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POÉTICAS EM LABORATÓRIO:

PERCURSOS ARTÍSTICOS ENTRE


A PRÁTICA E A REFLEXÃO 
Organização: Léo Tavares
Oribê Editorial
__________________________________

Poéticas em laboratório: percursos artísticos entre a prática e a refle-


xão . Catálogo. Tavares, Léo (Org.). Brasília: Oribê Editorial, 2022. xxp.

https://espacodeculturaoribe.com/
oribeeditorial@gmail.com

ISBN 978-65-993294-8-7
1. Arte contemporânea. 2. Artes Visuais.

__________________________________

Organizador: Leonardo Motta Tavares (Léo Tavares)


Edição: Ana Carolina Lima Corrêa (Anace Lima)
Assistente de Edição: Sabrynna Gabryella Xavier Gomes da Cruz
Capa, projeto gráfico e diagramação: Annima de Mattos
Revisão: Bianca Cabral

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LÉO TAVARES
Inquietações de artistas: aborda-
gens para um laboratório de poé-
ticas
BETA(MX)REIS
17 JAMILA MARIA
Habitar - sensibilizar os limites do
olhar e sentir

04 BRUNO LASEVICIUS
IN_VERSO
36
09 21 42
MAYÃ FERNANDES
ANACE LIMA
alegria na cabeça
Olhar como quem deseja

12 GABRIELA IRIGOYEN
Deslocamento
47
31
SUMÁRIO

ANA OLIVIER NATHÁLIA LIMA


Corpos, poeira e tastros no linho: memória: presença do resto
tirando os excessos
O percurso criativo conhece uma lenta definição do projeto poético do artista. O tempo da
ABORDAGENS PARA UM LABORATÓRIO

criação seria o tempo da configuração do projeto. Pode-se, assim, dizer que o processo de criação

de uma obra é a forma do artista conhecer, tocar e manipular seu projeto de caráter geral. Cada

obra é uma possível concretização do grande projeto que direciona o artista.

Cecília Salles, Gesto Inacabado

Q
INQUIETAÇÕES DE ARTISTAS:
LÉO TAVARES

uando elaborei o curso intitulado Laboratório de Poéticas Bidi-


mensionais para o Espaço de Cultura Oribê, tinha em mente um
público-alvo: artistas, iniciantes ou não, que estivessem buscando com-
preender melhor os próprios processos criativos e as questões que sur-
gem da prática em arte. Mas, antes de ir atrás das definições possíveis,
DE POÉTICAS

dos acercamentos de aspectos formais e das problemáticas teóricas, era


preciso entender melhor o que, de fato, implica o termo poéticas para
quem se situa como artista na contemporaneidade. Isto é, para quem
atua diretamente no que chamamos de pesquisa em arte.
Vinculada histórica e conceitualmente à poiesis, a pesquisa em arte
é uma área que se distingue dos estudos teóricos sobre arte. Não que e veloz com algo concreto, mais ou menos próximo daquilo que se ide-
ela não comporte a teoria, na verdade, teoria e prática são caminhos in- alizou fazer, o trabalho do artista nunca é, para ele mesmo, coisa pos-
dissociáveis para o artista contemporâneo. Sandra Rey, uma das auto- ta. Entre subjetividade e objetividade, entre decisão e indeterminação, o
ras pioneiras na abordagem da pesquisa em arte no Brasil, aponta para pesquisador em arte não faz escolhas, ou melhor, as faz para quem sabe
a diferenciação básica entre a pesquisa sobre e a pesquisa em arte. O mais tarde ter que negá-las. Isso porque os artistas não raro dependem
pesquisador em arte depende sempre de negociações entre a teoria e a da criação de regras, estas feitas por eles mesmos e perfeitamente alte-
prática, entre o conceito e a forma, entre o discurso e a materialidade, ráveis a depender do andamento do processo. É preciso compor essas
isto é, ele tem que lidar com todo o arcabouço do pensamento estrutu- espécies de vocabulários para uso pessoal, mal esperando pelo
rado da consciência e, ao mesmo tempo, permitir um afrouxamento das momento de se ver tendo que burlar os próprios regulamentos.
estruturas inconscientes (REY, 2002, p. 127). É pensando em todas essas inadequações da pesquisa em arte em
Tocar nas ruminações do inapreensível em cada processo artísti- relação às ciências mais rígidas que precisamos passar pela noção de
co é o desafio e a aventura da pesquisa em arte. Se o pesquisador so- poiesis, esse termo que, gradativamente, foi se moldando a partir das
bre arte manipula as informações acessíveis de um trabalho, diante de ideias platônicas que o vinculavam a acepções múltiplas e abertas re-
um leque possível de interpretações, estando diante de algo concluído, lacionadas a uma passagem do não ser ao ser. Podemos dizer, portanto,
oferecido ao escrutínio e à fruição, o pesquisador em arte está sempre que abarcava, naqueles tempos antigos, a própria instauração da realida-
imerso no terreno caudaloso das próprias dúvidas, dos próprios limites, de (PLATÃO, Banquete, 205b8-205c3).
lidando com o desalojar mais ou menos drástico, a depender do caso, de No entanto, Platão destaca, dentre todas as coisas que vêm a ser por
uma ideia que se constitui para ser diluída, transfigurada ou tão somente meio da poiesis, as atividades criativas que nós convencionamos encapsular
evocada em reverberações sutis na materialidade. dentro das artes e que são objeto da estética. Neste sentido, poiesis tem vizi-
O artista, por saber-se investigador sem conclusão, ou seja, inves- nhança com a noção de techné, essa palavra utilizada para tratar da produção
tigando antes, durante e depois da feitura, encontra-se perenemente em de objetos na antiguidade grega. Mas a poética teria uma abrangência mais
um campo de flutuação e de indeterminação. Pesquisar em arte, portan- ampla, que alcança além da forma e da técnica, dando conta também das di-
to, é esse firmar-se entre a intuição e a razão, tendo que conviver com as mensões subjetivas das quais o fazer artístico depende.
dúvidas, apegando-se às revelações intempestivas e às acomodações do São autores como Paul Valéry e René Passeron que se voltaram,
material via experimentação ou via acaso. no século 20, ao uso do termo poética para instituir um território formal
Seja pelo jogo de tentativa e erro, seja por meio do encontro feliz de pesquisa das implicações do fazer artístico, centralizando o processo

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criativo como assunto principal da poética, e contrapondo-a, como cam- lecimento do diálogo como via de acesso às questões poéticas em comum
po de estudo, à estética. Enquanto a primeira deveria ser o domínio e às singulares, com o compartilhamento de experiências, sugestões e im-
do pensamento acerca da criação, a segunda deveria se concentrar nas pressões sempre acompanhando as exibições de imagens.
questões da recepção: reivindicamos a autonomia da poiética como re- Nesse sentido, o laboratório se revelou, sobretudo, um espaço de aco-
flexão sobre a conduta criadora, deixando à estética as tarefas já consi- lhimento de narrativas e de geração de ideias, a despeito da mediação
deráveis de uma reflexão sobre o sentir (PASSERON, 2004, p. 10). do digital e do fato de que estávamos, cada um de nós, isolados em suas
A proposta do laboratório, em consonância com esta observação casas e ateliês.
de Passeron, consistia em refletir sobre a conduta criadora, porém, in- Tendo a grande questão de como identificar suas preocupações, in-
centivando igualmente a reflexão sobre o sentir. Neste caso, um sentir teresses, obsessões, curiosidades e indagações, os artistas se voltaram,
originado pelo que Gaston Bachelard chama de fenômeno poético primiti- pouco a pouco, às escavações de seus conjuntos de trabalhos pré-exis-
vo começa fora da linguagem e muitas vezes a ela extrapola, relacionado tente, enquanto recebiam, como proposta, a elaboração de novas séries.
às intenções e às ideias geradoras, mas também suscitado pelas ques- Para a composição de uma série de trabalhos, determinada unicamente
tões formais e processuais. como criação de no mínimo três trabalhos que trouxessem ou reverbe-
O Laboratório de Poéticas Bidimensionais recebeu essa especifi- rassem as repetições, mas também os pontos de resistência localizados
cação de dimensões para os trabalhos por uma questão meramente prá- no seu fazer artístico anterior, os artistas se lançaram a exercícios su-
tica. Com nossas aulas acontecendo por videochamadas, devido ao iso- geridos em aula, às trocas de impressões sobre etapas de construção,
lamento social da pandemia de COVID-19, era coerente que os trabalhos leituras teóricas e referências artísticas.
tridimensionais ficassem de fora diante do desafio de acompanhar criti- Sobre essas leituras, começamos com Gaston Bachelard e o seu A
camente realizações em linguagens como a escultura e a instalação, que Poética do Espaço. A teoria da imaginação de Bachelard me pareceu um
dependem ainda mais do espectador ao vivo para serem experienciadas excelente ponto de partida, ainda mais em um tempo em que estamos
e apreendidas apropriadamente. fisicamente distanciados e necessitados de uma retomada do fabular em
Mesmo os registros bidimensionais, é claro, revelaram-se um desa- nossos universos íntimos.
fio, pois, se estar presencialmente diante de uma pintura, de um desenho O primeiro exercício também dizia respeito a esse espaço da casa,
ou de um livro de artista é a condição adequada da fruição estética, a tela à memória e à imaginação. Era um exercício de observação do espaço
do computador se mostrou uma barreira a ser vencida com um método que caseiro, do ao redor de cada um: observação para ativação da memória e
não pôde ser antevisto, mas que resultou frutífero: apostamos no estabe- da invenção. Penso que a memória é o tema comum que reúne os artistas

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mais díspares e, desse lugar de conciliação, desse retorno, iniciamos as trutiva, a um só tempo imanência e transbordamento.
nossas reflexões sobre o que há de mais particular em cada processo, em Para Ana Olivier, são imagens de mulheres quase etéreas, mas car-
cada intenção, em cada maneira de moldar à forma o ininteligível. A casa regadas de marcas de violência, que revelam que o habitar um corpo po-
nos fornecerá simultaneamente imagens dispersas e um corpo de imagens. de ser convulsivo, quando ele se torna espaço de invasão e inversão, mas
Num e noutro caso, provaremos que a imaginação aumenta os valores da que, em última instância, o corpo é linguagem de expressão, sempre pas-
realidade (BACHELARD, 1978, p. 199). Não se ater ao valor objetivo e mo- sível de construção.
dulado nos cinco sentidos da realidade. Esse era o foco principal desse Para beta(m)xreis, com suas colagens e assemblages, mapas e ilhas,
exercício, irmos à prática um pouco mais desprendidos dos grilhões da deparamo-nos com uma poética de organização do caos que é também
lógica e da racionalidade. expansão de poesia; aqui o corpo é uma festa de experimentação, um exer-
E é também Bachelard quem nos deu uma pista para começarmos cício de caber em si, e de extrapolar a si também: total agrimensura.
o trabalho central que o laboratório almejava: que o artista participante Já Bruno Lasevicius, para quem o vídeo é suporte para poetizar o
encontrasse meios de conhecer melhor, mais íntima e profundamente, a verbovisual, busca o humano que habita o código; é um estudo da imagem
própria poética: isolar uma essência íntima e concreta que seja uma justi- viva dentro da linguagem cifrada, e a narrativa se volta para fragmentos
ficativa para o valor singular que atribuímos a todas as nossas imagens. (...) que se atraem ou se repelem, em combinações geradoras de significados
Eis o problema central (BACHELARD, 1978, p. 199). terceiros.
Movidos pelas leituras de Bachelard, pelas investigações das pró- Gabriela Irigoyen investigou as possibilidades das formas das som-
prias obsessões e inquietações várias, mas também pelas condições de bras, perseguindo os desenhos que a luz traça a partir de objetos cotidia-
distanciamento social, os artistas realizaram séries que, ainda que bas- nos, desenhos do acaso capturados para dentro de páginas de livro de ar-
tante distintas entre si em termos de linguagens e materiais, mostraram- tista, jogo de ausência e presença e estudo de poesia nas possibilidades
-se de certa forma familiares e evocativas umas das outras, abordando das formas.
assuntos que se estendem para zonas de singularidade, mas que, em al- Para Jamila Maria, a casa foi oficina de gestos, mise-en-scène para
gum aspecto formal ou leitura pertinente, inclinam-se para o tema da ca- variações de luz e sombra, compondo um registro que pode ser da soli-
sa, do lar, do reconhecimento de território. dão, mas também é uma ocupação de um lugar de intimidade, as pola-
Para Anace Lima, é o autorretrato metafórico, com imagens pinta- róides revelando em preto e branco uma diluição da figura nas formas
das de vulcões em erupção, que toca o morar em si mesma, revelando, contidas do espaço e sendo desdobradas em desenhos.
pelo tema geológico, uma construção de si ambiguamente efusiva e des- Mayã Fernandes nos mostrou um regresso à infância, um proces-

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so de trazer para o pictórico uma destituição e uma origem: os cenários
removidos deram liberdade de ser à criança retratada, uma liberdade em
termos de construção de identidade que passa pela vivência religiosa
com o candomblé, tema central dessas pinturas.
E, por sua vez, Nathália Lima invocou a casa como concha, o centro
inicial e vibrátil de onde se vai nascer; suas colagens e assemblagens
trazem o verbal e o visual em tentativas de aproximação sem hierarquia,
correspondências de origens em que a poesia e a
imagem se constituem mutuamente.
É certo que todos saímos do Laboratório de Poéticas Bidimensio-
nais mais investidos de perguntas do que de respostas. Mas, penso que,
quando Bachelard chama a atenção para o isolar de uma essência ínti-
ma, podemos lhe tomar de empréstimo a reflexão e fazer o que fazemos,
como pesquisadores em arte: trazer as perguntas para a materialidade
e, sem pretensões categóricas de encontrar respostas, começarmos a
busca. Há muitas surpresas no caminho. BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. In: Os Pensadores. Gaston Bachelard. Seleção de textos

de José Américo Motta Pessanha. Traduções de Joaquim José Moura Ramos . . . (et al.). São Paulo:

Abril Cultural, 1978.

PASSERON, René. A poiética em questão. In: Porto Arte: Revista de Artes Visuais, Porto Alegre: Insti-

tuto de Artes/UFRGS, v.13 n.21, p. 9-15, jul. 2004.

PLATÃO. O Banquete. In.: Os pensadores. Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa. São Paulo:

Victor Civita, 1972.

REY, Sandra. Por uma abordagem metodológica da pesquisa em artes. In: BRITES, Blanca; TES-

SLER, Elida (Orgs.). O meio como ponto zero: metodologia da pesquisa em artes plásticas. Porto

Alegre: Editora da UFRGS, 2002.

SALLES, Cecília A. Gesto Inacabado. Processo de criação artística. São Paulo: Annablume, 1998.

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OLHAR COMO QUEM DESEJA
ANACE LIMA

Artista visual, professora e escritora. Natural do Amazonas, vive e trabalha em Salvador.

Figura 1. Anace Lima. VIII (Série Olhar como quem deseja). Pintura. Tinta acrílica. Dimensões:

24 x 32 cm. 2021. Foto: Acervo Pessoal.


Eis o espetáculo de um imenso incêndio. Outro ponto a se destacar é a relevância da exploração da materialidade
Gaston Bachelard, A psicanálise do fogo da tinta acrílica. Busco explorar o fogo a partir de texturas produzidas
com tinta e cores fortes. Além disso, a tela não é compreendida como um
espaço ilusório no qual se reproduz uma paisagem a partir da ideia de

O
imitação da natureza, mas sim a partir das características materiais do
elemento. Além disso, escolho um modo de pintar que é rápido, que pro-
lhar como quem deseja (2021) é uma série de pinturas que tra- duz uma pintura com característica gestual no qual busca-se conformar
balham a ideia do espelhamento do humano na paisagem a partir um imenso incêndio.
da representação de paisagens vulcânicas. O fogo é tomado nesta série
como um motivo figurativo, que é simbolicamente associado ao desejo. A
paisagem é entendida como uma espécie de autorretrato metafórico, um
espaço para que sejam elaboradas imagens de si.
O interesse nas imagens de fogo aproxima-se da noção de “deva-
neio do fogo” elaborada por Gaston Bachelard (1884-1962) em seu livro
Psicanálise do fogo (BACHELARD, 2008). Neste livro, Bachelard (2008) dis-
corre sobre o que ele denomina complexo psicológico do fogo, apontando
a relação desse elemento com a interdição, como no caso mitológico
de Prometeu, mas também com o desejo. O fogo é examinado a partir
de seus distintos tipos ou qualidades que se vinculam às imagens poé-
ticas: brasa, braseiro, fogaréu, incêndio, chama de vela, fogo de fogão,
entre outros. Cada um desses fogos tem um aspecto imagético distinto e
qualidades próprias. O devaneio do fogo seria o devaneio motivado pelas
particularidades intrínsecas do fogo, noção poética norteadora da cria-
ção e elemento filosófico implicado nos aspectos subjetivos da minha
pesquisa artística. No caso da série, interessa-me especialmente o fogo
compreendido como um elemento-metáfora do desejo. BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

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CORPOS, POEIRA E RASTROS NO LINHO:
ANA OLIVIER
TIRANDO OS EXCESSOS

Figura 2. Ana Olivier. Sem Título. Técnica mista. Linho, linha, aquarela, caneta aquarelável. Dimen-

sões: 0,34 x 0,22 cm. 2021. Foto: Acervo Pessoal.

Figura 3. Ana Olivier. Sem Título. Técnica mista. Linho, linha, aquarela, caneta aquarelável. Dimen-

sões: 0,34 x 0,22 cm. 2021. Foto: Acervo Pessoal.

Figura 4. Ana Olivier. Sem Título. Técnica mista. Linho, linha, aquarela, caneta aquarelável. Dimen-

sões: 0,17 x 0,21 cm. 2021. Foto: Acervo Pessoal.

Figura 5. Ana Olivier. Sem Título. Técnica mista. Linho, linha, aquarela, caneta aquarelável. Dimen-

sões: 0,40 x 0,33 cm. 2021. Foto: Acervo Pessoal.


O trabalho relaciona-se com a poeira, que está muito presente no
meu cotidiano, na casa, no ateliê, no cheiro. Por onde olho, tudo
está coberto de poeira e embaçado. Esse rastro me cobra mu-
danças de atitude... olho para a poeira tomar conta de tudo, me recuso a
tirá-la... cansaço. A poeira funciona como uma cobrança, lembrando-me
cia nossa. A linha aparece como resultado deste encontro, assim como
a busca pela utilização de materiais naturais como a fibra do linho e o
pigmento da aquarela. Na medida que imaginava as obras, surgiam-me
imagens de cartas de tarô. Elas sempre me ajudaram a entender o fluxo
do presente e os movimentos da vida.
que não estou cuidando da casa da forma devida e, “consequentemente”, As obras refletem sobre o convívio social cotidiano que promove a
nem dos outros que lá habitam. Ela virou um peso....um outro que me olha. alteridade, a rejeição de pessoas, que não correspondem aos modelos de
A poeira é em parte solidão e parece confrontar a obra de arte asséptica. gênero ou estética impostos pela política colonial eurocêntrica. Trata da
A poeira me embaça a vista, cobre silenciosa os móveis, vai jogando pó falta de reconhecimento que nega a identidade e a liberdade de ser do
sobre o cotidiano. Ela vem do vento, do tempo passando, mancha meus outro, ignorando sua existência. Observo e sinto uma angústia, percebo
livros, muda a cor das páginas; não consigo tirá-la do meu espaço, ela a dificuldade de todos em se adequar aos padrões de beleza, peso ou às
sempre volta. representações “coerentes” de gênero. De forma cada vez mais explíci-
A dimensão reduzida das obras, com bordados e desenhos em ta, somos coagidas para a realização de adaptações corporais, subme-
aquarela feitos em pedaços de linho, decorre de um movimento de re- tendo-nos a cirurgias desnecessárias, em um movimento alucinado por
colhimento pessoal. A proposta é apresentar algo mais íntimo. Esta série aceitação.
tem um sentimento particular de introjeção. Assim, a manipulação com As obras são feitas por meio de incisões, retirando os “excessos”,
gestos limitados e pouco extensos é decorrente da mudança de percep- para adequar-nos às representações performativas. A performativida-
ção do espaço privado. Acredito que o momento, a conjuntura política e de, como conceituada por Judith Butler (2020), é interpretada como uma
o isolamento tenham alterado a percepção do tamanho do perímetro que prática reiterada de atos e discursos, produzidos pelas instituições e su-
sinto como particular, individual, bem como o entendimento da dimensão as normas. Isto é, a performatividade é entendida como a maneira como
do espaço do outro. Nos últimos tempos, sinto que meu espaço foi se re- o indivíduo veste-se, comporta-se, representa-se. Performatividade é,
duzindo... reduzindo...apagando. enfim, o resultado do controle sobre os corpos.
A série é elaborada com técnica mista e utiliza os seguintes ma- Por fim, desejei escrever mais, mas as palavras quando inseridas
teriais: linho, aquarela, caneta aquarelável e linha. O material e o borda- na tela são abduzidas pela trama do tecido e me fogem capturadas pela
do participam desse movimento introspectivo, criando um diálogo com linha. A imagem de um véu de noiva se arrastando no chão e absorvendo
a ancestralidade, com minha mãe e minha avó, capturando uma essên- de forma indigesta toda aquela poeira, sinaliza para mim o tempo... me

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lembra vivências, imposições, peso; apesar de eu nunca ter usado um véu
de noiva materializado. São as obrigações cotidianas e comportamentais
de todas nós do gênero feminino. A poeira, para mim, é o tempo passan-
do… carregando memórias e imposições. Camadas e expectativas que
pesam…

BUTLER, Judith. Corpos que Importam. São Paulo: Crocodilo, 2020.

DECORT, Vanessa. Sun and moon tarot. Stamford: U.S. Games Systems, Inc. 2010.

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Multiartista, escritora, tradutora e revisora, educadora, antropóloga. Natural de Brasília, mas goia-

niense: de criação e de momento presente.

Figura 6. beta(m)xreis. Tais entranhas (colocações se). Fotomontagem digital. Performance, es-

cultura de isopor, esmalte, borracha, areia colorida. Dimensões: 180x135 cm. 2021. Foto: Acervo

Pessoal.

Figura 7. beta(mx)reis. Carapaça, cara pálida (Encara-se, caras pessoas ou e Descaracteriologia.

Fotomontagem digital. Performance, escultura de isopor, esmalte, tinta guache, pedras e cristais.

Dimensões: 140x140 cm. 2021. Foto: Acervo Pessoal.

Figura 8. beta(m)xreis. A Planta (se essa casa fosse minha / eu mandava ladrilhar / com pedrinhas

de brilhante / ninguém ia passar-se. Fotomontagem digital. Performance, escultura de isopor,

esmalte, borracha, areia colorida, cacos de vidros, cristais, lençol com tinta. Dimensões: 140x140

cm. 2021.

Figura 9. beta(m)xreis. Tais entranhas (colocações se). Fotomontagem digital. Performance, es-
BETA(MX)REIS

cultura de isopor, esmalte, borracha, areia colorida, lençol com tinta. Dimensões: 100x145 cm.

2021.

Figura 10. beta(m)xreis. Carapaça. Fotomontagem digital. Performance, isopor, esmalte, guache

escolar, pedras, cristais, lençol com tinta. Dimensões: 140x140 cm. 2021.

Figura 6. beta(m)xreis. Isso nem é terreno (consta-se / constelasse / virasser / outrasse). Papelão,

plástico, lenço de limpeza, fita de tecido, papelão, borracha, areia, esmalte, cabelo, tinta guache

escolar. Dimensões variáveis. 2021.

Figura 11. beta(m)xreis. Lava-se é coisa de leva-se (Nada cai como luva e ou Chuva é tudo / Anos

vãos e ou Permanânsias / Funda firma-se e ou Dobra mola-se / No meio isla-se. Papelão, isopor,

porcelana, pedra, vidro, pano de limpeza, areia colorida, esmalte, tinta guache escolar. Dimen-

sões: variáveis. 2021.


P roduzir arte é uma forma de colocar no mundo um entendimen-
to. Nenhum entendimento é feito no vácuo, ex nihilo. Todos sur-
gem de elaborações mais ou menos compartilhadas de um mundo
coletivo. Ainda que com idiossincrasias, o labor é recompor a partir do
que existe. Entendo que meus gestos, partidos frequentemente de con-
buscasse isso conscientemente.
Deste lugar, surge a ideia de uma série, perpassada por fazeres
meus de infância, da época em que eu criava novas fronteiras para pa-
íses, fazendo impérios maiores, ou fragmentando países em territórios
menores. Inserir o meu imaginário nos outros imaginários.
versações internas, estão nessa tentativa. São abraços, bem como são A comunicação com a ideia de infância, aliado a meu interesse por
confrontos. Meu entendimento de estética vem como forma de transfor- explorar elementos já dados, que seriam tratados como lixo, trouxe mi-
mação. A realidade vivida em si transborda, ela mesma, em outras possi- nhas diretrizes de trabalho. O primeiro, com um conjugado de múltiplas
bilidades, e é bom que as coisas não nos bastem. referências, veio pela ótica do excesso. Resolvi me arriscar a explorar em
Isso se coloca de forma explícita em minha busca por trabalhar aspectos mais ponderados e pontuais, com seleções mais específicas,
materialidades do já-existente. A inspiração em Marcel Duchamp me é buscando gestos outros, para além de meus hábitos.
marcante. A primeira vez que fiz uma exposição de trabalhos visuais, ain- Entendo que busquei conjugar uma poética que trabalha com corpos/
da no Ensino Médio, surge deste lugar de provocação. Elaborei poéticas objetos/coisas/seres/entes, materialidades, e a forma como são significa-
que envolviam materiais já existentes, em conjugações inusitadas. E ali dos a partir de suas histórias. Acabei percebendo, através de diálogos, que
naquele momento, a figuração de uma leitura possível surgia a partir do a utilização de palavras poderia trazer algumas bases para interpretações.
título que eu dava à obra. Do contrário, seria como deixar a pessoa espectadora em um labirinto. Não
Fui investigando poeticamente possibilidades a partir de palavras era exatamente isso que buscava, mas entendo que, em parte, sim, pro-
e de imagens no decorrer de minha vida. Minhas reflexões sempre foram ponho esta experiência um pouco caleidoscópica. Busco um pouco criar
mais ou menos solitárias, nunca passei por processos de treinamento questões: o que fazer disso que é dado aqui? O que fiz disso que é dado
e aprendizagem formais nesses assuntos. Nas partilhas recentes, pude aqui? O que se faz disso que foi dado aqui?
encontrar direcionamentos e caminhos que eu não poderia visualizar. E Um dado pode ter seis faces, ou cem. Interpretações são múltiplas. Mi-
tudo isso se dá no diálogo, na troca. nhas pessoalidades vão se colocando nesse jogo e, num determinado
Na Bienal de SP de 2006, me recordo de como os mapas pessoais momento, uma série em paralelo, mas em conjugado, foi surgindo, numa
de Simon Evans me marcaram. Quando iniciei este percurso recente de geometria que propunha o encontro dessas duas linhas, ou séries. Assim,
investigação artística, mal percebi, montei um mapa. Não era a intenção o que era meu corpo entra como um elemento a mais disso que se fazem
inicial. A composição acabou se parecendo com um mapa sem que eu mapas, territórios, percursos, mas sobretudo questões. Ainda que cada

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obra se desenvolva emse abra a uma questão (ou algumas questões), a
reflexão sobre percurso é uma constante. Em adendo: propõe-se pergun-
tar ao que se dá valor.
Deste modo, fazer uso de materialidades vivas, não vivas, direta-
mente vinculadas ao meu corpo, vindas de produção de outras pessoas,
que seriam colocadas em corpos, que seriam partes de trajetos, de de-
coração, que seriam restos, que estariam inteiras, todas estes aspectos
que compõem mundos.
Entender a repetição e o deslocamento dos percursos vividos, seja
por mim, seja por quem entre em viagem aí. Em especial: a viagem con-
junta que todas as pessoas fazem, onde juntes nos reconhecemos, nos
estranhamos, e nos refazemos a partir do que já existe. Ora nos orientan-
do, ora nos desviando.

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BRUNO LASEVICIUS

Editor de imagens e textos, vive em constante movimento, dedicando-se a experimentações nar-

rativas e visuais.

Figura 12. Bruno Lasevicius. Lugar suspeito, Lugar comum. Vídeo. (Fotograma still). 3’. 2021. Foto:

acervo do artista.

Figura 13. Bruno Lasevicius. Lugar suspeito, Lugar comum. Vídeo. (Fotograma still). 3’. 2021. Foto:

acervo do artista.

Figura 14. Bruno Lasevicius. 1 questão. Vídeo. (Fotograma still). 2’. 2021. Foto: acervo do artista.

Figura 15. Bruno Lasevicius. Lapezi. Vídeo. (Fotograma still). 5’. 2021. Foto: acervo do artista.

Figura 16. Bruno Lasevicius. 1 questão. Vídeo. (Fotograma still). 2’. 2021. Foto: acervo do artista.

Figura 17. Bruno Lasevicius. Ressonâncias. Vídeo. (Fotograma still). 2’. 2021. Foto: acervo do artis-

ta.
IN_VERSO

Figura 18. Bruno Lasevicius. Em busca de uma memória específica. Vídeo. (Fotograma still). 4’.

2021. Foto: acervo do artista.

Figura 19. Bruno Lasevicius. Aporia. Vídeo. (Fotograma still). 2’. 2021. Foto: acervo do artista.
Q uando comecei a editar, no início dos anos 2000, os sistemas
de vídeo analógico já conviviam com os digitais. Vi, com certo
distanciamento, os sinais da obsolescência que chegariam nas
décadas seguintes.
em contextos digitais: uma expedição ao sol, uma série de códigos ver-
sados em lógica disjuntiva (Figura 8), um parto sensorial (Figura 3) e uma
aula de dança (Figura 5).
Memórias marítimas (Figura 1), sonoras e visuais (Figura 4) se de-
senvolvem cronologicamente e em conformidade narrativa. Montagem,
Imagens, movimentos e adaptações. Lentamente uma caixa cheia
animação, colagens sonoras, sobreposições textuais, e em alguns casos
de cabos se torna uma pasta em um servidor.
o uso de aplicações de inteligência artificial formam um ensaio verbo-
Hoje, a inteligência é artificial, mimetiza uma forma de vida cujos
visual, estruturado como uma série de filmes curtos com perspectivas
limites constantemente se expandem e contraem. As diferentes intera-
atuais entre a relação homem-máquina.
ções se desenvolvem paralelamente sob nossa supervisão. Uma relação
de aprendizado mútuo em nome da evolução, da sobrevivência e do des-
The sad thing about artificial intelligence is that it lacks artifice and therefore intelligence.
conhecido. Seres múltiplos e projetáveis que compartilham um núcleo
Jean Baudrillard, Cool Memories.
comum e encontram na linguagem uma forma de contenção.
Através de lentes e telas, o homem registra e observa. A máquina
Regras binárias se mostram insuficientes quando se deparam com
produz renderizações visuais culminantes de processos matemáticos.
a natureza incerta do mundo analógico. Sujeitas a falhas no processo,
Expressões de corpo e consciência que partem de um sistema,
ocasionalmente as máquinas se comportam de forma equivocada, e às
mas não se limitam a ele.
vezes até cômica. A tradução assume, então, um papel de troca assimé-
trica, delimitando possibilidades em função da compatibilidade. Entre
A simulação recorrente na antroposfera pode ser pretendida como uma confirmação de que nós - e tudo o
palavras e imagens, o Outro se torna um conceito passível de absorção.
que construímos - somos a natureza.
Através de filtros e efeitos, a estética analógica constitui camadas
Luigi Capucci, Consciousness Reframed 10 – experiencing [design] – behaving [media]
que misturam, adicionam e relembram o presente com uma certa fami-
liaridade, simulando falhas que já não mais ocorrem.
1n_verso é uma coleção de imagens próprias, fragmentos apro-
Enquanto isso, algoritmos desafiam as leis naturais, recalculando
priados e ressignificados, filmados em diferentes telefones com diversas
as rotas entre ação e reação.
compressões, às vezes utilizando filtros e técnicas de trucagem na câ-
1n_Verso é, em si, uma renderização que busca aproximar e reco-
mera. Entre comandos arbitrários, ressonâncias e memórias plantadas
nhecer os esforços de conexão entre mundos tão distintos.

29
ALTER, Nora; CORRIGAN, Timothy. Essays on the Essay Film. Columbia University Press, 2017.

CAPUCCI, Luigi. Consciousness Reframed 10 – experiencing [design] – behaving [media]. Munich:

MHMK, University of Applied Sciences, November 19 – 21, 2009.

HANNA, Patricia Noel Aziz. The poetics of Multilingualism. Cambridge Scholars, 2017.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 2014.

RANCIÈRE, Jacques. Figuras da História. São Paulo: Editora Unesp, 2018.

VALIANT, Leslie. Probably Approximately Correct, Nature’s Algorithms for Learning and Prospering in

a Complex World. Basic Books, 2013.

30
GABRIELA IRIGOYEN

Gabriela Irigoyen é artista visual e desde 2004 se dedica a criar livros com uma abordagem artís-

tica e experimental.
DESLOCAMENTO

Figura 20. Gabriela Irigoyen. Deslocamento. Fotografia, vídeo e livro de artista. Papel canson, ace-

tato, tecido de encadernação, papelão cola, lápis, caneta stabilo, linha, papel carbono e papel

manteiga para transferências. 28,5 cm x 20,5 cm. 16 páginas. 2021. Foto: acervo da artista.

Figuras 21 a 26. Gabriela Irigoyen. Deslocamento. Detalhes. Fotos: acervo da artista.

Figuras 27 a 30. Gabriela Irigoyen. Deslocamento (processo). Fotos: acervo da artista.

Figura 31. QR code para vídeo com registro do livro.


M eus livros são fluidos e vivem no campo fronteiriço da arte e do
design. Estar em fronteiras fluidas demanda reflexões e aborda-
gens complexas pois exige sair da zona de conforto, de padrões
de pensamento, de conhecimentos característicos e tradicionais de cada
área.
fundar nestas relações? Até que ponto isso é necessário?


A partir destas reflexões, o fazer se torna exigente.
As linguagens do vídeo e da fotografia foram usadas como registro,
memória e ampliação da experiência do manuseio de forma virtual e atra-
vés da tela.
No meu trabalho, pensar sobre fazer o livro me interessa tanto A fotografia é utilizada como início da pesquisa e contato com o
quanto refletir sobre o seu conceito. Ao criar um livro me encanta pensar tema escolhido. Registra a observação e interação da artista com o
na sua forma, como ela traduz ou representa o que eu gostaria de expres- objeto e sua representação.
sar. O vídeo é usado para registrar o manuseio, tentativa de transpor,
Descobrir, pesquisar novas estruturas, encaixes e formas de aber- deslocar a experiência do folhear e manipular o livro.
tura do livro, refletir sobre as características físicas desse livro-objeto Busquei, ao longo do processo, a “razão“ do trabalho. Deixei um
são importantes para pensar como a forma se transforma ou se traduz pouco de lado o que sempre uso como ponto de partida: o embate com
em poesia. Refletir como a poesia pode falar através da forma e da mate- os materiais, as informações e ideias trazidas pelo contato com a mate-
rialidade do livro. rialidade e fisicalidade da técnica e materiais escolhidos. Encontrei uma
Fiz registros visuais (fotografias, desenhos) e escritos para refle- razão poética norteadora ao adotar um fazer intencional, consciente e por
xão e observação do tema escolhido. isso mais doloroso e até receoso algumas vezes.
Desenhar foi a experiência para entender o tipo de linha e desenho O objeto-livro foi escolhido por ser único e múltiplo. Suas páginas,
que seria usado para servir como referência e emergiu das reflexões so- múltiplas, contém interpretações, transposições e deslocamentos de um
bre o processo. mesmo tema fotográfico: um banco sob a luz do sol e os desenhos que
Com a ajuda desses registros, percebi algumas obsessōes suas sombras produzem no chão e formam, costuradas, um volume úni-
no meu trabalho: co.
• pela “manipulação”, pelo tátil sensível, que acompanha a visualidade; As páginas são transferências, desenhos das imagens/referências
• pela forma que também produz sentidos. fotográficas de um banco de metal pintado de preto, gasto e usado sob
Quais são os fios conceituais que podem ou não ser “amarrados” o sol e a chuva do quintal de uma casa. Cada página é um trabalho sin-
ou descritos na fisicalidade? Quais escolhas e decisões estéticas tomar? gular, fragmentos de um mesmo tema que estão unidas pela costura e
São harmônicas ou de conflito, de fluidez ou desordem? Como me apro- constroem este objeto. As folhas de acetato desenhadas se sobrepõem

34
às páginas desenhadas em canson 180g/m2 e fotografias impressas em
couchê 300g/m2 formando sombras e outras imagens; dependendo da
luz que incide sobre esses desenhos.
São imagens deslocadas ao longo das páginas: o banco, objeto tri-
dimensional, se torna linha, cor, sombra, repetição e movimento.
Escolhi as cores branco, preto e azul carbono para conduzir a nar-
rativa. O branco, luz da página, o preto, sombra e cor do objeto e o azul
carbono, reflexo do céu azul ensolarado do mês de abril quando foram
registradas as imagens.
O deslocamento é expresso através da transposição, da transfe-
rência de imagens fotográficas através do desenho para as páginas em
branco de livro costurado manualmente. As páginas se tornam o tempo e
o espaço para uma busca poética.
Aprendi que pesquisar o próprio trabalho é muito mais difícil e do-
loroso do que pesquisar o trabalho de outros artistas.
Criar esta série me permitiu perceber que existe uma poética pes-
soal delineada: a busca em expressar um encantamento pelo cotidiano,
pelos objetos simples do dia a dia que nos cercam. A busca em expressar
os sentimentos desta existência humana: a angústia, a solidão, o amor,
a saudade, o abandono, a descoberta... O que nos torna humanos plenos,
éticos e sensíveis? O que nos afasta e o que nos aproxima, o que torna a
nossa coexistência possível, sem opressão, com liberdade e respeito?

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HABITAR - SENSIBILIZAR OS LIMITES
JAMILA MARIA

Jamila Maria é fotógrafa e artista visual. Vive e trabalha no Distrito Federal.


DO OLHAR E SENTIR

Figuras 32 a 35. Jamila Maria. Habitar. Linguagem. Materiais. Dimensões: 23 x 15 cm aproximada-

mente. 2021. Foto: Acervo Pessoal.

Figuras 36 a 40. Jamila Maria. Habitar. Linguagem. Materiais. Dimensões: 23 x 15 cm aproximada-

mente. 2021. Foto: Acervo Pessoal.

Figuras 41-45. Jamila Maria. Habitar. Linguagem. Materiais. Dimensões: 23 x 15 cm aproximada-

mente. 2021. Foto: Acervo Pessoal.

Figuras 46 e 47. Jamila Maria. Habitar. Linguagem. Materiais. Dimensões: 23 x 15 cm aproximada-

mente. 2021. Foto: Acervo Pessoal.


A imaginação aumenta os valores da realidade.

Gaston Bachelard, A Poética do Espaço

Lembrar-se do que é ficção ou real.

O mundo bate do outro lado de minha porta.

Pierre Albert-Birot

O trabalho aborda o "habitar" do lar e o mundo externo.


Onde se mistura o real e onde prendemos nosso olhar.
É também sobre como construímos nossa cabana - morada de vi-
vências do dia a dia.
Dentro, fora.
Por dentro e para fora.

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MAYÃ FERNANDES
ALEGRIA NA CABEÇA

Artista visual, escritora e filósofa. Natural de Brasília, vive e trabalha em Taguatinga-DF.

Figura 48. Mayã Fernandes. Pose de Princesa. Irete nínú orí (série). Pintura. Tinta acrílica sobre

lona. Dimensões: 70 x 65 cm. 2021. Foto: Acervo Pessoal.

Figura 49. Mayã Fernandes. Brincadeira de Gambé. Irete nínú orí (série). Pintura. Tinta acrílica so-

bre lona.Dimensões: 104 x 66 cm. 2021. Foto: Acervo Pessoal.

Figura 50. Mayã Fernandes. O pé de caju que enterrei. Irete nínú orí (série). Pintura. Tinta acrílica

sobre lona. Dimensões: 125 x 62 cm. 2021. Foto: Acervo Pessoal.

Figuras 51. Mayã Fernandes. Irete nínú orí (série). Pintura. Detalhes. 2021. Foto: Acervo Pessoal.

Figuras 52. Mayã Fernandes. Irete nínú orí (série). Pintura. Detalhes. 2021. Foto: Acervo Pessoal.
A série Irete nínú orí (alegria na cabeça) surge com a ideia de re-
presentar minha vida nos anos 90, quando ainda criança, não
entendia o que era a minha existência no mundo. No desenvol-
vimento dessa série, utilizo minhas fotografias de infância para realizar
Nessas obras, busco refletir sobre essa experiência do que é ser o
outro, de entender questões raciais, de gênero e sexualidade que me atra-
vessam e que, por vezes, impõem-se como uma ânsia pela fuga que se nu-
tre pelo sentimento do não pertencimento, pela desterritorialização, pelo
retorno a um lugar seguro, que acredito ser sensação compartilhada com
autorretratos, inserindo elementos do candomblé Ketu/Nagô que não
uma maioria que foi historicamente minorizada.
estavam originalmente na imagem. Desse modo, minhas obras perma-
A fuga que busco é a do exterior para o interior, é a metafórica, pois
necem no limiar entre o autorretrato e a autoficção. Da fotografia de re-
sei que a fuga em sua literalidade e idealização esbarram no não lugar.
ferência permanecem na pintura a criança, ressaltando o gesto, seja no
Assim, encontro o pertencimento e o afeto nas práticas de terreiro, esse
“bater continência” em Brincadeira de gambé (2021), ou na mão na cintura,
engendrar faz com que minhas obras sejam uma reafirmação da minha
postura altiva e sorriso amplo presentes em Pose de princesa (2021). Nes-
relação com Nanã.
sas imagens troco as vestimentas, oscilo o tom da pele dentro das pos-
sibilidades das cores terrosas e insiro a figura abstrata em azul e branco
sobre a cabeça, marca de meu orí, que extrapola os tempos e narrativas
da imagem. Esse extrapolamento aparece por meio da ausência de fun-
do. Nessas pinturas, a cena central ultrapassa a lona, testa seus limites e
enquadramentos.
Nessas obras, opto por destacar os tons terrosos referentes aos
elementos naturais da Orixá Nanã, como a terra e a lama. Ainda, existe
uma predominância para as cores azul e branco, cores associadas à Nanã,
conforme adotamos no terreiro de candomblé Ketu/Nagô Ogbé Ògún Egbé
Axé Ekó. A cor branca aparece em tinta acrílica, estando predominante-
mente na simplicidade da lona preparada com camada simples de gesso.
Ao observar a obra, o espectador poderá perceber esses indícios do que
sou, mas entenderá que em sua completude, a pintura a sua frente é uma
outra versão do que eu poderia ter sido.

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MEMÓRIA: PRESENÇA DO RESTO

Natural de Barbacena, vive e trabalha em Belo Horizonte. É professora e poeta. Não necessaria-

mente nesta ordem.


NATHÁLIA LIMA

Figura 53. Nathália Lima. Entreparedes, detalhe com nomes de ruas (processo). Fotografia. Recor-

te de mapa da cidade do Porto sobre papel cartão. 2021.Foto: acervo pessoal.

Figura 54. Nathália Lima. Entreparedes (processo). Colagem e fotografia. Caixa de papelão, frag-

mento de mapa, fragmento de entrevista, cola. Dimensões: caixa 10x9x4 cm; mapa 3 cm, concha

3 cm x ?. 2021. Foto: acervo pessoal.

Figura 55. Nathália Lima. Entreparedes: a escrita parece uma espuma. Colagem digital. Recortes

digitais de revista sobre Geologia, fragmento de verbete, inscrição digital de graphein. 2021. Foto:

acervo pessoal.

Figura 56. Nathália Lima. Lembrar-se como erupções (processo). Colagem, costura. Papel, linha,

agulha, fragmentos de revistas, pétala de buganvília, folha seca, vidro. 2021. Foto: acervo pessoal.

Figura 57. Nathália Lima. Lembrar-se como erupções. 2021. Colagem, fotografia. Papel, linha, agu-

lha, fragmentos de revista, flores e folha seca, vidro. Foto: acervo pessoal.
E m 2013, cansada de esperar pela entrega das revistas Bravo! que
assinava - e não chegavam - passei a recortar as edições já re-
cebidas para usar de outra maneira nas paredes recém-conheci-
das. Lembro de ter recortado sem nenhum apego certa entrevista de Fer-
refa prazerosa, contemplativa e as marcas indexadas nos cômodos me
devolveram temas que venho perseguindo tais como rastros, restos, so-
bras, sombras e o contraste ausência/presença. À medida em que ob-
servava, partia para o plano das significações, fazendo anotações. Uma
dificuldade que tive, em todas as etapas de imersão e criação, foi a sín-
reira Gullar em que traduzia o significado da poesia na vida dele a partir
tese. Utilizei, então, os trabalhos previamente enviados e as percepções
da pergunta do entrevistador. Não pensei duas vezes e colei os dizeres no
que me ocuparam para listar o que percebo de modo recorrente: sombra-
fundo de uma tampa metálica, dessas de pote de vidro, junto a uma foto
-leveza; revista-entrevista; mapa-linhas; materialidade da casa, caixas;
com os olhos de Marina Abramović. Queria que ficasse à vista: no exterior
narrativa-tecido.
da tampa prendi um ímã. A constatação de Gullar, que também se tornou
A dificuldade de sintetizar vem, suponho, de um conflito entre o que
minha, manteve-se na geladeira até o ano em que me mudei de Viçosa.
eu desejo fazer versus o que consigo fazer com os materiais disponíveis,
Essa memória, que parecia caída em algum canto, retornou quando revi-
algo que esbarra entre antes e depois. Desde o envio do portfólio, já havia
sitei colagens que enviaria como portfólio para o laboratório de poéticas.
percebido uma resistência em fixar definitivamente as palavras recorta-
Comecei o laboratório a fim de buscar um pouco de clareza em
das. Entretanto, via esse fator mais como sutil coincidência que algo a
relação ao fazer artístico e com o intuito de repensar minha prática de
ser observado e trabalhado na experimentação com colagem, afinal, era
escrita literária. Do primeiro momento ao final das aulas, embora tenha
uma “colagem” solta. Assim, ao longo do processo, uma escolha estética
experimentado diversas vias de criação, mantive em todas a relação ver-
usada para fixar os recortes foi a feitura de uma costura simples, a fim de
bo-visual através da colagem e apropriação de imagem e/ou texto verbal.
evidenciar um efeito de inacabamento, de algo interrompido no momento
De maneira geral, duas grandes questões se fizeram importantes no meu
do fazer, o que refletia também o fluxo de busca no qual me percebia.
processo: a fase de observação e as reflexões sobre modos/ caminhos
Antes dessas tentativas de fixar palavra/imagem em alguma su-
que gostaria de seguir para materializar o olhar.
perfície, outros aspectos anotados durante a fase de observação tam-
A primeira atividade “escavar o lar” foi a que me propiciou maior
bém despertaram questões importantes para minhas intenções iniciais.
contato com a proposta. Revisando meu percurso, percebi que minha re-
No final da primeira aula, coloquei-me contemplativa diante daquilo que
lação com o espaço foi, ao mesmo tempo, capaz de me despertar ideias e
evocava memórias. Olhava para a parede e era como se fosse estivesse
de me tragar para dentro dele, de ficar absorta nelas, como se estivesse
diante de um bloco gritante: a parede palha, os papéis institucionais, as
em um estado de abertura permanente. Ficcionalizar a casa foi uma ta-
regras gramaticais de francês, o horário a ser seguido na sexta-feira.

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Percorrer a casa pelos cômodos ou por memórias afetivas? A som- se eterno/ mais durável? Mesmo a planta morta não está ausente. Uma
bra da luminária projetava-se nas arestas da parede central, como se planta morta ou seca diz mais sobre a lembrança que os potes vazios:
quisesse soprar que poderia, sim, começar a escavação pelas superfí- o olhar que a planta devolve. Termino essa afirmação pensando se não
cies (parede, chão, mesa) do escritório. Iniciar pelo escritório me abriu seria melhor colocá-la como interrogação. A memória cabe mais no vazio
a possibilidade de listar micro-lugares em que a memória pode ecoar: da pergunta, da interrogação, ou na finitude do ponto?
a) desgastes na pintura, rachaduras e arranhões no pisos; b) post-its; c) MEMÓRIA: PRESENÇA DO RESTO.
marcas de dedos da primeira visita no apartamento; d) farelos de pão; e) Nesse ponto, a materialização imaginada seria a criação de algo re-
papéis picados; f) pelos de gato presos no adesivo do post-it, g) grampos lacionado à planta da casa, um mapa-moradia das reflexões sobre a me-
espalhados; h) etc. mória. Para isso, trabalhei com colagem de uma concha e um fragmento
Desse modo, tudo é resto? O que a palavra fixa é memória? O que de mapa. Estes foram colados no exterior de uma caixa preta; no interior
as manchas dizem sobre a passagem do tempo? Saindo do escritório, me da caixa, recorte de plástico-bolha, um pedaço de filme fotográfico, uma
deparo com índices de memória que compõem o corredor: manchas no in- citação de Gaston Bachelard, uma fotografia rasgada irregularmente,
terruptor, marca das patas de gato, durex enrugado a prender flores secas. combinação de palavras coladas no plástico-bolha. Retornado às signifi-
Neste ponto, tive a primeira ideia de como poderia materializar os restos/ cações do mapa e da concha, nomeei esse exercício de “entreparedes”.
sugestões de memórias que vinha coletando até ali: um alfabeto para listar O ponto de resistência encontrado nessa experimentação, e nas
memórias. Essa materialização consistiria em um catálogo cujo índice pos- outras, foi a repetição: de tema ou superfície. Assim, os exercícios entre-
sui letras formadas por restos do que compõem a memória. garam como resposta sempre um eco. Partindo disso, retornei para uma
Na sala, me atento para o asplênio com folhas ressecadíssimas, colagem nomeada como “lembrar-se como erupções”. Para a confecção
teias de aranha, aresta da moldura trincada, teto com textura mal acaba- desta, composta por menos elementos, escolhi três fragmentos discursi-
da, arco da porta sendo casa de outras aranhas, cortina e sofá esgarça- vos: o estrangeiro disse: , ECO, a mais extensa duração imaginável,. Estes
dos pelo sol e unha dos gatos. Pela janela, a ausência da árvore do vizi- podem se combinar de maneiras diferentes, mas acabam retornando para
nho. Sobre a mesa, o pequeno exemplar de pileia se monumentaliza: uma um ponto de escuta/observação, através do movimento das linhas cinzas
miniatura da Torre de Piza. Lembro que não sei nem sobre regras, regas distribuídas no fundo branco. Além desses dizeres que mesclam repeti-
e posição do sol. ção, a presença de um personagem estrangeiro que diz algo, há também
Vou para a área de serviço e uma nova reflexão me acompanha: discretos elementos orgânicos (pétala e folha de buganvília) como índices
perceber aquilo que se repete é um lembrete de que gostaria que fos- de duração, decomposição. Esses índices são atravessados por linha e

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agulha e podem sugerir a experimentação como processo, como algo em
aberto, apesar de amparado pela moldura.
Estar envolvida nas atividades e na partilha se mostrou tão rele-
vante quanto perceber a importância de se combinar o acaso com as re-
flexões levantadas durante os exercícios. Certamente, foi um ato crucial
para as experimentações. Todo esse percurso me faz lembrar da experi-
mentação antiga, de 2013, e tem me feito transitar com mais fluidez no
momento de fixar palavras e imagens nas superfícies. Desse percurso,
fica o lembrete condutor das aulas: reconhecer as materializações como
um processo e não como trabalho definitivo, porque afinal cada começo/
é só continuação/ e o livro dos eventos/ está sempre aberto no meio.

50
ORIBÊ
2022

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