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O MItO dA CRIAtIvIdAde eM ARQuItetuRA1

existe grande confusão a respeito do que seria criatividade


em arquitetura. tal fato não seria preocupante se não tivesse tantos
efeitos nocivos para a prática da arquitetura. Por um lado, uma noção
equivocada por parte dos leigos leva a uma demanda por objetos com os
quais a arquitetura não deveria se envolver. Por outro, basear uma prática
sobre uma noção errada de criatividade significa produzir arquiteturas
irrelevantes, na melhor das hipóteses.
Criatividade, segundo o dicionário Aurélio (1ª edição), significa
qualidade de criador. Criador é quem cria, e criar é dar existência a algo,
tirar algo do nada; dar origem; produzir, inventar, imaginar. O dicionário
já indica que o termo não designa uma qualidade especial que distingue
um criador dos outros. O próprio ato de criar algo já é indicação de
criatividade.
Para leigos (usuários em geral, clientes, imprensa não
especializada), estudantes de primeiros anos e até muitos arquitetos,
criatividade é algo ligado ao imprevisto, ao insólito, ao surpreendente,
cuja obtenção é dependente de um talento superior inato2. daí a
existência e os elogios conferidos a edifícios de aparência estranha, cuja
lógica é muito difícil de entender. Parece haver uma correlação entre
criatividade e variedade, movimento, impacto visual, e outras categorias
que levam ao estranhamento. vista desse ponto de vista, a simplicidade e
a elementaridade são sinonimos de monotonia e falta de criatividade.
existem experts em “criatividade” que sugerem todos os tipos de origens
para a forma arquitetônica: em alguns círculos é considerado criativo
transformar um cinzeiro ou um croissant num edifício. Outros desenvolvem
oficinas de sensibilização visando “soltar” a criatividade de estudantes e
arquitetos, aparentemente reprimida por uma vida tão preocupada em 1 Originalmente publicado em:
encontrar soluções para os problemas cotidianos.
- coluna Relações, Info IAB/RS, em http://www.
iab-rs.org.br/colunas/ar tigo.php?ar t=74
Nenhuma dessas pessoas chega realmente a entender o que desde 29/11/2003
significa a criatividade em arquitetura. A consequência mais importante
- ARQBR, http://carlota.cesar.org.br/arqbr/
desde 01/12/2003
e danosa do ponto de vista dominante é que a forma é vista como algo 2 É bem conhecida a afirmação de Oscar
independente, como algo que se acrescenta aos aspectos especificamente
Niemeyer no sentido de que sua arquitetura
visa criar espanto.
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arquitetônicos de qualquer problema. A mesma confusão envolve o
entendimento do componente artístico da arquitetura, que para muitos é
algo externo ao processo projetual.
Como uma aproximação a uma definição mais precisa da
criatividade arquitetônica, proponho que o seu significado é diferente
do sentido comum e do sentido que tem para as artes plásticas, para a
publicidade, para a moda, etc.
toda atividade criativa é essencialmente solução de problemas.
O que divide as atividades criativas em pelo menos duas categorias é
a existência, para algumas, de problemas auto-impingidos, consciente
ou inconscientemente, como nas artes plásticas, enquanto outras como
a arquitetura estão relacionados à problemas externos à disciplina, que
podem ser mais ou menos restritivos à liberdade do autor.
em outras palavras, a criatividade só existe, só se exprime, face a um
problema real. Simplesmente não há criatividade sem problema referente.
Assim, o criativo (ou o artístico) em arquitetura se revela como um modo
superior de resolver, através da forma, os problemas práticos que definem
um dado problema arquitetônico.
Se o problema da publicidade é persuadir e o da moda é dar
forma ao vestir, qual seria o problema da arquitetura? O que estabelece
que a criatividade em arquitetura seja algo específico são várias questões:
o uso, o custo elevado e a permanência dos edifícios.
A questão do uso parece óbvia. Sem programa não há arquitetura;
no máximo alguma escultura em cujo interior se pode caminhar. O uso/
programa indica que necessidade da sociedade precisa de espacialização;
sua extrapolação nos leva perigosamente próximos da irrelevância e da
irresponsabilidade. todo programa deriva de um cultura específica, que
deve ser o pano de fundo de qualquer realização arquitetônica.
A escassez de recursos na América Latina nos obriga a fazer muito com
o pouco de que dispomos. Qualquer solução “criativa” -no sentido de
elementos não justificados por uma rigorosa lógica de projeto- significará
maiores custos sem garantia de aumento de qualidade.
e quando falamos em permanência nos referimos não apenas à
durabilidade do edifício, dependente da construção correta, mas
também da sua capacidade de se contrapor ao caos visual da cidade
contemporânea.
O raciocínio desenvolvido até aqui quer indicar que não há nada

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de criativo em projetar e construir objetos de forma inusitada, empregando
geometrias complicadas e caracterizados por diagonais, pontas e outras
complicações formais, principalmente porque os recursos citados não
respondem a nenhum problema real.
Pelo mesmo motivo não há a menor criatividade em empregar
estilos históricos para edifícios contemporâneos, como é a presente moda
no Brasil. Pelo contrário, isso só demonstra como são limitados e pouco
criativos tanto promotores quanto criadores dessa espécie bastarda de
arquitetura.
A verdadeira criatividade em arquitetura reside em resolver seus
problemas específicos por meio da síntese formal do programa, do lugar
e da técnica, resultando em objetos dotados de identidade formal intensa,
a qual deriva do emprego de critérios tais como a economia de meios, o
rigor, a precisão, a universalidade e a sistematicidade.

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