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A INOVAÇÃO NO SERIADO

tipo ou matriz, concebidas para desempenhar uma função prática. Gregos


e romanos entendiam por techne ou ars a habilidade em construir objetos
que funcionassem de modo ordenado e perfeito. O conceito de excelência
era atribuído ao modelo, e as reproduções do modelo eram reconhecidas
como belas ou agradáveis, como era belo 9u agradável o modelo no qual
se baseavam, sem tentarem parecer originais. Além disso, também a
estética moderna sabia que muitas obras de arte originais podem ser
produzidas usando elementos pré-fabricados e "em série" e, para ela, da
serialidade podia nascer a originalidade. Acontece assim na arquitetura,
rnas aeonteceu nssim !ambém na poesia tradicional, ern ( ] l ! C o autor podia
usar esquemas predeterminados (como o seXLelo e o terceto) e, todavia,
mesmo permitindo ao destinatário reconhecer a presença do esquema,
pretendia provocar-lhe a experiência da inovação ou da invenção.
l. O problema do seriado nos meios de comunicação de massa Diverso é o caso ele expressões que "fingem" ser sempre diferen!es
para, em vez disso, transmitirem sernpre o mesmo conteúdo básico. E o
· A estética "moderna" nos habituou a reconhecer como "obras de arte" caso nos meios de comunicacão de massa, do filme comercial, dos
os objetos que se apresentam como "únicos" (isto é, não repetíveis) e quacirinhos cómicos, da músic; de dança e - sern dúvida - do assim
"originais". Por originalidade ou inovação entendeu um modo de fazer chamado seriado de televisão, onde se tem a impressão de ler, ver, escutar
que põe em crise as nossas expectativas, que nos oferece uma nova sempre alguma coisa nova enquanto, com palavras inócuas, nos contam
imagem do mundo, que renova as nossas experiências.•J;:ste foi o ideal sempre a mesma história.
estético'que se afirmou com o Maneirismo e que se impôs definitiva- 1 E essa serialidade dos meios de comunicação de massa que fot
mente, das est ticas do Romantismo às posições das vanguardas deste considerada pela cultura "alta" como serialidade degenerada (e insidio-
século. sa) em relação à serialidade aberta e honesta da indústria e do artesanato ..
Quando a estética moderna se viu diante de obras produzidas pelos Naturalmente, no decorrer dessas polêmiuL5, esquecia-se que esse
meios de comunicação de massa, negou-lhes qualquer valor artístico tipo de serialidade também esteve sempre presente em muitas fases ela
exatamente porque pareciam repetitivas, construídas de acordo com um produção artística do passado. Neste sentido, muita arte primitivaé serial,
modelo: sempre igual, de modo a dar a seus destinatários o que eles eram seriais muitas formas musicais destinadas ao entretenimento (como
queriam e esperavam. Definiu-as como objetos produzidos em série, a sarabanda, ajiga ou o minueto), e a tal ponto que muitos compositores
assim como se produzem muitos automóveis do mesmo tipo, segundo um ilustres não deixavan'l de compor, por exemplo, uma suíte de acordo com
modelo :constante. Aliás, a "serialidade" dos meios de comunicação de um esquema fixo, e nela inseriam variações de melodias já conhecidas e
massa foi considerada mais negativa que a da indústria. Para entender populares. Por outro lado, basta pensar na commedia deli' ar/e, onde, com
essa natureza negativa dos meios de comunicação de massa em relação base num esquema preestabelecido, os atores improvisavam, com varia-
às outras produções industriais, é necessário distinguir entre "produzir ções mínimas, as suas representações que contavam sempre a mesma
em série um objeto" e "produzir em série os conteúdos de expressões história.
aparentemente diferentes". 1 A presença hoje maciça da série nos meios de comunicação de massa
A estética, a história da arte, a antropologia cultural conhecem há (pensemos, por exemplo, em gênero como a novela, a comédia de
muito o problema da serialidade. Falaram de "artesanato" (ao invés de situação ou a saga na TV) nos obriga a refletir com uma certa atenção
arte) mas não negaram um valor estético elementar a estas, assim sobre todo o problema. Em que medida o serial dos meios de comuni-
chamadas, "artes menores", corno produção de cerâmica, tecidos, cacão de massa é diferente de muitas formas artísticas do passado? Em
utensílios de trabalho. Tentaram definir de que modo esses objetos qu medida não está nos propondo formas de arte que, recusadas pela
podem ser considerados "belos": são repetições perfeitas de um mesmo estética "moderna", induzem uma estética elita "pós-moderna" a diversas
conclusões?

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2. Uma tipologia da repetição ou seja, a continuação. O exemplo mais famoso é o Vinre anos depois, de
Dumas, e no campo cinematográfico são as diversas retomadas de
Série e serialidade, repetição e retomada, são conceitos amplamente arquétipos como Gurrra nas estrelas ou Super-homem. A retomada
inflacionados. A filosofia ou a história das artes nos habituaram a alguns nasce de uma decisão comercial, e é puramente ocasional o fato de que
sentidos: técnicos destes termos, que será melhor eliminar: não falarei de o segundo episódio srja melhor ou pior do que o primeir:o.
repetição no sentido de "retomada" à Kierkegaard, ou de répétition
différenie, no sentido de Deleuze. Na história da música contemporânea, 2.2 O decalque
série e serialidade foram tomados num sentido mais ou menos oposto ao O decalque consiste em reformular, normalmente sem informar ao
que estamos discutindo aqui. A série dodecafônica é o contrário de consumidor, uma historia de sucesso. Quase todos os primeiros westems
repetitividade serial típica do universo dos meios de comunicação de
e
massa, com mais razão é diferente dela a série pós-dodecafônica
comerciais eram decalque de obras anteriores, ou talvez fossem todos
uma série de decalques de um arquétipo de sucesso.
(ambas, mesmo em modo diferente, são esquemas a serem usados uma Uma espécie de decalque explícito e declarado como tal é o remake:
vez, e somente uma vez, dentro de uma única composição).
1

vide as várias edições· dos filmes sobre o doutor Jekyll, sobre A ilha do
t
Abrindo um dicionário corrente, v jo que, por "repetir", entende-se tesouró ou sobre O m'otim do Bounty.
"dizer ou fazer alguma coisa de novo", mas no sentido de "dizer coisas

'I
Na categoria de decalque podemos classificm tanto os casos de
já ditas'f ou "fazer monotonamente as mesmas coisas''. Trata-se de
I.
verdadeiro plágio como os casos de "reescrita" com explícitas finalidades
estabelecer o que é que se entende por "de novo" ou por "mesmas coisas". de interpretação.
Devemos então definir um primeiro significado de "repetir" segundo
.,i o qual o termo significa reproduzir uma réplica do mesmo tipo abstrato. 1
·J 2.3 A série
Duas folhas de papel para escrever a máquina são, ambas, uma réplica do 2.3.1 Com a verdadeira série temos um fenómeno bem diferente .
./,j. mesmo tipo de mercadoria. Antes de mais nada, enquanto o decalque pode não ser decalque de
Nesse sentido, "a mesma coisa" de uma outra coisa é aquela que exibe situações narrativas e sim de procedimentos estilísticos, a série, eu diria,
as mesmas propriedades1 pelo menos de um certo ponto de vista: duas diz respeito, íntima e exclusivamente, à estrutura nanativa. Temos nma
folhas de papel são as mesmas em tennos de nossas exigências'funcio- situação fixa e um certo número de personagens principais da mesma
naís, mas não são as mesmas para um físico interessado na composição forma fixos, ern ton1_o dos quais gin11n personagens sccund,írios que
molecular dos objetos. Do ponto de vista da produção industrial de massa, mudam, exatamente para dar a impressão de ,que a bistória seguinte é
de:fünem 0 se como réplicas dois tokens ou ocorrências do mesmo type, dois diferente da história ánterior. A série típica pode ser exemplificada, no
objetos que, para uma pessoa nom1al com exigências normais, na universo da literaturá popular, pelos romances policiais de Rex Stout
ausência de imperfeições evidentes, dê no mesmo escolher entre uma (personagens fixos: Nero Wolfe, Archie Goodwin, os criados ela casa
< réplica o outra. São réplicas do mesmo tipo duas cópias ele um filme ou Wolfe, o inspetor Crnmer, o sargento Stcbbins e poucos mais), e no
de um livro. universo da televisão por AI/ in lhefamily, Starsky and I lutch, Cofomho,
A repetitividade e a serialídacle que nos interessam concernem cm ele. Agrupo géneros televisivos dil'crentcs, que vflo desde a novela 1
vez diss ·, a alguma coisa que à primeira vista não parece igual a qual uer comédia de siluações e ao seriado policial.•
outra co1Sa. A série foi abundantemente estudada, e quando se falou de "estruturas
Vejamos agora quais são os casos em que alguma coisa nos é iterativas na comunicação de massa" visava-se justamente à estrutura da
apresentada (e vendida) como original e diferente, embora percebamos série: 2 Na série, o leitor acredita que desfruta ela novidade da história
que esta, de alguma forma, repete o que já conbecíamos, e provavelmente enquanto, de fato, distraí-se seguindo um esquema narrativo constante e
a compramos exatamente por isso. fica satisfeito ao encontrar um personagem conhecido, com seus tiques,
suas frases feitas, sua técnicas para solucionar problemas ... A série neste
1 sentido responde à necessidade infantil, mas nem por isso doentia, de
2.1 A retomada
Um primeiro tipo de repetição é a retomada de um tema de sucesso, ouvir sempre a mesma história, de consolar-se com o rerorno do idêmico,
superficialmente mafrarado.

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A série consola o leitor porque premia a sua capacidade de prever; ele penhe em inventar histórias diferentes, na verdade o público reconhece
(com satisfação) sempre e de qualquer maneira a mesma históría.
-1 fica feliz p rque e descobre capaz de adivinhar o que acontecerá, e por-
que saboreia o r tomo do esperado. Satisfazemo-nos porque encontra-
mos o que esperávamos, mas não atribuímos este "encontro" à estrutura 2.4A saga
A saga é uma sucessão de eventos, aparentemente sempre novos, que
da narrativa, e sim à nossa astúcia divinatória. Não pensamos "o autor do
se ligam, ao contrário'. da série, ao processo "histórico" de um perso-
romance policial'escreveu de modo a me deixar adivinhar", mas sim "eu
adivinhei o que o autor do romance policial procurava esconder de mim". nagem, ou melhor, a un;a genealogia de personagens. Na saga os persona-
gens envelhecem, a saga é uma história de envelhecimento (de in-
2.3.2 Encontramos uma variante da série na estrutura emflash-back:
divíduos, famílias, povos, grupos).
veja-se, por exemplo, a situação de algumas histórias em quadrinhos
A saga pode ser em linha contínuo (um personagem acompanhado do
(como a do Super-homem), onde o personagem não é seguido ao longo
do curso linear de sua existência, mas contínua,mente encontrado em nascimento à morte, depois seu filho, depois seu neto, e assim por diante
, diversos momentos da sua vida, obsessivamente revisitada para desco- potencialmente até o infinito) ou ad albero (o: antepassado e as várias
brir_novas oport.unidades narrativas. Quase parece que passaram desper- ramificações narrativa que se reportam não só aos descendentes, mas aos
cebidas ao, narrador, por distração, mas que sua descoberta não altera a colaterais e aos afim( também aqui ramificando infinitamente, e talvez
fisionomia do personagem, já fixada de uma vez por todas. Em termos desviando a atenção para novos núcleos familiares: o exemplo mais
matemáticos, ess·e subtipo de série pode ser definido corno um-loop. imediato é, ce1tamente, Dollos).
Nascida com intenções comemorativas e chegando à metamorfose
As séries a loop são criadas normalmente por razões comerciais: mais ou menos degenerativa nos meios de comu'nicação de; massa, a saga
_trata-se, a fim de continuar a série, de prevenir o natural problema do é sempre uma série mitscarada. Nela, ao contrário da série, os persona-
envelhecimento do personagem. Em vez de fazê-lo suportar novas gens mudam (mudam quando se substituem uns aos outros e quando
aventurasi (que implicariam na sua marcha inexorável em direção à envelhecem): mas na realidade ela repete, de forma historiada, cele-
morte) fa -se com que reviva continuamente no passado. A solução a brando aparentemente o passar do tempo, a mesma história, e revela à
loop prod;uz par(ldoxos que já foram objeto de inúmeras paródias: o análise uma atemporalidade e uma ausência de historicidade básicas. Os
personag m tem pouco futuro, mas tem um passado enorme, e todavia personagens de Dallai passam mais ou menos pelas mesmas situações:
na_da do seu passado jamais deverá alterar o presente mitológico em que luta pela riqueza e pelo poder, vida, morte, derrota, vitória, adultério,
foi apresentado ao kitor desde o início. Não bastam d'ez vidas para fazer amor, ódio, inveja, ilusão e desilusão. Mas era diferente com os cava-
•a _pequena órfã" passar por tudo que de fato passou nos primeiros (e leiros da Távola Redohda que vagavam pelas florestas bretãs?
umcos) dez anos de sua vida.
2.3.3 Outra variação da série é a espiral. Nas histórias de Charlie 2.5 O dialogismo inteltextual
Brown aparentemente acontece sempre a mesma coisa, aliás, não acon- 2.5.1 Algumas formas de dialogísmo vão além dos limites destas
tec n da,;aínda assim a cada nova tira o personagem Charlie Brown fica considerações. Veja-sé, por exemplo, a citação estilística: um texto cita,
mais nco e profundo. Coisa que não acontece nem com Nero Wolfe nem de modo mais ou mends explícito, uma cadência, um episódio, um modo
com Starsky ou com Hutch: nós estamos sempre interessados em co- de narrar que imita o texto de outrem. Quando a citação escapa ao leitor
nhecer suàs novas aventl!lras, mas já sabemos tudo o que é preciso saber e é até mesmo produzida inconscientemente pelo autor, estamos na dinâ-
sobre a psicologia, os hábitos e as habilidades deles. mica normal da criação artística: os próprios mestres se repetem. Quando
2.3.4 Acrescentaria', por fim, aquelas formas de serialidade moti- a citação deve ser imperceptível para o leitor, e o autor está consciente
vadas, mais do que pela estrutura narrativa, pela própria natureza do ator: disso, normalmente estamos diante de um simples caso de plágio.
a si_mples pres nça de John Wayne (ou Jerry Lewis), sem uma direção Mais interessante é quando a citação é explícita e consciente: estamos
mu_1to personalizada, só poderia produzir o mesmo filme, porque os acon- então próximos da pdródia ou da homenagem ou, como acontece na
tecimentos nascem da mímica, dos esquemas comportamentais, às vezes literatura e na arte pós-ínodema, do jogo irónico sobre a intertextualidade
da própria elementaridade do personagem-ator, que nada sabe fazer a não (romance sobre o romnnce e sobre as técnicas narrativas, poesia sobre a
ser sempre as mesmas coisas. Nestes casos, por mais que o autor se em- poesia, arte sobre a arfe).

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a l
2.5.2 Um procedimento típico da narrativa pós-moclcrna, e.cm sido, O jogo se complica, depois, na retomada de Os caçadores, isto é, em
entretanto, muito, usado recentemente no âmbito da comunicac,:fx:s de Indiana.lones e o templo da perdição: aqui o herói encontra não um, mas
massa: trata-se de uma citação irânica do topos. dois inimigos gigantescos. No primeiro caso o espectador esperava que,
Lembremos o assassinato do gigante árabe ·vestido ele preto em Os de acordo com os esquemas clássicos do filme de aventuras, o herói esti-
caçadores da arca perdida. Ou a citação da escadaria de Oclcssa em vesse desarmado e ria quando descobria que este tinha uma pistola e ma-
Bananas, de Woody Allen. O que é que estas duas citações têm em tava facilmente o adversário. No segundo caso, o diretor sabequeo espec-
comum? Em ambos os casos o espectador, para usufruir da alusão, deve tador, que já viu o filme anterior, espera que o herói esteja annado e, de
conhecer os "lugares" originais (no caso do gigante, um topos de gênero,
no caso de Bananas, umtoposqueaparecepelaprimeirae única vez numa fato, Indiana Jones procura logo a pistola. Não a encontra, e o espectaclor
obra isolada, e em seguida toma-se citação obrigatória - e por con- ri porque fica frustradó nas expectativas que o primeiro filme havia
seguinte topos da crítica cinematográfica e da linguagem cinematorial). criado.
Em ambos os'casos o topos já foi registrado pela "enciclopédia" do 2.5.3 Os casos citados põem em jogo uma enciclopédia intertextual:
espectador, faz parte do imaginário coletivo, e como tal é evocado. O que temos textos que citam outros textos, e o conhecimento dos textos ante-
diferencia as duas citações é, no máximo, o fato de que em Os caçadores riores é pressuposto ne·cessário para a antecipação do texto em exame.

li
o topos é eirado para poder ser desmentido (não acontece o que se espera Mais interessante, para uma análise ela nova intertextualidade e ,
em casos semelhantes), enquanto em Bananas o topos é introduzido, com dialogismo dos meios de comunicação de massa, é o exemplo de ET,
as devidas variações, somente devido à sua incongruência. Congruente quando a criatura espikial (invenção ele Spielberg) é levada à cidade
no primeiro caso, e exatamente por isso eficaz quando desmentido, durante o Halloween e encontra um outro personagem, fantasiado de
-incongrnente no segundo caso. 3 gnomo de O império cóntra-ataca (invenção de Lucas). ET sobressalta-
O primeiro caso lembra a série de cartuns que Mad publicava anos a-
trás, em que sempre se contava "um filme que gostaríamos de ver". Por e- se e tenta ir ao encontró do gnomo para abraçá-lo, como se se tratasse de
xemplo a heroína; no Oeste, amarrada pelos bandidos nos trilhos do trem, um velho amigo. Aqui o espectador deve saber muitas coisas: deve l

e depois, rluma dramática montagem à Griffith, a alternância de imagens certamente saberdaexístênciade um outro filme ,(conhecimento intertex- i1
• 1
que mostram de um lado o trem que se aproxima e do outro a cavalgada tual), mas deve também saber que ambos os monstros foram projetados
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J furiosa dos salvadores que tentam chegar antes da locomotiva. Em con- por Rambaldi, que os diretores dos dois filmes estão ligados por várias
clusão, a moça (contrariamente a todas as expectativas sugeridas pelo razões, não só porque são os diretores de maior sucesso ela década, deve, i
!
topos evoçaclo) é esmagada pelo trem. Aqui estamos diante de um jogo
cômico que brinca com a pressuposição (exata) de que o público reco-
em suma, possuir não somente um conhecimentó dos textos mas também ..
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1
1

nheça o lugaroriginal, aplique à. sua citação o sistema de expectativas que


um conhecimento do mundo, ou seja, elas circunstâncias externas aos i
este deveria estimular por definição (quero dizer: por definição do frame
ou script, tal como a enciclopédia já o registra), e depois ria do modo pelo
textos. Observe-se, naturalmente, que tanto o conhecimento elos textos
como o conhecimento· do mundo, não passam de dois, capítulos do r
qual as suas expectativas são frustradas. Nessa altura, o espectador conhecimento enciclop,édico e que portanto, numa certa medida, o texlo
ingênuo, u'ma vez contrariado, supera a sua frustração, transformando-se se refere sempre, seja como for, ao mesmo patrimônio cultural.
em espectaclor crítico, que aprecia o modo como foi passado para trás. Antigamente, um fenômeno desse gênero era típico ele uma arte
No cas'o de Bananas, estamos num outro nível: o espectador com o experimental que pressupunha um leitor modelo culturalmente assaz
qual o texto faz um pacto não é o espectador ingênuo (que no máximo sofisticado. O fato de tais procedimentos serem sempre mais comuns no
pode ficar impressionado com o aparecimento de um acontecimento universo dos meios de comunicação de massa nos leva a algumas
incongruente), mas o espectador crítico, que aprecia,o jogo irónico da )1
r considerações: os mas. media se preocupam com - pressupondo-as -
citação e, mais exatamente, a sua proposital incongruência. informações já veicula.das por outros mass media.
Todavia, em ambos os casos temos um efeito crítico colateral: tendo- O texto de ET "sabe" que o público entendeu, através cios jornais ou
se apercebido da citação, o espectador é levado a refletir ironicamente so- da televisão, que relações perpassam entre Rambaldi, Lucas e Spíelberg.
bre a natureza tópica do evento citado, e a reconhecer o jogo para o qual Os meios de comunicação parecem, no jogo das citações extratextuais,
foi convidado como um jogo de massacre a ser registrado na enciclopédia. referir-se ao mundo, mas de fato se referem ao conteúdo de outras

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mensagens de outros meios de comunicação. A partida é jogada, por as- - deve realizar-se üma dialética entre ordem e novidade, ou seja,
sim dizer, numa:intertextualidade "ampliada" em relaçiío ü qual o conhe- entre esquematismo e inovação;
cimento ;do mundo (entendido de modo ingênuo como conhecimento - e s s a dialética deve ser percebida pelo destinatário. Ele não só deve
derivado de uma experiência extratextual) se tornou praticamente nulo. captar os conteúdos da mensagem como deve captar o modo pelo qual a
As nossas reflexões a seguir não deverão, portanto, questionar so- mensagem transmite aqueles conteúdos.
mente o fenômeno da repetição dentro de uma obra isolada ou de uma Nesse caso nada impede que nos tipos de repetição acima relaciona-
série de obras, mas sim o fenômeno de entrelaçamento que torna as várias dos su1jam as condições para uma realização do valor estético, e a história
estratégias de repetição produtíveis, compreensíveis e comerciáveis. Em das artes aí está para fornecer-nos exemplos satisfatórios para todas as
outras palavras, repetição e serialidade nos meios de comunicação de designações da nossa ch1ssificação.
massa propõem novos problemas de sociologia da cultura.
2.5.4 Uma forma de dialogismo é a embalagem de género muito Retomada-Orlando furioso é, no fundo, urna retomada do lnnamo-
comum nos me{os de comunicação de massa. Pense-se tanto no musical rato e, exatamente devido ao sucesso do primeiro, que era por sua vez
da Broadway (em teatro ou em filmes) que não passa disso - nor- uma retomada dos temas do ciclo bretão, Boiardo e Ariosto acrescentam
malmente - c o m o na bistória de como se monta um musical na Broad- uma boa parcela de ironia ao material deveras "sério" e "levado a sério"
way. E esse tipo parece exigir um vasto conhecimento intertextual: de em que se inspiraram, nias também o terceiro Super-homem é irónico em
fato, ele cria e estabelece a competência exigida e pressuposta para
entendê-lo, no sentido de que cada filme deva contar-nos como se faz um
relação ao primeiro (místico e metido a sério), de modo que temos a
retomada ele um arquétipo inspirado no Evangelho, mas namorando os
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1 1
musical na Broadway, fornece-nos todos os elementos em geral indis- filmes de Frank Tashlin.
pensáveis para compreender um único espetáculo. O espetáculo dá ao A retomada pode ser feita com ingenuidade ou com ironia: a ironia
público a sensação de saber o que na verdade ele ainda não sabe e passa diferencia a retomada furtiva da que é feita com pretensõe estéticas. Não
a conhecer somente naquele momento. Estamos diante de um caso de faltam critérios críticos (e noções de obra de arte) que nos permitam
colossal preterição. Neste sentido o musical é obra didática que torna decidir em que sentido a retomada de Ariosto pode ser mais rica e
conbecidas as regras (idealizadas) da sua produção. complexa do que a do filme de Lester.
2.5.5 Enfim temos a obra que fala de si mesma: não a obra que fala do
gênero ao qual pertence, mas a obra que fala da própria estrutura, do modo Série - Todo texto pressupõe e constrói sempre um duplo Leitor c/-
como é feíta. A rigor, tal procedimento aparece só em relação a obras de Modelo.4 O primeiro us a obra como um dispositivo semântico e é vítima
vanguarda, e parece estranho às comunicações de massa. A estética das estratégias do autor que o conduz passo a passo ao longo de uma série
conhece esse problema, e até o identificou há muito tempo: é o problema de previsões e expectativas; o outro avalia a obra como produto estético
da morte da arte. Mas nos últimos anos aconteceram casos em que e avalia as estratégias j)oslas em ação pelo texto para construí-lo jus-
produtos dos meios de comunicação de massa foram capazes de ironizar
tamente como Leitor Modelo de primeiro nível. O leitor ele segundo nível
a si mesmos, e alguns dos exemplos acima propostos me parecem
bastante'interessantes. Também aqui, os confins entre arte high brow e é o que se empolga com a serial idade da série e se empolga não tánto com
arte low hrow parecem ser muito sutis. o retorno do mesmo (que o leitor ingênuo acredüava ser outro) mas pela
estratégia das variações, ou seja, pelo modo como o mesmo inicial é
continuamente elaborado de modo a fazê-lo parecer diferente.
3. Uma j,olução estética moderada ou "moderna" Esse jogo com a variação é obviamente encorajado pelas séries mais
sofisticadas. Poderíam0s aliás classificar as produções narrativas seria-
Tentemos agora rever os fenômenos acima relacionados do ponto de das num continuum que leva em consideração as diversas graduações do
vista de uma concepção "moderna" do valor estético, segundo a qual se ., contrato d ntre texto e leitor de segundo nível ou:leitor crítico j
destacam duas características em qualquer mensagem esteticamente bem "(éômo clo o oposto do leitor ingénuo). É evidente que até o produto
organizada: nanativo mais banal permite ao leitor constituir-se, porclecisãoautônoma,

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em leitor crítico, isto é, em leitor que decide avaliar as cslratGgias inova- sensibilidade histórica e antropológica pelas diferentes formas que em
doras, ainda que mínimas, ou registrar a ausência de inovnyão. Há porém tempos e países diversos a dialética entre repetitividade e inovação
obras seriaís que estabelecem um pacto explÍl:it:o com o lcilorcrítico e por assume. Devemos questionar-nos se, por acaso, onde não encontramos
,,
i/ assim dizer o desafiam a destacar as habilidades inovadoras cio texto. inovação no seriado, isso não depende, mais do que das estruturas do
Pertencem a essa categoria os telefilmes do tenente Colombo: a tal texto, do nosso horizo1itede expectativas e da estrutura da nossa sensibili-.
ponto que os autores preocupam-se em fazer-nos saber desde o início dade. Sabemos muito bem que em certos exemplos de arte extra-
quem é o assassino. O espectador não é convidado tanto ao jogo ingênuo européia, onde nós vefnos sempre a mesma coisa, os nativos conseguem
das previsões (whodunit?) quanto, por um lado, a divertir-se com a variações infinitesimais e usufruem a seu modo as emoções da inovação.
execução das técnicas de investigação de Colombo (apreciadas como o Enquanto onde nós vemos ínovação, talvez em formas seriais do passado
bis de uma peça de bravura muito conhecida e muito querida), e por outro ocidental, os usuários originais não estavam absolutamente interessados
a descobrir como o autor conseguirá vencer seu desafio: que consiste em nesse aspecto e, inversamente, apreciavam a recon-ência do esquema.
fazer Çolombo fazer aquilo que faz sempre, e todavia não de modo
banalmente repetitivo. Saga - Para confirmar que a nossa tipologin não resolve problemas
No:limite extremo podemos ter produtos seriais que apostam pou- de excelência estética, diremos que toda a Comédia l,urnana ele Balzac
quíssimo no leitor ingênuo, usado como pretexto, e arriscam tudo no representa um bom ex€:mplo de saga ramificada, pelo menos tanlo quanto
pacto com o leitor crítico. Pensemos no exemplo clássico das variações Dal/as. Balzac é esteficamente mais interessante do que os autores ele
musicais: estas podem ser entendidas (e de fato às vezes são usadas) como Dallas porque cada romance seu nos diz alguma coisa de novo sobre a
música de fundo que gratifica o usuário com o retomo do mesmo, sociedade do seu tempo, enquanto cada episódio de Dallas nos diz
ligeiramente mascarado. Todavia, o compositor está fundamentalmente sempre a mesma coisá sobre a sociedade americana ... Mas ambos usam
interessado no pacto com o usuário crítico, do qual quer receber elogios o mesmo esquema narrativo.
pela criatividade demonstrada ao inovar sobre a trama do já conhecido.
Nesse sentido, a série não se opõe necessariamente à inovação. Nada Dialogismo intertextual-Aqui parece que a necessidade de explicar
é mais "serial" do que o esquema-gravata, e contudo nada é mais os êxitos estéticos do dialogismo seja menos urgente, porque a própria
personalizante do que uma gravata. O exemplo pode ser elementar, mas noção de dialogismo foi elaborada no âmbito de uma reflexão, estética e
não é banal, nem limitativo. Entre a estética elementar da gravata e o semiótica ao mesmo tempo, sobre a arte cbamada alta. E todavia, jus-
reconhecido "alto" valor artístico das variações de Goldberg, há um tamente os exemplos que representamos há pouco foram provocatoria-
continuum dividido em graus de estratégias serializantes, ajustadas de mente assumidos pelo uni verso das comunicações de massa, para mostrar
modo diferente para criar um relacionamento com o usuário crítico. Que, como também as formas de dialogismo intertcxtual já se transferiram
pois, a maior parte das estratégias serializantes no âmbito das comuni- para o âmbito da produção popular.
cações de massa esteja interessada .somente nos usuários ele primeiro Típica da literatura e da arte dita pós-moderna (mas já não acontecia
nível - ficando os sociológos e semiólogos livres para exercitarem um o mesmo com a música de Stravinsky?) é a citação entre aspas, de modo
.j que o leitor não presta atenção ao conteúdo da citação, mas sim ao modo
interesse (puramente tribunalício) pelas suas estratégias de abundante
repetitividade e pouca inovação-este é um outro problema. São seriais pelo qual a citação é introduzida na trama de um texto diferente, e para
dar lugar a um texto diferente. Mas, como observa Renato Barilli5 , um dos
,l tanto as naturezas-mortas holandesas, quanto a imagérie d' Épinal. Trata-
riscos desse procedimento é o de não conseguir pôr em evidência as
se, se quisermos, de dedicar às primeiras profundos ensaios críticos e às
i1: segundas afetuosos e nostálgicos catálogos de antiquário: o ponto, aspas, de modo que o cjueécitado-e muitas vezes cita-se não a arte mas
,f ) porém, consiste em reconhecer que em ambos os casos pode existir um o Kitsch - é recebido pelo leitor ingênuo de primeiro nível como
problema de serialidade. invenção original e nâo como citação irônica.
,· li A que tão é que não existe, por um lado, uma estética da arte "alta" Propusemos três exemplos de citação de um topos: Os caçadores da
(original e não serial) e por outro uma pura sociologia do serial. Existe arca perdida, Bananás e ET.
uma estética das formas seriais que não deve caminhar separada de uma Vejamos agora o t rceiro caso: o espectador que nada soubesse sobre

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as origl.'11s <h: produ,:fio <los dois filmes (dos quais um cita o outro) não Colocaremos enfirn, no pólo extremo cio inlcrcssc c Léhco, Lima obra
conseguiria (:ntendcr por que acontece o que acontece. Se o resultado da cujo equivalente não consigo encontrar nos meios de comunicação de
xag 6 condi,·i"io de prazer estético (isto é, se a gag deve ser consideradn massa contemporâneos, e é uma das obras-primas não só do dialogismo
corno conslru :ão que aspira a apresentar-se como auto-reflexiva) - e intertextual mas também da alta capacidade metalingüística de falar e da
numa mnlida, por mínima que seja, o é, como o é a tirada espirituosa, a sua formação e do seu gênero, para encerrar, rapidamente, os úllimos
piada que espera ser admirada pela economia de meios nlrnvés dos quais itens da minha tipologia. Falo de 'J' rist/111m S/J((/11/y.
consegue o el"cito cômico - então o episódio de ET se rege pela neces- É impossível ler e apreciar o romance anti-romance ele Sterne sem
sicladc das aspas. Mas poder-se-ia repreendê-los por confiar a percepção aperceber-se de que ele está ironizando a forma-romance. E o texto o sabe

l
das aspas ü um saber externo ao texto: nada no filme ajuda o espectador a tal ponto que creio qile é impossível encontrar nele um só trecho irônico
a enlcnclcr que em determinado ponto deveriam existir aspas. O filme onde n io deixe evidente seu modo particular de usar aspas, levando a urna
confia no saber extratextual do espectador. E se o espectador não sabe? solução estética a téci'iica retórica da pronuntiatio - essencial para que
Paeiêncía, o filme sabe que tem outros meios para obter sua con- o artifício da ironia tenha êx.ito.
cordância.
Essas aspas imperceptíveis, mais do que um artifício estético, são um 1
Creio ter particularizado uma série ascendente de artifícios do uso de
artifício social, selecionamoshappy few (que, espera-se, sejam milhões). aspas, que, seja como for, deve ter importância para os objetivos de urna
Ao espect:ador ingênuo de primeiro nível o filme já deu até demais: aquele fenomenologia do valor estético e do prazer qne dele resulta. Destaco,
prazer secreto fica reservado, por enquanto, ao espectador crítico de mais uma vez, que as estratégias da surpresa e da novidade na repetição,
segundo nível. mesmo sendo estratégias sem ióticas, esteticamente neutras em si, podem
Outro é o caso de Os caçadores. Aqui, se o espectador crítico falha (e dar origem a diversa soluções diversamente apreciáveis no plano da
o
não reconhece topos desgastado), permanecem amplas possibilidades \ estética.
i
de divertimento para o espectador ingênuo, que se diverte pelo menos 1.
Poderíamos concluir dizendo que:
com o fato de que o herói leva sempre vantagem sobre o adversário. - c a d a um dos tipos de repetição que examinamos não está limitado
Estamos diante de uma construção menos sutil do que a precedente, mais somente aos meios de comunicação de massa, mas pertence por direi Lo
inclinada a satisfazer as exi ências do produtor que, seja como for, deve a toda história da criatividade artística: o plágio, a citação, a paródia, a
vender o produto a alguém. E verdade que é difícil imaginar Os caçadores retomada irônica, o jogo intertexrnal, são típicos de toda a tradição
visto e apreciado por espectadores que não captem o paroxismo citatório, artístico-! iterária;
mas é sempre possível que isso aconteça, e a obra está aberta também a - - muita arte, por-tanto, foi e é serinl; o conceito de originalidade
essa pos$ibílidade. Não saberia dizer qual, entre os dois textos citados, absoluta, em relação á obras anteriores e às próprias regras do gênero, é
persegue finalidades esteticamente mais nobres. Basta-me (e por en- um conceito contemporâneo, nascido com o romantismo; a arte clássica
quanto já me dá muito o que pensar) assinalar uma diferença de fun- era amplamente serial e as vanguardas históricas, de vários modos,
cionamento e de estratégia textual que pode provocar um juízo crítico deixaram em crise a idéia romântica da criação como estréia no absoluto
diferente. (com as técnicas de colagem, os bigodes na Gioconda, etc.);
- o mesmo tipo de procedimento serial pode produzir tanto ex-
Vejamos agora o caso de Bananas. Daquela escadaria desce não só
celência como banalidade; pode deixar o destinatário em crise consigo
um carrinho de bebê, mas também grupos de rabinos e não lembro mais mesmo e com a tradição intertexl'ual no seu conjunto; e, por conseguinte,
o quê. O que acontece com o espectador que não percebe a citação do pode provê-lo de fáce\s consolações, projeções, identificações; pode es-
Potemkin ?·Creio que, pela energia orgiástica com a qual são representa- tabelecer um pacto exclusivamente com o destinatário ingênuo, ou
dos a escadaria e a sua incongruente população, até o espectador ingênuo exclusivamente com 0 destinatário crítico, on com ambos em diferentes
percebe o sentido sinfônico e estranho dessa quennesse bruegeliana. níveis e ao longo de um continuum de soluções que não pode ser reduzido
Mesmo o mais ingênuo entre os espectadores percebe um ritmo, uma a uma tipolog1a elementar;
invenção, não pode deixar de concentrar sua atenção no modo de - portanto, uma tipologia da repetição náo fornece os critérios para
constntir. ,:stabclccer dif'creni,;a': de vulor cslétic:o;

132 133
- todavia, será exatamente aceitando o princípio de .que os vários nos interessa tanto o que é repetido, quanto nos interessa segmentar os
tipos de repcli :i'io constituem características constantes do procedimento componentes de um texto e codificá-los para poder estabelecer um
<irtístico, que se poderá partir deles para estabelecer critérios de valor; sistema de invariantes, onde tudo que não se encaixa é definido como
uma est.étü;a da repetição requer como premissa uma semiótica dos variável independente". E nos casos mais típicos e aparentemente mais
procedimentos textuais de repetição. "aviltados" de serialidade, as variáveis independentes não são absolu-
tamente as mais visíveis, mas as mais microscópicas, como uma solução
homeopática onde a porção é bem mais potente quando, por sucessivas
4. Uma .rnluçâo estética radical ou "pós-moderna" manipul ções, as partículas do produto medicinal quase desaparecem. O
que permite a Calabrese falar da série Colombo como de um exercice de
Percebo, entretanto, que tudo o que disse até agora constitui uma style à Queneau. A esse ponto nos encontraríamos diante de uma "estética
tentativa de reconsiderar as diversas formas de repetição propostas pelos neobarroca": que funciona com força total não só nos produtos cultos,
1 meios de comunicação de massa, nos termos da dialética "moderna" entre mas também e principalmente nos mais aviltados. Também a propósito

]
ordem e inovação . de Dallas pode-se dizer que "as oposições semânticas e a articulação das
. O fato é que, quando as pesquisas sobre esse tema falam de estéti_ca estruturas elementares da narração podem transmigrar com uma combi-
da serialidade, estas aludem a alguma coisa mais radical, isto é, a uma natória de altíssima improbabilidade em torno dos vários personagens''.
noção de este_tí ida e que não pode _mais fic r reduzida à\_;ategoria . - ,.,,._, Diferenciação organizada, policentiismo, irregularidade regulada:
modemo-trad1c1ona1s - se me permitem o ox1moro,_ 'ÍY'•.v- \\_,._"J.,r <1 \•J-0 \Y tais seriam os aspectos fundamentais dessa estética neobarroca, cujo
Foi observado 6 que com o fenômeno dos seriados de televisão encon- :1: exemplo maior é a vúiação musical à Bach.
tramos um novo conceito de "infinidade do texto": o texto adota os ritmos Como na época dás comunicações de massa "a condição de escuta ...
e os tempos da mesma cotidianidade dentro da qual (e destinado à qual) é aquela para a qual tadoJáfoi dito e tudo jáfoi escrito ... como no teatro
se move. O problema não é reconhecer que o texto seriado varia Kabuki, será então a foais minúscula variante que produzirá o prazer do
indefiniôamente dentro do esquema básico (e nesse sentido pode ser texto, ou a forma da repetição explícita do que já se conhece".
julgado do ponto de vista da estética "moderna"). O verdadeiro problema É claro o que acontece com estas reflexões. Desloca-se o foco teórico
é que o que interessa não é tanto a variabilidade quanto o fato de que da pesquisa. Se aqtes tratava-se, para o mass-mediólogo ainda moderno,
dentro do esquema se possa variar ao infinito. E uma variabilidade de salvar a dignidade do seriado nele reconhecendo a possibilidade de
infinita tem todas as características da repetição e pouquíssimas da uma dialética tradicional entre esquema e inovação (mas nesse ponto era ,.__
inovação. O que é aqui celebrado é uma espécie de vitória da vida sobre ainda a inovação que constituía o valor, ou o caminho de salvação para
a arte, tendo como resultado paradoxal que a era da eletrônica, ao invés tirar o produto do aviltamento e valorizá-lo), agora a ênfase recai sobre
de acentuar o fenômeno do choque, da interrupção, da novidade e da o nó inextiicável do esquema-variação, onde a variação não influi sobre
frustração das expectativas, "produziria um retorno do continuum, do que o esquema-e, quando muito, acontece o contrário. O termo neobarroco
é cíclico, periódico, regular". não deve enganar: aqui fica confirmado o nascimento de uma nova
Omar Calabrese aprofundou o problema7 : do ponto de vista da sensibilidade estética, muito mais arcaica, e verdadeiramente pós-mo-
dialética '.'moderna" entre repetição e inovação, pode-se certamente ver, derna.
por exemplo, nos episódios da série Colombo, como dentro de um Neste ponto, obsetva Giovanna Grignaffini, "o seriado de televisão,
esquema-base trabalharam como variação alguns dos melhores nomes do ao contrário de outros produtos realizados pela ou para a televisão, utili-
cinema americano. Seria por conseguinte difícil falar, em tal caso, de pura za este princípio (e o seu inevitável corolário), num certo sentido no
repetição: se permanecem imutáveis o esquema da abordagem e a estado puro, chegando a transformá-lo de princípio produtivo em princípio
psicologia do personagem, o estilo da narrativa muda a cada vez. O que formal. E é dentro desse deslizamento progressivo que toda noção de
não é pouco, especialmente do ponto de vista da estética "moderna". Mas unicidade fica destruída até à raiz". 8
é justamente sobre uma noção diferente de estilo que se concentra a Triunfo de uma estrutura de encaixes independentes, que vai ao
conferência de Calabrese. O fato é que nessas formas de repetição "não encontro das exigências - primeiro receadas, depois realisticamente

134 135

1 l1ji
I lj
reconlK'( idJL:; 1'1111111i111 Ili de fato, agora finalmente proclamadas como 5. Algumas perguntas à guisa de conclusão
nova ·cH1eli','111, d,1· 1 il(!ficidade - do "consumo na distração" (que é,
porta11to. o 111· 111'01th ·iH mm a música barroca). Se a hipótese máxima é possível (um universo de audiovisores
Ülll: liq111· l'l,111,, 11ao (: que os autores dos ensaios citados não desinteressados quanto ao que realmente acontece a J.R. - e realmente
éIJXUl'J'.11<'111, lllilllln h·1 ,t<- comercialmente animador e de "gastronômico" decididos a captar o prazer neobarroco da forma que suas aventuras
em prnprn 111·1101 1·1 q11c contam sempre a mesma coisa e sempre se assumem), deveremos perguntar-nos se tal perspectiva (por mais precur-
fochan1 d1n,I 11t11 1111' sobre si mesmas (não é, digo, que eles não sora que seja de uma nova estética) é permitida por uma velha semiótica.
enx(:rp111·11111 p,·1ht 1il'Ía e a ideologia exyressa por essas histórias no que A música barroca, como a arte minimal, são "assemânticas". Pode-se

1,
corn•c1·11L· :111:; 1,•. fl{'Llivos conteúdos). E que eles não só aplicam a tais discutir, e eu sou o primeiro a fazê-lo, se é possível estabelecer uma
I
1 prod111t1 lllll ·ri, , ío ri1\ida111ente formalístico, como deixam claro que divisão tão nítida enlre artes de pura sintaxe e arles que transmitem
d v 11, 1:-; l'o111 1;m a uonccber uma audiência capaz ele fmir de tais significados. Mas pódemos pelo menos reconhecer que existem artes
pnidu1os d '.'t; : ,nmlo. Porque somente com essa convenção pode-se falar figurativas e artes a stratas. A música barroca e a minimal al"f não são
de 111111111ova I MLC IÍt'11 do seriado. figurativas, e os seriados da televisão o são. Para usar um tel'mo de
Si',:, pnrt ir d<.:ssa convenção o seriado não 6 mais um parente pobre da Greimas, eles põem em jogo "l'iguras do mundo".
arte, 111as :1 f'or111a de arlc que sati!-;faz à. nova sensibilidade estética, ou Até que ponto se roderá apreciar como variações musicais aquilo que
seja, a t'orn1a p<ís-n1nderna da tragédia ática. varia nas figuras do mundo, sem escapar ao fascínio (e à ameaça) do
Nfio nos escandalizaríamos se tal critério fosse aplicado (como foi mundo possível que las põem constantemente em cena?
aplicado) ils obra. de arte "minimal", como, por outro lado, à arte abstra- Por outro lado, se não quisermos permanecer prisioneiros de precon-
ta. E, de !'ato, aqui se está delineando uma nova estética do "minimal" ceitos etnocêntricos, devemos levar a hipótese às suas últimas con-
aplicada ao. produtos da comunicação de massa, seqüências.
Mas tudo isso prevê que o leitor ingénuo de primeiro nível desa- Diremos então que a série neobarroca propõe, ndseu primeiro nível
pareça, para deixar lugar somente ao leitor crítico de segundo nível. De
ele fruição (ineliminável, puro e simples mito. Nada tem a ver com a al'le.
fato, não existe o leitor ingênuo de um quadró abstrato ou de uma
escultura "minimal" (ou, se existe quem pergunte "o que sio-nifica?" este Uma história, sempre igual. Não será a história de Atreu e será a de J .R.
n o é leitor nem de primeiro nem de segundo nível, está for de qualquer Por que não? Cada época tem os seus mitopoietas, os seus centros de
let1ura). Da obra abstrata ou da escultura minimal faz-se somente leitura, produção mitopoiética, o próprio sentido do sacro. Descontada a repre-
crítica, delas não interessa a inutilidade que está feita, interessa somente sentação (figurativa) e a degustação "orgiástica" do mito (admitida a
o modo de fazer. intensa participação emotiva, o prazer da reiteração de uma só e constante
Podemos esperar o mesmo dos produtos seriados da televisão? verdade, e as lágrimas, e o riso e enfim uma sã catarse), a audiência
Devemos pensar no nascimento de um novo público que, indiferente às reserva-se a possibilidade de passar ao nível estético e opinar sobre a arte
histórias contadas, que já c·onhece, pretende ·apenas degustar a repetição da variação no tema mítico - assim como se consegue apreciar um "belo
e as suas mínimas variações? Embora o espectador ainda hoje chore funeral" mesmo qu·ando o morto era uma pessoa querida.
diante das aflições das famílias texanas, devemos esperar para o futuro Temos certeza d que isso não acontecia também na antigüiclacle
próximo uma genuína mutação genética? clássica?
Se assim não devesse acontecer, a proposta radical pareceria singu- Quando relemos a Poética de Aristóteles, vemos que era possível
larmente esnobe: como em 1984, existiriam prazeres de segunda leitura descrever o modelo da tragédia como um modelo serial. Das citações do
reservados aos membros do partido e prazeres de primeira leitura reser- Estagirita entrevemos que as tragédias de que ele tinha conhecimento
vados aos prolet. Toda a indústria do seriado existiria, como o mundo de eram mais numerosa.s do que as que chegaram até nós, e todas seguiam
Mallarrné (feito para resolver-se num Livro), com o único objetivo de (variando-o) um esquema fixo. Podemos supor que as que se salvarani
fornecer o prazer neobarroco a quem soubesse apreciá-lo, reservando foram as que melhor correspondiam aos padrões da sens ibi Iidacle ésté ti ca
lágrimas e alegrias (fictícias e aviltadas) aos muitos que sobram. antiga. Mas poderíanios também supor que a dizimação tenha acontecido'
com base em critérios de política cultural, e ninguém pode proibir-nos ele

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imngin 11 111 :·,,11, ·lt:.· tenha sobrevivido em virtude de manobras de coletiva, temos certeza de estar lendo como os outros (os "normais")
podn, 11 11Ii( 11111 lo autores melhores (mas segundo que critério?) do que lêem?
ele. E se a resposta fosse negativa, o que teria a estética a clizerentão sobre
,. 11:' t1;11• ·dias eram bem mais do que as que conhecemos e ::;e t:odas
o problema do seriado de televisão?
st·g11i.i111 (vari 11do-o) um esquema fixo, o que aconteceria se hoje
pud 1110s vê-las ou lê-las todas juntas? Seriam difon;ntcs das usuais as
1 1 o s i 1s a11icciações sobre a originalidade de Sófocles ou de ( squilo? Será l. Cf, a distinção entre sérialidade de veícul o e serialidade de programa
pro po �
.
la po r A.
duraca , Cinema
CJlll' ·ncontrnríamos nesses autores sérias variações de temas tópicos onde Cosca e L . Quaresima em " l i raccont o elcttr o nico : veicolo, programma,
hoje 0111:revemos um modo único (e sublime) de enfrentar os problemas & Cinema 35-36, 1983, págs. 20-24.
literatura é multo
da condição humana? Seria possível que, lá onde nós vemos invenção 2. Sobre essa repetitividade nos meios de comunicação de massa a
Boncl ou sobre
ampla. Remeto, por exemplo, nos meus estudos s�br� S�per-ho�ern, r ames
ubsoluta, os gregos vissem somente a "coneta" vnriaçüo dentro de um 0 folhetim do �éculo X I X (publicndos em Apoca/11/c1 e ,ntegrat1 e li
S11per11omo dl ';'assa).
esquema, e que sublime lhes parecesse não a obra isolada, mas justamente 3. Para a noção de enciclopédia semiótica cf. os meu� Lecror in /abula
e Sem1011ca e
o esquema (e não é por acaso que, falando da arte poética, Aristóteles filosofia dei linguaggio. .: . ,
desenvçlvia uma discussão sobre esquemas, acima de tudo, e somente a 4. Cf. para a noção de "leitor- modelo" o meu Lecror rn /abula, citado. . ,
5, "Dai Jeggibile all'illeigibile", em L. Russo, ed., Lerrerawra tra
con.rnmo e ncerca, ti
título de exemplo se detinha nas obras isoladas).
Agdra, invertamos a experiência e coloquemo-nos, diante do seriado Mu!ino, Bolonha, 1984..
6. Cf. o artigo já citado <1e Cosrn e Quaresima eni Cinema & Cinema
35-36.
contemporâneo, do ponto ele vista de uma estética futura que tenha & Cinema 35-36, págs. 25-39.
7. "I replicanti", Cinemd
readquirido o sentido da originalidade como valor. Imaginemos uma 8. "J.R.: vi presento il racconto", Cinema & Cinema 35-36, págs. 4�-5
l.
sociedabe do ano 3000 depois de Cristo na qual, por razões que não
pretend teorizar, noventa por cento da nossa produção cultural atual
tivessem desaparecido e de todos os seriados de televisão tivesse sobre-
vivido só um episódio do tenente Colombo.
Como perceberíamos essa obra? Nos emocionaríamos diante da
originalidade com que o autor soube representar um homenzinho em luta
contra as potên'f.ias do mal, contra as forças do capital, contra a sociedade
opulenta e racista dos wasps dominadores? Apreciaríamos essa represen-
tação eficaz, concisa, intensa da paisagem urbana de uma América
industrial?
Quando o seriado procede por resumos, porque tudo já foi dito nos
episódi9s precedentes, será que veríamos manifestar-se uma arte da
síntese;uma capacidade sublime de dizer através de alusões?
Em outras palavras, como seria lido um "treeho" de uma série se o
resto d!.\ série permanecesse ignorado?
Antecipo a objeção: o que nos impede de ler assim, agora, os produtos
seriados?
A resposta é: nada. Nada nos impede. Aliás, talvez façamos, com
freqüência, exatamente assim.
Mas' assim procedendo, fazemos o que fazem os espectadores nor-
mais da! série? Acho que não.
E então, última pergunta, quando tentamos interpretar e definir a nova
estética: do seriado, situando-nos como intérpretes da sensibilidade

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