a querer ‘proteger’ as crianças

044 D E R I vA s # 0 3 UM OLHAR SOBRE OS DISCU RSOS DA MORTE


REFERêNCIAS

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0 45 D E R I vA s # 0 3
046 D E R I vA s # 0 3
‘Então,
o Pinocchio
sou eu?’
Programação
artística
para a infância

M A DA L E N A WA L L E N S T E I N
F B Au P ( FAC u L DA D E D E B E L A s A R t E s DA u N I v E R s I DA D E D O P O R tO)
CC B | Fá B R I C A DA s A R t E s

Dedico este artigo ao Miguel, meu irmão gémeo. Aos quinze anos recusou-se à submissão
escolar e perseguiu a liberdade e o desejo no encontro consigo, com os outros e com a
natureza. Decidiu ser pescador, mergulhador e cozinheiro. A Quinta da Grotinha, o seu
turismo rural, situa-se na ilha de S. Miguel, Açores. O Miguel é um admirado amigo
profissional, um ativador de prazeres: http://www.grotinha.com/pt/grotinha.php

0 47 D E R I vA s # 0 3
RESUMO A B S T R AC T
A criação artística para a infância consti- Artistic creation for children is a path full
tui um campo de dúvidas e incertezas mas of doubt and uncertainty, but also a space
também de confronto, de convicções e ideo- of confrontation, of beliefs and of ideolo-
logia. Este artigo, através da obra Pinocchio gy. This article seeks to place the concepts
de Collodi, procura colocar os conceitos of childhood, artistic creation and edu-
de infância, criação artística e educação cation in tensional dialogue via Collodi’s
num diálogo tensional. A encomenda de um work Pinocchio. The commission of a con-
Pinocchio contemporâneo a três artistas é temporary interpretation of Pinocchio to
analisada nas várias dimensões do seu pro- three artists is here subject to analysis on
cesso criativo e da sua resultante, sugerindo its multiple dimensions, as creative process
reflexões sobre os pressupostos da prática and as artistic outcome, since it suggested
de programação artística para todas as in- reflections on the assumptions underlying
fâncias. Analisa-se o texto original de Carlo the practice of any artistic programming
Collodi enquanto dispositivo educacional da aiming to all childhoods. The Adventures of
infância. As Aventuras de Pinocchio oferece- Pinocchio provided the starting point for ar-
ram-se como um lugar para programadora, tists and programmer to reflect about chil-
artistas e espectadores pensarem o infantil, dhood, education, growth, and the quest for
a educação, o crescimento e a procura de um a place in the contemporary world.
lugar no mundo contemporâneo.

PA L AV R A S - C H AV E KEY WORDS
programação programming
criação artística artistic creation
infância childhood
educação education

048 D E R I vA s # 0 3 ‘ E N TÃ O, O P I N O C C H I O S O U E U ? ’
I. O Contexto do CCB [Fábrica das Artes] escuta, reflexão, diálogo e da procura con-
e infância em 300 palavras junta entre programadora, artistas e es-
O CCB , desde o seu início há já mais de vinte pectadores, explorando as dimensões que
anos, inscreveu a consideração das crianças criticamente temos lançado – O que é a infân-
e jovens como segmento importante dos cia? Que infâncias se assumem na programa-
seus públicos e assumiu o seu projeto edu- ção? Que arte é própria para a infância? Ou
cativo como um projeto de programação que arte é a arte da infância? Que espantos
artística e produção artística. No quadro e curiosidades são aqui ativados em especta-
da programação do CCB [Fábrica das Artes dores, artistas e programadores? Como é que
– projeto educativo], dedicada às artes per- os artistas pensam as infâncias dos especta-
formativas, tem sido proposto a vários ar- dores nos seus processos de criação? O que é
tistas que desenvolvam criações dirigidas artisticamente educativo para a infância?
a um público misto mas assumido segundo
um critério de identificação que passa pela A arte é assumida na programação como arte
infância, identificável em todas as idades. O contemporânea, ou seja, que ressoa em nós
objetivo é pensar criticamente a infância, a e no mundo, hoje. Coloca-se a experiência
arte e a educação artística sem ficar preso artística no âmago da programação e explo-
à noção de desenvolvimento da criança ela- ram-se os espaços de encontro entre artis-
borada pela psicologia de finais do século tas e espectadores como oportunidades de
XIX e inícios do século XX . Neste lugar de interferência.
criação esbatem-se os contornos do educa-
tivo e do ‘infantil’ a que ele se reporta. Os artistas que escolhemos para aqui concre-
tizarem as suas pesquisas e criações focam
Penso a programação como um lugar que, intencionalmente o seu trabalho no territó-
ao invés de reproduzir representações de rio da arte e no conjunto de linguagens espe-
arte, infância e educação institucionaliza- cíficas que lhe é própria, trazendo para o seu
das, normalizadas, prescritivas, explicativas, interior as inquietações artísticas, estéticas,
perpetuando-as, deve assumir para si o risco humanas, sociais e políticas que no presente
de as desconstruir e de as colocar em tensão os movem e que desejam partilhar com os es-
e discussão. Trata-se de experimentar deslo- pectadores. A procura exigente de qualidade
camentos e alternativas, tentar novas possi- e originalidade artística vem acompanhada
bilidades e devires. de entusiasmo essencial. As propostas artís-
ticas têm que ter a capacidade de explorar a
A identidade programática da Fábrica das entrada da infância no que de melhor se faz
Artes, o seu posicionamento estético face à em arte, uma arte que não facilita; exigente;
arte, à infância, à educação e aos contextos surpreendente; um modo vital da arte. Os
relacionais propostos, vem-se consolidan- artistas dispõem-se a desenvolver um pro-
do a partir de procedimentos de observação, cesso criativo construído com os elementos

049 D E R I vA s # 0 3
críticos e reflexivos sobre a infância e as in- A ideia que tinha sobre a narrativa do
fâncias, não confinados à ideia de ‘criança’. Pinocchio era a que está inscrita no imaginá-
rio coletivo a partir da versão de Walt Disney
Foi este o mapa conceptual que assumíamos na qual a narrativa do Pinocchio é a de um
no momento em que nos debruçamos sobre a menino pobre e endiabrado que tem que
programação da temporada para 2016. aprender a portar-se bem e, por isso, preci-
sa de ir à escola para ser um menino de ver-
II. O Sonho de uma Programadora: dade, trabalhar para ganhar dinheiro e ser
nascimento de Pinocchio alguém na vida. Mas ao reler a versão origi-
Desta vez, o impulso para programar chegou nal de ‘As aventuras de Pinocchio’ de Carlo
de um sonho sonhando numa noite inquieta. Collodi, depressa me apercebi da torção que
Ao serão, os diretos televisivos tinham entra- o Walt Disney fez para não deixar espaço a
do casa adentro: assistíamos ao ex-primeiro- qualquer ambiguidade. Na versão de Collodi,
ministro ser preso no aeroporto, assistíamos o Pinocchio é perturbador enquanto conto
à comissão parlamentar de inquérito ao caso infantil porque está na fronteira daquilo que
BES e escutávamos, com perplexidade e des- pode ser o mau exemplo. Pode ser a sugestão
confiança, os discursos dos inquiridos que do contrário do sentido educativo. A ambiva-
faziam intuir jogadas ambíguas de verdade e lência de sentimentos dos personagens cria-
de mentira. Pelos milhões de euros anuncia- dos por Collodi fá-los muito mais humanos do
dos, estas notícias contrastavam com outras: que nos faz ver a versão americana. A narrati-
o aumento da taxa de desemprego, os cortes va do Pinocchio é a do mau menino. O texto
nos salários e nas pensões, manifestações de de Collodi é bem mais interessante, comple-
estudantes universitários contra cortes nos xo e escuro do que história que a Disney nos
apoios às propinas, cortes na saúde, educa- quis contar. A história original de Pinocchio
ção, investigação científica, cultura e, para está cheia de percalços, de idas e vindas, tra-
fechar, histórias pessoais reveladoras de quinices e arrependimentos. Encontramos
miséria. A narrativa desencaixava a ordem elementos de arrogância, irreverência, ino-
social, política e financeira. cência, esperteza, vergonha, traições e lealda-
des, promessas e incumprimentos, tentações,
Foi justamente nesta noite que o Pinocchio chantagens e manipulações.
me visitou. Vinha no corpo e na voz do ator
Tiago Barbosa. Dançava e cantava canções O impulso para abordar este texto vinha do
com o seu Grilo sobre desejos e angústias alastrar da mentira nestes tempos em que,
do altíssimo corpo que o traz, ágil, como um por toda a parte e a todas as escalas, a men-
boneco articulado e vivo. Nas caras dos tais tira se revelava na sua enormidade quase
senhores, sentados em seu redor, impunham- até ao limite da sua irrelevância ou da sua
se os narizes e as orelhas que lhes cresciam. indiferença ética. Ora, a mentira é o nariz
do Pinocchio, o nariz que cresce quando os

050 D E R I vA s # 0 3 ‘ E N TÃ O, O P I N O C C H I O S O U E U ? ’
narizes não crescem, mas que cresce como personalidade e particularmente visíveis
outras coisas crescem, mesmo a despropósi- nos papéis de género, nas alusões genitais do
to, indisfarçavelmente. A exposição pública nariz e na misoginia geral de toda a narrati-
da mentira estava a ser também a exposição va (Apostolidés, 1989). Não. O assunto que
pública da verdade. O mundo, e em particular mais me atraiu foi o próprio texto enquanto
a sociedade portuguesa, pareciam apanha- dispositivo educacional para a infância.
dos na sua escandalosa travessura e algum
espelho vinha agora confrontar o real com Muito para além do seu óbvio moralismo,
as suas consequências: castigo, arrependi- este texto é uma declaração de destino fatal
mento, emenda, correção. O nariz voltaria ao quanto ao processo de crescimento. Nele, a
seu tamanho natural e o erro não se repetiria, criança é uma quimera inviável não só pe-
senão por imperativo ético, pelo menos pela rante o mundo e os outros como perante si
vergonha de exposição pública. O nariz de mesma. Insuportável ao mundo e impres-
Pinocchio parecia a grande metáfora do mo- tável aos outros, só existe em risco total de
mento e, dos cartoonistas ao cidadão comum, si mesma. A passagem da quimera de pau a
era esta a imagem que a todos ocorria. ‘menino’ constitui a superação da sua pró-
pria natureza original, da sua desordem
Este conjunto de associações onde a figura relacional, da sua espontânea e imediata
de Tiago Barbosa parecia unir tudo, passava inadequação à vida social e da inutilidade
depressa demais sobre o texto original das da sua novidade. O menino, a ser poupado a
Aventuras de Pinocchio. si próprio e a ter a sorte de bons acasos e de
amparos persistentes, salvar-se-á com alí-
A minha memória pessoal guardava uma lem- vio, não só do mundo onde nasceu como de
brança muito ambivalente em relação a este si mesmo, enquanto bom trabalhador e bom
texto. Fui ver melhor. Uma busca permitiu- descendente familiar, apaziguado com qual-
me verificar que o assunto tinha anteceden- quer coisa que lhe é original mas de que ele
tes fundos. Em 2004, Alison Lurie publica um não é culpado. Pinocchio não expia o supos-
artigo onde não só a complexidade do texto to ‘crime’ das suas travessuras; ele salva-se
original do Pinocchio é criticamente aponta- de uma impossível condição original – um
da, como refere ainda outros autores e a pró- pau que fala – através da sua passagem a hu-
pria trajetória institucional do texto como mano disciplinado.
património educativo para a infância.
Eis um texto educativo – a infância é uma
Excluamos por agora as múltiplas remis- impossibilidade radical que a subordinação
sões interpretativas para a psicanálise. Elas viabiliza através de um processo de ‘diges-
ligam facilmente a interpretação das peri- tão alquímica’ de sofrimentos e perigos de
pécias do texto a todos os processos con- morte, e que é preciso ainda merecer. Educar
flituais e tumultuosos de estruturação da é negar o infantil?

0 51 D E R I vA s # 0 3
O texto, escrito nos finais do século XIX (1883), haveriam de marcar o normal e o anormal.
publicado em capítulos como peripécias num (Martins, 2016, p.201)
jornal infantil italiano, é relativamente re-
cente quando comparado com os textos clás- A missão do pedagogo moderno é discipli-
sicos da literatura infantil. As Aventuras de nar as crianças para que se tornem num
Pinocchio tem uma natureza historicamente determinado adulto ao atingir maioridade,
situada, relativamente próxima de nós – a so- o modelo de adulto só possível de aceder ao
ciedade industrial de raiz iluminista, na qual a sucesso na obediência à trajetória oferecida
escola ocupa um lugar central como elemento por esta escola e por esta proposta política.
organizador do tempo, do espaço e da ordem
social. Passa-se num contexto urbano, arte- A população foi transformada em objeto de
são e pobre, no qual o próprio Collodi tinha governo, o que levou à presença em todas as
também a sua origem. Toda a narrativa con- instituições modernas, de novos especialis-
duz-se na procura de alimento, a batalha con- tas que fossem capazes de traduzir e tornar
tra a fome, pela sobrevivência. Mas também inteligível a sua realidade, de fixar equilí-
entre a conquista do mundo e a conquista da brios e manter medias. É nesse quadro que
riqueza; entre a subjugação e a emancipação; também a pedagogia, pensada lado a lado
entre a vida e a morte de um ser que cresce. com a invenção da escola (essa maquinaria
de governo da infância), é investida de uma
A obra de Collodi é contemporânea à conso- série de especificidades, a maior parte de raiz
lidação da ideia de infância do modernismo psicológica, que passaria a determinar as
e da ideia de que as crianças deveriam ser capacidades, as aptidões, a natureza, a nor-
tratadas de forma diferente dos adultos. A malidade e a anormalidade de cada sujeito
categoria de infância era uma categoria nova escolar, assim como técnicas e dispositivos
na época e a escola, a nova promessa para a de intervenção e de regulação de identida-
ascensão social, que consagrava os valores des e de comportamentos. O que estava em
da igualdade e fraternidade Iluministas, jogo era a fabricação do cidadão disciplinado
consumava-se como instrumento norma- e útil. A infância surgia aos olhos do poder
lizador e regulador do Estado-Nação para a como um grupo de risco que era urgente não
produção de indivíduos. apenas conhecer (cientificamente), como
também controlar. Todo o esforço da psico-
As tecnologias disciplinares e normalizado- pedagogia, desde a segunda metade do século
ras que construíram a escola que hoje temos, XIX, foi conduzido a partir dessa vontade de
e que são a matriz da pedagogia moderna, poder e de conhecer as particularidades, os
tomam a criança-adulto como centro das desejos, as tendências das crianças, organi-
suas práticas. A infância tornou-se assim, zando formas e formulas de intervenção que
uma realidade governável para a qual se as moldassem, a partir de dentro, e por sua
estabeleceram múltiplos marcadores que própria ambição. (Martins, 2016, p.201).

052 D E R I vA s # 0 3 ‘ E N TÃ O, O P I N O C C H I O S O U E U ? ’
Ao ler as Aventuras de Pinocchio, é fácil asso- potências, de novas forças de ação e pensa-
ciar a trajetória da marioneta manipulada ao mento. Toma-se esta legitimação da arte e
projeto político e social que a modernidade da criação, por parte da Instituição Cultural,
ofereceu às crianças. O trajeto de Pinocchio para abrir os vastíssimos campos inutiliza-
revela o efeito educativo que o tornará num dos ou insuficientemente explorados, cam-
menino de verdade e também o indivíduo em pos de confronto entre crianças e criação
risco que ele representa para a sociedade. artística que revelavam uma capacidade
excelente de ativação educativa nas crianças
Porque programar pode ser sonhar e criar e de criatividade artística nos seus autores.
novas possibilidades também, a Fábrica das Temos vindo a propor dispositivos artísticos
Artes, no interior do seu projeto e da sua e relacionais, experimentais e experienciais
instituição cultural, tem assumido um des- que possam fazer revelar imaginações de
locamento, tão radical quanto possível, re- infância, que possam revelar a força do seu
lativamente à escolarização, à classificação pensamento, do seu desejo, do prazer pela
etária, recusando não só uma arte didática inteligência e pela sua descoberta. Tateamos,
e explicativa para a infância como também em conjunto com artistas e espectadores,
uma arte estereotipada e embrutecedora, um outro lugar para escutar potências de
oferecida pelas indústrias culturais e do infância, outras possibilidades de se ser en-
entretenimento. quanto humano; abrimos pequenos inters-
tícios temporais que salvaguardem a não
Como programadora, interessa-me lançar interrupção desse devir, tentando satisfazer
convites de criação a artistas que permitam ainda todas as curiosidades debruçadas para
explorar a desterritorialização de conceitos dentro dos acontecimentos que decorrem na
para ativar pequenas emancipações de in- programação. Há espaço para fazer mais e
fância agrilhoada em si mesma. Imaginam- diferente; há gente a querer fazê-lo e há so-
se as possibilidades que adviriam, caso bretudo gente pequena a querer espreitar
pudéssemos arrancar da representação para isso; entrar nisso; ser isso também.
coletiva e pessoal o estatuto simbólico de o
aluno que o projeto político e social da mo- A formulação Para Todas as Infâncias traz
dernidade inscreveu como perceção única em si uma condição política subtilmente sub-
da realidade e da realização. versiva fortemente interrogativa: propomos
atravessar os muros da categorização que se-
À arte e aos artistas é garantido o seu inalie- param crianças, jovens e adultos. Procuramos
nável regime de liberdade no qual podemos inscrever no interior deste lugar um plano
atravessar as fronteiras da categorização, comum a todos os espectadores na sala, um
propor desvios, pensar conceitos radical- Nós, ativando um sentido de pertença a uma
mente como se da primeira vez se tratasse, comunidade que se reúne à volta de uma ex-
experimentar dispositivos promissores de periência artística de qualidade vital. Ao invés

053 D E R I vA s # 0 3
de recorrer a critérios etários, explora-se a O Tronco, como que arrancado de uma árvo-
instabilidade da infância em nós, em todas re, a alta velocidade desce a colina que o traz
as idades, para ativar ecos de outros tempos, da floresta. Um tronco de madeira, selvagem
de devir-criança, de devir-artista, a busca de e desgovernado, entra assim numa pacata
inícios e reinícios de vida, de desejos livres. aldeia, chocando com tudo e contra todos –
Exploram-se as potências desses encontros chegando à oficina de Mestre Cereja.
inscritos num espaço relacional marcado pela
horizontalidade, como modo de acentuar o O primeiro capítulo ‘Como foi que o Mestre
valor igualitário das inteligências e curiosi- Cereja carpinteiro achou um bocado de ma-
dades presentes, em plena equidade cogniti- deira que chorava e ria como uma criança’,
va. O mundo infantil revela-se aqui, e não só. começa com a crítica às expetativas literá-
Autonomiza-se na descoberta e na experiên- rias para a infância ligadas aos contos fadas
cia de si mesmo e usa estas propostas novas e cenários aristocráticos, com castelos, reis,
para a sua vida e para sua transformação. rainhas e príncipes: ‘Era uma vez... – Um rei!
– dirão os meus pequenos leitores. Não, enga-
Tal como no meu sonho iniciador de Pinocchio, nam-se. Era uma vez um bocado de madeira!’
o que me move como programadora é a pro- (Collodi, 1883/1993, p. 11).
cura da programação que falta fazer para
que o público em geral possa assumir uma O Mestre Cereja, assustado com a voz que
programação artística para a infância. Ou, vem do interior do tronco, oferece-o ao
dando ainda mais um passo: não será toda a marceneiro Gepetto, que lhe diz que teve
arte afinal para as infâncias? uma ideia$–$‘fazer um boneco de madeira,
que saiba dançar, jogar à espada e dar saltos
III: O Pinocchio de Collodi mortais. Com esse boneco vou correr o mundo,
para ver se ganho para um pedaço de pão e um
Com idade indefinida, Pinocchio tem, na copo de vinho’.
realidade, corpo de adolescente em mutação
– um renascimento social; corpo de madeira, A absoluta irrealidade como começa a história
uma carapaça, resistente aos maus tratos, à produz um efeito incrível: o tronco, enquanto
humilhação (Apostolidés, 1989). Gepetto o transformava em boneco, arran-
cando-lhe o excesso de madeira com a goiva,
Já antes de existir, o boneco habitava os de- já manifestava insolência, arrogância e tei-
sejos mágicos de Gepetto, desejos de criador. mosia: berrava, dizia asneiras, dava pontapés,
Projetou-o no futuro como companhia, sal- desafiava o seu pai, crescia-lhe o nariz. Chega
vador da miséria em que vivia, seu cuidador. a produzir espanto até físico de ver a goiva e o
Tinha um projeto educativo para o boneco. A canivete: se o corte não for bem feito… as mes-
ideia original opera sobre o real de um ser, a mas mãos que estão ali a dar vida podem dar
partir do imaginário. morte também. De marioneta Pinocchio tem

054 D E R I vA s # 0 3 ‘ E N TÃ O, O P I N O C C H I O S O U E U ? ’
muito pouco. Gepetto tem de se tornar educa- a casa paterna! Nunca terão felicidade neste
dor de tal criatura. Isso torna Pinocchio reati- mundo; e mais tarde ou mais cedo hão de
vo como uma criança que manifesta o desejo arrepender-se amargamente.
de estar viva, desafiando o mundo. Pinocchio – Canta à vontade, meu caro
Grilo, como bem te apetecer: mas eu sei que
Gepetto assume todos os cuidados e satis- amanhã de manhã me vou embora daqui,
faz todas as necessidades do seu boneco porque se cá ficar vai acontecer-me o que
como uma boa mãe – a figura materna está aconteceu a todos os outros rapazes, ou seja,
omissa na narrativa – e é quem o inscreve vão mandar-me para a escola e a bem ou mal
no mundo simbólico ao dar-lhe o nome de terei de estudar; e eu, para dizer a verdade,
Pinocchio. Gepetto, não é bem um pai. É seu não tenho vontade nenhuma de estudar, e
criador mas, na relação com ele, ocupa uma divirto-me muito mais a correr atrás das
função materna. Não o repreende, recolhe-o, borboletas e a trepar às árvores para apa-
perdoa-lhe, protege-o. Pinocchio faz sofrer nhar os ninhos.
Gepetto quando foge, quando não vai à es- Grilo – Grande palerma! Não sabes que se
cola, quando se mete em barafundas e pro- não o fizeres, quando fores grande serás um
blemas com a autoridade. A culpa das suas burro e todos farão troças de ti?
escolhas leva-o, por fim, à desistência. [...] Se não te apetece ir à escola, porque não
aprendes ao menos um ofício, de maneira
O Grilo Falante é a voz do pedagogo moderno, que ganhes honestamente o pão que comes?
mensageiro de uma certa tradição cultural, Pinocchio –... De todos os ofícios só há um
entre a moral católica e a burguesa. Exalta que realmente me agrada: o de comer, beber,
as virtudes como a paciência, a resignação, dormir, divertir-me e fazer de manhã à
a busca pelo bem e pelo sucesso, depois do noite vida de vagabundo.
sofrimento terreno e a ênfase no espírito Grilo – Para tua informação- disse o Grilo
liberal, a exaltação de um individualismo Falante com a calma do costume -, todos os
generoso e empreendedor. É a voz da grande que têm esse ofício acabam sempre ou no hos-
verdade. Não quer ensinar, quer alertar para pital ou na cadeia. (Collodi, 1883/1993, p. 28)
as regras morais de convívio social e para o
respeito pela autoridade. Apela ao sentimen- Bom, é pouco provável que Collodi e Foucault
to de culpa, ecos interiores da herança judai- se tenham conhecido. Mas Collodi reconhece
co-cristã. O Grilo sublinha o fracasso social exatamente os mesmo mecanismos disciplina-
e o arrependimento moral como punição, dores que denuncia Foucault em Vigiar e Punir.
caso Pinocchio não mude de comportamen-
to. Tudo isto irrita muito Pinocchio. Pinocchio também não queria crescer, mas é
o oposto do Peter Pan. Crescer significava ab-
Grilo – Ai dos rapazes que se revoltam con- dicar dos seus prazeres imediatos. Pinocchio
tra os pais e que abandonam teimosamente não tem dúvidas e esmaga cruelmente, com

055 D E R I vA s # 0 3
o martelo, o Grilo contra a parede. A morte de culpa e arrependimentos amargos. Mais
do grilo está associada a todo o tipo de des- complexa e profunda no seu feminino múlti-
graças vividas: fome, arrependimento, culpa plo do que o Grilo Falante com as suas lições,
e hesitações frente à escolha entre o bem e ela é a voz íntima da lei a impor-se progres-
mal. Promete muitas vezes ser obediente, sivamente no ‘coração’ do boneco articu-
aprender a ler e a escrever, fazer contas para lado, abrindo-lhe por essa via das emoções
no futuro ganhar dinheiro e recompensar o o caminho para a honesta humanidade de
sacrifício de Gepetto. Mas não consegue sus- trabalhador assalariado; não a de empresá-
tentar essas promessas. No caminho para a rio habilidoso multiplicando o dinheiro com
escola, outros caminhos mais curtos ou mais truques de fantasia.
gratificantes se interpõem e ele acaba por
preferir o prazer e a aventura. Pinocchio oferece-se hoje como um lugar
abissal para pensar o infantil, a educação, o
É nesses caminhos que Pinocchio se encontra crescimento, a procura do seu interior e de
com as novas figurações da maldade – os habi- um lugar no mundo. O texto permite tam-
lidosos da mentira, que vão desde o empresá- bém inúmeras leituras por públicos de dife-
rio do teatro de marionetas aos trafulhas dos rentes idades. A riqueza de Pinocchio reside
negócios de especulação. No primeiro episó- no jogo criativo entre leitor e o texto. Esse
dio, Pinocchio reconhece os fantoches como facto encontra-se com o que temos vindo a
irmãos de destino e defende-os da morte às explorar na Fábrica das Artes, uma progra-
mãos do terrível empresário Tragafogo. mação para todas as infâncias.

Pinocchio confronta-se em outros episódios IV. O Processo de Criação e o Espetáculo


com o mundo dos negócios, um mundo opos- Da certeza de Tiago Barbosa para o papel
to ao da artesania pobre mas honrada a que de Pinocchio, seguiu-se o convite a Ainhoa
Gepetto pertence. A Raposa e o Gato corpo- Vidal para assumir a direção artística e a en-
rizam o estatuto dessa atividade comercial cenação. Para Gepetto, criador do boneco e
a que se chama hoje ‘gerar riqueza’ – a espe- da vida, convocámos Gonçalo Alegria e, com
culação – e são eles quem leva Pinocchio à ele, a sua energia criativa, temperada de acu-
Terra dos Tolos para que enterre as suas qua- tilância filosófica e política.
tro moedas de ouro no Campo dos Milagres
e espere que elas se multipliquem por si. O desafio da programação foi oferecido a
Pinocchio sonha com a sua fortuna a chegar partir de uma pergunta: como recontar a
sem trabalho, enquanto espera no que cha- história de Pinocchio hoje? Que restos da in-
maríamos hoje um resort turístico. fância do século XXI há neste original?

Entretanto, a fada fá-lo percorrer toda a gama Imaginava um Pinocchio vulnerável, que
de experiências de piedade, de sentimentos erra, sofre e se redime para tornar-se humano

056 D E R I vA s # 0 3 ‘ E N TÃ O, O P I N O C C H I O S O U E U ? ’
[adulto?]. Pretendia que o espetáculo se ofe-
recesse a pais e filhos como um dispositivo
para a experiência artística, como experiên-
cia do fantástico do universo de Pinocchio,
para questionar sobre o prazer e a alegria,
mas também sobre a pressão exercida nos
novos para procurarem modelos que não
encontram hoje pontos de fuga nem resso-
nância no mundo.

As primeiras imagens revelaram-se através ‘E então, Pinocchio sou eu?’


da sinopse e imagem para o programa (Vidal Espetáculo de teatro
et al., 2016b):
Ainhoa vidal
gonçalo Alegria
tiago Barbosa
Inês Rosado

Agarro numa folha de papel


e anoto a frase que há pouco li:
‘Num mundo de mentiras dizer a verdade
é um ato revolucionário.’
Descobrimos, provamos, procuramos o caminho,
escolhemos, criamos ficções e gritamos a
verdade como se da nossa vida se tratasse.
sem olhar para trás. E um dia, quando nos
voltamos, olhamo-nos ao espelho e por um
segundo perguntamo-nos:
– E então, Pinocchio sou eu?

um espetáculo sobre tudo aquilo


que nos faz ser de carne e osso.

Criação Ainhoa Vidal


Cocriação e Interpretação
Tiago Barbosa, Gonçalo Alegria, Inês Rosado
Participação especial
Madalena Cabecinha, Zoe Vidal
Criação sonora Gonçalo Alegria
vídeo Gonçalo Alegria
Desenho de luz João Cachulo
Cenografia Carla Martínez, Ainhoa Vidal
Figurinos Ainhoa Vidal
Produção Sara Simões, Produtores Associados

Teaser do espetáculo
http://ccbfabricadasartes.blogspot.pt/2016/03/
e-entao-pinocchio-sou-eu.html

0 57 D E R I vA s # 0 3
Recriar As aventuras de Pinóquio à luz da lançado no momento de programação do pro-
contemporaneidade não é tarefa fácil. O jeto. Oito meses antes, no momento em que
texto traz consigo uma moral prescritiva e estava a conceber a programação do espetácu-
uma escuridão característica da sociedade lo, tínhamos reunido para que pudesse propor
e da literatura infantil da época. Abordar o o desafio para a criação e debatemos as linhas
Pinocchio exige reescrita a partir da relação em que a criação se inscreveria. Aceite o de-
ética com as infâncias no século XXI, uma safio com entusiasmo e leveza, dias depois de
violência que vem contemplada nos contos me devolverem os materiais de comunicação
de fadas. A questão da crueldade é vital, já – sinopse e imagem – o projeto é lançado para
que hoje faz igualmente parte da vida das o mundo, comprometendo-nos a todos na sua
crianças, numa outra forma mas de manei- realização. É recorrente que, no tempo longo
ra mais violenta e desorganizada, sem qual- que intercala o exercício de programar e o mo-
quer impedimento e proteção: a televisão, mento que dá início aos ensaios, se opere uma
o entretenimento e a publicidade; os jogos suspensão da produção criativa, exigindo um
digitais de uma brutalidade sem margem; o esforço dobrado de reativação do impulso lú-
stress e falta de tempo para a vida afetiva; a dico e intelectual para a procura de sentido.
pressão e a competição, a híper-estimulação. O mergulho na realidade literária do texto,
agora inevitável, confronta os artistas com
Durante a primeira semana de trabalho fui as questões que não tinham surgido ainda e
visitar a equipa de criação à sala de ensaios. Os a um mês e meio da estreia, ocorre uma pres-
artistas tinham começado o seu processo de são para a descoberta de soluções. Jogava-se
trabalho a partir da leitura em voz alta do texto agora a procura de soluções criativas.
original – ‘As Aventuras de Pinocchio’. O traba-
lho de leitura coletiva faz, segundo a encenado- Ainhoa Vidal, Tiago Barbosa e Gonçalo Alegria
ra, surgir imagens ricas e determinantes para formularam, logo neste primeiro encontro
a criação. ‘Rapidamente chegou a ideia de espa- comigo, a tensão que viviam. Fui confronta-
ço cénico como arena de um circo e o narrador da com os problemas que eles verbalizaram:
como o dono do circo. O teatro que às vezes é a Como agarrar neste texto para pô-lo em cena?
vida, um teatro de habilidades’ (Vidal et al., co- Como agarrar no que de bem tem o texto sem
municação pessoal, 2 de fevereiro de 2016). se ser prescritivo? Como dar às crianças de
forma aberta e não fechada as questões que
No decorrer desta minha primeira aparição o texto levanta, sem trair o autor? Tentamos
aos ensaios, os artistas mostraram descon- gerar contradição para abrir. A abertura vem
forto relativamente ao moralismo da narra- do confronto de varias mensagens fechadas.
tiva e questionaram-me, num tom perplexo e
subtilmente revoltado, sobre as minhas mo- De igual modo, impunha-se saber como re-
tivações para programar tal proposta hoje, construir as referências políticas e que hoje
no século XXI . Lembrei do desafio que tinha em dia não fazem sentido. Como transmitir

058 D E R I vA s # 0 3 ‘ E N TÃ O, O P I N O C C H I O S O U E U ? ’
às crianças a escuridão, tristeza e crueldade A criação
do texto, mantendo também a sua face lumi- Tiago/narrador: Mas este tronco é do vulgar
nosa? Queríamos ajudá-las a ler esses episó- pinho. Um material grosseiro a que de todo
dios que às vezes são catastróficos. Não cabe em todo falta nobreza. Esta matéria bruta
hoje na cabeça de nenhum escritor escrever e selvagem, desagradável ao olhar, vamos
uma história para crianças em que a perso- submetê-la a uma série de tratamentos e
nagem principal vai ser enforcada. Hoje em operações, num processo moroso, violento
dia há outro tipo de relação com a cruelda- e não isento de sofrimento e dor, que a vai
de e se calhar as crianças vivem-na menos, transfigurar, que lhe vai conferir geometria,
há uma troca de pesos. Por isso fizemos um a forma que lhe cabe, racionalizada e ideal.
trabalho de seleção. Retirámos algumas A isto, chamamos criação! Deste material,
das cenas mais brutais. A do enforcamento pode fazer-se, dizem os meus sonhos, um
do protagonista e a morte do melhor amigo humano. Um humano da mais fina extração.
que, por não ter ido à escola, morre como um
burro de trabalho, o sub-trabalho. Hoje, as O nascimento de Pinocchio
caixas de supermercado. Trabalhamos tam- .Tiago Barbosa (T)/narrador: O que é certo,
bém por indignação. Aquilo que escolhemos é que o gesto que o Gepetto fez não foi só
explorar era totalmente não aconselhável a este de abrir uma superfície de testa neste
‘pessoas com recibos verdes’. toro informe de madeira de pinho mas o de
descobrir uma cabeça inteira com olhos e
A segunda semana do processo criativo de- tudo, olhos que … Gepetto, quando os olhos
correu como proposta à improvisação pelos olharam para ti...
atores, partindo da leitura dos capítulos de .Gonçalo Alegria/Gepetto: O que é que eu
Pinocchio e convocando para o seu interior senti?
questões contemporâneas, mais humanas e .T: Sim.
políticas do que criativas. Ainhoa Vidal, no .G/G: Surpresa, medo e felicidade.
seu papel de encenadora, viu de fora essas
improvisações, colecionou-as gravando-as, A resistência: Descobrir o seu interior
para de seguida proceder à sua edição em .T: ... da criação do seu filho, num ato de
forma de texto dramático. Esse material foi desespero. [...] Mas a forma não é nada sem
devolvido aos atores e foi sobre ele que traba- um interior.
lharam para o pôr em cena. Este foi um pro- .Gepetto: Como assim? Sem um interior?
cesso bastante orgânico. Os artistas foram .T: Falta-lhe um interior.
fieis à estrutura original, mas transforma- .G: Como? Eu começo por ver a forma e
ram a linguagem, tornando-a mais exigente. começo por cima, mas já lá está tudo, agarro
Foi o caso da cena da criação, do nascimento só na goiva, e vou desbastando... mas já lá
de Pinocchio e da descoberta do seu interior está tudo. No fundo, o tronco tem o interior
(Vidal et al., 2016a): que é boneco. Eu tiro o que era o tronco e

0 59 D E R I vA s # 0 3
revelo o boneco, mas é o boneco que depois posto a dormir, um boneco serve para ser
tem que ir descobrir o seu próprio interior. alimentado, sim, mas a fingir.
.T: Isto podia ser o título para a próxima parte Um boneco um boneco um boneco um
desta história: ‘descobrir o seu interior’. boneco...
Descobrir o seu interior requer uma força Um boneco que não é a Cindy,
excecional, quem sabe, a de um herói. Um Um boneco que não é a Tucha,
herói é aquele que enfrenta o que se lhe Um boneco que não é a Barbie,
opõe, dificuldades enormes e dores imensas, Um boneco que não é a Nancy,
ultrapassando assim a sua condição de Um boneco que não é o Nenuco,
pessoa normal para se elevar à dimensão de Um boneco que não é o Pin e Pon, [...]
um deus. O mesmo acontece com um tronco Um boneco que não é a Peppa Pig,
que se torna obra de arte viva. Um boneco que não é o Zaratrusta,
Um boneco que não é a Petelegui
Por outro lado, os artistas criam cenas novas Um boneco que não é a Chiquituca
de modo a abrir acesso às crianças. Os bone- Um boneco que não é a Papatruca,
cos entram na narrativa a partir do mundo Um boneco que não é a Liquitrula,
das crianças. Através de uma interpretação Um boneco que não é a Chacalata,
hilariante, começam por evocar nomes de Um boneco que não é de plástico, um boneco
bonecos reconhecidos e passam a nomes in- que não é da caderneta dos cromos, um
ventados de bonecos imaginários da futura boneco que não vem dentro de um carro
indústria dos brinquedos. Denunciam como descapotável com óculos escuros pintados,
as crianças continuam a ser tratadas como um boneco que não custa 153 euros e é para
objetos. Quando forem grandes já podem tra- pôr em cima da prateleira, [...]. Um boneco
balhar e comprá-los. Até lá que fiquem quie- que não faz o que se lhe manda, um boneco
tos, vestidos com roupas ridículas, frente aos impertinente, um boneco que arregala os
média que os manipulam (Vidal et al., 2016a): olhos, um boneco que se ri da cara de um pai
que poderia ser seu avô e que, por causa do
Um boneco trabalho, pelo cansaço, perdeu o cabelo. Um
Tiago/Narrador: Eis um boneco. [...] Um boneco que agride, um boneco que agarra
boneco capaz de … um boneco é, por uma cabeleira loira com as duas mãos, um
definição, um incapaz. Um boneco devia boneco que ataca a vaidade do seu criador.
estar parado, um boneco devia ter uma Um boneco. Um boneco que parte o coração
posição desconcertada, um boneco devia do Pai, porque partiu da sua casa e nela
ser posto onde o põem e ali ficar postado, deixou saudade.
um boneco não tem direitos, um boneco
serve para ser manipulado, um boneco Na cena da Terra dos Tolos, os artistas abriram
serve para ser beijado, um boneco serve espaço narrativo fora do texto original criando
para ser vestido, um boneco serve para ser uma cena ‘Os pinhões’ (Vidal et al., 2016a):

060 D E R I vA s # 0 3 ‘ E N TÃ O, O P I N O C C H I O S O U E U ? ’
Pinhões Os vendedores, charlatões e ladrões surgem
Há que rentabilizar, há que tudo em ouro a partir da cena da Terra dos Tolos (Vidal et
transformar, há que ao meu Pai agradar, há al., 2016a):
que à Mãe que o Pinocchio não tem…
Atividade comercial: A raposa e o gato
.G/N: Conheci uma família inteira de Quem rouba o casaco ao vizinho morre em
Pinocchios: o Pai Pinocchio, a mãe Pinocchia mangas de camisa.
e os filhos Pinocchios, e levavam uma boa
vida. O mais rico de todos pedia esmola. .G/Raposa: E agora, o que queres fazer com
essas cinco moedas? Queres multiplicar as
(Fadinhas e Tiago fazem a fotografia tuas moedas?
da família) .T/P: O que queres dizer?
.G: Destas cinco miseráveis moedas, queres
.T/Pinocchio: Sabes que os pinhões estão a fazer cem, mil, duas mil?
90 euros o kilo? .T: Quem me dera! De que maneira?
.G/G: 90 euros e cinquenta o kilo? .G: Duma maneira muito fácil. Em vez de
.F: 100 euros o kilo? voltares para casa, terias de vir comigo.
.G: Isso dá, 10 kilos 1000 euros. .T: E para onde me queres levar?
.T: E se pensarmos que um kilo de pinhões, .G: À Terra dos Tolos.
são 5500 pinhões. .T: Não, não quero. Já estou perto de casa e é
.G: Não sei, isso agora só contando. para lá que quero ir.
.T: Se nós tivéssemos 1000 euros, éramos .G: Tanto pior para ti… eu não trabalho por
capazes de comprar uns 55000 pinhões. vil interesse. Trabalho unicamente para
.G: Depois tínhamos que pintar, em enriquecer os outros.
cada pinhão, uns olhinhos. Fazemos .T: Que pessoa tão boa…
a família toda. .G: Vamos fazer assim. Tu vais para tua
.T: Uma cidade toda. casa e pensas se queres um dia chegar a ser
.G: E púnhamos todos a trabalhar para nós. um senhor rico. Entretanto, dás-me o teu
.T: E podíamos vendê-los também. número de telefone e eu ligo-te a saber da
.T: Uns, se calhar, semeávamos e os outros tua decisão.
guardávamos para pedir desejos em dois
fins de ano. Collodi nunca chega a mostrar a escola, apenas
.G: Então, comprávamos pinhões para a fuga a ela e as tentativas de Pinocchio para se
depois vender os pinhões. É uma redimir. Os artistas inventam uma cena esco-
excelente ideia. Mas precisamos dos 1000 lar. A fada transforma-se numa professora his-
euros… temos que vender. Tínhamos que tericamente descontrolada. Começam logo por
te vender a ti. ridicularizar o reportório de canções utiliza-
.T: A mim? Eu não sou um pinhão. das nos Jardins de Infância (Vidal et al., 2016a):

0 61 D E R I vA s # 0 3
A escola: uma cena introduzida .P: Como cheira a eletricidade?
.T: Carne queimada
(Canção de bom dia) .G: Dor
.Professora (P): Bom dia .P: Por que é que o mar é vermelho?
.Gonçalo/Tiago (G/T): Bom dia .T: Porque o sol está a pôr-se.
.T/Pinocchio: Bom dia .P: Por que é que os cães não cortam as
.G/T: Bom dia unhas?
.P: Bom dia .G: Porque não têm corta-unhas.
.G/T: Bom dia a toda a gente .T: Porque não têm dentes.
.P: Quem foi o Primeiro rei de Portugal? .P: Por que é que as galinhas põem ovos?
.G: Dom Afonso Henriques .G: Porque têm que ter filhos.
.T: Henriques Afonso Dom .P: Para que servem as penas?
.P: Quem foi o segundo rei de Portugal? .G: Para voar.
.G: Dom Afonso II .T: Para escrever.
.T: Afonso Henriques II .P: Por que é que se tem pena?
.P: Errado, Dom Sexto I, Dom Sancho I .G: Para chorar.
.P: Dois vezes dois? .T: Para suspirar.
.G: 4 .P: Por que é que se usa chapéu?
.T: 0 .G: Por causa das carecas.
.[...] .P: Quantos passos dei?
.P: O menino é feito de que material? .P: A-ha, apanhei-vos!
.T: Plástico .P: Quem foi que pintou, o Jardineiro?
.G: Madeira .P: Quem foi que construiu o Mosteiro dos
.P: E o menino, é feito de que material? Jerónimos?
.G: Carne e osso. Carbono, C, H, O, N. .G: Dom Carlos.
.P: Quantas migalhas tem o carbono? .P: Em que país a cultura da batata é super
.G: O carbono tem 12 desenvolvida?
.P: Quantas pessoas formam uma multidão? .G: Irlanda
.G: Muitas .P: Raiz quadrada de 5 vezes 25 menos um
.P: Podiam dizer-me qual é a equação do quadrado?
som? .P: Isto serve para quê, meus senhores?
.P: Podiam dizer-me qual é a equação do ar? .P: Para que servem as lágrimas?
.P: Podiam dizer-me para onde vão os .P: A que sabe uma lágrima?
pássaros quando voam? .G: A sal
.G: Para ali .P: Qual é o símbolo químico do sal?
.P: A que cheira uma tomada? .G: NaCl
.G: A eletricidade .T: NaCl
.T: A eletricidade .P: Que palavrão é esse?

062 D E R I vA s # 0 3 ‘ E N TÃ O, O P I N O C C H I O S O U E U ? ’
.P: Cloreto de sódio, meus meninos, cloreto embora possamos reconhecer o tom trágico
de sódio. do seu comentário final (Vidal et al., 2016a):
.P: Para que serve tudo aquilo que vocês
estão a aprender aqui? .Pinocchio: Mas Pai... a pressão é tanta da
.P: Por que é que os tratores são verdes? parte de quem olha para nós, que queremos
.G: Porque são de uma marca chamada John tornar-nos referências, queremos deixar
Deer que tem os tratores verdes. um marco, queremos ficar na memória
.P: Como é que se faz café? das pessoas. Tu estás a querer dizer
.G: Faz-se com escravatura. que é possível viver sem querer estar a
representar uma história?
A cena da Nora é próxima ao original. .Gepetto: Naturalmente!
Pinocchio não resiste à culpa e remorso de .P: Viver a nossa história em vez de a
ver o seu pai doente. O Pinocchio reduz-se a representar?
uma subjugação. .G: Claro! Tens que viver a tua história,
passares por coisas. Magoas-te aqui sem
É transformado menino de verdade pela fada. querer, recuperas, és bom para alguém,
Arranja um trabalho (Vidal et al., 2016a): depois sentes umas coisas e, se calhar, não
és tão bom para aquele… A vida é assim, não
Fadinhas trazem corda podes ser sempre uma coisa da cartilha. O
e correm atrás do Pinóquio caminho para o que as pessoas dizem que é
a felicidade é ires andando e ultrapassares
.Fada/Inês: Uma nora anda assim à roda as dificuldades que aparecem, percebes?
fazendo força para puxar água. À medida .T: Acho que sim, Pai. E se cantássemos
que anda à roda, a água sobe, a energia e o uma canção?
dinheiro reaparecem na vida desta família Parabéns a vocês...
e os dois retomam o seu humor, a sua .T: Mas então, Pai, o Pinocchio sou eu?
alegria, a sua felicidade. .G/F: Sim.
.G/G: Já estou a sentir... .T: Que cómico que eu era, quando
.T/P: Última volta. era boneco
.T/P: Pai!
.G/G: Filho!
.T/P: Ganhei o meu salário, um mês de
trabalho, um mês de andar à volta da nora,
já nos podemos alimentar.

Os conselhos do Pai quanto às suas escolhas


correspondem à saída proposta pelos artistas.
Pinocchio está contente com a sua conquista,

063 D E R I vA s # 0 3
O resultado O espetáculo acaba com a pergunta: ‘Então,
A equipa criativa realizou um trabalho ilumi- o Pinocchio sou eu?’ Uma pergunta inter-
nado e rigoroso na criação de equilíbrios para rogada sobre a metamorfose kafkiana. Será
entregar aos espectadores um Pinocchio con- que a infância não se torna numa condena-
temporâneo, rico, alegre e simultaneamente ção kafkiana?
trágico, o que exigiu o entendimento das es-
truturas fundas do texto. Para cenário, um circo, com tanto de encan-
tatório como de burlesco. Nada melhor do
O Tiago Barbosa interpretou um Pinocchio que uma arena para ver crescer um Pinocchio
de sentimentos agudos e extremos, verti- reativo e acrobata numa brincadeira pegada
ginosamente rápido, brilhante, alegre pelo com o mundo. A arena resultou num círculo
gozo imenso, e cheio também de compaixão que reforça a ciclicidade dos quadros narra-
e piedade de si mesmo. Essa criação enge- tivos, os movimentos circulares atordoantes.
nhosa, com pesos e contra pesos, preserva do A circularidade da arena sugere cadências de
texto original as personagens e o universo tempos pensados e respiração fazendo a pas-
delirante e hilariante que as rodeia e, simul- sagem de um quadro para o outro.
taneamente, convoca o humor e elegância de
uma inteligência política e problematizado- Programar novas criações comporta vários
ra da tensão que converge para o centro do riscos. Desconhece-se o resultado, por isso
debate contemporâneo. Para lhe dar con- é comum termos de assumir com coragem
traste, Gonçalo Alegria interpreta Gepetto as vulnerabilidades do objeto inacabado.
num registo quotidiano, calmo e próximo. O espetáculo precisava de ser ainda regu-
lado a dois níveis: alguns picos excessivos
E, para surpresa de todos, a fada dos cabelos de over acting que tiravam autenticidade à
azuis afinal eram três: uma crescida, outra a representação e, portanto, proximidade ao
meio caminho e a terceira tão pequena que fez o espectador, e a duração total do espetáculo
mundo e o tempo parar à sua entrada. As fadas que excedia os sessenta minutos. Não tenho
borboleteavam pelo interior do espetáculo. espaço para me alargar aqui sobre o assunto,
mas deixo assinalado: defendo que deve ser
Ainhoa resolve de forma inteligente as pos- feito um compromisso criativo quanto à du-
síveis interpretações psicanalíticas da fada ração total dos espetáculos dirigidos a todas
azul que aparece no texto como uma per- as infâncias, que não deve exceder os 45/50
sonagem ambígua: como cabrinha, irmã e minutos. Assumir esta prioridade é garantir
mãe. Os seus cabelos azuis evocam a figura o desejo de mais arte.
da Virgem Maria (Lurie, 2004), pela cor do
manto azul, seu atributo, sugerindo a remis- Acolhido pelo público
são para uma ultra mulher, que perdoa, re- E quando o risco é tomado nas margens do
preende, corrige, tolera, mostra. que são as propostas dirigidas às crianças, só

064 D E R I vA s # 0 3 ‘ E N TÃ O, O P I N O C C H I O S O U E U ? ’
sabemos se o resultado jogado entre a empatia As três fadas interpretadas por crianças
e a estranheza encontrou equilíbrios quando criam um efeito de espelho no público, levan-
escutamos os espectadores no espetáculo. É do a um reconhecimento entre as crianças
esta escuta que nos devolve a resposta. espectadoras e as crianças fadas. Associou-
se a ideia de fada à ideia de criança.
As diversas camadas propostas nesta criação
abrem múltiplas leituras para todos os es- Crianças e adultos deram ênfases a diferentes
pectadores da sala. Toda a gente reconheceu cenas. Os adultos reconheceram-se especial-
o Pinocchio porque ele habita transversal- mente nas cenas de alusão política. Assim, o
mente todos os espectadores. Todos reconhe- espetáculo trouxe os espetadores a uma expe-
ceram também que ele estava transformado. riência de coincidência, o que vem ao encontro
Todos entraram num processo de troca pelo das minhas opções de programadora. O tema
facto de o cenário se constituir numa arena. educativo era de todos. A proposta tinha a ca-
O público ficou rodeado pela arena. A arena pacidade de atravessar todos os planos de pro-
apanha o público geometricamente: ele é ator- fundidade e, por isso, logrou envolver adultos
doado pelos movimentos circulares e rápidos; e crianças, sem o dualismo clássico.
apanhado pela acrobacia luminosa e burles-
ca. Os espectadores riem das travessuras de Foi de enorme importância os artistas terem
Pinocchio. O ator consegue envergar a perso- escolhido usar palavras ‘difíceis’, para mais
nagem tonta e move até piedade. Pinocchio tratando-se de um texto que todos conhe-
era um adolescente elétrico, tão rápido e im- cem. Havia assim a possibilidade de chegar
parável que rapidamente se torna excessivo. também a todas as infâncias. Numa propos-
Com tanto disparate e peripécia, Pinocchio ta artística performativa, é menos interes-
foi muito exigente para o espectador. Os es- sante a compreensão integral de todas as
pectadores eram ali apanhados também pelo palavras do objeto do que as múltiplas cap-
humor trágico e de repente impressionados turas possíveis da proposta plástica. Cada
pela violência de duas cenas. Ambas tinham espectador escolhe o que quer levar consigo.
que ver com morte: a falsa morte da fada que Os mistérios e curiosidades que ficam abrem
queria dar uma lição a Pinocchio; e a morte espaço para a conversa entre espectadores
do Pinocchio metamorfoseado em burro de nas suas trajetórias pós-espetáculo. Aqui, é
circo e, mais uma vez, salvo pela fada – um raro conseguirmos escutar.
menino de verdade. Numa das conversas
depois do espetáculo, os espectadores mais A apoteose da moralidade do texto e do es-
novos classificaram as cenas como tristes e petáculo é a nora. No início da narrativa
de terror. Este facto abriu o diálogo com os tinha sido o circo, depois o episódio da esco-
artistas no que toca às soluções dessa tensão la aparece como um carrossel de disparates.
dramática. As crianças revelaram-se familia- A circularidade das três figuras – o circo, o
res à violência e à mentira. carrossel, a nora – transmite um sentido

065 D E R I vA s # 0 3
asfixiante e carcerário que deixa claramente Porque poderá dar-nos boas ideias, aqui fica
colocada a questão da liberdade, e sobretudo o manual de instruções para se ser um bom…
dos processos de libertação. Como sair então, deixado pelos artistas na folha de sala do
de dentro do circo, do carrossel e da nora? ‘E então, Pinocchio sou eu?’
Isso coloca perguntas muito diretas à arte e à
escola: repetitividade, hipnose, fechamento.

Todo este processo foi pontuado por situa-


ções de mal-estar: o meu mal-estar relati-
vamente à situação política e económica do
país; o mal-estar dos artistas com o mora-
lismo do texto; algum mal-estar do públi-
co com o registo acre de algumas cenas. E
contudo, os aplausos no final do espetáculo
foram surpreendentemente vivos, o que re-
vela uma tensão. Gerou-se tensão. A progra-
madora fica, portanto, satisfeita. A nora não
tem de ser o destino, nem das pessoas, nem
da escola, nem da arte.

REFERêNCIAS B I B L I O G R A F I A C O N S U LTA DA

Apostolidés, Jean-Marie (1989). Pinocchio ou Wallenstein, Madalena (2016a). O caminho da Fábrica


l´education au masculin. Littérature, 73(1), 19-28 das Artes. Em Nós Pensamos Todos em Nós (pp.22-42).
Lisboa: Fundação Centro Cultural de Belém
Collodi, Carlo (1993). As Aventuras de Pinóquio. Lisboa:
Editorial Caminho (trabalho original publicado em 1883) Wallenstein, Madalena (2016b). Um sonho da
programadora: entre o privado e o público. Acedido
Lurie, P. Alison (2004). Pinocchio: You think you know em http://ccbfabricadasartes.blogspot.pt/2016/03/
him?? No You Don´t!!! The New York Review of Book, 51(11) um-sonho-da-programadora-entre-o.html
Martins, Catarina (2016). (Im)possibilidades de um
devir: Educação Artística que se Pensa. Em Nós
Pensamos Todos em Nós (pp. 200-203). Lisboa:
Fundação Centro Cultural de Belém

vidal, Ainhoa; Alegria, gonçalo; Barbosa, tiago &


Rosado, Inês (2016a). E então, Pinocchio sou eu? [texto
dramático do espetáculo apresentado em fevereiro de
2016 no CCB – Fábrica das Artes, Lisboa]

vidal, Ainhoa; Alegria, gonçalo; Barbosa, tiago &


Rosado, Inês (2016b). E então, Pinocchio sou eu? [Folha
de sala do espetáculo apresentado em fevereiro de
2016 no CCB – Fábrica das Artes, Lisboa].

066 D E R I vA s # 0 3 ‘ E N TÃ O, O P I N O C C H I O S O U E U ? ’
M A N UA L D E I N S T R U ÇÕ E S PA R A S E R U M B O M …

PINÓQUIO G E P E T TO FA DA
Não ter medo Querer ser pai Estar sempre pronta
Acreditar que viver a vida Cuidar do quarto da saudade A boa escolha nem sempre
é melhor que estudá-la é a da facilidade

Estar atento aos pequenos Observar como o filho Ser má para alguém pode
acidentes – são estradas descobre o seu interior ser um ato de lealdade
de sentido único em direção
ao desconhecido

Não tentar voltar para trás: Dar sem esperar receber Oferecer: surpresa, medo
é inútil e felicidade

Ter a certeza de que, seja qual A fome é menor quando Estar mais perto das margens
for a figura paternal escolhida, a barriga do filho está saciada
é sempre um bom porto

ser exímio a dar desculpas Estar pronto para a próxima Descansar de olhos abertos
aventura

Não esquecer que, antes ser um homem de mil ofícios De bruxa a fada, só há uma
de se ser humano, se foi corcunda de distância
inúmeros animais

Não estar nesta vida Aprender a sofrer Não esquecer de perguntar


para sofrer continuamente, ‘para que
serve tudo isto?’

A mentira quando faz os olhos A mentira, por vezes, A mentira só dói quando
brilhar é sempre boa é cúmplice do caminho preenchida de escuridão

Saber viver na ribalta Saber viver na sombra Saber viver na pele de outrem

0 67 D E R I vA s # 0 3
068 D E R I vA s # 0 3 ‘ E N TÃ O, O P I N O C C H I O S O U E U ? ’
DR AW I N
Drag to model

RICARDO PISTOL A
i2 A D s ( I N s t I t u t E O F I N v E s t I g At I O N I N D E s I g N , A R t A N D s O C I E t Y )
F B Au P ( FAC u Lt Y O F F I N E A R t s O F t H E u N I v E R s I t Y O F P O R tO)

t H I s s t u DY I s s u P P O R t E D
BY t H E P O R t u g u E s E FO u N DAt I O N
FO R s C I E N C E A N D t EC H N O LO gY

069 D E R I vA s # 0 3
RESUMO A B S T R AC T
Este ensaio visual apresenta o processo de This visual essay presents the experimenta-
experimentação de um material de desenho tion process of a drawing material (ArtGraf
(ArtGraf Nº1) desenvolvido no contexto de Nº1) developed in the context of a doctoral
um projeto de doutoramento em educação project on artistic education. Draw In de-
artística. Draw In define o campo de acção fines the field of action where to draw (as a
onde to draw (como verbo) é abordado como verb) is approached as present action; and,
uma ação presente; e drag é o processo que drag is the process that operates through
opera através da proposição to model. Tendo the proposition of to model. Taking the most
como ponto de partida os procedimentos de common drawing procedures among the
desenho mais comuns entre os participantes participants in this study Draw In is about
neste estudo, Draw In relaciona-se com a ex- the researcher’s experimentation in the stu-
perimentação levada a cabo pelo investigador dio context. Thus, it explores the material’s
no contexto de atelier. Deste modo, explora physical and mechanical proprieties and
as propriedades físicas e mecânicas do ma- presents its behaviour on different paper
terial e apresenta o seu comportamento em surfaces. The images show the experimen-
diferentes superfícies de papel. As imagens tation’s outcomes of the action and the con-
apresentam os resultados da experimenta- nection with the text is made through those
ção e a conexão com o texto é estabelecida methodological concerns that arise during
através das preocupações metodológicas que the research process.
surgiram durante o processo de investigação.

070 D E R I vA s # 0 3 DR AW I N : DR AG TO MODEL
1. DwA is related to the development of an art 2. Artgraf Nº1 is a smooth, kneadable graphite putty
material and to its use, and also to the theoretical that users can shape according to their specific
approach that evolves the notions of to draw (as a drawing needs. It can be used directly from the package
verb) and authority (as a noun). Draw and authority or mixed with water. Artgraf Nº1 is suitable for small
are both approached as a set of practices. Draw is and large scale drawings, not only allowing control, but
construed as an action related to the interaction also a fast and bodily implicated action. A wide range of
between subject and material, and is perceived as a chiaroscuro and textures can be obtained by saturation
form of exertion by pulling, dragging or extracting. or dissolution, and using different paper supports.
Draw is characterized by interdisciplinarity and is an
experimental medium where visual ideas are expressed
3. Bourdieu (1991, pp. 164-165) approaches the notion
through the generation of traces that make visible
of symbolic system as instruments for knowing and
a past event or something that has been present.
constructing the world of objects. He presents these
Authority is construed as a power relation present in
instruments as structuring structures, structured
scenarios of interaction. DwA is made up of scenarios
structures and as instruments of domination.
(Draw Along, Draw In, Draw Out) and is itself a scenario
in communication with others, implying a constant
movement between the notions of draw and authority;
thus unveiling tensions in the process. This project
is being conducted through three scenarios where
questions about production, availability and possibility
are approached. the drawing scenarios are the
evidence of these movements: they constitute the
space between draw and authority. they are the bearing
of the interaction, which occurs in each scenario that
is construed through the notion of authority, which is
perceived as the force bounding the research.

071 D E R I vA s # 0 3
4. Authority in the Draw Along stage is perceived as the
force of a group of people joined by a common activity,
the practice of drawing. This notion of authority entails
the positioning of each participant, including the
researcher. social representations play a key role in the
work possibilities that present themselves in the art
studio as a learning space. The movements between
with or without authority position the researcher in a
context of reflexive practice, which alternates between
action and understanding.

07 2 D E R I vA s # 0 3 DR AW I N : DR AG TO MODEL
073 D E R I vA s # 0 3
074 D E R I vA s # 0 3 DR AW I N : DR AG TO MODEL
075 D E R I vA s # 0 3
SAUNDERS
WATERFORD
Classic
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076 D E R I vA s # 0 3 DR AW I N : DR AG TO MODEL
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07 7 D E R I vA s # 0 3
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078 D E R I vA s # 0 3 DR AW I N : DR AG TO MODEL
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07 9 D E R I vA s # 0 3
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080 D E R I vA s # 0 3 DR AW I N : DR AG TO MODEL
4. Drawn conclusions

0 81 D E R I VA S # 0 3
RefeRences

Bourdieu, Pierre (1991). Language and Symbolic Power.


Cambridge: Polity Press.

Kant, Immanuel (2002). Critique of Practical Reason.


Cambridge: Hackett Publishing Company, Inc.

Fromm, Erich (2001). The Fear of Freedom. London:


Routledge.

Baldacchino, John (2014). Educing Art’s Indescribable


Practice. Four Thesis on the Impossibility of Arts
Research. In C. Martins, Catarina & Paiva, José (Eds.)
Derivas #2. Porto: i2ADS – nEA, 97-105.

082 D E R I VA S # 0 3 DR AW I N : DR AG TO MODEL
Lab Color Sense:
a new approach
to color

SUSANA RIBEIRO
i2 A D s ( I N s t I t u t E O F I N v E s t I g At I O N I N D E s I g N , A R t A N D s O C I E t Y )
F B Au P ( FAC u Lt Y O F F I N E A R t s O F t H E u N I v E R s I t Y O F P O R tO)

083 D E R I vA s # 0 3
A B S T R AC T RESUMO
This paper summarizes and discusses Este artigo resume e debate o processo que
the process that occurs in human percep- ocorre na perceção humana: impressões
tion: sensory impressions, organizing pro- sensoriais, processo de organização e pro-
cess, and interpretative process of Visual cesso interpretativo da Percepção Visual e da
Perception and Dermo-Optical Perception Percepção Dermo-Óptica (DOP). Estudantes
(DOP). Painting students of Faculty of Fine de pintura da Faculdade de Belas Artes da
Arts of the University of Porto (FBAUP) were Universidade do Porto (FBAUP) foram convi-
invited to analyze their cognitive percep- dados a analisar a sua perceção cognitiva du-
tion during the contact with four different rante o contato com quatro diferentes cores
chromas in the context of painting practice. num contexto de prática da pintura. Duas
Two approaches were used for analyzing the abordagens foram utilizadas para analisar os
results of the experiment: questionnaires resultados do experimento: questionários re-
related with Visual Perception / DOP and lacionados com a perceção visual / DOP e uma
a video record discussion after the experi- gravação em vídeo de uma conversa após os
ments. This article attempts to explore all experimentos. Este artigo tenta explorar as
the emotion that the human body can ap- sensações que o corpo humano pode apreen-
prehend when in contact with a single-color. der, quando em contato com uma única cor.
Results of this study show that, generally, Os resultados deste estudo mostram que, em
there are different emotions caused by these geral, existem diferentes emoções causadas
two kind of perceptions: Visual Perception por estes dois tipos de perceção: Perceção
and DOP. It is expected that this work can Visual e DOP. Espera-se que este trabalho
assist artists to achieve a better understand- possa ajudar os artistas a alcançar uma me-
ing of color and themselves. lhor compreensão da cor e de si mesmos.

KEY WORDS PA L AV R A S - C H AV E
color cor
human body corpo humano
cognitive education educação cognitiva
self-reflection auto-reflexão
painting pintura

084 D E R I vA s # 0 3 L AB COLOR SENSE


Introduction There are many discussions about training
This research emerges from a set of reflec- critical and participative students, but we
tions that have been developed along the can not forget that it is important to cre-
practice of artistic painting and pedagogical ate spaces for reflection, freedom and au-
practice in the last fifteen years. Color is gen- tonomy in the practice of art education for
erally the most immediately visible aspect of this to happen. This study aims to promote
painting and thus an essential aesthetic con- a reflective individual understanding of the
cern for many artists. The fascination with role of color in a system of interaction and
the dynamics of cause/effect, repulsion/ dialogue with the body during the creative
attraction that exerts color, led us to an in- process. The project is focused on a cyclical
evitable reflection on the dialogue between process of action-reflection-action and aims
body and color in which the painting will to promote consideration of educational
be the medium of production of knowledge. alternatives in the field of fine arts. In this
The awareness of interactive behavior im- perspective, one can build a heterogeneous
plies production of knowledge, self-knowl- knowledge, turning the school into a space
edge, development of reflective processes, that goes beyond than simply transmitting
in order to understand which lies beyond knowledge (Freire, 2003, p. 21). Therefore
interaction between the body and the color it is essential that schools recognize their
through cognitive sensitivity. This project students’ right to their own experiences
is based on a collective process of painting and perceptions. Freire (2001, p. 42) asserts
practice and introspection about the color that ‘what is needed is to enable that, turn-
in which the union body/mind/spirit is the ing on itself, through reflection on practice,
fundamental basis of this experiment. the naive curiosity, perceiving themselves
as such, ultimately become critical’. Only
The dynamic that color arouses in the human through a reflexive activity on the process
being raises more questions about the re- of training and learning, is the educator al-
lationship between body, mind and spirit, lowed to build their knowledge, crossing the-
which we believe are not only a color reflec- oretical and practical experiences. Donald
tion as a stimulant element in the translation Schön (2000, p. 33) proposes a reflection in
of emotions based on cultural memories and action, defining it as the process by which
facts, but also in neurophysiologic and DOP teachers learn from the analysis and inter-
processes that may trigger certain cognitive pretation of their own activity, where the
perceptions. The value of knowledge of this practice of reflection becomes a tool for de-
raw material used in painting, as in other velopment and action of thought. The focus
form of art expressions, is crucial for a real of this paper is the basic principle of reflec-
understanding of the true greatness that color tive learning as a critical role of emerging
has for each individual that is exposed to it. challenges to the act of knowing in action.

085 D E R I vA s # 0 3
A world of natural and cultural phenomena the prefrontal cortices of the brain in which
waiting to be seized exists outside of us. The they receive and integrate the signals sent by
interaction with all that exists outside of us the body. This body landscape is temporally
constitutes an objective and sensitive world. juxtaposed to the perception of something
Only when human being acts on internal that is not part of the body. The state of the
structures, he can have a new knowledge body is accompanied and complemented by
through action to try to understand these a way of thinking. In this perspective emo-
new phenomena. However, for this reality tions and feelings are the sensors for the
to happen, it is necessary that human be- meeting between nature and circumstances.
ings act with knowledge that encompasses Unlike traditional scientific opinion, feelings
previous ones, diversifying and transform- are just as cognitive as any other perception,
ing the way of seeing the world of color. Then they are the result of a physiological organi-
we would say that, in a creative context, the zation ‘that transformed the brain in the
human being can raise their conduct pro- captive audience of theatrical activities of
ducing knowledge of his interaction with the body’(Damásio, 1994, p.16). The human
color through painting. It is during this in- brain and the rest of the body constitute an
teraction that the body encounters with self indivisible organism, forming an integrated
and with its destination: self-knowledge. set by biochemical and neurological cir-
cuits that interact and regulate each other;
Visual Cognition the body interacts with the environment as
and Dermo-Optical Perception whole, physiological and functional opera-
The process of seeing and understanding tions and not just in the brain.
involves the basic analysis of shapes, forms,
colors, contrast and movements. These are Our eyes perceive only a limited part of the
sensed by the peripheral nervous system lo- electromagnetic spectrum which, in day-
cated in the eye. Light energy is transformed light, reveals to us the colors and shapes of
in to neural energy; electromagnetic signals our environment. The skin is sensitive to a
in the form of physical energy are trans- wider range of this spectrum, as shown by
duced to electrochemical signals and passed tanning due to the ultraviolet radiation of
along the visual cortex for further process- the solar spectrum or the sensation of the
ing. It is during this latter stage that the accompanying heat due to infrared radia-
visual recognition and higher- order pro- tion. However, even if invisible, this radiation
cessing takes place (Solso, 1994, p.45). surrounds us totally and it would be sur-
prising if it had no influence on our actions.
According to Damásio (1994, p.18), feelings Electroencephalographic recordings have
can be confined in mental terms, mental sys- proved that DOP is not located in the vision
tems in which emotions and feelings not only center of the cortex in the rear part of the
include the limbic system, but also some of brain, but in the centers of tactile and thermal

086 D E R I vA s # 0 3 L AB COLOR SENSE


sensation. They also showed that every sub- suggesting that photosensitive cells on
ject had the same electroencephalographic the skin may be used to allow blind people
results, which confirms that DOP is inherent to ‘see’ to a limited extent in a process that
to every human being (Campbell, 1998). is termed ‘sensory substitution’. However,
most of the available publications provide
It should be pointed out that the word ‘der- phenomenological findings rather than
mal’ does not mean tactile in the sense of focus on mechanisms and capabilities of
directly touching a surface, as the colored coetaneous vision (Bach, 2003, pp. 285-296).
surface can cause reactions even if it is
under a transparent or opaque screen and Lab Color Sense
the subject is a certain distance from it. It This study takes into account emotional and
can therefore be assumed that there are physiological experimental approaches to
receptors in the skin for this information, cognitive perception. These are united with
which is produced by the infrared radia- the traditional visual literacy approaches
tion of colored surfaces. This term ‘dermal’ used in painting. With such a framework, ap-
is therefore justified and it can explain why plied to color, painting students were dealing
subjects who become aware of their dermo- with color paintings that can differentiate
optical reactions express themselves in a concepts related to chromatic visual literacy
tactile language by qualifying one color valid as ‘laws’ from those concepts that can-
smoother or warmer than another. It is in- not be generalized to all human beings. In
deed necessary to distinguish unconscious the 19th century, perception was studied as
dermo-optical effects from their conscious a passive stamping done by exterior stimuli
perception by differential, but not absolute, on the retina. It would then reach the visual
subjective impressions. cortex, the zone of the occipital cortex that
receives stimuli generated in the retina, re-
There are a number of reports on the phe- sulting in an identical image (isomorphic) as
nomenon of coetaneous vision in humans. the primary stimulus. Modern psychology
In particular, Bongard & Smirnov (1965) refutes this notion and views perception as
provides quantitative data on the ability of a an active process that involves the search for
certain young woman to ‘see’ images using corresponding information.
only the fingers of her right hand. It reports
also that the subject demonstrated an ability Telford (1970) differentiated sensation from
to detect colors, to resolve patterns in near- perception in that the first comprises a
contact with her fingers with a resolution of simple conscience of the dimensions of ex-
about 0.6 mm and to determine simple pat- perience, whilst perception implies the sen-
terns within a maximum distance of 1-2 cm sation and the meanings that are attributed
from the fingers (Gardner, Bongard & Zavala, to the experience. Thus, for these authors
1965-67). There are reported experiments (Telford & Gibson, 1979), the determinants

0 87 D E R I vA s # 0 3
of perception are: context, constancy, dis- This action research attempts to abstract
tance, perspective, interposition, brightness, oneself from their own experience, wherein
position, direction, accommodation, conver- the methodological process was to investi-
gence motivation, emotion, and personality. gate how students create their own meth-
odology which led their actions/experiences
Methodology with color. It is a circular movement, an evo-
Conceived as a case study, this research lutionary spiral which results in knowledge
aimed to investigate the dialogues between increasingly comprehensive and extensive.
body and color during the creative practice In this process, the methodology, as an indi-
of painting, through self-experience and vidual creation, is not replaceable or teach-
self-analysis. This paper aims to address this able, instead it consists of procedures that
action research through experiences in the generate a methodology. The importance of
lab color, involving painting students (aver- this project is assigned to the experience of
age age 23 years old) of FBAUP. The students color by painting made by students, in order
were given four color sessions: Blue, Green, to interact with the phenomena and try to
Red and Yellow - one session of 2h30m for understand it. For this experiment a path
each color. The research about observa- is necessary, which is built as we articulate
tion and analysis occurred during a seven our own relational procedures with color
weeks period, between April and May of during the action of painting. This fact is
2015. The researcher’s attitude towards this well exploited by Weber and Mitchell (1999),
study comes down only as a mediator and and quoted by Hernández (2008, pp. 85-118).
researcher in action of this dialogic process: The analysis of the reflexivity process which
observe students using sensory features as the artistic self-expression reveals aspects
they meet and perceive color, and they com- of self and puts us in full connection with
municate how they process, analyze and cat- our emotions. This gets us to a multisensory
egorize the color experiment. The processes response that gives rise to a type of learning
of interaction/observation/recording of the at the level of the senses. In this direction,
phenomenological analysis of perception questioning the accuracy required to scien-
related to color in this painting practice con- tific investigations when applied to educa-
text, was recorded with no other ambition tion it is possible to consider principles and
than to describe these process as accurately procedures of artistic activity may trans-
as possible, based on both: student’s verbal form educational practices.
analysis and descriptive texts. All sessions
were photographed and video recorded.

088 D E R I vA s # 0 3 L AB COLOR SENSE


DANIEL A RIBEIRO
ANA COELHO

C 79 % M 0% Y 9 4% K 0% C 0% M 0% Y 10 0 % K 0%
F I L I PA tOJ A L

tIAgO REIs

C 10 0 % M 0% Y 0% K 0% C 0% M 8 6% Y 70 % K 0%

Figure 1
Color palette on Lab Color sense experience.

089 D E R I vA s # 0 3
Figure 2
students in the classroom during the DOP
in YELLOW, gREEN , RED and BLuE experience

090 D E R I vA s # 0 3 L AB COLOR SENSE


Subjective impressions
between visual and DOP

The first phase implied technical evalua- The results of the experiment were analyzed
tions using instruments and objective pa- and used to gather:
rameters, in order to access the emotions
and cognitive symptoms of the students Understanding of the correlation between
during painting practice. This analyses was expression emotions and cognitive symp-
mainly based on observation of the dynamic toms in each color.
between students and color performance,
through the following instruments: Dermo-optical subjective impressions; stu-
dents were invited to participate in this
Offset paper, temperas and brushes. experience in order to investigate DOP in
Questionnaire. contrast with the Visual Perception; they
Video and photo cameras. were asked to close their eyes during this
experience.
This case was aimed at collecting reports
about the cognitive perception of the stu- Critical insights based on the social expe-
dents during painting practice and after. In rience of color perception during paint-
particular the study comprised: ing practice for optimizing and improving
other ways of feeling and seeing color.
A color based survey: an experimental vis-
ual stimulation where twelve participants
(10% male and 90% woman) were asked
questions about visual and DOP, the last
one under indirect observation.

A multimedia based survey: an experimental


survey based on four videos and photographs.

0 91 D E R I vA s # 0 3
Conclusions Student A
The study was useful to derive an overview DOP: ‘I felt that the right hand which was lo-
of a global human perception of color dur- cated at a distance of the most intense blue was
ing painting practice. Generally colors are thermally hotter than the other hand which
perceived only by visual perception. This was a the same distance over the withe table
combined with all the literature related to top. Thereby maintaining longer than the other
color that students consume, gives them a hand, I felt the presence of something strong
perspective of what they should feel in the and intense and too hot, compared for exam-
presence of a certain color. In this regard, ple with the white table. Strength and feeling
we explore other ways of seeing and feeling of pressure’. (Fig. 2). Visual Perception: ‘cool
color. The unexpected and unconventional color, deep, transparent, associated with mel-
experiences of perception were perceived as ancholy, serenity, purity.’ (Fig. 1).
enriching and animated the painting prac-
tice. After these experiences students have a Student B
stronger relation with color. DOP: ‘By placing hands on the color blue and
with eyes closed, I have the feeling of a cool
They found in this experiment a contradic- breeze passing through the hands. Comparing
tory place, sometimes they felt it was pleas- the hand on the blue painting and the other
ant and interesting, and, occasionally they out of the leaf over the white table, the hand
were uncomfortable with this sensorial and that was on blue felt this breeze, unlike the
innovative experience. On the other hand, other that was out. I felt also some pricks from
the possible discovery of a new and personal time to time in the hands.’ (Fig. 2). Visual
feeling of color produced a lack of identity Perception: ‘A color that calms, which is as-
between the students and the color. This sociated to nature (sea, sky). It is a cold color
subjective analysis was run in order to un- that creates an impact on who see her’ (Fig. 1).
derstand the dynamic between color and the
skin perception. Millions of skin receptors Student C
are used to capture the vibration of the re- DOP: ‘I put my left hand up on the dark blue
flected light of color. In relation to this, stu- part of the painting, while the right hand was
dents were asked to describe DOP in a verbal on a very transparent and clear blue part. I felt
opinion after the whole experiment. the left hand without changes, while the right,
past seconds started heating. To be sure, i put
Some examples how students defined the my hands on the cheeks and my right hand was
color blue in the DOP and Visual Perception slightly warmer than the left’ (Fig. 2). Visual
experience as: Perception: ‘Calm, deep, introspective, ab-
sorbs’ (Fig. 1).

0 92 D E R I vA s # 0 3 L AB COLOR SENSE
The research shows that this exploration of
the perception process will provide a per- REFERENCES
sonal point of view/sense of color and show Bach-y-Rita, Paul; Tyler, Mitchel E. & Kaczmarek, Kurt.
other ways of exploring and stimulate the A. (2003). seeing with the Brain. International Journal
senses. Insights from this research suggest on Human-Computer Interaction: Special Edition on
that perception of color should be focused on Mediated Reality, 15, 285-296.
individual sensations instead of being based Bongard, Mikhail. M. & Smirnov, M. S. (1965). The
on psychological theories about colors that ‘cutaneous vision’ of R. Kuleshova. Fed. Proc. Transl.
defined these in a rigid and directed way. Suppl. Journal PubMed, 24, 1015-1018.

Campbell, scott s. & Murphy, Patricia J. (1998, 16


The student’s self analysis was crucial to un- January). Extraocular circadian photo transduction in
derstand how these two kind of perceptions humans. Science, 279, 396-399
can coexist in order to complement knowl- Damásio, António R. (1994). O Erro de Descartes –
edge about color. DOP has to be considered Emoção, Razão e Cérebro Humano. Lisboa: Publicações
as positive and important in order to har- Europa América
monize in a coherent and complete cycle of Freire, Paulo (2001). Pedagogia da Autonomia: saberes
perception and self knowledge. necessários à prática educativa. (20 ed.). são Paulo:
Paz e Terra
Research limitations Freire, Paulo (2003). Educação como prática da liberdade.
and further study implementations (27 ed.). Rio de Janeiro: Paz e Terra
The study should involve a wider sample of gardner, Martin (1966). Dermo-optical perception: a
participants in the experience Lab Color peek down the nose. Science, 151, 654-657
Sense, in order to gather wider statistical
results and also more information on cogni-
tive perception. More than this, the indirect gibson, James (1979). The Ecological Approach to Visual
surveys based on images and videos, should Perception. Boston: Houghton-Mifflin
be complemented with more extended and Hernández, Fernando (2008). La investigación basada
individual interviews for a bigger feedback en las artes. Propuestas para repensarla investigación
about the color experience. Further imple- en educación. In Educatio Siglo XXI: Revista de la
Faculdade de Education, IssN-e 1699-2105 (26)
mentation of this study would be the appli-
cation of the Lab Color Mitchell, Claudia & Weber, sandra (1999). Reinventing
Ourselfs as Teachers: Beyond Nostalgia. London:
Falmer Press
Sense experience on other national and inter-
national Art Schools, in order to provide stu- schön, Donald A. (2000). Educando o profissional
dents with a new approach about color and to reflexivo: um novo design para o ensino e a aprendizagem.
Porto Alegre: Artmed
elaborate guidelines for educational projects.
solso, Robert L. (1994). Cognition and the Visual Arts.
London: MIt Press/Bradford Books

telford, Charles (1970). Psicologia. são Paulo: Cultrix

Zavala, Albert; Van Cott, Harold P.; Orr, David B. & Smal,
victor. H. (1967). Human dermo-optical perception:
colors of objects and of projected light differentiated
with fingers. Perceptual and Motor Skills, 25, 525-542.

0 93 D E R I vA s # 0 3
094 D E R I vA s # 0 3
Homo Musicalis
Retrato do
Homem-Músico
com vista para a Escola
e para o Mundo,
entre o proviso
e o improviso,
entre o determinado
e o indeterminado
MÁRIO AZEVEDO
F B Au P ( FAC u L DA D E D E B E L A s A R t E s DA u N I v E R s I DA D E D O P O R tO)

RUI LEITE
F B Au P ( FAC u L DA D E D E B E L A s A R t E s DA u N I v E R s I DA D E D O P O R tO)

0 95 D E R I vA s # 0 3
RESUMO A B S T R AC T
Este artigo pretende observar as razões que This article aims to observe the reasons that
levam à marginalização e ao afastamento lead to marginalization and early removal of
precoce dos conceitos de improvisação, inde- improvisation, indeterminacy and chance
terminação e acaso dos currículos escolares concepts of school curricula and teaching
e métodos pedagógicos ligados às atividades methods related to education activities and
de educação e expressão musical. musical expression.

Partindo de uma breve análise sobre os pro- Starting from a brief analysis from the mu-
cessos de ensino/aprendizagem da música sical teaching / learning processes, focusing
mais em evidência nos últimos cem anos more on the last hundred years, we will try
tentaremos pôr em comum, a quatro mãos e to lay bare, in four hands and two voices, im-
a duas vozes, em jeito de impromptu, o por- promptus style, the reasons why, in its evo-
quê de, na sua caminhada evolutiva, o Homo lutionary walk, Homo Musicalis vacillated
Musicalis vaciar entre proviso e improviso, between proviso and improviso, between
entre determinado e indeterminado e entre determinate and indeterminate, and be-
acaso e necessidade. tween chance and necessity.

Em jeito de balanço crítico evidenciaremos In a critical swing we will urge the need to
a urgência de reforçar a presença dos concei- strengthen the presence of the concepts
tos supracitados enaltecendo assim o aberto above as well extolling the open that inhab-
que nos habita e, por razões de força maior, its and, for reasons of force majeure, a better
compreendermos melhor do que falamos understanding of what we talk about when
quando falamos de Homo Musicalis. we mention Homo Musicalis.

PA L AV R A S - C H AV E KEY WORDS
indeterminação indeterminacy
improvisação improvisation
acaso chance
aberto open
Homo Musicalis Homo Musicalis

096 D E R I vA s # 0 3 HOMO MUSICALIS


Constructo Tudo isto, obviamente, para evitarmos o cho-
que de nos vermos diminuídos, mais fechados
A escrita, e a música também, e embriagados em currículos dignos de serem
procuram o que não se inscreve. considerados meras aporias.
Jean-François Lyotard, O Inumano
E, também, para que o Homo Musicalis se
confronte consigo próprio e dê conta que, o
que dá força à sua existência é o que ele esco-
Enquanto educadores e pedagogos musicais lhe para preencher o seu pensamento, o que
parece-nos fundamental dar conta do con- decide fazer com o seu trabalho e o que, em
forto que é imaginar a improvisação, o acaso aberto, opta ter por horizonte.
e a indeterminação como parceiros fundacio-
nais e seguros para protagonizarem o aberto Por ora, tomamos a responsabilidade e a em-
que nos habita. presa de improvisar, a quatro mãos e a duas
vozes, sobre a presença destes elementos
Certos de que esta constatação enaltece as constituintes da música em contexto escolar
respostas a dar à singularidade de cada um, e de lhes outorgar o direito de projetarem no
espantados e consternados ficamos quando Homo Musicalis a vontade de o ver como um
os pressupostos anunciados raras vezes são ser provido de mundo, tornando-se um ser
expostos nos bancos de escola tal como mui- presente e fazedor.
tas vezes o são nas mesas de café, ou na azá-
fama do dia-a-dia. E, porque não estamos sós no que fazemos
e pensamos, convocamos Ana Lúcia Frega
A que se deve tal desfasamento? Por que mo- (1935-…) para nos ajudar a observar e ana-
tivo a improvisação, a indeterminação e o lisar os currículos e os métodos de ensino/
acaso ficam, a maioria das vezes, na margem aprendizagem da música que hoje habitam a
e, quase sempre, afastados desses mesmos escola que temos.
currículos mesmo quando neles estão visí-
veis e declarados? Aqui passaremos em revista autores – Émile
Jacques Dalcroze (1865-1950), Carl Orff (1895-
Deste questionamento resulta que, quando 1982), Maurice Martenot (1898-1980), Justine
viajamos pelo território do sensível, nos sin- Ward (1879-1975), Edgar Willems (1890-
tamos comprometidos com a tentativa – ora 1978), Zoltan Kodály (1882-1967), Shinichi
improvisada, ora indeterminada – de dar- Suzuki (1898-1998), John Paynter (1931-2010),
mos uma resposta efetiva ao apelo polifónico Murray Schafer (1933-…), Pierre Van Hauwe
da vida, sendo para isso necessário tentar- (1927-2009), Jos Wuytack (1935-…) e Edwin
mos compreender as circunstâncias que nos Gordon (1927-2015) – para neles detetarmos
levaram a afastar esses conceitos da escola. ocorrências, evidências e semelhanças que

0 97 D E R I vA s # 0 3
nos permitam uma leitura contextualizado- da improvisação e do acaso no horizonte
ra, crítica, e quiçá singular, das suas manifes- atual dos currículos.
tas intenções.
Postas assim as coisas, montaremos um ce-
Chamaremos a este momento de Panótico nário que evidencie a possibilidade de de-
Musical, homenageando com esta designa- clarar o Homo Musicalis, ao lado ou mesmo
ção o olhar de 360º que nos propôs o filósofo dentro do Homo Sapiens Sapiens, como um
e jurista inglês Jeremy Bentham (1748-1832), aberto que cultiva o improviso, o acaso e a
sem a suposta carga inquisitória requisitada indeterminação como ingredientes consti-
por si na concretização de uma visão pers- tuintes da sua alquimia de vida.
petivista sobre as ações do homem, e en-
quadrando o Homo Musicalis nos bancos da Talvez assim possamos retratar hoje o Homo
escola a olhar para o mundo. Musicalis e o consigamos aceitar profanando
os princípios de progresso e de desenvolvi-
Possivelmente será aqui que poderemos ten- mento tão caros a uma visão reducionista e,
der a acreditar que os currículos mais não deste modo, rumar à sua pluralidade.
são do que evidências da vigilância que nos
tolda a liberdade, nos manieta e nos trans- Panótico Musical
forma em atores/vítimas ‘voluntárias’ do
inferno do igual, parafraseando Byung-Chul O mundo é percorrido
Han (2014, p.12). por diferentes olhares.
Eugénia Vilela, Do Corpo Equívoco, 1998
Depois rumamos juntos a uma nova etapa
– Darwin Musical – onde teremos a opor- O ver sem ser visto protagonizado por Bentham
tunidade de observar a evolução do Homo no seu Panopticon é o conceito que suporta
Musicalis no Plistoceno e de tentarmos a nossa intenção em observarmos o Homo
perceber se o improviso, o acaso e a inde- Musicalis sentado no banco da escola e a
terminação não terão ficado preteridos, ou olhar para o mundo. Dizemos mundo por
obstaculizados, por quaisquer motivos este ser um conceito humano ajustado à
alheios à sua vontade, ou ‘apenas’ por pesa- compreensão que temos da diversidade do
rem negativamente na balança do custo-be- real e num formato que ativa em nós a cons-
nefício da evolução humana. ciência simbólica que temos de nós mesmos.
E dizemos escola, por nela encontrarmos
Por fim, na fase Câmara Lúcida, glosando um espaço e um tempo capaz de fazer da edu-
Roland Barthes, tentaremos pôr em jogo o cação artística, na qual a música se inscreve,
esforço agambeniano do ato de profanar, per- um exercício reflexivo sobre as narrativas e
mitindo a nós próprios enaltecer o bom que as roupagens que vão vestindo quem somos
seria da presença efetiva da indeterminação, e o que fazemos.

098 D E R I vA s # 0 3 HOMO MUSICALIS


O panótico é-nos útil na medida em que se Sem recorrermos a nenhuma técnica apura-
manifesta como pensamento, como discur- da de observação, mas atentos ao desenro-
so naturalizado na sociedade disciplinar do lar das ações pedagógicas perpetradas por
séc. XVIII, e agora em pleno séc. XXI nos estes autores no terreno, constatamos a na-
oferece a possibilidade de fazermos a crítica turalização de um discurso comum a todos
ao olho-que-pensa-e-corrige que habita e eles a que não será alheio um certo tipo de
emerge dos currículos escolares, impregna- pensamento ocidental, mesmo em Suzuki
dos que estão de visões messiânicas, linea- conotado com a imagem sobre o homem que
res e progressivas do homem-que-aí-vem. se constrói, linearmente, do mais simples
para o mais complexo e da plena consagra-
É aqui que poderemos tender a acreditar que ção deste homem idealizado enquanto per-
os currículos e os métodos observados por sonagem universal.
nós mais não são do que evidências da vigilân-
cia que a sociedade teima em realizar sobre Esta visão, que acompanha os diferentes au-
nós, toldando-nos a liberdade, manietando tores, é, por assim dizer, uma visão teleológi-
e transformando-nos em atores/vítimas do ca e comete o erro, já muitas vezes assinalado
inferno do igual. por Hannah Arendt, de reduzir o homem a
um ser idealizadamente único e universal.
Porque dizemos isto?
Ora, como sabemos hoje, não há um homem
Do alto da nossa torre de vigilância – ima- único. Há sim, homens e no plural.
ginamo-la localizada no centro do panótico
arquitetural do Hospital Miguel Bombarda Da nossa torre de vigia também demos conta
(Lisboa) em visita ficcionada por nós – pe- da subscrição coletiva subjacente às ideias de
dimos emprestada a leitura que Ana Lúcia progresso e de desenvolvimento tão caras a
Frega (1997), fez recentemente sobre as me- todos estes autores e fazedores de currículos.
todologias e currículos musicais mais pos-
tos em cena ao longo do séc. XX . Herdeiros, e apoiados na limitação e na violên-
cia do discurso iluminista, encontramo-los a
Esta leitura, muito comprometida com preo- produzirem discursos normativos profusa-
cupações sobre o ensino e a aprendizagem da mente habitados por múltiplos tiques de go-
música em contextos escolares, levou-nos a vernação sobre a criança, o aluno e o homem.
encontrar autores, pedagogos e professores
que, sob a lupa fina de Frega, construíram Uma outra atitude comum a estes autores é a de
um universo extenso de cenários pedagó- imaginar a presença da música na escola, nos
gicos e curriculares que moldaram o fazer currículos e nos programas como tábua de sal-
música nas escolas. vação – acto salvífico – imprescindível para que
o lugar do homem no mundo resulte em pleno.

099 D E R I vA s # 0 3
Isto a par de outras ações diretas a serem per- tido por introdução à improvisação mas, ao
petradas no comportamento humano – mais fazer destacar o bom que será se se permitir
disciplina, mais rigor, maior capacidade de o enriquecimento da memória musical dos
atenção, mais competências transversais – alunos, desativa dessa forma a ‘pura’ compe-
levam-nos a fazer a crítica à instrumentali- tência improvisacional;
zação pecaminosa da música, das artes e da
educação, quando confrontados com o teor V) Gordon relaciona improvisação com o con-
das suas alegações. ceito de audiação (capacidade de compreender
a música não estando na sua presença), inci-
Numa leitura de maior proximidade ao tra- tando os educadores quando numa conver-
balho de Ana Lúcia Frega, e apontando os sa com Mary Ellen Pinzini (Musicstaff.com
azimutes aos conceitos de improvisação, 1998), afirma ‘My best recommendation to
acaso e indeterminação, verificamos a ténue music teachers of the next century is to im-
presença, ou quase ausência, destes dois provise, improvise, improvise!’;
últimos conceitos (‘salvam-se’ Paynter e
Schafer), ao lado de uma curiosa utilização VI) Van Hauwe e Wuytack propõem a impro-
do conceito de improvisação – i.e., Orff, Van visação colectiva como processo de inclusão,
Hauwe e Wuytack – enquanto motor de pes- num verdadeiro exercício democrático e con-
quisa expressiva individual e coletiva, mas temporâneo de abordar o conceito de música
tatuada pelo bisturi de uma gramática e sin- para todos deixando claro para todos que a
taxe pré-estabelecida. criatividade deve acontecer mesmo quando
provoca desalinhamentos e tensões; e
Sendo assim, parece-nos pertinente desta-
car que: VII) Paynter e Schafer avisam-nos que ‘im-
provisation and creative abilities, atrophied
I) Orff promove liberdades inusitadas quando through years of disuse, are also rediscove-
nos diz que ‘improvisation is the starting point red’ (Schafer, 1967, intro.).
for elemental music making.’ (Orff, 1976, p.22);
Aproximando-nos ainda mais das intenções
II) as atividades propostas por Willems per- dos diferentes autores trabalhados por Frega
mitem às crianças improvisarem; colocamos em evidência particularidades
dos seus discursos em torno do conceito de
III) as escalas pentatónicas usadas por improvisação para melhor os conhecermos
Kodály facultam às crianças idiomas propí- e deles retiramos informação relevante.
cios à improvisação;
Assim, presenciamos Émile Jacques-Dalcroze
IV) Suzuki inspira a realização de exercí- – professor de harmonia e solfejo do Conser-
cios instrumentais próximos daquilo que é vatório de Genebra (1892) e exímio pianista

10 0 D E R I vA s # 0 3 HOMO MUSICALIS
improvisador – a destacar a utilização da A propósito de Justine Ward – pianista e
improvisação nas atividades musicais, de- pedagoga – Frega afirma-nos a importância
fendendo que um músico se torna mais com- desta autora no que diz respeito à ideia de que
petente através da improvisação. a improvisação deve constituir-se enquanto
tarefa para desenvolver competências não
Damos conta que Carl Orff, no seu Orff só na reprodução musical, mas também no
Schulwerk, nos deixa a impressão clara de desenvolvimento da criação musical.
que a improvisação é um desígnio indivi-
dual e colectivo a acalentar quando nos diz: Frega aborda um outro pedagogo – Edgar
‘Improvisation is the starting point for ele- Willems – com o propósito de salientar neste
mental music making. From the beginning a importância que a improvisação tem na
we practised freely-made rhythmic impro- contribuição para o desenvolvimento do ser
visations for which simple ostinati served as humano em todas as suas dimensões. Faz
foundation and stimulus.’ (Orff,1976, p.22). também recair sobre nós um olhar próximo
do contacto que teve com Willems quando nos
Maurice Martenot, célebre pela criação do diz que o seu propósito pedagógico face à im-
instrumento designado por Ondas Martenot provisação é o de a trabalhar através de múl-
e professor no Conservatório de Paris, ex- tiplas atividades de desenvolvimento auditivo.
pressa-se através de uma das suas máximas
L’esprit avant la lettre, le couer avant l’intellect Começa aqui a esboçar-se em nós a ideia de
protagonizando uma das ideias mais caras que existe, nos autores referenciados por
ao seu pensamento quando nos confronta Frega, a assunção de uma clara conceção
com esse seu sonoro e inevitável soundbyte: utilitarista do conceito de improvisação,
primeiro o fazer e só depois o entender. colocando esta sempre ao serviço de algo e
nunca como um fim em si mesmo.
Frega, a partir do ‘Guia didáctico’ do profes-
sor de Martenot, propõe-nos uma ligação Diríamos que é a explicitação de um discurso
deste pedagogo ao binómio improvisação – hegemónico da razão na construção de um
criatividade quando nos afirma que: universo pedagógico muito centrado num
poder quase absoluto que, modernamente,
...el impulso creador es particularmente favo- lhe foi conferido por quem se dá bem com a ra-
rable para hacer sentir el significado pro- cionalidade científica, racionalidade essa sem
fundo de la música. Posse, además, un notable sensibilidade, um homem sem corpo: ‘um ideal
valor educativo y responde a la necessidade de depuração perfectiva’ (Vilela, 1998, p.13).
de expressión del ser humano. Por estas razo-
nes hay que insistir particularmente sobre el O que resulta disto?
desarrollo de las facultades que favorecen a la
improvisación. (Frega,1997, p.62)

101 D E R I vA s # 0 3
A sensação de que a comparação e parametri- Atrevidos, os modelos pedagógicos vão-se
zação dos modelos pedagógicos atrás perpe- expondo ao mundo como se ocupassem,
trada e exposta por Ana Lucia Frega se dá bem desde sempre, um lugar cativo no infinito
com o homem em abstracto esquecendo, ou universo do poder.
banalizando, as contingências de que ele é feito.
Continuando a seguir de perto o trabalho
Depois desta observação continuamos a lei- de Frega, a nossa leitura encontra um novo
tura sobre os autores propostos destacando obstáculo: a dificuldade de percebermos de
agora o húngaro Zoltan Kodaly, um verda- que forma Shinichi Suzuki, apesar de invo-
deiro caso sério no restauro da tradição mu- car a improvisação para o seio da sua meto-
sical do seu povo. dologia, coloca-a ao serviço da comunidade
educativa. Em todo o caso, da observação do
Kodaly (Frega, 1997, p.96) enaltece o ca- seu livro Suzuki Violin School vol.1 (1978),
rácter experimental do seu método, pe- não nos parece difícil imaginar uma espécie
dindo para que os seus alunos/intérpretes de introdução à improvisação a partir das su-
participassem ativamente em múltiplas gestões expressas sobre o ato de ‘variar’, ou
ações, tornando estas o motor de busca para sobre a forma de usar, ou golpear, o arco.
a apreensão futura de conceitos. Apesar da
intenção ‘boa’ expressa na experimentação, Tudo fica ainda mais claro se observarmos
a verdade é que Kodaly e os seus seguido- os resultados/produtos musicais – con-
res defenderam sempre a necessidade de os certos coletivos de dezenas ou centenas de
alunos aprenderem previamente o solfejo crianças – provindos deste trabalho peda-
e a escala pentatónica, o que nos deixa des- gógico. São representações musicais cujo
confiados face à impregnação/moldagem de repertório favorece o óbvio mundo clássico
uma gramática sonora prévia ao improviso. da música ocidental, onde a improvisação,
Diríamos que, neste caso como noutros, a li- aqui e ali, é exposta como uma atividade se-
berdade está constrangida a uma sintaxe e a cundária e não estruturante. Fica-nos a sen-
uma morfologia musical hegemónica. sação de que esta existe apenas enquanto
matéria sujeita a uma subordinação técnica,
É nesta confirmação de Frega a propósito de pedagógica e estética.
Kodaly e dos seus colaboradores, citando E.
Szonyi, de que un nino no debería comenzar Seguimos o nosso périplo e damos conta
jamás el estúdio de un instrumento sin haber da presença, no texto de Frega, de Murray
aprendido previamente la lectura musical Schafer (compositor canadiano e pioneiro
(Frega,1997, p.100), que nos podemos declarar das paisagens sonoras) e de John Paynter
desiludidos e dececionados face à violência (compositor inglês e doutor em filosofia) a
deste discurso de governação e de adestra- oferecerem-nos espaço de diálogo e de coa-
mento sobre o mundo da música e da educação. bitação com a improvisação.

10 2 D E R I vA s # 0 3 HOMO MUSICALIS
O que Schafer nos propõe é digno de regis- Saindo do trabalho de Frega, que escalpeliza
to e cujo tom é medido pela maneira curiosa e parametriza estes modos de estar perante
como descreve o que pode ser uma aula, ou o mundo da educação musical partindo da
um encontro educativo: ‘The common deno- experiência argentina e, por óbvia necessi-
minator of all lessons is active participation dade de perspetivar o universo português,
through free discussion, experimentation, observamos agora três pedagogos que, nas
improvisation and objective analysis of the últimas décadas, muito trabalho colocaram
elements of music’ (Schafer,1967, intro.). no corpo e no pensamento dos educadores e
professores portugueses: Pierre Van Hauwe,
Paynter sugere a improvisação como um Jos Wuytack e Edwin Gordon.
continuum, numa espécie de movimento
perpétuo solidário com a composição, per- Embalados pelo espírito da escola moderna
mitindo a ambas atividades serem geradoras portuguesa, estes autores, ambos a trabalha-
de material musical e tornando uma aula um rem com regularidade em Portugal nas últi-
espaço tangencial entre o determinado e o mas quatro décadas, deram vigor às práticas
não determinado, focando-se em particular coletivas da música para crianças bastando
no que foi realizado/tocado e não necessa- para isso observar a miríade de orquestras
riamente no que foi escrito. escolares espalhadas pelo país inteiro, e exa-
minar a inclusão das práticas de música de
Parece-nos que, no caso destes dois autores conjunto nos currículos nacionais.1
atrás mencionados, encontramos a expec-
tativa de fazer da improvisação um aconte- Ao oferecer uma panóplia gigantesca de re-
cimento. Parece-nos evidente que ambos pertório usando sempre princípios de tra-
percorrem uma cartografia distinta das balho muito relacionados com o conceito
anteriores e, sem as fraturarem, propõem de música elementar, princípio este caro a
uma espécie de desconstrução do já pensa- Carl Orff, e tatuando em todos os educado-
do, perspetivando e denunciando, no hoje, o res uma máxima de pensamento e de tra-
modo como estes modelos pedagógicos arti- balho próxima de John Dewey sintetizada
culam a(s) verdade(s) e se expõem perante no learning by doing, ainda hoje, estes ideais
a(s) escola(s) e o(s) mundo(s). de trabalho podem ver-se a serem exercita-
dos no Instituto Orff de Salzburg (Áustria) e
Talvez seja essa desconstrução, essa inquieta- espalhados um pouco por todo o mundo da
ção, esse pouco jeito que dão à normalização, pedagogia musical.
ou ortopedização, do perfil ideal do homem,
que os torna tão pouco atrativos e tão pouco Este modo de estar em música e em educa-
disseminados entre nós. Suspeitamos disso ção tornou possível mudanças significativas
ao lermos, quer ‘Ear Cleaning’ de Schafer, no comportamento da música no contexto
quer ‘Hear and Now’ de Paynter. curricular português.

1. I) Wuytack ainda se mantém ativo através da trabalhado para orquestras escolares oferecido,
Associação Wuytack de Pedagogia Musical, sediada inicialmente à Orquestra Orff do Porto, ao Instituto
em Portugal, através de inúmeros cursos de formação Orff do Porto, e agora disseminado em todo o
para educadores e professores, da publicação de território nacional;
textos didáticos e de inúmeras composições;
III) e Gordon através de inúmeras ações de formação
II) Van Hauwe através de cursos internacionais de ao lado da publicação de textos.
pedagogia musical e de repertório especificamente

10 3 D E R I vA s # 0 3
Estes autores afirmam a importância capital partir de uma racionalidade aberta dispos-
da improvisação – basta olhar os princípios ta a ver as crianças, os alunos e os homens
do método Orff/Wuytack e para o Spielen mit como um aberto.
musik de Van Hauwe – como ato genuíno de
dar voz e vez às crianças, oferecendo-lhes Sobretudo porque, como pudemos constatar,
tempo de antena suficiente para poderem na maioria das ideias atrás expressas, a im-
esgrimir a sua criatividade no seio dos seus provisação raras vezes é matéria nuclear ao
grupos de trabalho. esforço empreendido por todos aqueles que
vivem nas comunidades escolares. É como
Acresce a este legado o facto de o seu olhar se ela fosse o alibi perfeito para que tudo pu-
ético e estético piscar o olho a todas as músi- desse mudar, mas ao mesmo tempo, permitir
cas, e de todo este seu pensamento pedagó- que tudo ficasse na mesma.
gico estar atravessado pela ideia de música
para todos, ideia esta claramente disposta a E, pela ausência sistemática do acaso e da
desalojar a hegemonia de um discurso clas- indeterminação nos métodos atrás revistos,
sista, oriundo de um mundo burguês e pouco podemos adivinhar mais facilmente o in-
condescendente com o informe, o irregular, cómodo que estes lhes colocariam ao exigi-
o imprevisível e o singular. rem que manifestassem nos seus propósitos
a vontade de não poderem apenas fabricar
Talvez o seu pecado maior seja o de terem perfis de alunos de acordo com a norma e em
imaginado a improvisação como um meio, e conformidade com o estabelecido.
não como um fim em si mesmo, e o de con-
ceberem o seu trabalho face às músicas do Dizemos isto porque, numa leitura de con-
mundo numa perspetiva, digamos assim, tiguidade às novas orientações curriculares
euro e etnocêntrica. Não há rosas sem espi- para o Jardim de Infância (2016) e para os cur-
nhos… mas, apesar de tudo, ainda está por rículos do 1º (2006) e 2º (2015) ciclos do ensino
fazer o balanço desta gigantesca ação de tra- básico português, verificamos que a debilida-
balho pedagógico realizado entre nós. de da presença dos conceitos de improvisação
e, sobretudo, de acaso e de indeterminação é
Talvez urja realizá-lo… real e pouco abonatória para uma visão con-
temporânea da educação musical que se de-
Fechando o encontro com Frega não pode- seja múltipla, polissémica e disponível para a
mos deixar de considerar muito útil a origi- construção de uma sociedade solidária com a
nalidade do seu trabalho de parametrização conceção de mundos plurais e abertos.
e de comparação destes métodos de trabalho
– estão passados quase vinte anos sobre ele – Ao refletirmos sobre estes documentos aca-
e, por isso mesmo, de podermos a partir dele bamos por os ver pouco críticos e raramente
construir um pensamento crítico fundado a capazes do distanciamento necessário apto

10 4 D E R I vA s # 0 3 HOMO MUSICALIS
a um verdadeiro pensamento propiciador viver num estado de aphesis, num estado de
sobre as singularidades que habitam o uni- precipitação sobre a liberdade, numa escola
verso das artes em contexto educativo. pensada para viver a sua práxis e a sua poesis.

Esse pensamento, na nossa opinião, deve- No entanto, se o panótico se posicionar face


ria expor a heideggeriana força-da-arte en- ao trabalho – tema esse que daria um outro
quanto capacidade que os homens possuem labor – desenvolvido pelas escolas portu-
em precipitar sobre si, corpo e pensamento, guesas de formação de formadores, pelos
novas maneiras de ver e sentir o real, pro- centros de investigação, i.e., CIPEM (Centro
pondo mundos cujos limites, fronteiras ou de Investigação em Psicologia da Música se-
visões qualificam e enobrecem o que somos. diado no Porto), pelas escolas profissionais,
academias, conservatórios, associações pro-
Estes documentos, deste modo, poderiam fissionais ligadas à educação e à música, i.e.,
constituir-se como um aviso à navegação APEM (Associação Portuguesa de Educação
criticando as narrativas salvíficas – artes Musical sediada em Lisboa), podemos cons-
enquanto fator de equilíbrio e correção so- tatar que algo tem vindo a ser feito para
cial – com que o vigente discurso neoliberal minorar esse vazio existencial que tende a
brinda as artes e deveriam afastar-se da rei- desequilibrar a balança entre o determina-
ficação – problema este ainda maior – dos do e o indeterminado.
espaços e tempos educativos que assim se
nos expõem transparentes, pelos rankings De regresso à nossa imaginária torre de
avaliativos, coisificados em competências e vigia benthamiana, agora mais nutridos
postulados em metas desassossegadoras. pela observações feitas aos autores supra-
mencionados na condução que Frega nos
Sem querer, estão reféns de um espírito proporcionou, não nos resta outra coisa que
que busca obcecadamente normatividades – não seja registar a desilusão que constitui a
esse inferno do igual – e dividendos pelo seu oportunidade historicamente perdida de ver
carácter funcional. E, assim, a força-da-arte, estes obreiros a não fazerem uso do acaso e
fica ferida de morte. da indeterminação, a fazerem uso sério, mas
normativo, da improvisação e a não conse-
Porquê? Porque esta nos coloca perante uma guirem um discurso out-of-the-box por ali-
dupla capacidade quando ligada ao mundo da nharem com a governação dos percursos
educação: estarmos I) seguros por estarmos li- educativos ainda enraizados no pensamento
gados ao que conhecemos e II) inseguros quan- idealizado pelo século da luzes.
do nos abeiramos do que está para lá de nós.
É caso para dizer, talvez ainda haja a oportu-
Assim, desesperados, assistimos ao abando- nidade de as apagar…
no da possibilidade de, na escola, podermos

10 5 D E R I vA s # 0 3
Os resquícios deste pensamento histori- E continuamos a sorrir, sem deixar de ficar-
camente ancorado nos séc. XVIII e XIX mos atentos à preocupação de que o próprio
assentam e persistem na ideia do cânone olhar panótico, que engendramos para nós
matriculado numa ótica, digamos assim, próprios, não nos deixe enveredar por quais-
euclidianamente linear. quer assunções moralistas ou ‘reformadoras
dos costumes’.
Ora, é precisamente por isto que falamos
de desfasamento entre o desafio não-linear Pelo contrário, preferiremos antes, e sempre,
einsteiniano que o acaso e a indeterminação profaná-los!...
podem trazer para a escola e para o mundo,
e a acomodação linear de um mundo previ- Darwin Musical
sível e messiânico – vulgo, mundo melhor e
homem melhor – que nos impele a juntá-los A natureza produz semelhanças.
e a inscrevê-los na tabela periódica da edu- Walter Benjamin, Sobre Arte, Técnica,
cação artística. Linguagem e Política, 1992

E porque demos conta deste desfasamento Nunca perguntes o caminho


assim o expomos, até porque sabemos que o a alguém que o conhece,
que não está dito, aquilo que está por detrás porque assim não poderás perder-te.
do pensamento curricular e metodológico Rabino Nachman de Breslau, Contos
atrás mencionado, deve ser expresso e deve
ser posto em carne viva. Segundo Walter Benjamin (1992), os homens
possuem a mais elevada capacidade de pro-
É assim que a improvisação, o acaso e a in- duzir semelhanças. Seguindo este fino traço
determinação vivem. Na esperança de po- do seu pensamento, esta sua assunção con-
derem cumprir a sua tarefa de poderem sente levar-nos a acreditar que os homens,
participar ativamente no aberto de que os no uso pleno das suas faculdades, tenham
homens são feitos. sempre feito do ato mimético condição sine
qua non para assinalar e assegurar a sua
Preparamos agora a saída da visita que rea- marcha no tempo, nos seus comportamentos
lizamos ao panótico de Bentham, piscando o e nas suas ações.
olho ao Darwin musical que de nós se apro-
xima, não sem sorrirmos para o pequeno Esta constatação permite-nos questionar
graffiti adorniano que fizemos naquela torre se, o que outrora permaneceu e foi domina-
e que nos saiu das mãos assim, e de cor: ‘A do pela robusta lei da semelhança, hoje, essa
tarefa da arte é, hoje, introduzir o caos na obrigatoriedade se mantém vigente? Ou,
ordem’ (Adorno, 2001, p.231). melhorando o argumentário: será que, dou-
tra forma, esta reverência à mimese não foi

10 6 D E R I vA s # 0 3 HOMO MUSICALIS
ela própria mudando de aspeto face aos ven- instrumentos, será (im)possível vê-los a con-
tos e às circunstâncias da história? geminar singularidades/pluralidades nos
seus dizeres sobre o mundo, a partir da im-
E, se assim é, de transformação em transfor- provisação, do acaso e da indeterminação?
mação, será que poderemos assistir algum
dia à sua extinção? Se, com Marcel Duchamp e John Cage assis-
timos à destruição do cânone, será possível
Não é difícil imaginar uma reação negativa afirmar e ver as artes como a mentira magis-
a tal questão. tral capaz de fornecer aos homens pernas
para andar na sua caminhada darwinamente
Antes pelo contrário, basta sentirmos a evolutiva?
presença da semelhança nos nossos tiques
comportamentais e mecânicos, na imita- Ocorre-nos, de momento, constatarmos
ção vezes sem conta das rotinas diárias, no que a dimensão reflexiva que a educação
modo de fazer o culto, na exibição do corpo artística nos pode oferecer, nos dá muito
na dança, no refrão da canção, nas formas jeito para construirmos conhecimento e
musicais, na abordagem da língua que usa- pensamento para sermos solidários com
mos, para podermos afirmar que a imitação a dita marcha. Improvisada, aleatória e
convive e respira, permanentemente, na in- indeterminadamente.
tegração dos homens no mundo.
Darwin fala-nos da transformação do Homo
Mas, se a supusermos cúmplice da indústria Sapiens como espécie distinta de outros
cultural atingindo proporções devastado- hominídeos, a partir dos ‘grandes símios’,
ras para o eu e o seu imaginário, poderemos como sendo um processo advindo das mo-
aceitar a sua magnificente presença entre dificações genéticas resultantes da seleção
nós sem a questionarmos, sem a rodearmos natural, da seleção sexual e, espantemo-nos,
de ratoeiras e estratégias capazes de suster todo ele fundado em efeitos aleatórios.
o seu abuso?
Será este efeito aleatório, perpetrado pela
Se conseguimos imaginar, com alguma fa- natureza, dotado de improvisação e indeter-
cilidade, os primeiros homens a ‘lerem’ o minação suficientes para nos colocar aberta-
mundo, no momento imediatamente an- mente perante o mundo?
terior à existência emergente das línguas,
através dos sinais que as estrelas lhes susci- Se assim é, por que motivo a apofenia – esse
tam no céu, ou a auscultarem o futuro atra- enredo comportamental humano – se ex-
vés das vísceras dos animais, ou exaltando pressa tão convincentemente entre os tiques
os seus ânimos através do corpo dançável e comportamentais dos homens?
do poder dos sons extraídos dos primeiros

107 D E R I vA s # 0 3
Será a apofenia um fator de equilíbrio, entre o de os homens reagirem às questões comuns e
certo e incerto? Entre a determinação e a in- incomuns que lhes são proporcionadas.
determinação? Entre o acaso e a necessidade?
Esta construção humana, praticada por
Vejamos: todos quantos se relacionam e comunicam
A apofenia, característica e capacidade hu- mutuamente, faz uso de processos de comu-
mana em encontrar padrões com significado, nicação, i.e., linguagem, e da propagação/pu-
ou relações com significado, quando apetre- blicitação de rituais e de normas capazes de
chada de intencionalidade leva os homens, produzirem usos e costumes.
perante a incerteza ou o não-controle, a en-
contrarem ilusoriamente âncoras e padrões No meio de todo este arsenal comunicativo,
de segurança. a proto linguagem humana ter-se-á manifes-
tado em diferentes dimensões e, entre elas, a
Digamos que a apofenia providencia um supor- proto música assume um papel destacado na
te de aversão à perda, enquanto mecanismo psi- vontade humana em expressar os seus dese-
cológico e comportamental evolutivo, dotando jos, pulsões e emoções.
os homens de resistência suficiente para esta-
rem à altura dos desafios e enfrentarem quais- Estamos em crer que, na sua longa cami-
quer danos, ou assaltos, à sua sobrevivência. nhada evolutiva, os homens souberam fazer
uso disso mesmo induzindo emoções e
Este tópico assume-se aqui de importância partilhando intenções à medida que o seu
capital por nos permitir observar a capaci- engenho aguçava o improviso, o acaso e a
dade comum que todos os humanos têm de indeterminação.
auto-resolução de problemas e para dar nota
sobre a criação de uma cultura de base pro- Fixemo-nos agora no epíteto engendrado –
dutora e transmissora de conhecimentos. Darwin musical – para nos remetermos à de-
signação de uma fase compreendida entre os
Assim, os homens – enquanto animais cultu- homens anatomicamente modernos (aprox.
rais – geram um vasto campo de informação, 200 mil anos atrás), e da sua domesticação
de memória e de transmissão de informação agrícola (aprox. 10 mil anos atrás), até aos
capaz de satisfazer as suas necessidades bá- dias que correm.
sicas e, marca indelével da sua existência, de
produzir um dos seus maiores feitos: a cul- Porque nos interessou invocar o nome de
tura humana. Darwin neste contexto denominado de
Homo Musicalis?
Esta particularidade, comum a todas as socie-
dades humanas, manifesta-se diversa e capaz Para reivindicar um campo de discussão onde
de mudar de aspeto face às diferentes maneiras nos interrogaremos, confiantemente, sobre a

10 8 D E R I vA s # 0 3 HOMO MUSICALIS
disponibilidade, ou da não disponibilidade, conta-corrente que banalizasse e ostracizas-
dos homens se afirmarem, na sua caminhada, se o improvável, ficando só a ser parametri-
próximos da conjetura que pode ser propor- zado, e porque dá mais jeito às contas que
cionada pelos conceitos atrás mencionados. fazemos, o provável, o expectável e o previsto.

A presença de Darwin na nossa teia de ob- Estamos em crer que o Homo Musicalis que
servações e suposições dá-nos força na me- queremos ver neste retrato se compõe exac-
dida em que as suas ideias sobre um mundo tamente, e bem melhor, a partir dessa osci-
a funcionar sem plano prévio, sobre os ho- lação entre o permanente e o impermanente,
mens enquanto produtos da circunstância e entre o estável e o instável, entre o previsível
do acaso, sobre a ideia de um projeto de vida e o imprevisível, entre o fechado e o aberto.
não planificado, apoiam, por assim dizer, a
perspetiva de que a criação implica variação, O que daí resulta será sempre caso para não
acaso e indeterminação. denegrir a indeterminação e de a adjetivar
como fonte de todos os males. Esse é o discur-
O próprio conceito de evolução, que da sua so dominante da cultura ocidental prenhe de
tese emerge, abalou a nossa conceção do logocentricidade e que é conveniente criticar.
mundo, do pensamento e, obviamente, da
ideia que temos dos homens e do seu lugar É necessário produzir momentos assimé-
na história. tricos que desconstruam, tal como Derrida
(1962) sugere, o sentido e a ordenação sim-
Se, por um lado, o seu ceticismo face à tarefa bólica da nossa cultura.
impossível de planificar a história das ações
humanas nos deixa desarmados, também é Digamos que a indeterminação pode e deve
verdade que a coabitação e a cocriação com criar a hipótese de construir um arraial
o acaso e a indeterminação colocam nos ho- epistemológico e reflexivo preparado para
mens o ónus da responsabilidade de sabe- inverter o poder instituído e constituir-se
rem conviver bem com a surpresa. como um contrapoder face aos instrumen-
tos subtis – i.e., currículos, programas, me-
O que nos apraz registar neste Darwin todologias – de repressão que Foucault e
Musical é o abalo produzido, em forma de Derrida tão bem souberam retratar.
contra dispositivo, face à ideia normativa de
uma história dos homens a ser feita e previs- O que contém este Darwin Musical de
ta teleologicamente e sustentada numa lógi- subversivo?
ca puramente logocêntrica.
No seu livro A expressão das emoções no Homem
No balanço sobre o custo-benefício da evo- e nos animais Darwin (2000), demostra-nos
lução humana seria dramático o uso de uma que a emoção é um estado primitivo e, como tal,

10 9 D E R I vA s # 0 3
intrínseco à natureza primeira dos homens. acasalamento e, por razões óbvias, ser par-
ceira da emoção humana e do seu processo
Parece-nos que, apesar de tudo o que ob- de seleção sexual.
servou, o seu pensamento ainda se mantém
prisioneiro do discurso do logos impondo a Uma outra curiosa observação remete a mú-
supremacia da razão e relegando a emoção sica para a conexão ancestral com a lingua-
para o miolo do pathos. gem e aí, Darwin sustenta a ideia de que os
sons musicais constituíram um dos supor-
Ou será que, apenas nos deixa perante o de- tes para a evolução da linguagem.
safio de conviver entre o pathos e o logos?
Este interesse devotado ao mistério da mú-
Esta hesitação torna-se ainda mais aliciante sica faz-nos acreditar que é possível afirmar
se a ela adicionarmos – o tal campo de bata- que ela nos remete, desde o nosso dealbar
lha – o desconhecido, expondo as nossas sin- civilizacional, para uma concatenação de
gularidades, sem rede e em aberto. atrações, adaptações e preferências postas
rizomaticamente em rede.
O que nos inquieta, ou sobressalta, neste
Darwin Musical? Talvez esta constatação nos ajude a dar mais
força à ideia de que quando congeminamos
Darwin diz-nos, em voz alta, que a natureza currículos escolares, ou nela – a Música – ex-
humana possui uma história e uma pré-his- pomos o nosso olhar pedagógico, podemos
tória marcada de acasos e de acidentes que acomodar a ideia de que quando a fazemos
nos colocam hoje na posição privilegiada (ouvindo-a, interpretando-a, inventando-a),
de podermos evoluir para cenários novos e algo de muito ancestral nos precede e, por
desconhecidos. isso mesmo, algo de familiar e não familiar
passa a habitar o nosso enamoramento face
Seria uma pena desembaraçarmo-nos dessa ao desconhecido.
demanda ficando apertados e manietados
por discursos, venham eles donde vierem, É exatamente isso!
promotores de uma vertigem que só nos
torna mais apequenados. Falarmos sobre, ou propormos o acaso e a in-
determinação é criarmos um espaço propo-
Darwin, na sua Origem do Homem e a seleção sitor sobre o que não sabemos e sobre o que
sexual, brinda-nos com a sua visão sobre os ainda não foi dito.
primórdios da música.
Com ele, habilitamo-nos a transmitir a todos
Diz-nos que, pela sua exuberância, esta pa- (alunos, professores, …) a cumplicidade ne-
rece corresponder ao resultado de rituais de cessária para potenciarmos conhecimentos

110 D E R I vA s # 0 3 HOMO MUSICALIS


novos e significativos. Possivelmente assim Razões e emoções empaticamente atadas
talvez possamos encontrar a nossa panecás- apontam indeterminadamente para o que
tica e inventar uma espécie de contra dispo- somos – ouçamos as vozes de Agamben,
sitivo, um não-método em que um ignorante Barthes, Darwin e Ranciére – e que estas as-
pode apoiar um outro a descobrir aquilo que sistem, deliciadas, ao aplauso das conjeturas
ambos não sabem. e teorema de Von Foerster quando, em 1976,
sugeriu e provou que quanto mais trivial, ou
O improviso, o acaso e a indeterminação banal, é o comportamento individual huma-
deram a Jacotot e aos seus estudantes a pos- no, mais fraca é a sua influência no compor-
sibilidade de se emanciparem face à pura e tamento global (Atlan, s/d, p. 26).
dura realidade da instrução.
Ora, nos espaços educativos, a improvisação,
Estes conceitos, em termos musicais, só es- o acaso e a indeterminação mais não farão
tarão nos bancos da escola e no mundo para do que insuflar incertezas, complexidades
nos alertarem de que os métodos, os currí- e indefinições, permitindo assim a possibi-
culos, os programas podem ser uma ratoeira, lidade de perspetivar outras configurações
em forma de clausura e de fechamento, para da razão e com elas abandonar o desenho
o imaginário humano. simples e claro de um único perfil de um ser
humano a ser idealizado e alimentado pelas
Não querendo fazer transparecer a ideia de es- diferentes formas de governação.
tarmos só a enfatizar os conceitos atrás men-
cionados como uma proposta metodológica É como se estes conceitos chegassem ao
para as práticas da música em contexto esco- terreno da educação e do sensível e desejas-
lar, temos todo o interesse em difundir a hipó- sem negociar, ou propor, uma transgressão
tese de erguermos uma problematização em mútua e intolerável.
torno da emancipação à rotina da instrução e
à firme oposição à normatividade e à regra. Em forma de pensamento de futuro,
vermelho-vivo.
O que aqui expomos mais não é do que um
convite para que a educação artística pisque
os olhos a Darwin e com ele dance aberta e
livremente ao som de uma música indeter-
minada, não-linear e de contacto livre com
as demais formas de criação. Ao som de uma
qualquer música que se oponha à música se-
dativa e funcional, exatamente por nesta se
ouvir sempre apenas o que ajuda a não ouvir o
mundo e a alteridade (Sloterdijk, 2008, p.179).

111 D E R I vA s # 0 3
Câmara Lúcida O desejo de uma fotografia inclassificável
quando, pelo que toca ao Homo Musicalis, o
Imago lucis opera expressa vemos atolado em objetos e cenários profu-
Roland Barthes, Câmara clara, 2009 samente desordenados, mas perfeitamente
capaz de gestos animados e temerários.
Ousemos pegar agora em Roland Barthes
para rematar o nosso olhar sobre o Homo O que vemos, então, é uma fotografia prenhe
Musicalis. Expliquemo-nos: de aventuras. É isso!

A designação câmara lúcida só confia na O seu studium, conceito muito dispendioso a


possibilidade de fazermos fotografias pen- Barthes, é composto pelas aporias metodo-
sativas. Tem origem na camera obscura, lógicas já observadas anteriormente e pela
descoberta pelos pintores que inventaram atitude nostálgica do Homo Musicalis a ouvir,
a fotografia enriquecendo-a com um enqua- a interpretar e a inventar sons.
dramento e uma ótica.
O seu punctum, essa pequena picada barthe-
Se transformarmos ótica em panótico temos ana, é o do olhar pensante e sincero do Homo
pela frente Bentham e o nosso olhar sobre o Musicalis face ao que deve consistir a sua pose.
Homo Musicalis. De seguida, se traduzirmos
enquadramento por Darwin aí encontramos Prenuncia-se aqui uma qualquer-coisa que
a contextualização que tão bem faz ao Homo não permite que a fotografia revelada se evi-
Musicalis que, no seu caminhar, se vê solidá- dencie comum e indiferente.
rio como o autor da Origem das espécies.
Com Barthes, com o seu studium e o seu punc-
Finalmente, se imaginarmos a câmara lúc- tum a operar, podemos – assim o sentimos –
ida como uma possibilidade de interpretar- ver melhor, ou compor melhor o nosso olhar.
mos o(s) mundo(s) que temos pela frente,
encontramos em Barthes o sossego impres- É como se tivéssemos conquistado um outro
cindível para fazermos memória futura do saber capaz de nos ajudar a ver a exata im-
que pensamos. Talvez porque a fotografia portância da improvisação, do acaso e da
seja rude e crua, como Barthes nos propõe, indeterminação na construção do Homo
interessa-nos aqui dar conta de como dese- Musicalis. Pois certos ficamos de que, quanto
jamos retratar hoje o Homo Musicalis. mais falamos desta tripla manifestação –

Através desta câmara, cujas lentes foram improvisação enquanto possibilidade de des-
configuradas e trabalhadas pelo improvi- cobrir e inventar outros relacionamentos
so, pelo acaso e pela indeterminação, o que com objetos, ideias ou idiomas; acaso enquan-
vemos pela frente? to ratoeira promotora de distanciamentos

112 D E R I vA s # 0 3 HOMO MUSICALIS


e osmoses no jogo do conhecimento entre o e de um punctum emergente em que o Homo
sujeito e o objeto, e indeterminação enquanto Musicalis, sempre ele, afirma e cultiva:
exercício radical de desterritorialização do eu e
de abertura a outras interpretações do mundo VI) o som elementar como alvo de escuta;
VII) o corpo que reage como meio de escuta;
– mais nos aproximamos do seu verdadeiro VIII) o grupo como espaço de troca;
punctumaovermosoHomoMusicalis,empleno
Holoceno, a destacar o aberto que nele mora. e quando, a fortiori, adiciona ou mistura
aquela tripla manifestação atrás descrita en-
Percebemos então que a escola e o mundo não quanto estrutura constituinte da mecânica
podem ficar indiferentes a isto e, outrossim, da vida do Homo Musicalis.
podem é encontrar na música, nas atividades
artísticas e no Homo Musicalis um fator de Ora, se ‘reconhecer o studium é, fatalmente,
desativação dos seus dispositivos de controle descobrir as intenções do fotógrafo’ (Barthes,
(metas, currículos, fetichização dos objetos 2009, p.36) e se ‘o punctum é aquilo que me
de consumo, etc.) e, como tal, reagir contra a fere’ (Barthes, 2009, p.51) podemos neste im-
náusea e a rotina a que têm vindo a ser sujeitos. promptu, nesta fotografia, afirmar o interes-
se em remeter os homens para a emancipação
A improvisação, o acaso e a indeterminação da sua linguagem materna ao dignificar o de-
bem podem levar a cabo esse ato de profanação siderato da improvisação, do acaso e da inde-
agambeniano, não querendo ser apenas um terminação enquanto terreno não-amigável
contra-dispositivo face ao dispositivo, e ir- à determinação, jogando até a favor do desa-
romper no nosso quotidiano fazendo apelo prender, e do voltar a desaprender.
ao studium ou cenário que desejamos ver na
composição do retrato do Homo Musicalis. É esta excitação fotográfica agora visível em
dois movimentos (a constituição de um pen-
Um studium propositor em que o Homo samento próprio – a sua língua materna – e a
Musicalis: sua difusão no terreno contemporâneo árido
em poéticas da receção) que podemos adicio-
I) se move entre o som elementar nar ao álbum da dialética negativa adorniana.
e o som elaborado;
II) joga entre o corpo que reage Parafraseando Fernando José Pereira, que
e o pensamento que age; observa o homem contemporâneo pela batu-
III) vem do grupo e chega ao estar consigo ta de Mario Perniola (Del Sentire e Enigma),
mesmo, à sua singularidade; diremos que resta ao Homo Musicalis evi-
IV) primeiro explora e depois escolhe; denciar-se impermanente, instável, imprevi-
V) primeiro faz tudo e depois especializa-se; sível e adaptável (Pereira, 2015).

11 3 D E R I vA s # 0 3
Por aí, e dialeticamente, poderemos cons- em contextos de educação artística.
truir um território favorável ao acaso, ao im-
proviso e à indeterminação que nos permita Pela sua natureza, podem ou não, o acaso e a
relacionarmo-nos com os materiais sonoros indeterminação colocar problemas aos mé-
sem constrangimentos e sem classificações todos e currículos estabelecidos?
abusivas quanto à natureza da música.
E, se os imaginássemos um real exercício me-
Assim, podemos fazer um aviso à navegação tonímico a partir do qual podemos repensar
metodológica contemporânea – de Dalcroze a educação artística e a escola?
a Gordon – pedindo-lhes que observem bem
a possibilidade de (des)gramatizar o ‘ensinar Muito afastados da ideia de receituário
a improvisar’. encontramos neles propriedades que nos
podem ajudar a rejeitar retóricas que ex-
O que não desejamos é adicionar à fotografia pandam a ideia de arte na escola enquan-
que fizemos, representações metodológicas to dispositivo fetichizante e amestrador.
demasiado comprometidas como o que é me-
cânico e superficial, quando já sabemos que, Dizemos isto porque, não raras vezes, quan-
no seu caminhar evolutivo, o Homo Musicalis do entramos numa sala do 1º ciclo do Ensino
tende a apofenizar. Básico suspeitamos que, por debaixo da letra
Z, esteja quase sempre lá desenhada uma
E isso, como sabemos, não dá jeito a quem zebra, e nunca uma zibelina. Ou, quando
se preocupa com a incompletude de que vemos um aluno com uma flauta de bisel na
somos feitos. mão nos corredores da escola, sofremos logo
de uma vertigem auditiva provinda de uma
A câmara lúcida bartheana pode aqui apro- melodia hiperesteticamente esculpida por
ximar-se de um questionamento: duendes irlandeses em busca de um qual-
quer Titanic cinematográfico.
Temos nós condições para pôr em cena a im-
provisação, o acaso e a indeterminação? Em Se estamos dispostos a isso, façamos da im-
que contextos da educação artística? E em que provisação, do acaso e da indeterminação
escola? Com que professores? Com que alunos? um dos ingredientes alquímicos a pôr a uso
em contexto educativo.
O que nos parece útil é criar com eles uma
tensão, um hiato que interrompa as narra- Até porque o Homo Musicalis, que aqui reivin-
tivas tão omnipresentes da salvação, do en- dicamos, terá neles alimento suficiente para
riquecimento de competências transversais, desafiar quem tem pela frente, refinando em
do condicionamento estético, da excecionali- permanente estado de alerta o seu papel de
dade ou da genialidade quando trabalhamos cocriador de poéticas e de sensibilidades.

A segunda e a terceira parte deste artigo – Darwin Musical e Câmara Lúcida –


são da exclusiva responsabilidade de Mário Azevedo e estão incluídas na tese
4’34’’: Sobre o silêncio e da sua entropia a partir de John Cage, do Doutoramento
em Educação Artística pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto.

114 D E R I vA s # 0 3 HOMO MUSICALIS


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116 D E R I vA s # 0 3 HOMO MUSICALIS


Discursos
educativos
em museus:
Práticas e discursos
educativos do
Museu do Douro
_o projeto BIOS
M A R TA C O E L H O VA L E N T E
I 2 A D s ( I N s t I t u tO D E I N v E s t I g Aç ãO E M A R t E , D E s I g N E s O C I E DA D E )
F B Au P ( FAC u L DA D E D E B E L A s A R t E s DA u N I v E R s I DA D E D O P O R tO)

B O L s A D E D O u tO R A M E N tO
DA F u N DAç ãO PA R A A C I ê N C I A E A t EC N O LO g I A

117 D E R I vA s # 0 3
RESUMO
O museu contemporâneo, artístico ou não, Num primeiro momento será feita uma re-
não deve ser encarado somente como um visitação das propostas educativas imple-
espaço de legitimação, de exibição e de con- mentadas pelo SE e, a partir da exploração
servação, mas deve ser considerado cumulati- teórica do princípio de participação, do que
vamente como um espaço de experimentação, se pensa sobre o conceito e sobre as suas
de investigação, de produção de conhecimen- potencialidades na relação das instituições
to partilhado e de transformação social. com os públicos, será estabelecida uma aná-
lise dos projetos educativos implementa-
O presente artigo centra-se nos modos de dos, dando particular destaque ao Projeto
pensar os públicos nas estruturas culturais, BIOS . Por fim, serão enunciadas algumas
nas possibilidades de participação e de en- questões desencadeadas a partir da análise
volvimento consideradas e integradas nas e da reflexão estabelecidas, que permitem
políticas e práticas culturais e educativas, definir um posicionamento para a inves-
tomando por objeto de estudo o Museu do tigação no Museu do Douro, no âmbito do
Douro (Peso da Régua) e as propostas imple- Doutoramento em Educação Artística, de-
mentadas pelo Serviço Educativo (SE). senvolvido na Faculdade de Belas Artes da
Universidade do Porto.
Concebido como um museu de território,
destaca-se da missão do Museu do Douro, o
reconhecimento e preservação, a investiga-
ção e a divulgação do património cultural PA L AV R A S - C H AV E
e natural da Região Demarcada do Douro museus
(RDD) e a promoção da participação da co- discursos educativos
munidade. O SE do Museu do Douro procura participação
promover, através do seu programa anual Museu do Douro
Eu sou Paisagem, o encontro com o territó- território
rio e a paisagem, por meio de possibilidades
pedagógicas onde convergem, de uma forma
inesperada, várias áreas do saber, práticas
artísticas contemporâneas e o subjetivo.

118 D E R I vA s # 0 3 D I S C U R S O S E D U C AT I V O S E M M U S E U S
A B S T R AC T
A contemporary museum, whether it is artis- I will first revisit the educational programs
tic or not, should not be seen only as a place carried out by the Douro Museum’s ES . Then,
for legitimation, exhibition and conserva- working from a theoretical exploration of
tion. It should also be cumulatively consid- the principle of participation and of current
ered a place for experimentation, research, thinking about this concept and its possi-
production of shared knowledge and social bilities in institutions’ relationships with
transformation. audiences, I will examine those educational
proposals with particular emphasis on the
This paper focuses on the possibilities for par- BIOS Project. Finally, I will focus on some
ticipation that are considered and included in questions prompted by this examination and
museums’ cultural and educational policies reflection, which will enable me to establish
and practices, taking as object of study the a position in the research practice devel-
Douro Museum in Portugal and the proposals oped at the Douro Museum under the PhD
implemented by its Educational Service (ES). in Arts Education at the Faculty of Fine Arts,
This museum was designed as a Territory University of Porto.
Museum and its mission centres on the recog-
nition and preservation, research and dissem-
ination of the cultural and natural heritage
of the Douro region (Região Demarcada do
Douro, or RDD), as well as on promoting the
involvement and participation of the com- KEY WORDS
munity. The ES of the Douro Museum seeks museums
to promote, by means of its annual program educational discourses
Eu sou Paisagem (I am Landscape), the en- participation
counter with the territory and the landscape, Douro Museum
through educational possibilities in which territory
several fields of knowledge, contemporary art
practices and the subjective converge in unex-
pected ways.

119 D E R I vA s # 0 3
Introdução em projetos educativos, incitadoras de uma
Nos últimos anos temos assistido a profun- transformação gradual das práticas cul-
das transformações em torno das políticas turais de comunidades e possibilidades de
e práticas nos museus, que acompanham a mudança social, por outro, constata-se que
emergente reflexão sobre os modos de pen- muitos dos projetos educativos implementa-
sar os públicos nas instituições e as potencia- dos carecem de proximidade com o contexto
lidades do seu envolvimento e participação. que os envolve e evidenciam dificuldade em
responder às necessidades dos cidadãos, afir-
De modo recorrente, propostas culturais mando discursos ainda carentes de signifi-
e educativas parecem celebrar o ‘abrir-se cado efetivo para as pessoas. Reconhece-se,
às comunidades’, às diversas subjetivida- neste sentido, que ‘la distancia entre lo que
des e às novas culturas. Alguns exemplos los centros pretenden ser y lo que en realida-
testemunham de facto o esforço em ten- de significan para los ciudadanos se convier-
tar transgredir os tradicionais modelos de te en un abismo’ (Del Río, 2007, p. 2).
transmissão unilateral de um saber especí-
fico, de caráter hegemónico e colonialista, e O conceito de participação, aqui considerado,
procuram dissipar a fissura existente entre revela-se nuclear para a análise que se pro-
públicos e museus. cura estabelecer em torno das experiências
educativas que constituem as propostas do
Mas, que representatividade têm efetiva- SE do Museu do Douro e dos discursos esta-
mente as diversas subjetividades nos pro- belecidos com os seus públicos.
jetos culturais e educativos, de forma a
possibilitar uma participação efetiva, con- Estruturado segundo três momentos, pri-
tinuada e sistemática? meiramente, o presente texto integra uma
revisitação das propostas educativas im-
Recentes posicionamentos têm surgido em plementadas pelo SE do Museu, sendo par-
torno do conceito de participação na cultura ticularizado o estudo em torno do Projeto
e nas instituições culturais, distinguindo-se BIOS (projeto integrado no programa anual
o lugar do educativo nos museus como um Eu sou Paisagem desde 2011/2012), desen-
lugar que investiga e se posiciona política e volvida a partir de uma leitura analítica dos
criticamente no contexto onde reside e onde documentos produzidos pelo Museu e parti-
atua; um lugar que permite o diálogo entre cularmente os desenvolvidos pelo SE, desde
distintas culturas, diversos olhares, outras 2006 (início da ação do SE). Será pertinen-
leituras e interpretações e, por meio de meto- te realçar que a análise estabelecida surge
dologias participativas (Rodrigo, 2007b) pro- do que se pressente dos documentos anali-
cura potenciar o acesso livre à participação sados, devendo-se ressalvar que, de forma
cultural. Mas, se por um lado é reconhecida natural, tais documentos refletem sempre
a integração de estratégias participativas uma imagem do que se faz. Destacam-se

12 0 D E R I vA s # 0 3 D I S C U R S O S E D U C AT I V O S E M M U S E U S
como documentos integrados na análise, estende ao longo do Rio Douro. A evolução
os programas e as publicações anuais, par- tecnológica, social e económica que natu-
ticularizando-se as publicações referentes ralmente advém da produção de vinho e, a
ao Projeto BIOS , as designadas BIOS Zine estreita relação do homem com a natureza
(publicadas as respeitantes aos projetos e com os elementos naturais, foram deline-
2011/2012 e 2012/2013) e os documentos au- ando um desenho particular desta paisagem
diovisuais, distinguindo-se os documentá- humanizada (ou cultural) da RDD que en-
rios anuais (2007 - 2013/2014) e os registos cerra o Alto Douro Vinhateiro, classificado
em vídeo criados pelo SE. pela UNESCO, em 2001, como Património
Mundial da Humanidade, na categoria de
Posteriormente, de um ponto de vista teó- Paisagem Cultural Evolutiva e Viva.
rico, serão introduzidos os posicionamen-
tos de Carla Padró (2004), Carmen Mörsch O Museu do Douro foi pensado como uma
(2009, 2011), Irit Rogoff (2005, 2008), María estrutura polivalente e polinuclear vocacio-
Acaso (2012) e Nora Sternfeld (2012) sobre nada para reunir, identificar, preservar, do-
os modos de pensar os públicos nos espaços cumentar, investigar e divulgar o património
culturais e sobre o princípio de participação, cultural e natural da região duriense, em par-
o que permitirá estabelecer uma reflexão em ticular o representativo da atividade vitiviní-
torno das práticas participativas contempla- cola; foi pensado no sentido de exercer apoio
das na ação do SE do Museu do Douro. Por à investigação e à comunicação de materiais
fim, serão enunciadas algumas questões que e estudos científicos em torno da Região, do
permitem definir um posicionamento para seu património, do Museu e das suas coleções
a investigação, a desenvolver no Museu, no (Lei 125/97, de 2 de dezembro); e como uma
território e com as pessoas. estrutura promotora de experiências que
promovam a participação e o envolvimento
I. da comunidade (Museu do Douro, s.d.).
Práticas educativas do Museu do Douro:
O projeto BIOS Sendo um museu de território e tendo em
consideração o abrangente tecido geográfi-
O Museu do Douro, situado na cidade de co da RDD onde opera, que incorpora, total
Peso da Régua, criado em 1997, pela Lei ou parcialmente, 21 municípios (Seara, 2014,
125/97, de 2 de dezembro, foi concebido p. 78) (integrados nos distritos de Vila Real,
como um museu de território cujo espaço de Viseu, Bragança e Guarda), pautados por dife-
ação integra a RDD, ‘em toda a sua diversi- rentes características geográficas, demográ-
dade cultural e natural’ (Lei 125/97, de 2 de ficas, sociais, culturais e económicas, deixa
dezembro). A RDD é conhecida internacio- prever diversos condicionalismos que exigem
nalmente pela produção vitivinícola e pelo pensar, de um modo particular, a educação.
desenho particular da sua paisagem, que se Com efeito, de forma inesperada emergem do

121 D E R I vA s # 0 3
Museu do Douro propostas educativas que conhecimento e a reflexão do sujeito sobre si
promovem espaços de possibilidades criati- próprio e sobre a relação que estabelece com
vas onde convergem múltiplas áreas do saber o território e com o mundo.
e práticas artísticas contemporâneas.
Entre a diversidade das propostas educa-
Eu sou Paisagem dá título ao programa edu- tivas dinamizadas pelo SE, o projeto anual
cativo anual do Museu do Douro. A sua linha BIOS destaca-se como um modo particular
de ação assenta: de potenciar a pesquisa e a reflexão sobre
a paisagem, ou as paisagens – sobre a vida
na criação, reconhecimento e pesquisa de humana e não humana –, do território du-
relações de experiência entre os indivíduos riense (SEMD, 2012b, 2013b, 2014, 2015).
e as paisagens. Reconhecem-se as entidades não huma-
nas, e seguindo a proposta de David Abram
(...) Aposta-se na criação de contextos de (2007), como outras realidades vivas, toda
experimentação, com caráter de continui- uma ‘inteligência que se oculta’ (p. 18) que
dade, para a participação de crianças, ado- pode ser percebida e experienciada com
lescentes, jovens, adultos e seniores em intensidade. Constata-se nos documentos
atividades de experiência e conhecimento. analisados uma vontade em estimular a par-
ticipação global do ‘corpo senciente no terre-
(...) Pesquisa-se com o território e a paisa- no do sensível’ (Abram, 2007, p. 61).
gem, com o corpo e o lugar, em diálogo e
tensão com diferentes linguagens e falas. Por outro lado, os documentos refletem tam-
Interpelam-se as paisagens e as pessoas com bém, de forma persistente, o interesse por
o teatro, com a dança, com o vídeo, com a ima- multiplicar os modos de percecionar a paisa-
gem animada, com a escrita e com a biologia, gem, por descobrir mais sobre como se vive
com a geografia, a antropologia e a literatura, no território (SEMD, 2014), por refletir sobre
com a arquitetura paisagista e o cinema, com o que se é nele, o que se pode ser e o que nele se
a engenharia e com o desenho, com a foto- pode mudar (SEMD, 2012b, 2013a). As ima-
grafia e com o som... (Serviço Educativo do gens atuais do Douro estão ainda associadas
Museu do Douro [SEMD], 2015, p. 2) a referenciais estereotipados e nostálgicos e,
neste âmbito, Andreia Magalhães e Samuel
Por meio de possibilidades emergentes e Guimarães (s.d.) mencionam na publicação
criativas, espaços de exploração multis- relativa ao seminário Matéria<=>Ficção, re-
sensorial e de experimentação, que poten- alizado no Museu em 2014: ‘para além da
ciam o encontro do corpo, aquele que sente imagem postal que é a mais reconhecível, o
(Abram, 2007), com as diversas paisagens Douro tem configurações mais complexas, se
(visuais, tácteis, sonoras, olfativas e gusta- quisermos outras paisagens’ (p. 4). Conforme
tivas), Eu sou Paisagem procura promover o Aurora Carapinha (2002), a paisagem é

12 2 D E R I vA s # 0 3 D I S C U R S O S E D U C AT I V O S E M M U S E U S
dinâmica, ‘construída e constituída por escolar, que se distingue em número (em par-
elementos vivos’ (p. 34), pelo que devemos ticular os grupos de crianças que frequentam
entendê-la como tal e ‘questionar quais os a Educação Pré-escolar e o Primeiro Ciclo do
valores, os métodos, os modelos através dos Ensino Básico), e outros coletivos inseridos
quais a olhamos’ (p. 34). nos contextos culturais e sociais locais regis-
tando-se, em alguns casos, uma participação
A ação do SE do Museu do Douro tem-se cin- continuada nos diversos projetos.
gido maioritariamente pela via institucional
e é através das parcerias estabelecidas com O Projeto BIOS , centrado anualmente numa
instituições locais que se chega às pessoas. temática específica, desafia os participan-
Referimo-nos aos grupos integrados no con- tes para a prática de trabalho de projeto.
texto educativo e às associações recreativas, O Projeto estrutura-se segundo distintos
culturais e instituições sociais, que compre- momentos: sessões preparatórias à sua im-
endem um público alargado, da criança ao plementação, com o grupo de participantes
adulto sénior. Nos primeiros anos (de 2007 a (professores, educadores ou outras pesso-
2011) a ação educativa centrou-se essencial- as envolvidas), perspetivando a partilha de
mente no público inserido na comunidade temas e ideias e a articulação de linhas orien-
escolar da RDD, procurando mobilizar os tadoras de atuação; oficinas de experimenta-
sujeitos a olhar, de diversos modos; a pensar, ção para professores, educadores, alunos e
com sentido crítico; e a atuar, com responsabi- outros grupos de participantes, concebidas
lidade cívica, os lugares do território duriense em coautoria com autores e profissionais de
e os do mundo. A população escolar mostrou- diversas áreas, destacando-se como oficinas
se porventura, à semelhança do que comum- desenvolvidas, as de Teatro, Escrita, Som,
mente acontece, a que estaria mais recetiva a Movimento, Narrativas Visuais, Construção,
integrar os projetos educativos, mas também, Arquitetura Paisagista e Sombras; comuni-
conforme Samuel Guimarães refere (2010), cações ao longo do processo de trabalho do
no âmbito do Projeto ‘Meu Douro’ – Projecto Projeto, por meio do designado correio do pro-
com Escolas 2009/2010, aquela que de forma jeto, cujo objetivo se centra não só em acom-
prioritária interessava estimular. Este tra- panhar o processo e troca de informação,
balho desenvolvido com as escolas permitiu mas também comunicar propostas e colocar
iniciar um processo de diagnóstico territorial, desafios, por parte da equipa do SE; e a apre-
perspetivando a criação de programas mais sentação pública final dos projetos desenvol-
próximos das pessoas – pois é pelo conhe- vidos. O registo do Projeto e a reflexão sobre
cimento profundo das particularidades dos o processo de trabalho desenvolvido inte-
públicos e dos contextos onde se atua que se gram um programa de publicações anuais,
poderá criar e propor ações dotadas de sig- as BIOS Zine, nas quais cumulativamente se
nificado efetivo. Presentemente, o Projeto procura a disseminação do projeto, das práti-
BIOS integra como participantes a população cas nele estabelecidas e de uma consequente

12 3 D E R I vA s # 0 3
avaliação pública. Destacam-se ainda os do- cómico, marcante’ (SEMD, 2012a, p. 13)
cumentários do projeto que visam registar tendo daí resultado o BIOS Filme que com-
num formato audiovisual as diversas ações preende 51 histórias; e/ou a relatarem outras,
integrantes do processo de trabalho. desencadeadas a partir do que indiciava
uma imagem. O Projeto BIOS – Segredos
O processo de trabalho desenvolvido no âm- (2012/ 2013) procurou fomentar a atenção
bito do Projeto BIOS figura um modo muito pelas pequenas grandes coisas, numa pai-
particular de atuar, onde se procura poten- sagem, num lugar, num ser (SEMD, 2013a,
ciar experiências reflexivas, críticas e ativas. 2014) e o registo da sua imagem, do seu mo-
Destaca-se como um modo singular de ‘bio- vimento e do som. São exemplos, conforme
grafar’ uma cultura, de a reconhecer, de a inscrito na publicação BIOS Zine. BIOS –
mostrar e de a pensar, para agir. Anualmente, Segredos Projeto Anual 2012 e 2013 (SEMD,
os participantes são desafiados a partilha- 2013a, pp. 42-43), os ‘lugares que passamos
rem, segundo diversos suportes, histórias, todos os dias e não vemos com atenção’ a
reais e/ou imaginadas, do quotidiano du- ‘perceção dos sabores que se escondem nas
riense; a olhar e a escutar atentamente as paisagens, as suas características tácteis, os
coisas da paisagem; a mergulhar nas singu- cheiros particulares de cada cultura’ e os
laridades do eu e das coisas do mundo. ‘segredos dos corpos’. Para o ano 2013/ 2014,
o BIOS – Cartas incidiu na questão das re-
De forma a tornar mais explícito o sentido lações entre liberdade e paisagem. Os desa-
do Projeto, as intenções conceptuais enun- fios de projeto convidaram, por exemplo, os
ciadas, as práticas desenvolvidas e a conhe- participantes a partilhar em postal o que é
cer as temáticas abordadas serão, de seguida, para os próprios a paisagem e a liberdade, ou
descritas de forma sucinta, algumas ações e os objetos (ou as imagens destes) que façam
desafios propostos, partindo da análise das lembrar paisagem e liberdade. O Projeto
publicações BIOS Zine e dos programas anu- BIOS – Matéria<=>Ficção (2014/ 2015) pro-
ais, assumindo-se para o efeito, a citação de pôs refletir sobre a matéria das coisas, fic-
fragmentos cruciais. cionar a partir da matéria e pensar a ficção
como uma possibilidade para a interpretar
A primeira edição do Projeto, BIOS – (SEMD, 2014). A quinta edição do Projeto
Biografias e Identidades (2011/ 2012), surge BIOS , BIOS – Ficção=>Matéria (2015/ 2016),
como precursora de um trabalho de cria- em curso, propõe pesquisar e explorar a pai-
ção de biografias sobre as coisas humanas e sagem como matéria ficcionável e como fic-
não humanas do território duriense – uma ção materializada (SEMD, 2015).
coleção de BIOS , desenvolvida segundo
múltiplos suportes. Neste, as pessoas foram
convidadas a relatar, e a registar em vídeo,
um ‘episódio singular, insólito, curioso,

124 D E R I vA s # 0 3 D I S C U R S O S E D U C AT I V O S E M M U S E U S
II. forma de legitimar as instituições (Padró,
Contextos de participação em museus: 2004). Ainda assim, a seleção dos conteúdos
Reflexão sobre as práticas continua ligada a uma conceção elitista, fa-
do Museu do Douro zendo persistir uma separação entre o pro-
dutor e o recetor que apreende apenas o que
O presente ponto procura estabelecer uma lhe é dado (Padró, 2004).
reflexão em torno do princípio de partici-
pação, conduzida por diversos posiciona- As abordagens educativas críticas referem-
mentos que têm tomado os discursos sobre se aos discursos desconstrutivo e trans-
os modos de pensar os públicos nos espaços formativo (Mörsch, 2009), assumindo-se a
culturais e sobre as potencialidades de uma desconstrução e a reconstrução da educação.
colaboração criativa, permitindo analisar, Carla Padró (2004) integra na cultura críti-
nesse âmbito, as práticas participativas in- ca a afirmação de processos de autorreflexão,
tegradas nas propostas educativas do Museu de questionamento interno, de possibilida-
do Douro e pensar possibilidades de atuação. des de negociação na tomada de decisão e de
construção partilhada de conhecimento. O
Na sua categorização de modos de entender discurso desconstrutivo traduz uma atitude
a educação artística e a relação com os públi- reflexiva e crítica em relação aos modos de
cos em centros de arte e espaços expositivos, pensar e agir no campo educativo. A deslo-
Carmen Mörsch (2009, 2011) distingue qua- cação da instituição para o exterior (os con-
tro tipos de discurso, afirmativo, reprodutivo, textos locais) e a consequente incorporação
desconstrutivo e transformativo. A afirmação de estratégias de participação colaborativa
acrítica e a abordagem reprodutiva inserem- no desenvolvimento de projetos, consti-
se num modo unidirecional de transmissão tuem-se como processos de transformação
de conhecimento. Ao visitante da abordagem estrutural na instituição (Mörsch, 2009). O
afirmativa, que necessariamente deve ser princípio de participação, a contemplação de
entendido na cultura dominante (Mörsch, projetos participativos e negociados, subs-
2009), não é exigido mais do que uma atitude tantifica a transformação das organizações
passiva, gerando uma natural segmentação que atuam como agentes de mudança social
dos visitantes (Padró, 2004) e uma fissura (Mörsch, 2009).
entre estes e a instituição. As perspetivas
que tomam como base a democratização do Tomando a reflexão de Irit Rogoff (2008)
saber, da cultura e da arte procuram, a partir sobre a viragem educativa na curadoria,
do discurso reprodutivo, chegar a públicos evidencia-se a urgência de pensar o museu
que, de forma autónoma, não se dirigem aos como um lugar que se abre às e para as pes-
museus (Mörsch, 2009) e criar lugares de ex- soas, como um lugar de partilha de ideias,
periência e de interação para todos, perspe- de potencialidade e de realização. Rogoff
tivando o crescimento das audiências, como (2005, p.119) propõe como possibilidade de

12 5 D E R I vA s # 0 3
ação depois da crítica, uma mudança das No que diz respeito ao Museu do Douro, e a
‘traditional relations between all that goes partir de um primeiro olhar, pode-se consi-
into making (practice) and all that goes derar que o tecido territorial onde atua, vasto,
into viewing (audience) the objects of visual denso e complexo, afirma características par-
cultural attention’. Esta ideia de criar uma ticulares que deixam prever condicionalis-
abertura para um novo posicionamento do mos específicos, nomeadamente no âmbito do
público baseia-se na transgressão da tradi- posicionamento do SE no próprio contexto e
cional relação entre o produtor e o recetor, o do acesso e da participação dos públicos. Na
artista e o público, o ator e espectador e na verdade, que possibilidades de participação se
afirmação de novas propostas de participa- configuram neste território de atuação? Que
ção que posicionam o tradicional visitante, espaço existe para uma participação efetiva?
agora como coautor (Acaso, 2012). Conforme
María Acaso (2012, p. 5) o novo participan- Através da análise de documentos produ-
te ‘pasa de ser objeto a sujeto, de ejercer un zidos pelo Museu reconhecem-se algumas
acto de consumo a ejercer um acto de cono- dinâmicas do SE que testemunham desen-
cimiento, de ser pasivo a participar colabo- volvimentos a nível da participação dos pú-
rativamente con el autor en la construcción blicos – dos parceiros, como são designados
del significado de la obra’. os participantes dos projetos do ‘trabalho
em comum’ (SEMD, 2012b, 2013b, 2014).
À luz do princípio de participação define- Assim, salientam-se alguns discursos esta-
se, para a investigação, o lugar do educativo belecidos pelo SE com os participantes, os
como um espaço aberto ao exterior, à par- colaboradores e os parceiros institucionais.
ticipação livre e inesperada das pessoas na
criação de significado partilhado e negocia- O programa Eu sou Paisagem 2015/2016
do, como um espaço para o jogo, mas onde integra, pela primeira vez, no âmbito do
se permite questionar as regras do jogo Projeto BIOS , um grupo de acompanhamen-
(Sternfeld, 2012) e não unicamente como to e discussão dos processos do projeto (SEMD,
um lugar inclusivo e contemplativo da ação 2015). Refere-se a um pequeno grupo de
interativa e acrítica. colaboradores, criado essencialmente a
partir de um coletivo de participantes re-
Desafiante será incorporar na ação educa- gulares nas diversas edições do Projeto, na
tiva o princípio de participação nos termos sua maioria, professores e educadores da
aqui apontados, o que porventura justifica, Região. Com efeito, já na publicação BIOS
na prática, a reconhecida interpenetração Zine. BIOS – Segredos Projeto Anual 2012 e
de várias abordagens discursivas e a solidez 2013 faz-se referência a um grupo de ‘profes-
das estratégias afirmativas e reprodutivas, sores que quiseram contribuir e trabalhar,
mesmo em discursos de cariz transforma- de modo mais partilhado, o desenho deste
dor (Mörsch, 2009, 2011). projeto’ (SEMD, 2013a, p. 42).

126 D E R I vA s # 0 3 D I S C U R S O S E D U C AT I V O S E M M U S E U S
Destacam-se cumulativamente as sessões O projeto Apeadeiros, constitui-se num
práticas preparatórias para implementa- trabalho de pesquisa e registo de som e de
ção dos projetos BIOS , destinadas a profes- vídeo das singularidades das paisagens do
sores, educadores ou outras pessoas que as território, no qual se destaca a participação
queiram integrar, nas quais se procura con- de colaboradores externos.
substanciar um trabalho mais partilhado,
de forma a melhor ajustar a ação educativa O projeto Arquivos Visuais, consiste na re-
às necessidades dos públicos envolvidos. colha de filmes amadores, de formato 8 e 16
mm, nos quais se identificam paisagens e
Os desafios BIOS fomentam o trabalho de pessoas do território.
pesquisa, por parte dos participantes, e tes-
temunham uma ação ativa e colaborativa Destacam-se ainda os registos em vídeo de
na criação de um acervo de singularidades pessoas e culturas da Região, reconhecidas
do território duriense. Refiram-se as co- a partir de núcleos familiares e de amizade,
leções que se foram construindo, gráficas, como o Maçãs Rosa (2012/2013), o Cerejas
visuais e audiovisuais, de histórias e acon- José (2014/2015) e, definido para 2015/2016,
tecimentos sobre pessoas, coisas e lugares. o Maçãs Rosa | Cerejas José, dedicado à docu-
Estas ações e os seus resultados estimula- mentação dos trabalhos de investigação que o
ram o desenvolvimento de um trabalho de Museu acolhe: a recuperação de uma pintura
investigação continuado, por parte do SE, datada do século XVI, pertencente ao Museu
nos espaços do território – sobre histórias de Lamego, desenvolvida pelo conservador
e lugares vividos –, que desencadearam a do Museu e o trabalho de investigação de-
criação de coleções de BIOS audiovisuais senvolvido pelo Departamento de Genética
e outros projetos integrantes do progra- da Universidade de Trás-os-Montes e Alto
ma anual. Apesar de exteriores ao Projeto Douro, o processo de cultura in vitro e iden-
BIOS , entende-se pertinente incorporar tificação do genoma da videira (SEMD, 2015).
aqui esses projetos, inscritos no programa
anual 2015/2016, no sentido de tornar mais O Projeto BIOS desencadeou outros proje-
clara a ação do SE. tos em parceria: o Projeto BIOS – Biografias
– Municípios do Douro e Trás-os-Montes, uma
Histórias na 1ª Pessoa, consiste num pro- parceria com a Fundação EDP, atualmente
grama de recolha de histórias, relatadas no terceiro ano de desenvolvimento. Este
pelas pessoas que habitam a região do projeto procura destacar o que é singular
Douro. Referem-se às histórias do quoti- num coletivo, por meio da realização de
diano, as ‘cómicas, prosaicas, misteriosas, oficinas e ações de artistas nas associações
secretas’ (SEMD, 2015, p. 3) ou às histórias locais, de caráter social, cultural e recre-
dos lugares. ativo e agrupamentos escolares (SEMD,
2015). Destacam-se as oficinas de animação

127 D E R I vA s # 0 3
realizadas em 2013/2014, em parceria com A análise estabelecida procura destacar alguns
a Associação de Ludotecas do Porto/ Centro pontos fundamentais que traduzem o modo
Lúdico da Imagem Animada_ ANILUPA , de pensar a educação no Museu do Douro. As
tendo resultado, da reunião dos proje- possibilidades de integração de colaboradores
tos desenvolvidos, uma curta-metragem para pensar conjuntamente a ação educativa e
experimental. a colaboração dos públicos na pesquisa conjun-
ta e na produção de materiais sobre o território,
As publicações anuais, as BIOS Zine, mais procuram promover uma maior proximidade
do que documentar de um modo descritivo com as pessoas e introduzem possibilidades de
o projeto anual, objetivos, metodologias e atuação com potencialidade para reposicionar
procedimentos, procuram sim, e numa pers- o lugar do educativo como um espaço de possibi-
petiva mais ampla e crítica, problematizar a lidade que se abre a outros modos de ser (Rogoff,
pesquisa e o processo de trabalho desenvol- 2008). Salienta-se também a importância
vido. Conforme faz referência a equipa do dada às parcerias estabelecidas, plataformas
SE na BIOS Zine. BIOS – Segredos Projeto que permitem agir no território; e a abertura
Anual 2012 e 2013, a publicação ‘é outro para a partilha de inserções particulares, as
modo de pensar e agir sobre as experiências de um qualquer, nas publicações anuais, ins-
a que nos propomos aqui. Um treino para a trumentos de reflexão e avaliação dos projetos.
interrogação’ (SEMD, 2013a, p. 10). As pu-
blicações para além do intuito comunica- Trata-se de apontamentos participativos que
tivo e de autorreflexão por parte da equipa, atestam uma vontade de aprofundar as pos-
pretendem ser instrumentos de partilha: sibilidades de participação, de colaboração
contemplam páginas destinadas aos parti- e de partilha na tomada de decisão, sendo
cipantes, para testemunho da sua visão do nesse sentido que se configura um possível
processo de trabalho do Projeto e um espa- espaço de atuação no campo da investigação.
ço de criação reservado aos profissionais da
arte, da cultura e da ciência, colaboradores III.
do Projeto, a secção Inserções. Sobre esta, Um posicionamento para a investigação
menciona a equipa, ‘é a nossa zine dada a ou- no Museu do Douro
tros. É nossa intenção e desejo contar com a
presença de outras pessoas, cujos interesses Os propósitos previamente definidos para
ou afinidades se cruzam com os temas ou a investigação contemplam a análise e ex-
processos que propomos, mais cúmplices ou ploração de modelos e práticas educativas
mais distantes’ (SEMD, 2013a, p. 87). considerados em museus que integram o
pensar e o agir nos contextos onde atuam e
o desenvolvimento de projetos participati-
vos que envolvam o contacto de pessoas, e
de coletivos, em lugares de questionamento

12 8 D E R I vA s # 0 3 D I S C U R S O S E D U C AT I V O S E M M U S E U S
e de controvérsia. Tomando por objeto de es- Assume-se o princípio de participação não
tudo o Museu do Douro procura-se, por meio como uma solução ou como um conceito abs-
de uma inscrição reflexiva e crítica e da ação trato, mas, e de acordo com Rodrigo (2007a,
prática conjunta com o SE , pensar modos de p. 4), ‘como un conjunto de prácticas em
integrar, aplicar, observar e avaliar, práticas continua negociación’. Assim, assume-se o
participativas nos programas educativos e educativo como um lugar de partilha ines-
tentar compreender o âmbito real da parti- perada de subjetividades, de reunião onde se
cipação neste contexto. trocam falas, saberes, histórias e curiosida-
des, onde se ouve, mas também se questiona
Neste sentido, emergem algumas questões e, por outro lado, como um espaço reconhe-
que integram o desenho do plano de ação. cido pelas pessoas do território.
Como pode o Museu ser mais para as pes-
soas? Contemplando aqui a transgressão do
tradicional posicionamento do museu como
veículo que reproduz informação, para se REFERêNCIAS
afirmar como um espaço aberto à produção
Abram, David (2007). A Magia do Sensível. Lisboa:
partilhada de conhecimento (Mörsch, 2011). Fundação Calouste gulbenkian

Acaso, María (2012, maio). La rEDUvolution en


Que possibilidades de participação e de envol-
los museos: por que el cambio de paradigma ha de
vimento são permitidas? De que forma per- haceres TAMBIEN en las instituciones culturales. Artigo
mitem o contexto, o território e os diferentes apresentado no Seminário Museus Participativos,
públicos, existir? Que desafios e exigências Porto, Portugal. Acedido em http://www.scribd.
emergem? E que significados permitem criar? com/doc/92868814/Comunicacao-Maria-Acaso-
Seminario-Museus-Participativos-Fundacao-dr-
Antonio-Cupertino-de-Miranda
Uma rede de agentes implicados nos projetos
educativos – participantes, colaboradores, Carapinha, Aurora (2002). Projeto meu lugar, minha
cidade – Habitares Serralves. De uma reflexão sobre
autores-colaboradores, agentes educativos,
a paisagem. Transcrição de excertos gravados em
culturais e sociais e outras estruturas, locais, comunicação. Em Samuel Guimarães & Elvira Leite
regionais e nacionais –, tem sido paulatina- (Coord.), Habitares Serralves 2001 e 2002 (pp. 32-35).
mente estabelecida. Perspetiva-se a criação Porto: Fundação de Serralves
de parcerias ativas com as pessoas e os co- Del Río, víctor (2007). La educación artística ante el
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130 D E R I vA s # 0 3 D I S C U R S O S E D U C AT I V O S E M M U S E U S
Play / Stop
Discursos sobre
o Contemporâneo

DA N I E L A R O S Á R I O
F B Au P ( FAC u L DA D E D E B E L A s A R t E s DA u N I v E R s I DA D E D O P O R tO)

1 31 D E R I vA s # 0 3
Sob a forma de três ensaios fílmicos,
pretende-se explorar a questão:
como pensar o contemporâneo1
através da imagem?

1. Por ‘contemporâneo’ entende-se


neste contexto a época atual.

1 32 D E R I vA s # 0 3 P L AY / S T O P
RESUMO A B S T R AC T
Atualmente, há uma profusão de obras que Currently, there is a profusion of works that
escapam à linguagem fílmica convencional, escape to the conventional film language,
havendo uma aposta no diálogo entre o ci- exploring the dialogue between cinema and
nema e as artes plásticas – exploram-se su- the different forms of art – across different
portes, linguagens, durações, intensidades, media, languages, time periods, intensities
atravessam-se técnicas – uma relação que and techniques. A relationship that results
resulta na expressão de diferentes movi- in the expression of different artistic move-
mentos artísticos no cinema e a transfigura- ments in cinema and the transfiguration of
ção do cinema nesses movimentos. the latter into the former.

A recorrente proliferação de obras híbridas The proliferation of hybrid forms problema-


permitem problematizar o dispositivo cine- tize the cinematic dispositive concerning its
matográfico no que diz respeito ao seu re- historical and conceptual basis. On the other
gime histórico e conceptual, por outro lado, hand, promote other reflections around the
na base desta mudança identificam-se novas image thinking – as an instance that brings
formas de pensar a imagem – como instân- into play enunciative, discursive and sen-
cia que coloca em jogo uma teia de relações sory relationships. In the context of this
enunciativas, discursivas e sensoriais. No article, the main focus is not to promote a
contexto do artigo, não se trata de identificar debate related to the possible fissure within
e reafirmar uma possível fissura com os pa- the conventional representation models, but
drões de representação convencionais, antes to discuss how those can count towards new
de questionar que articulações e plasticida- plasticities and benchmarks. Seeking to pro-
des podem ser inauguradas perante a força vide the debate, are questioned the possibi-
destas obras na atualidade. lities in the images of Aernout Mik (2009),
Sharon Lockhart (2008) and Sarah Wood
Neste contexto, questiono as possibilidades (2014) as gestures that reinvent the cinema-
nos vídeos de Aernout Mik (2009), Sharon tic dispositive and take up other relations
Lockhart (2008) e Sarah Wood (2014), como with the visitor.
gestos que reinventam o dispositivo cine-
matográfico e ativam outras relações com As the viewer identifies and attributes me-
o visitante. O espectador constrói a obra aning to the work, it is considered an active
enquanto se identifica e a significa, é con- vector in its execution. From the analysis, we
siderado um vector ativo na sua efetivação. intend to conduct a reflection on the politi-
Partindo da sua análise, pretende-se con- cal nature of the aesthetic experience and
duzir uma reflexão sobre a natureza política the possibility for these artistic moments as
da experiência estética nas obras e a possi- inscriptions in the political field.
bilidade destes movimentos artísticos como
inscrições no campo político.

PA L AV R A S - C H AV E
Arte
Política
Aernout Mik
Sharon Lockhart
Sarah Wood

133 D E R I vA s # 0 3
Antes.
Aeronaut Mik

A obra de Aernout Mik resiste a uma clara Um corpo no espaço é o princípio base da es-
taxonomia; reivindica um território inter- cultura. Aernout Mik (2009) reporta ‘figuras’
disciplinar, onde se explora através da ima- de corpos no espaço, objetos e experiências
gem em movimento, escultura e arquitetura de tempo. A estrutura arquitectónica do es-
uma perspectiva psicossocial do estado da paço ativa um diagrama de relações entre
sociedade atual, envolvendo temas como a os vídeos e os visitantes, onde as imagens se
crise económica, a comunidade, a violência relacionam sem que seja estabelecida uma
e a tensão social. relação de dependência; afirmam-se no es-
paço como frames de tempos distintos. Por
outro lado, a falta de ornamentação sonora
dos vídeos reafirma a ligação, através da qual
se apela à presença do visitante, a um certo
estado meditativo.

Mik embora utilize a linguagem documental,


também coreografa situações: performances
descontextualizadas do lugar, disruptivas,
absurdas e subversivas. A constante ambi-
valência entre o real e o ficcional nas ima-
gens, recria um constante re-posicionar do
espetador, forçando-o a refletir no status das
imagens, no conceito de narrativa e real.

134 D E R I vA s # 0 3 P L AY / S T O P
‘We have to do something,
we have to go somewhere’
Raw Footage (2006)

A nostalgia nem sempre evoca um passa- No que concerne à dimensão filosófica, o


do utópico que nunca existiu, antes um conceito de comunidade é perspectivado de
desejo de retorno, uma forma de perten- acordo com as palavras de Giorgio Agamben
ça. Derivando etimologicamente do grego (1990), em que a essência comunitária reali-
νόστος – retorno a casa – e ἄλγος – condi- za-se na sua impropriedade, ou seja, rompe-
ção de dor, sofrimento. Aernout Mik (2009) se com a concepção de um compromisso
toca o tema da nostalgia, no sentido em histórico a realizar ou de uma origem a ser
que evoca um desejo de regresso a casa, ou restituída – a simetria entre arché e télos
seja, reafirma a necessidade de ligação com (origem e destino). A comunidade que vem
a comunidade. No contexto da sociedade não está consignada a nada. Na obra, o sujei-
contemporânea e das questões que se pren- to é colocado como elemento relacional, uma
dem com a obra, a nostalgia ganha força e possibilidade e potência entregue à dimen-
ressonância, na medida em que o impacto são da alteridade do grupo.
das políticas capitalistas, a expansão global
do mercado, o acesso às tecnologias, têm A obra conduz-nos a um estado de suspensão
representado graves consequências para a entre a dimensão da realidade e a represen-
definição da identidade pessoal e colectiva, tação cinematográfica.
aliado a um sentimento de fragmentação e
incerteza. Na articulação entre os diferentes vídeos
que percorrem a instalação protagoniza-se
A intersecção destas questões com a imagem, um desejo do grupo criar uma ação colectiva,
traz para o grande plano as marcas de um um sonho que se estende de uma sala para a
tempo, em que o confronto com o visitante outra.
pode surgir como incitador de novos posi-
cionamentos em relação à produção de me-
mória, identidade, comunidade e à dinâmica
desses processos.

135 D E R I vA s # 0 3
Durante. Lunch Break (2008) é composto
Lunch Break por um plano ininterrupto com a duração
de 83 minutos, sem qualquer narrativa.

Fig.1 Lunch Break, single-channel video installation


(sharon Lockhart, 2008)

Courtesy the artist, neugerriemschneider,


Berlin and gladstone gallery, New York and Brussels

136 D E R I vA s # 0 3 P L AY / S T O P
O plano percorre um corredor do estaleiro do campo do visível e sensível, renegando o
Bath Iron Works (BIW ), Kennebec River, du- frenesim e a lógica de consumo imediato que
rante a pausa de almoço dos trabalhadores. em grande medida domina a experiência vi-
sual contemporânea.
O vídeo originalmente com a duração de 10
minutos, posteriormente manipulado digital- Tradicionalmente, perante a filosofia, o
mente, dilata no tempo; o movimento é quase quotidiano detém um lugar inferior, defini-
impercetível, permitindo a contemplação dos do como o não-filosófico. A vida quotidiana
gestos dos trabalhadores e do espaço cinema- na sua trivialidade é uma cadência de repe-
tográfico, onde a banalidade própria do quoti- tições, gestos de trabalho e de corpo, ciclos
diano ganha um lugar central. Neste contexto, de tempo, nessa acumulação de momentos e
é proposta uma experiência de tempo no com- signos a sociedade significa-se e justifica-se,
plexo fabril – entre o real e a imagem em movi- expressa o tudo e coloca-o em relação.
mento – com o intuito de conduzir o visitante
ao plano do poético e reflexivo. O sistema capitalista parece reclamar este
espaço, atualmente, não representa um ‘es-
A aparente teatralidade de Lunch Break ma- paço-tempo abandonado, não é mais o campo
nifesta a relação do trabalhador do Séc. XXI deixado à liberdade (...) torna-se objecto
com um dos símbolos mais poderosos da (...) domínio da organização, espaço-tempo
sociedade de produção – a fábrica – espaço da auto-regulação voluntária e planificada’
onde o intervalo laboral surge como um ri- (Lefebvre, 1991, p. 82). A análise das dinâmi-
tual social que interrompe o fluxo de traba- cas quotidianas permitem reconhecer o sujei-
lho instituído. Assim, o desacelerar do olhar to como elemento que participa nos jogos de
e consequente hiperbolização dos gestos verdade de cada época, como se constrói, re-
ganha uma dimensão simbólica na relação laciona e se pensa na sociedade; em que a prá-
trabalhador / produção laboral, em que sur- tica laboral está inserida num esquema social
gem questões relacionadas com as condições que lhe é proposto como elemento do grupo.
de trabalho no contexto da sociedade con-
temporânea, as dinâmicas entre o espaço Lunch Break desempenha um papel impor-
laboral e quem o habita. tante no contexto do questionamento da
sociedade partindo das suas próprias repre-
A temporalidade da peça gera tensão, no sen- sentações e dinâmicas locais$/$globais, um
tido em que contraordena a nossa experiência jogo que se estabelece entre o espaço laboral,
e expectativa sensorial, força um redesenhar quem o habita e o visitante.

1 37 D E R I vA s # 0 3
Depois.
Lost Film, Found Film

Nos ensaios filmícos Lost Film, Found Film ‘entre imagens’ pode ser potenciador de novas
de Sarah Wood – For Cultural Purposes Only intertextualidades. De acordo com esta pers-
(2009), Three Minute Warning (2012), I am a pectiva, ‘(…) o arquivo não é reflexo do real,
Sky (2014), Murmuration x10 (2015) – há um mas uma escrita dotada de sintaxe e ideo-
contínuo questionamento sobre a relação logia…’ (Didi-Huberman, 2004, p. 152-153),
da imagem com a memória, do arquivo do- em que a origem está alocada a um ponto de
cumental com a narrativa histórica. Pode o referência temporal já estratificada. Na con-
arquivo garantir uma alegação de verdade? tingência desta não-linearidade constrói-se
o discurso sobre a história.
I Am A Sky (2014) chega-nos como uma revi-
sitação a locais de vigilância, em que é pro- O filme parece aproximar-se da ideia de uma
posta uma subversão dos papéis. Optou-se história fragmentada. A voz associa-se ao ar-
pela sua análise em detrimento dos restan- quivo sob a forma de um discurso pessoal e
tes vídeos por se tratar de imagens aparen- são colocadas questões relacionadas com o
temente banais mas parecem ocultar algo, destino e as possibilidades das imagens, no
como se a imagem se construísse sobre dife- contexto de uma época obcecada com o re-
rentes camadas de significação. gisto e o mistério da memória.

A artista reclama o arquivo, com especial Pode a imagem sobreviver ao passado?


foco o arquivo de guerra, como ponto de par-
tida para uma reflexão sobre a obsessão pelo I Am a Spy (2014) protagoniza um movimento
registo na contemporaneidade e o tratamen- de dessacralização da imagem, em que esta
to cinematográfico da memória. sobrevive enquanto possibilidade de desloca-
mento a outras narrativas e não como ‘lega-
No processo de trabalho, a recombinação e do’ histórico, ‘history is what we are making,
a justaposição das imagens, logo dos espaços right now.’ (I´am a spy, 2014).
e temporalidades a elas associadas, descon-
textualiza o arquivo do seu ponto de refe-
rência original, incitando outras narrativas,
qualidades e sentidos ao documento. Neste
contexto, adopta-se o conceito de arquivo de
Didi-Huberman (2004) em que este se cons-
trói na conjuntura de tensões e lacunas, rela-
cionadas com a própria natureza da imagem,
em que o confronto do artista com o espaço

138 D E R I vA s # 0 3 P L AY / S T O P
Fig. 2 still from I Am A Spy (Sarah Wood, 2014)

Courtesy the artist, London.

1 39 D E R I vA s # 0 3
Arte & Política: acordo com a sua dimensão antagonista, em
possibilidades e fronteiras que o conflito detém um papel fundamental,
e na sua natureza contingente, algo mutá-
As manifestações Aernout Mik (2009), Lunch vel que não pode ser dado como garantido.
Break (2008) e I Am a Spy (2014) partem de Aqui, a política afasta-se da lógica consen-
inquietações relacionadas com o espaço- sual. A fantasia de uma sociedade conciliada,
tempo contemporâneo. A questão que se em que posições claramente distintas são
coloca é a seguinte, ‘Will art always remain unidas numa mesma matriz, mostrou-se
a fiction, or can it, in fact, generate societal perigosa ao longo da história, conduzindo
change?’ ( Bruyne e Gielen, 2011, p.3) a práticas totalitárias. De acordo com esta
perspectiva, o contributo dos movimentos
Guy Debord (1997) no ensaio número 190 artísticos determina-se no seu poder crítico
definiu concisamente o paradoxo das prá- face à hegemonia dominante e na fomenta-
ticas artísticas, no contexto do século XX , ção de dissenso (Mouffe, 1996).
descrevendo-as como um movimento de
mudança e simultaneamente a expressão da A prática artística por uma questão identitá-
impossibilidade da mesma. ria detém especificidades que a distanciam
do ativismo político. Se é verdade que a res-
No dealbar do século XXI há uma reescrita da sonância do léxico próprio do político – con-
dialéctica de Debord, em que a produção artís- ceitos como comum, liberdade, democracia,
tica e cultural parece engrenada no processo trabalho – fez parte da pulsão subjacente ao
de valorização capitalista; mais do que nunca, fazer artístico, suportado na força provoca-
a sua autonomia radical surge apenas como tória dos conceitos, não é menos verdade que
uma autonomia relativa no contexto do circui- a obra e o autor não se confundem necessa-
to mediático, submetido à lógica do espetáculo. riamente e que a consciência de uma situação
não garante a determinação para a alterar, o
Tomarei o pensamento de Chantal Mouffe que pode ser proposto é uma multiplicidade
(1996, 2007) como exemplo das múltiplas de posições de sujeito, tão importante como
articulações do tema e usá-lo-ei como ponto gesto de oposição à totalização do sensível.
de referência para abordar a relação entre a
arte e a política. Neste sentido, a possibilidade de resistên-
cia que se pode evocar com a arte não se
Chantal Mouffe sublinha a importância do relaciona diretamente com os processos de
entendimento das dinâmicas da política emancipação de uma situação política par-
democrática para a criação de uma contra- ticular, são posições de subjetividade dentro
corrente das práticas artísticas face ao do- de esquemas de poder, em que são levanta-
mínio capitalista. A política democrática, das questões relacionadas com o real e em
neste contexto, terá de ser compreendida de que podem ser instituídos espaços reflexivos.

14 0 D E R I vA s # 0 3 P L AY / S T O P
O que aqui se defende é que não existe uma Num primeiro contato, o estatuto e o sentido
arte política, existe a possibilidade de um das imagens podem ser dúbios para o espec-
acontecimento político despoletado pela tador, podendo este revelar a lógica do dispo-
contingência da obra e pelo potencial de des- sitivo crítico quando confrontado perante a
locamento a ela associado. estranheza e a necessidade de refletir sobre
ela, neste ponto de contato abre-se todo um
A sociedade através das suas próprias re- campo de possibilidades e tensões, onde são
presentações é produtora de sentido para marcadas posições de subjetividade dentro
os membros que nela participam, onde são desse quadro de relação.
adoptados sistemas simbólicos que vão ao
encontro do desejo do homem entender Os planos parecem ir ao encontro de um de-
melhor o mundo. A arte participa na cons- sejo de intervir o menos possível no espaço
tituição e perpetuação da ordem simbólica, cinematográfico, convida-se a uma submer-
é-lhe inerente uma dimensão ética e polí- são no tempo da obra, ao domínio sobre o
tica.(Mouffe, 2007) É no plano simbólico olhar e a uma resistência às demolições da
que o domínio político e artístico se podem contemporaneidade, através do pensamen-
encontrar, ou seja, no espaço que partilham to – demolições próprias de uma sociedade
em comum. que parece subjugar à lei o mercado cada ín-
fimo recanto da atividade humana, expondo
Percorrendo uma vez mais os filmes Aeronaut uma profunda fratura nos laços sociais e na
Mik (2009), Lunch Break (2008) e I Am a Spy ordem simbólica que estruturava as comu-
(2014), a pergunta que se coloca é a seguinte: nidades. (Jappe, 2012)
Que relação têm estas imagens com a minha
contemporaneidade? Estas obras permitem pensar no cinema
Talvez este seja um ponto crucial. como um dispositivo que se reinventa, em
que o visitante é um vector do espaço cinema-
O possível desvio da obra em relação ao re- tográfico e a sua relação de reciprocidade per-
ferencial do visitante, permite a abertura da mite a efetivação da obra. Por outro lado, são
mesma ao político – espaço onde as relações obras cinematográficas que escapam aos mo-
são simbolicamente ordenadas – e a uma delos de previsibilidade propostos, que nos
mudança de percepção de situações que propõem inscrições da contemporaneidade
fazem parte do universo quotidiano a um com abertura para se converter em pensa-
plano reflexivo, através de um olhar desace- mento crítico, foco de antagonismo e conse-
lerado, da contemplação dos corpos no espa- quente politização, onde a imagem pode ser
ço cinematográfico, das intertextualidades mais reveladora que qualquer discurso e,
que cada um constrói. É a leitura que se faz simultaneamente, pode ser ela geradora de
da obra que a transforma. novos discursos.

141 D E R I vA s # 0 3
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14 2 D E R I vA s # 0 3 P L AY / S T O P
notas
biográficas

143 D E R I vA s # 0 3
Ana Cristina Dias Ana Cristina Dias
Ana Cristina Dias, natural da ilha do Fogo, Cabo Ana Cristina Dias, native of the island of Fogo,
verde, é Mestre em teatro - Ramo Actor/ Cape verde, a Masters in theatre - Branch
Marionetista pela Universidade de Évora, Actor / puppeteer from the Universidade
Osteopata diplomada pela Oxford Brookes de Évora, Osteopath graduate from Oxford
University, através de protocolo com o Centro Brookes University, through agreement with
Osteopático de Lisboa (2001-2004), e Licenciada the Centro Osteopático de Lisboa (2001-2004)
em Dança pela Faculdade de Motricidade Humana, , and BA in Dance from the Faculdade de
Universidade Técnica de Lisboa (1995-2001). Motricidade Humana, Universidadede Técnica
Atualmente frequenta o programa doutoral em de Lisboa (1995-2001 ). Currently she attends
Educação Artística na Faculdade de Belas Artes the doctoral program in Arts Education at the
da Universidade do Porto, desenvolvendo um Faculdade de Belas Artes da Universidade do
projeto de investigação em torno da dança. Porto, developing a research project around dance.

Daniela Rosário Daniela Rosário


Daniela Pereira Rosário, 1986. Licenciada em Daniela Pereira Rosário, 1986. Degree in
Novas Tecnologias da Comunicação e Informação New technologies of Communication
e mestre em Comunicação Multimédia, and Information and a master degree in
Ramo Audiovisual. Atualmente, estudante Multimedia Communication, audiovisual field.
do Doutoramento em Educação Artística na Currently, Ph.D. student in Arts Education at
Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. the Faculty of Fine Arts in the University of Porto.
marta.d.rosario@gmail.com

Helena Cabeleira Helena Cabeleira


(Torres Novas, 1978). Professora Auxiliar (Torres Novas, 1978). Invited Assistant Professor,
Convidada, FBAUL (desde 2015). Doutora em FBAuL (since 2015). PhD in History of Education,
História da Educação, IEuL (2013), Mestre em IEuL (2013), Master in Arts Education, FBAuL
Educação Artística, FBAuL (2007), Licenciada (2007), Degree in Fine Arts - sculpture, FBAuP
em Artes Plásticas - Escultura, FBAuP (2002). (2002). Researcher at uIDEF-IEuL (since
Investigadora colaboradora UIDEF-IEUL 2007), FCT Doctorate Fellow (2008-11), visiting
(desde 2007), Bolseira de Doutoramento FCt researcher at Centre for Educational sociology
(2008-11), investigadora visitante Centre for (CES), University of Edinburgh (2009), Post-doc
Educational Sociology (CES), University of fellow IEuL (2014). since 2005, she has been a
Edinburgh (2009), Bolseira Pós-doc IEuL (2014). teacher of the visual arts group in secondary
Desde 2005, foi professora do grupo de Artes schools of the Ministry of Education, professor
visuais em escolas secundárias do Ministério da of Descriptive Geometry (in an independent
Educação, professora de Geometria Descritiva work regime), artist and coordinator of
(em regime de trabalho independente), artistic-educational projects in cultural
artista plástica e coordenadora de projectos institutions. Since 2002 she received several
artísticos-educativos em instituições culturais. artistic awards and grants of academic and
Desde 2002 recebeu vários prémios artísticos scientific merit (FBAUP in 2002; doctoral thesis by
e bolsas de mérito académico e científico uL-CgD in 2014; among others). Main research
(bolsa de mérito da FBAuP em 2002, tese de areas are: History of artistic higher education;
doutoramento premiada pela uL-CgD em 2014, History of curriculum and artistic disciplines
entre outros).Principais áreas de investigação (primary and secondary education); Pedagogical
e interesse: História do ensino superior theories and Research Methodologies in Artistic
artístico; História do currículo e das disciplinas Education; Training of visual arts teachers.
artísticas (ensino básico e secundário); teorias
pedagógicas e metodologias de investigação
em Educação Artística; Formação contínua
de professores de artes plásticas e visuais.

14 4 D E R I vA s # 0 3 UM OLHAR SOBRE OS DISCU RSOS DA MORTE


Madalena Wallenstein Madalena Wallenstein
Iniciou a sua formação em criança no Movimento Madalena Wallenstein began her training
da Educação pela Arte, na Fundação gulbenkian in the Movement for Education for Art, at
nos anos 70, nas áreas da música e teatro. Fez the gulbenkian Foundation in the 1970s, in
o curso de música do Conservatório Nacional the areas of music and theater. she studied
em Lisboa e licenciou-se em Educação. music at the National Conservatory in
trabalha desde 1987 como educadora artística, Lisbon and graduated in Education.
alternando a sua atividade entre contextos de she has been working as an artistic educator since
criação artística e de educação formal, não 1987, alternating her activity between contexts of
formal, de intervenção em pedagogia social para artistic creation and formal, non-formal education,
crianças e jovens e formação para professores intervention in social pedagogy for children
e artistas. A sua atividade de pesquisa tem-se and young people, and training for teachers
construído a partir da reflexão crítica sobre a and artists. Her research activity has been
experiência de transversalidade entre o campo constructed based on the critical reflection on the
artístico e o campo educativo e a exploração experience of transversally, between the artistic
das potencialidades da educação artística como field and the educational field, and the exploration
espaço específico da dimensão estética. of the potentialities of artistic education as a
É doutoranda em Educação Artística na specific space of the aesthetic dimension.
Faculdade de Belas Artes do Porto. Exerce, she is a PhD student in Artistic Education at the
desde 2008, funções de programadora e Faculdade das Belas Artes, of Porto. since 2008,
coordenadora do CCB [Fábrica das Artes – she has been a programmer and coordinator of
projeto educativo]. É autora e coordenadora CCB [Fábrica das Artes - educational project].
dos livros “Senão havia, nada, como é que she is the author and coordinator of the
surgiu alguma coisa?” (arte, infância e filosofia) books “Se não havia nada, como surgiu alguma
e “Raízes da Curiosidade – tempo de ciência coisa?”(Art, childhood and philosophy) and
e arte” (arte e neurociência); “Nós todos “Raizes da curiosidade” (art and neuroscience); “
Pensamos em Nós – questões sobre criação Nós todos Pensamos em Nós” (programming,
artística, infância e públicos” editados pelo CCB. artistic creation for young audiences,
childhood and public), edited by the CCB.

Margarida Dourado Dias Margarida Dourado Dias


Margarida Dourado Dias, 1974. Licenciada em Margarida Dourado Dias, 1974. Degree in
Artes Plásticas - Escultura, Faculdade de Belas Fine Arts - sculpture, Faculty of Fine Arts in
Artes da Universidade do Porto (1999). Bolseira University of Porto (1999). Scholarship from
de Erasmus-Sócrates, École des Beaux-Arts de Erasmus-Sócrates, École des Beaux-Arts de
Bordeaux em França (1998). Mestre em Estudos Bordeaux in France (1998). Master in Child
da Criança, Especialização em Comunicação Studies, Specialization in Visual Communication
Visual e Expressão Plástica, Universidade do and Artistic Expression, University of Minho
Minho (2009). Profissionalização em Serviço (2009). Profissionalization in Service - Group
- Grupo 600 - Artes Visuais, Universidade 600 - Visual Arts, University Aberta (2013).
Aberta (2013). Estudante do Doutoramento Phd student in Arts Education at the Faculty
em Educação Artística na Faculdade de of Fine Arts in University of Porto.
Belas Artes da Universidade do Porto.
tigridias@gmail.com

145 D E R I vA s # 0 3
Mário Azevedo Mário Azevedo
Mário Azevedo (1957). Diplomado pelo Stichting Mário Azevedo(1957). Diploma of the Stichting
Orffwerkgroep de Delft(Holanda). Foi professor Orffwerkgroep Delft(Netherlands). He worked
na EsE de Paula Frassinetti entre 1984 e 1996. in the Paula Frassinetti EsE between 1984 and
É professor na ESMAE/IPP desde 1996, onde 1996. since 1996 he is teaching at EsMAE/
assume, actualmente, funções directivas. IPP where he is, currently, vice-president.
Co-fundador da Orquestra e do Co-founder of the Orquestra Orff
Instituto Orff do Porto. and of the Oporto Orff Institute.
Doutorando em Educação Artística na He is a PhD student in Art Education in
FBAuP/uP é membro do NIMAE/i2ADs onde FBAuP and member of NIMAE/i2ADs where
desenvolve um trabalho de atenção profunda cultivates a deep attention through Arts
sobre Educação Artística, Estética e Filosofia. Education, Aesthetics and Philosophy.
Os elementos do seu enfoque de trabalho the key-words of his work – silence, world
– o silêncio, o mundo e a natalidade, o ouvido- and birth, reified-ear and nomadic-ear, open
reificado e o ouvido-em-trânsito, o aberto and indeterminacy – shows ruptures of
e a indeterminação – evidenciam rupturas sense in the contemporary world.
de sentido na contemporaneidade. He loves is family, plays lute covertly and,
Fazendo da sua família o seu locus amoenus, toca particularly likes Hildegard of Bingen and
alaúde às escondidas e gosta particularmente Josquin Desprez, Hans Memling and Thomas
de Hildegarda de Bingen e Josquin Desprez, Hischhorn, Gustav Mahler and John Cage,
Hans Memling e Thomas Hirschhorn, Gustav Steve Reich and Toumani Diabaté, Vergilio
Mahler e John Cage, de Steve Reich e Ferreira and Paul Celan, orchids and old vines.
toumani Diabaté, de vergílio Ferreira e Paul
Celan, de orquídeas e de vinhas velhas.

Marta Coelho Valente Marta Coelho Valente


Marta Coelho valente é doutoranda em Marta Coelho valente is a PhD student in
Educação Artística na Faculdade de Belas Arts Education at the Faculty of Fine Arts,
Artes da Universidade do Porto (FBAUP) University of Porto. She holds a fellowship from
e bolseira da Fundação para a Ciência e the Foundation for science and technology.
a Tecnologia.É licenciada em Pintura pela Marta holds a degree in Fine Arts (Painting)
Escola Universitária das Artes de Coimbra e from University School of Arts of Coimbra and
Mestre em Pintura pela FBAuP; Licenciada em a Master’s Degree in Painting from Faculty
História da Arte pela Faculdade de Letras da of Fine Arts, University of Porto; a degree in
Universidade do Porto; Formação Especializada History of Art from the Faculty of Arts and
em Educação Especial, Domínio Cognitivo e Humanities, University of Porto; specialised
Motor, pelo Instituto superior de Ciências da training in Special Education, Cognitive and
Informação e da Administração de Aveiro. Motor Domain from the Higher Institute of
coelhovalente@gmail.com Information and Administration Science of Aveiro.

14 6 D E R I vA s # 0 3 N O TA S B I O G R Á F I C A S
Ricardo Pistola Ricardo Pistola
Ricardo Pistola, 1980. Licenciado em Artes Ricardo Pistola, 1980. Degree in Fine Arts –
Plásticas – Pintura, Faculdade de Belas Artes Painting, Faculty of Fine Arts of Oporto University
da Universidade do Porto (2003). Mestre em (2003). Master in visual Arts teaching, Faculty
Ensino de Artes visuais, Faculdade de Belas of Fine Arts and Faculty of Psychology and
Artes e Faculdade de Psicologia e de Ciências Educational Sciences of Oporto University (2012).
da Educação da Universidade do Porto (2012). Fellowship of the Foundation for science and
Bolseiro da Fundação para a Ciência e tecnologia technology under the PhD in Art Education at the
no âmbito do Doutoramento em Educação Faculty of Fine Arts of Oporto University in which
Artística na Faculdade de Belas Artes da it is currently student. Collaborator member of
universidade do Porto, no qual é atualmente the Research Institute on Art, design and society
estudante. Membro colaborador no Instituto de (i2ADs). since 2001 exhibits on a regular basis in
Investigação em Arte, Design e Sociedade (i2ADS). galleries and art fairs on Portugal and abroad.
Desde 2001 expõe regularmente em galerias
e feiras de arte em Portugal e no estrangeiro.
www.ricardopistola.com
ricardopistola@gmail.com

Rui Leite Rui Leite


Rui Gabriel Saraiva Leite, nascido em 1969, Rui Gabriel Saraiva Leite , born in 1969, graduated
licenciado em Professores do ensino básico, in Teachers primary school , variant Music
variante Educação Musical pela Escola Superior Education from school of Education of Oporto
de Educação do Porto do Instituto Politécnico Polytechnic Institute of Oporto in 2000. Fellow
do Porto em 2000. Bolseiro do Instituto Orff do of the Orff Institute of Oporto to study in
Porto para estudar na thecollectice school of thecollectice school of music - Bass Colective
music - Bass Colective of New York. Licenciado of New York . Degree in Jazz, Jazz Bass variant ,
em Jazz, variante Contrabaixo, pela Escola Superior the Music school and Performing Arts in 2006.
de Música e Artes do Espectáculos do Porto em Graduate , Advanced Studies in Music and
2006. Pós Graduação, Advanced Studies in Music Dance education - “ Orff Schulwerk “ , 2009.
and Dance education – “Orff SChulwerk“, 2009. Level II Teachers in Jazz Orff , Doug Goodkin
Level II Teachers em Jazz Orff, Doug Goodkin program, san Francisco school. 2009. PhD
program san Francisco school. 2009. Estudante de student in Arts Education at the Faculty of Fine
Doutoramento em Educação Artística da Faculdade Arts, University of Porto. Lecturer at the Colégio
de Belas Artes da Universidade do Porto. Docente de Nossa Senhora Lourdes , the Orff Institute
no Colégio de Nossa senhora de Lourdes, no of Oporto and Orff Orchestra of Oporto.
Instituto Orff do Porto e na Orquestra Orff do Porto.
rgsleite@gmail.com

147 D E R I vA s # 0 3
Susana Ribeiro Susana Ribeiro
Porto, 1977. Licenciada em Artes Plásticas Porto, 1977. Degree in Fine Arts - Painting
– Pintura pela Faculdade de Belas Artes da from the Faculty of Fine Arts, University of
Universidade do Porto (FBAUP), 2001. Efetuou Porto (FBAuP), 2001. We conducted studies
estudos em Design de Comunicação, na in Communication Design at the school of
Escola superior de Arte e Design (1996) e no Art and Design (1996) and Master in Painting
Mestrado em Pintura pela FBAuP (2010/12). FBAuP (2010/12) . In 2004, concludes the
Em 2004, conclui a Especialização em Restauro Specialization in Restoration and Conservation
e Conservação de Pintura em Cavalete, pela of Painting at the Camera di Commercio Italiana.
Camera di Commercio Italiana. Atualmente Currently attends the PHD in Arts Education
frequenta o Curso Doutoral em Educação in FBAuP. Is a researcher-collaborator of the
Artística na FBAUP. É investigadora-colaboradora Center for Arts Education of the Institute for
do Núcleo de Educação Artística do Instituto de Research in Art, Design and society (i2ads)
Investigação em Arte, Design e Sociedade (i2ads) and of the Portuguese Association of Color.
e da Associação Portuguesa da Cor. É membro Is a founding member and color specialist in
fundador e especialista da cor na Chroma Color Chroma Color Consulting, first color consulting
Consulting, primeira empresa de consultadoria company in Portugal ( www.chromacc.com).
de cor em Portugal (www.chromacc.com). Her work focuses on the intersections that
O seu trabalho foca-se nas intersecções que occur between color and human body.
ocorrem entre a cor e o corpo humano. Is co-author of the book ‘Cor e Luz na Interpretação
É coautora do livro ‘Cor e Luz na Interpretação da Imagem – Tradução Cerebral’ (2014).
da Imagem – Tradução Cerebral’ (2014).
www.susanaribeiro.com

14 8 D E R I vA s # 0 3 N O TA S B I O G R Á F I C A S

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