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M
AC
R
E
M
Ê
Em vez
da técnica,
c reio que
seria provei-
toso falar do
artesanato. De-
vido a um equívo-
co contemporâneo,
supõe-se que este tem
algo a ver com papel machê,
ou que não passa de manuseio da
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produção. É verdade que, quanto
mais se entende de computador
ou de impressão, mais fácil po-
de-se conceber soluções para os
problemas. Porém, definir o ar-
tesanato dessa maneira trivial,
apenas em termos da técnica,
não alcança o modo pelo qual o
conhecimento depende da habi-
lidade manual.
O meu interesse pelo artesanato
deriva da experiência como estu-
dante de design em Cranbrook,
onde “o artesanato”, como tece-
lagem, cerâmica e trabalho com
metal, era ensinado com serie-
dade. Sempre fiquei confusa pelo
que parecia ser uma divisão es-
trita, mas inexplicada, entre de- CRAN
sign e artesanato: “artesanato”

BROOK
parecia se restringir à feitura de
coisas únicas, ao passo que o de-
sign visava a produção em escala.
Todos nós fazíamos coisas para
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serem usadas, mas parecia haver “Um novo comprome-
uma questão mais profunda no timento com a prática
âmago da maneira de produzir
essas coisas. artesanal vai reforçar a
teoria do design e ajudar
Na tentativa de entender melhor
essa questão, topei com o livro
a recolocá-lo no centro
The Art of the Maker [A arte do do que os designers ofe-
criador], do britânico Peter Dor- recem para a cultura (e
mer, um teórico do design já fa- também para os negó-
lecido. Ele discute o artesanato cios, a longo prazo).”
em termos de dois tipos distin-
Lorraine Wild “O Macramê
tos de conhecimento. O primei-
ro é o conhecimento teórico, os da Resistência”, 1998
conceitos por trás das coisas, a O conhecimento tácito
linguagem que usamos para des- indispensável para fa-
crever e entender as ideias; o zer funcionar algo não
segundo é o conhecimento se confunde com o en-
tácito, o conhecimento tendimento teórico dos
obtido pela experiên- princípios subjacentes
cia, o know-how, ou “sa- a esse funcionamento.
ber fazer”.
A teoria pode nos ajudar
a aprender a fazer algo
melhor, mas o conheci-
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mento artesanal (algo também nhecimento baseado não só na
chamado de conhecimento “lo- identificação de autoria ou na
cal”) tem de ser vivenciado em classificação, mas também na
outro nível. Para Dormer, esses mera percepção do que é bom
dois tipos de conhecimento são (quando se tem “olho”). O co-
absolutamente indissociáveis. nhecimento artesanal tem de
se expor ao escrutínio público,
Grande parte do artesanato es- mas também é muito individu-
capa à definição. Adquire-se o al, pois foi obtido graças à expe-
“conhecimento artesanal” por riência pessoal.
acúmulo de experiência, e, quan-
do se alcança a maestria, não se Quando o artesanato é pensa-
pensa muito sobre a base con- do no âmbito do design gráfico,
ceitual que serviu de apoio du- isso poderia constituir o que se
rante o trajeto. O conhecimento pretende dizer com a expres-
artesanal, ainda que de difícil são “voz do designer” – aque-
obtenção, atinge a condição de la parcela de um projeto que
habilidade uma vez que é ab- não está laboriosamente se re-
sorvido e não requer atenção ferindo aos seus motivos ulte-
cada vez que é mobilizado. riores, mas em vez disso reflete
Torna-se algo instintivo. o comprometimento da habi-
lidade do designer. Isso leva o
O con hecimento obt ido por “corpo da obra” de um designer
familiaridade também inclui para além do objetivo particular
aquilo que sabemos pelos sen- de cada projeto. Por isso, a perí-
tidos, pela prática, aquele reco-
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cia tem a ver com táticas e con- artesanal como uma faceta impor-
ceitos, buscando oportunidades tante da nossa cultura.
nas brechas do que se conhece,
mais do que com tentar organi- Levando-se em conta essa defini-
zar tudo em função de uma te- ção mais ampla do artesanal, que
oria unificadora. Como afirma equipara a investigação ao sen-
Dormer, “é preciso capacidade tido, torna-se possível explicar
para experimentar. melhor as concepções individu-
A experimentação ais de muitos designers gráficos
[…] muitas vezes que produziram corpos de obras
descrita como que não parecem muito presas às
brincar à restrições do mercado. Extrema-
toa, requer mente pessoal, talvez, ou excên-
juízo – ela trico, o trabalho deles produz de
mel hor a a qualquer modo uma ressonân-
capacidade cia, parece cada vez melhor com
de discrimina- a passagem do tempo, e faz cada
ção”. Para Dormer, vez mais sentido. Penso em mi-
a busca que caracteriza o artesanal nha própria lista de prazeres cul-
é uma função humana crucial, com- posos, naqueles designers cujo
parável a processos como o do pen- trabalho adoro devido à fideli-
samento criativo de matemáticos dade que mantêm em relação a
e físicos no ápice de suas carreiras. si mesmos, acima de tudo, como
Esse autor reivindicava a atividade W.A. Dwiggins, que reinventou a
tipografia americana ao transpor
CORITA
KENT
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os valores do universo das artes e “o bj e t i-
ofícios para o design voltado para vidade”,
a produção industrial, ao mesmo acoplando o seu próprio traço
tempo em que manteve o seu te- lindamente subjetivo à lingua-
atro de marionetes artesanal em gem pública da tipografia clás-
uma garagem de Massachusetts; sica; ou a irmã Corita Kent, freira
ou Alvin Lustig, arquiteto, tipó- e tipógrafa do Sul da Califórnia
grafo, designer que, na década de 1960, teve a
e educador que ideia de usar a linguagem da cul-
recusava a espe- tura popular ao falar sobre es-
cialização (ele é piritualidade para o seu público,
o autor de uma subvertendo e apropriando esses
das minhas de- termos para fins comunicativos
finições predi- antes que entrassem em nossos
letas de design: vocabulários críticos; ou Ed “Big
“Proponho so- Daddy” Roth, e aqui na verda-
luções que nin- de não serei capaz de explicar,
guém quer para a não ser dizendo que tem a ver
problemas que com a pura ousadia e o gosto de
não existem”); pensar e agir de maneira efetiva-
W.A. ou Imre Reiner, mente local; ou, ainda, Edward
tipógrafo anti- Fella, que acabou deixando para
DWIGGINS

modernista da trás a “arte comercial” à medi-


Suíça, que se re- da que se dedicava apenas àque-
belou contra a les problemas que só ele próprio
EDWARD

FELLA
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assim definia – seu com- serem mar-
promisso com a anti- ginais, mas
mestria (exemplificado prec i sa mos
pelo lema “Mantenham prestar aten-
inconsistentes as irre- ção neles, pois
gularidades!”) liberta estão indican-
o design da perfeição do caminhos al-
digital, misturando- ternativos. Como
-o à vida cotidiana, disse outro autor
criando poesia. sobre o tema do
artesanato, Mal-
Cada qual a seu colm McCullough,
modo, esses de- no livro Abstracting
signers inventam Craft [Abstraindo o
e transcendem artesanal], “o senti-
o s c l ic hê s de do do nosso traba-
“conceito” que lho está associado ao
caracterizam modo como é feito, e
tantas das não apenas ‘concebi-
atuais previ- do’”. Tenho plena cons-
sões sobre o ciência da estranheza de,
que o design em 1998, argumentar em
precisa para o favor de um ensino revigo-
futuro. É fácil demais rado e renovado da teoria
descartar esses trabalhos por básica das cores, ou de dese-
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nho, ou de com- design a um argumento teóri-
posição, ou de co, desvalorizando o conheci-
tipografia bási- mento e o prazer que se poderia
ca que reconecte o obter com um envolv imento
digital a todo o âm- passional no próprio proces-
bito da invenção grá- so artesanal. O conhecimento
f ica. Mas são essas as acumulado com atividades que
ferramentas de que preci- podem ser descritas como táti-
samos para estabelecer uma cas, cotidianas ou meramente
independência criativa, liberar artesanais é poderoso e impor-
a invenção, produzir algo excep- tante, e deve constituir o funda-
cional. mento da formação e do ofício
de um designer – é assim que
Um novo compromet i ment o criamos ideias; e, também, é as-
com a prática artesanal vai re- sim que criamos cultura. Por
forçar a teoria do design e aju- que outro motivo esta-
dar a recolocá-lo no centro do
que os designers oferecem para
mos aqui?
a cultura (e também para os ne-
gócios, a longo prazo). É isso que
falta em todas as previsões so-
bre o f uturo do design como
atividade puramente conceitu-
al ou técnica. É frustrante ver
tantas tentativas de reduzir o
DA

RE
S I
ST
ÊN
CI
A

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