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Desenho e ‘Modelo’

Actas do Colóquio Desenho e ‘Modelo’,


realizado no Museu Nogueira da Silva, Braga, em 11 de Junho de 2004

Organização: Carlos Corais


Edição: Museu Nogueira da Silva/Universidade do Minho
Av. Central 61
Braga

Impressão e acabamentos: Reprografia da Universidade do Minho


1.ª edição: Janeiro de 2006
500 exemplares
Depósito Legal:
ISBN:
© Carlos Corais, 2006
© Museu Nogueira da Silva, 2006

Design:
Miguel Duarte
Desenho na capa:
Rui Vasconcelos
Pormenor de Desenho, 1467 x 2049 mm,
tinta - da - china, grafite e acrílico branco s/papel, 2000
Desenho e ‘Modelo’

Actas do colóquio
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Nota de apresentação
Carlos Cruz Corais

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Sobre o gesto que reúne e aquilo que o encoraja
(desenho e modelo revisitados) *
Manuel Castro Caldas

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Do exercício de desenho e da disposição para ele.
João Queiroz

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Caricatura. modelo, desenho e imagem.
Vitor da Silva

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Modelo e Representação
Rui Vasconcelos

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Entrevista feita a Gaetan
por correspondência, em Setembro de 2004
Carlos Corais

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O exame ao mundo voluptuoso
O desenho do natural como prática corpo/mente.
O modelo como objecto de direccionamento/fixação da consciência.
Suzana Vaz
Nota de apresentação

Carlos Corais
Nota de apresentação

Por iniciativa do Departamento de Arquitectura da Universidade do


Minho e do Museu Nogueira da Silva realizou-se, em 11 de Junho de 2004,
o Colóquio Desenho e “Modelo”. Esta publicação reune as comunicações
apresentadas pelos convidados, tendo sido acrescentada uma entrevista ao
Pintor Gaetan e um texto de Suzana Vaz.

Quando falamos de modelo, associamo-lo ao original do mundo visível,


a um fragmento da imagem do mundo. O modelo, em certo sentido, é
alheio à criação moderna, mais associada ao processo, à invenção e
ao inacabado. Nas palavras de Manuel Castro Caldas, o modelo na
modernidade é “motivação e motivo”, como o Mont Ste Victoire era o
“motivo” de Cézanne: objecto de interpretação da realidade. Os italianos do
Renascimento utilizavam o termo representatio para designar interpretação
e ritrarre para retratar (fará la cose como la vede, dizia Dante (Tatarkiewitcz
l995:311). Giorgio Agamben (1988:112) refere-se a esta questão, lembrando
a importância plástica da obra de arte: “mantiene con su principio formal
una relación de proximidade tal que excluye la possibilidade de que sua
entrada en la presencia sea de alguna maneira reproducible, casi como si
la forma se produjese a sí mesma en la presencia en el acto irrepetible de
la criación estética”. O motivo é, com certeza, estímulo e motivação para a
imaginação e um auxiliar da memória.
Poder-se-à falar de experimentação em relação ao “modelo” moderno
e contemporâneo versus proporção e medida no período clássico. A
interpretação do “modelo” / motivo obedece a diferentes estratégias: os
passeios pela paisagem nos esquissos de João Queirós, a execução com
a mão esquerda dos desenhos/auto-retratos de Gaetan, a utilização da

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desenho e ‘modelo’

imagem fotográfica em Rui Vasconcelos. Victor da Silva analisa a caricatura


“no contexto do modo histórico” e a sua relação entre modelo, desenho e
imagem.
No contexto da interpretação do “modelo”, o desvio surge como meio
de acrescentar informação enfatizando determinados aspectos do mesmo.
O carácter aleatório/casual do desenho é portador de intuições que
acrescentam e sugerem nova informação. O registo livre e sensível introduz
qualidades na imagem que de outro modo não se revelariam.
Estes são alguns dos aspectos analisados nesta publicação, quer na
sua vertente teórica, quer na prática do desenho com o testemunho dos
próprios artistas.

Os nossos agradecimentos a:
Manuel Castro Caldas, Director Executivo do AR.CO, João Queirós, Rui
Vasconcelos, Victor da Silva, da Faculdade de Arquitectura da Universidade
do Porto e Pedro Sousa Vieira, do Instituto de Estudos da Criança da
Universidade do Minho, Gaetan pela entrevista concedida e Susana Vaz do
Departamento de Arquitectura da Universidade do Minho pelo texto que
elaborou, entusiasmo e apoio prestado.
Ao Miguel Duarte do Departamento de Arquitectura da Universidade
do Minho pela coordenação gráfica e toda a colaboração prestada a esta
iniciativa.
Finalmente, a Carolina Leite, Directora do Museu Nogueira da Silva, pela
disponibilidade e cedência das instalações do Museu para a realização do
Colóquio, pelo interesse manifestado na publicação destas actas.

Tatarkiewitcz, Wladyslaw, História de Seis Ideias. Madrid, Technos, 1995, p.311.


Agamben, Giorgio, El Hombre Sin Contenido. Barcelona, Altera, 1988, p.112.

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Sobre o gesto que reúne e aquilo que o encoraja
(desenho e modelo revisitados)*

Manuel Castro Caldas

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Sobre o gesto que reúne e aquilo que o encoraja

“(...) drawing, de-signifying: breaking the


seal, opening the envelope - but it remains
sealed.”

Yves Bonnefoy

Confesso ter hesitado de início em aceitar o convite para participar neste


encontro, não estando certo de saber o que é um modelo em desenho, ou
em que termos se poderia, hoje, conceber uma ligação natural, digamos
assim, entre desenho e modelo. Dei-me conta, porém, de que o “modelo”
surgia entre aspas, sinalizando cuidado na aproximação ao conceito,
indicando uma vontade de não dar por adquirido o sentido da utilização
comum, demasiado comum, da palavra. Com esta adequada reserva, a
questão recolocava-se, tornando-se possível (e se calhar aliciante) procurar
encontrar um tom para falar, de novo, de modelo. O que venho aqui fazer
hoje é, na verdade, ensaiar publicamente esse tom, certamente pessoal.

Quais seriam, afinal, as primeiras objecções de base a falar de


modelo? E de que falaríamos mos quando dele falávamos, por assim dizer,
inocentemente?

Guio-me (livre e rapidamente) pelo Vocabulaire d’Esthétique de Étienne


Souriau (1), no meio de cujas definições, passo a passo, vou intercalando
comentários: o modelo é, antes de mais, o que está lá para ser imitado,
para que se possa representar o que, apenas por via da imaginação, sem a
observação, seria difícil de conceber inteira ou totalmente. A sua passividade,
porém, não é absoluta: casualmente, o modelo pode subitamente sugerir
uma nova ideia, um novo ângulo ao artista. Num outro sentido, o modelo
é também algo de moldável, aberto a observações não definitivas, a uma
composição, construção ou elaboração progressivas, permitindo emendas,
retrocessos, enganos: com o modelo, estamos num terreno intermédio,

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desenho e ‘modelo’

de responsabilidade limitada, aquém da obra final. O modelo liga-se pois,


também, ao treino, a um tempo ou um estágio necessários de prática e de
experimentação.

Finalmente, o modelo pode ser uma instância ou ocorrência qualitativa


- ele é então exemplar, constitui a demonstração de um elevado grau de
excelência e pode, por isso, ser imitado, embora não necessariamente de
modo literal: uma excelente (ou muito adequada) pose, anatomia, obra.

Dir-se-ia, resumindo, que o modelo substancia, fundamenta ou ajuda a


um posicionamento, que ele é instrumental para um posicionamento. Insisto
neste primeiro ponto (que me parece ligado a um segundo, o papel do
modelo na responsabilização do acto de desenhar) e no que dele se retira
de imediato: o modelo é histórico, não natural.

Apesar de todas as suas nuances, porém, parece evidente que as


definições apresentadas se encontram repletas - perante olhos modernos e
contemporâneos - não tanto de evidentes méritos como de abundantes tabus
e mesmo de impensáveis objectivos: imitar, copiar, preparar laboriosamente
uma perfeição observada, admirada, respeitada.

Mas será isto, também, inteiramente verdade?

Um dos mais gritantes problemas na adequação do conceito de modelo à


criação moderna parece certamente residir no facto de falarmos do modelo,
em todas as ocasiões, como algo de exterior, constituído, autónomo. O
exterior, o já constituído, aquilo cuja autonomia deve ser respeitada ou
observada, não agrada à arte moderna, toda ela fundamentada numa
valorização do processo, da metamorfose, do transitório e do inacabado.

Mais gritante se torna esta inadequação quando falamos de desenho,


que todos nós admitiríamos, sem hesitação, ser outro conceito difícil de
aproximar do ponto de vista do acabado, do autónomo ou do definitivo. Por
isso nos parece fútil, por exemplo, aproximar uma definição do desenho
do ponto de vista dos resultados físicos, caracterizáveis formalmente ou

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Sobre o gesto que reúne e aquilo que o encoraja

através da descrição material de um conjunto de ferramentas habituais.


Mais actual, se bem que não exactamente novo, seria estudar o desenho
como um mecanismo: não um aparato técnico, mas um mecanismo em
funcionamento, revelado pela observação das suas funções específicas,
entendido mediante o que põe em jogo, mediante, sobretudo, outros
mecanismos que põe em movimento. Procuramos o sentido do desenho
quando o desenho funciona, onde o desenho funciona.

Nesta lógica, diríamos que admitir uma ligação “natural” entre desenho
e modelo só parece plausível se aplicarmos ao modelo a regra que, no
fundo, aplicamos ao desenho. Tal como não haverá desenho para além do
desenhar, não haverá modelo para além do modelar. Este termo - modelar
- estamos habituados a encontrá-lo associado à escultura, onde significa
dar forma, pressionando com as mãos ou com instrumentos, a uma matéria
moldável, plástica. Mas na realidade estamos a falar daquilo que todas as
artes fazem: dar forma a uma matéria plástica. E não há grande distinção,
nas artes, entre o que chamamos modernas e antigas (ou clássicas, ou
pré-modernas, ou o que lhes queiramos chamar) para além desta: se nas
segundas pomos a tónica no dar forma, nas primeiras colocamo-la na
modelação ela mesma, bem como na plasticidade das matérias. A arte é
ofício enquanto existe algo a que dar forma (o mundo criado e ordenado
por Deus, que cumpre simplesmente descrever) e torna-se arte, no sentido
moderno, quando a actividade descritiva passa a ser impossível sem que, ao
mesmo tempo ou em primeiro plano, se apresente uma forma experimental
(de entre o número ilimitado de possibilidades) de configuração das
matérias. Que o mundo (ocidental e cristão) tenha deixado de ser sagrado,
não quer dizer outra coisa: ele transformou-se num infindável repositório de
matérias plásticas. Nada do que já foi modelado por Deus escapa a ter de
ser modelado outra vez e incessantemente pelo Homem, na sua moderna
negociação da Verdade. Poderá uma aproximação ao desenho, tal como
uma aproximação ao modelo, deixar de considerar este enquadramento
prévio?

O melhor desenho, ou o melhor do desenho, traz-nos não uma


preparação técnica laboriosa ou uma observação sem falhas - com vista à

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desenho e ‘modelo’

reconstrução, à reelaboração final de uma verdade exterior e pré-existente


- mas uma exploração visível (visível muitas vezes até na sua invisibilidade
física) de uma modalidade de verdade. E esta exploração, sem dúvida, é
uma modelação, já que, pressupondo a plasticidade essencial de toda a
verdade, pressupõe a plasticidade potencial de toda a forma.

Eis-nos de volta ao modelo, ao desenho e ao modelo.

Se o que se pede ao modelo - se o que podemos nele valorizar - não é


já a sua perfeição enquanto forma mas a sua pregnância enquanto exemplo
de reconfiguração - instância brilhante de reconfiguração ou eficaz pretexto
para a reconfiguração - ele encontra-se literalmente em todo o lado, sujeito
ao desejo e não à regra, onde quer que funcione e sob que forma fôr
que induza a reconfiguração: instrumento da modelação, instrumental na
modelação.

O que estamos na verdade a dizer é que, longe de ter desaparecido, o


modelo se tornou invisível - ou melhor, transparente, que é, como dizia o
poeta, a forma moderna do invisível.

Transparente é também o desenho: é a sua transparência, mais do que


o mistério de seja o que for que é apresentado, que causa essa emoção
específica que perante ele podemos ter. Deixámos há muito de o olhar como
um documento através do qual podemos entender melhor uma configuração
definitiva de que ele é um estado preparatório. No desenho moderno - ou
melhor, no olhar moderno sobre o desenho - o olhar retrocede em vez
de avançar, olha não para o que veio a seguir ou há-de vir mas para o
misterioso fundo de onde vem o que efectivamente surge, que é certamente
o mistério do desejo e dos insondáveis caminhos de uma verdade que pode
ser negociada, de uma verdade que não pode senão ser negociada.

É porque, na sua essencial transparência, tudo é mais entrevisto e menos


visto (logo por razões de construção física - o desenho é mais transparente,

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Sobre o gesto que reúne e aquilo que o encoraja

por exemplo, que a pintura) que o desenho é, como também costumamos


dizer, económico: nele, o pensamento visual não precisa - ao contrário do
que muitas vezes se alega - ser deduzido, ele é o grosso do assunto. O
que entrevemos no desenho é o funcionamento do mecanismo, do nosso
mecanismo, enquanto este pensa, isto é, enquanto ele transforma o já
actualizado - reactualizando-o - a partir de um fundo potencial, virtual.

Numa curiosa entrevista recentemente publicada (2), Avis Newman


e Catherine de Zegher, adiantam a ideia de que o desenho põe em jogo
uma ambivalência da nossa relação com a marca, que nele se retrocede
para uma região perdida onde imagem e texto tinham (ainda) uma vida
diferenciada. No desenho, argumenta-se, estaria presente um fantasma
do texto na imagem. Independentemente do que está a ser desenhado, a
“natureza inscriptiva da actividade” manteria em suspenso texto e imagem,
de tal forma que a mente apreenderia em simultâneo o registo de um gesto
que afirma a existência de outro (que desenha algo) e o registo da marca
enquanto signo, possivelmente conectado com outros signos (3). Ler e
percepcionar, em tensão.

Partindo daqui, poder-se-ia aventar a hipótese da marca do desenho


(penso nesse momento inicial a que chamei posicionamento) estar em
definitivo presa à escrita, à linguagem, isso que enche a folha branca desde
o início e que desejamos esconjurar, afastar, tornear, refazer, enquanto que
a marca da pintura - desde logo dificilmente separável da superfície ela
própria - estaria presa à imagem, à percepção. A folha em branco na qual
se vai inscrever a marca é então, não tanto um infinito ou um vazio, mas
um regulamento, a opacidade atravancada da linguagem ela própria, dos
seus limites. Inerte opacidade, que cumpre ao desenho tornar plástica,
traçando conexões implausíveis sobre ligações regulamentadas, apagando
uma falsa virtualidade para instituir na folha uma outra, riscando, alterando,
desvirtuando, como se a mão moldasse o fundo mesmo, o seu branco, até
que este se active e, de mera superfície física, passe a ser o incomensurável,
o incognoscível, de onde a nova configuração pode emergir. É como nos
desenhos de Seurat em que o carvão, rasando a superfície rugosa do papel,
parece extrair do fundo mesmo a figura aí contida.

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desenho e ‘modelo’

Todo o desenho moderno parece proceder deste modo. O olho que


num famoso desenho de Redon se revira sobre si mesmo, afastando-se da
paisagem em baixo, do mundo prosaico do que há para ver e que já não
pode senão ser visto de outro modo, numa visão interior, anuncia (da forma
algo literal e literária que o primeiro simbolismo favorecia) o momento em
que o olho não pode senão reposicionar-se relativamente à superfície do
suporte, passando a olhá-la sempre de demasiado longe, de demasiado
perto. É como querer transformar um texto em imagem: afastamo-lo até
que se torne numa mancha indistinta, aproximamo-nos até que a sequência
obrigatória entre palavras, depois entre letras, se torne invisível, até que o
próprio caracter se torne numa mancha abstracta.

A inscrição do desenho procede nesta relação de proximidade cega


com a folha, com áreas locais e indeterminadas da folha, permitindo-se
essa inconsideração do todo, essa irresponsabilidade do treino, a que o
regime do modelo o habituou, numa espécie de tactear que torna a imagem
implausível em cada uma das marcas. A transparência do mecanismo e do
seu funcionamento advém disto: mesmo composta como um todo, a imagem
dissolve-se de volta nas marcas cegas, na produtiva irresponsabilidade do
processo, janela aberta para um virtual capaz de produzir um real alternativo,
uma objecção relevante ao já actualizado.

No seu bloqueamento por camadas, sucessivamente, da construção, na


sua consideração do espaço global (que é já como um preenchimento, mesmo
que fisicamente o não seja) a pintura é pelo contrário, vocacionalmente,
obliteração do processo. E embora uma pintura “sem desenho”, como se
costuma dizer, seja certamente uma má pintura, a pintura é por vocação
superfície que espelha e ilude, que acolhe o fenomenal como uma
naturalidade vinda de fora (visto que a pintura, construtivamente, bloqueia
o seu “dentro”).

Se uma plenitude se entrevê e afirma no desenho ela não é certamente


fenomenal, mas algo como o fundo não-fenomenal da plenitude - uma
imagem da proveniência da plenitude, de como no modelo entrevemos

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Sobre o gesto que reúne e aquilo que o encoraja

ou acreditamos ter encontrado uma porta para começar a reunir o que


está separado. E aqui o modelo quase se funde com o desenho, porque
o desenho é já esse gesto de reunião em curso, a sua extensão. Modelo e
desenho resultam não tanto de uma convicção de que a plenitude existe,
mas da experiência de que ela insiste. O modelo - se o queremos considerar
ainda - é a imagem (ou o mecanismo composto de imagens presentes ou
obliteradas) que ao mesmo tempo nos induz (nos posiciona, nos coloca no
tom adequado) e nos guia na realização desse acto mágico onde o mundo
se deixa reunir na imagem - e dura o tempo dessa “composição”. Poderia
adiantar-se que só na transparência do desenho a composição revela a sua
verdadeira natureza: não o ajuizar de balanços formais, com vista a uma
aparência de unidade, mas o esforço (que é o esforço de um corpo que
se constrói) para sentir a unidade em cada traço, para aceder em cada
marca à sua ilógica lógica. Uma ética do desenho (e uma estética do
desenho, como distingui-las?) centra-se, inevitavelmente, no seu carácter de
testemunho, na presentificação do esforço de compor, e poderia resumir-se
a um mandamento: onde pára o documento começa a idolatria.

Se o modelo é receita (que temos na mão, ou de que apenas vagamente


nos lembramos), o desenho é confecção, mas não há bolo: tudo se passa
aquém da imagem. A pintura lamenta essa (moderna) fome que persiste,
mas o desenho aceita-a, acolhe-a, antecipa-a.

Apagar, desfigurar, re-compôr, reformular, desvirtuar a falsa plenitude da


linguagem, obrigá-la a dobrar-se sobre si própria e reaparecer transfigurada,
ilegível, aberta, é esta a compulsiva tarefa do desenho de que o modelo é
motivação e motivo (como se dizia que o Mont Ste Victoire era o “motivo”
de Cézanne).

Incessantemente, reactiva-se o suporte, a folha em branco - fundo do


mundo - e pára-se aí.

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desenho e ‘modelo’

* O presente texto segue no essencial a comunicação apresentada no


Colóquio desenho e “modelo”, que teve lugar a 11 de Junho de 2004 no
Museu Nogueira da Silva, Universidade do Minho, Braga. Agradeço a Carlos
Corais o amável convite. Nas modificações que fiz no texto posteriormente
à apresentação tentei sobretudo incorporar alguma coisa do espírito da
discussão que se seguiu à sua leitura.

1 - Souriau, Étienne, dir., Vocabulaire d’Esthétique (Paris, P:U:F., 1990).


2 - Conversation Avis Newman/Catherine de Zegher, in The Stage of Drawing: Gesture and
Act (London and N.Y: Tate Publishing and The Drawing Center, 2003).
3 - Ibid., p.73: “In the inscriptive act of drawing there exists the shadow of our ambivalent
relation to making marks, before the time when ‘image’ and ‘text’ are differentiated and
go their separate ways. And when one looks at a drawing, there is a consciousness of
the ghost of the ‘text’ in the ‘image’; the inscriptive nature of the activity holds the two in
suspension, irrespective of what is being drawn. It is that combination of events where the
mind simultaneously perceives in a single stroke the registration of a gesture affirming the
existence of another - a line of delineation that speaks of this or that - and the mark that
functions as a sign, which possibly is connected to other signs.”

20
Do exercício de desenho e da disposição para ele.

João Queiroz

21
Do exercício do desenho e da disposição para ele.

Delimitemos, desde já, o âmbito do conceito de exercício de desenho e


do conceito de disposição, à medida daquilo que neles queremos e pode-
mos tratar. À medida do que queremos, pois não quereríamos sair dema-
siado do tema que provocou este texto, a saber, o “desenho de modelo”, e
num sentido mais lato do desenho de representação. E à medida do que
podemos, pois não poderíamos sair daquilo que a prática de desenhar e
observar desenhos nos foi ensinando ao longo dos tempos, sem o risco de
demasiada abstracção.

Deixamos de lado a ideia de exercício como preparação, ou seja como


treino ou como o uma série de degraus ou etapas metodológicas para alcan-
çar determinadas proficiências ou objectivos. Não negamos, porém, a utili-
dade deste tipo de exercícios e a necessidade da sua continuada realização.
Contudo, se bem que necessários e mesmo indispensáveis, estes exercícios
dependem sempre em grande medida de critérios, preâmbulos, protocolos
de realização e modos de avaliação de resultados, exteriores à vontade e
invenção daquele que verdadeiramente o exerce. São, por assim dizer, proto-
exercícios, onde se considera que aquele que o realiza é capaz de, passo
a passo, ir dominando a execução, mas ainda não é capaz de propor a si
próprio o terreno e os princípios sobre os quais o exercício se realiza. Ora
este terreno e estes princípios sobre os quais o exercício se realiza são parte
integrante dele, são matéria também de exercício e de invenção. Serão, a
meu ver, a verdadeira matéria de exercício e invenção.
Diríamos que, depois de subir os degraus que os primeiros exercícios
propõem, se ficaria preparado para o exercício de desenho quando cada um
a si próprio e para si próprio os soubesse propor na sua máxima extensão,

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desenho e ‘modelo’

dominasse de uma maneira autónoma e pessoal tanto a execução do dese-


nho, como a disposição para ele, como até o seu modo de apresentação.

Os grandes mestres do desenho, antigos ou modernos, foram-no por-


que, para além da sua por vezes milagrosa capacidade de execução, tiveram
a capacidade de colocar a si próprios exercícios originais que, ainda além
dessa originalidade, frutificaram pelo exemplo. Deram-nos a possibilidade de
olhar a realidade sob perspectivas novas, coerentes e reais. E dessa forma
os seus exercícios se tornaram exemplares. Mas essa exemplaridade não se
lhes fica pela imagem e pela forma. O desenho revela o terreno da sua ori-
gem e mantém constantemente a vibração que daí lhe advém. Por isso nos
é tão fácil distinguir um desenho onde se mantém essa vibração original,
essa relação com o trabalho que permitiu o estabelecimento de desenho
num terreno original e originante, de um simples epígono, que apenas se
relaciona com a imagem patente. Mas de nada nos servirá esta constatação
se para eles olharmos como imagens cuja maneira pode ser repetida ou
imitada e não compreendermos o trabalho de disposição e invenção, e por
vezes sofrida necessidade, que está na base do seu surgimento. Ou seja ,
se não compreendermos em que medida, e como, eles foram exercícios na
acepção maior da palavra.

Chamo disposição a esse trabalho no terreno da origem do desenho. É


sobretudo um trabalho de ordenação. Faz a si próprio a pergunta de saber
como me ordeno a mim e ao mundo de forma que um desenho possa
surgir. Tem um carácter essencialmente intencional. Fornece os meios e as
vias da execução.

Naturalmente não estamos predispostos ao desenho. A educação das


nossas faculdades: da nossa sensibilidade; da nossa imaginação; dos nos-
sos processos de classificação e de categorização da realidade; do nosso
corpo e dos nossos gestos, ainda mais nos afasta desse terreno propício
ao desenho. Não é de admirar que só uma minúscula percentagem de nós
seja capaz de executar um desenho mais elaborado do que faria quando
acabou a quarta classe, e que, para o comum das pessoas, um desenho de
representação, mesmo com uma leve parecença com o modelo, seja visto

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Do exercício do desenho e da disposição para ele.

como um feito para elas inalcançável. A linguagem, num primeiro momento,


também não ajuda, é por vezes um obstáculo bastante difícil de ultrapassar.
A forma como falamos da realidade, como adjectivamos as coisas e adver-
biamos as acções, não é correspondente à forma como vemos e à riqueza
daquilo que podemos ver ou imaginar. As possibilidades inscritas na visão e
na capacidade de constituição de objectos e relações a partir dessa mesma
visão são de uma densidade diferente daquelas que nos permitem a lingua-
gem. Temos um exemplo caricato na chamada arte naif onde estas duas
instâncias parecem coincidir sob o primado da linguagem. Onde tudo tem
nome e número e está delimitado pelo nome e pelo número. Não importa o
nível de execução formal ou de habilidade com que esta arte se apresente
(há muito academismo que entra na mesma categoria), o que lhe é caracte-
rístico é esta submissão acrítica da visão e da imaginação ao hábito de dizer,
ao número e aos nomes das coisas.
Não poderemos portanto abordar o tema da disposição para o desenho
sem nos precavermos dos escolhos que a impedem. Seja ao nível do funcio-
namento das nossas faculdades mentais, seja ao nível do funcionamento do
nosso corpo e dos nossos gestos, seja ao nível do funcionamento da nossa
linguagem. Tudo instâncias que foram adquiridas, desenvolvidas e instituídas
em função da nossa sobrevivência individual ou colectiva. O primeiro passo
será o de relativizarmos os hábitos adquiridos por necessidade e o transfor-
marmos noutros que permitam a originalidade no terreno do desenho. Neste
sentido, a nossa noção de exercício expande-se pois será necessário um
constante exercitar destas instâncias fora do campo da habitualidade.

Tomemos alguns exemplos:

O hábito da escrita. No escrever do nosso nome, ou na nossa assinatu-


ra, nota-se claramente até que ponto, nas pessoas alfabetizadas, o hábito de
escrever está incorporado a um nível superlativo. A escrita lança-se num mo-
mento no espaço, de forma tão automática e ao mesmo tempo tão elabora-
da, que aquilo que produz serve até para nos distinguir de todos os outros.
É a aceitação, mesmo ao nível legal, que essa mínima manifestação de um
estilo é garantia de singularidade. Porém, basta pedir a alguém que escreva
o seu nome de tal modo que em cada momento do processo possa parar, a
meio da curva de um a, ou a meio do traço de um t, para que ressurja em

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desenho e ‘modelo’

toda a gente aquela letra comum, ou aquele estilo comum, que possuíamos
no início da aprendizagem, quando o escrever e o desenhar ainda estavam
indistintos nos gestos.
Esta incorporação tão profunda da escrita em cada um de nós estabe-
lece que, no acto de desenhar, tenhamos já a priori orientações privilegia-
das no espaço e intervalos privilegiados no tempo. Mesmo a forma como
olhamos, como colocamos o olhar sobre a superfície do desenho, se não
intencionalmente determinada de outra forma, depende do hábito que ad-
quirimos ao escrever. No fundo, na escrita comum, vulgar e cursiva, existe
uma espécie de encontro de duas irrealidades, a irrealidade do traço e a
irrealidade da superfície onde ele se inscreve. Do traço que verdadeiramen-
te não sentimos ou controlamos, e da superfície que verdadeiramente não
vemos. O desenho, pelo contrário apela ao encontro de duas realidades. E
mesmo que o desenho aparente ser automático, é um automatismo por ele
e nele adquirido, uma opção, e não a manifestação aparente de um hábito
constrangedor. Mesmo nestes casos, deles há exemplos brilhantes, é o en-
contro dessas duas realidades que está presente.
Há muitas formas de manusear os instrumentos de desenho, no entanto
o que observamos é que a maioria das pessoas agarra o lápis ou qualquer
outro instrumento como se fosse escrever. É uma forma possível, mas é
apenas uma entre muitas possibilidades, e na maioria das vezes não é a
melhor. Não há decerto “a melhor”, mas convém experimentar e verificar
como o simples facto de modificar o modo habitual de manusear um ins-
trumento tem a capacidade de modificar a ordem dos gestos privilegiados
do nosso corpo e modificar os intervalos de tempo, ou mesmo o tipo de
atenção. Há aqui um grande campo de exercício que se relaciona com este
tema da disposição.

O hábito de ver. O modo como colocamos o olhar, o que distinguimos e


não distinguimos, as fronteiras que pela visão estabelecemos na realidade
visível, o que destacamos e o que deixamos como fundo, o que vemos como
acontecimento e como campo onde o acontecimento se dá, o que distingui-
mos como movimentos e como agentes dele, o modo, e mesmo o lugar, em
que no nosso corpo se reflectem essas imagens que buscamos e que nos
vêm ao encontro, dependem dos hábitos que fomos adquirindo pela nossa
exposição a um ambiente físico, cultural, profissional, onde determinados

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Do exercício do desenho e da disposição para ele.

modos de ver se tornam necessários, mesmo no plano da sobrevivência.


Não é a realidade em si que apreendemos com a visão mas o nosso
modo de ser nela.
Para um homem nas ruas de Londres ou Paris é mais importante dis-
tinguir uma fisionomia no fundo de uma rua que lhe antecipa um encontro
desejado ou indesejado, do que manter o seu olhar tão colado à superfície
das coisas que lhe permita distinguir um animal camuflado e perigoso, como
faria alguém que vivesse numa floresta cerrada sem estradas e avenidas.
Alguns marinheiros experientes conseguem, ao verem subtis modificações
na cor e movimentos das águas, seguir caminhos misteriosos para quem só
consegue ver uma massa azul. Um habitante de Tóquio consegue movimen-
tar-se por meio de inúmeros sinais escolhendo continuamente os que para
ele são em cada momento relevantes, e achar estranho que um esquimó
esteja a fazer precisamente a mesma coisa numa massa branca onde lhe
parece não haver sinal nenhum.
Constituímos objectos, relações entre objectos, distâncias, movimentos
conforme o nosso modo normal de ver e este depende do nosso modo de
ser no mundo. Se bem que diferente de pessoa para pessoa, de cultura para
cultura, de meio físico para meio físico, de época para época, pensamos ser
este modo de ver natural, como fazendo parte do nosso ser, sem com isso
nos havermos de preocupar continuadamente, ou nisso pensarmos. De fac-
to só assim poderia ser; se este nosso olhar não se fosse constituindo como
uma segunda natureza, com os seus automatismos próprios, dificilmente
poderíamos sobreviver na extraordinária multiplicidade de ambientes.
O desenho tem estabelecido o território da sua originalidade no confron-
to com essa normalidade do ver. Por vezes ultrapassando-a radicalmente,
por vezes enriquecendo-a, ou esclarecendo-a. Ver continuadamente de outra
forma, buscar articulações novas na realidade, constituindo e descobrindo
novos objectos possíveis, relacionando e hierarquizando de outros modos
o que nos é dado a ver, faz parte do exercício prévio de disposição para o
desenho. Desenha-se uma realidade que se vê ou se imagina, mas essa
realidade tem de ser constituída previamente pelo acto de ver ou imaginar.
Por uma disposição prévia. Não é um acto mental, na acepção corrente da
palavra, mas sim uma realização real ao nível da sensibilidade e da ima-
ginação. É também um acto intencional de alguém que se propõe ver de
determinada maneira e que realmente vê. Que imagina a forma como vê e

27
desenho e ‘modelo’

vê da forma que imagina. A continuidade do exercício de maneiras de ver e


constituir objectos nesse acto de ver é fundamental para o estabelecimento
da disponibilidade para o desenho. O ver para além da atitude normal é um
imenso terreno de descoberta e de posterior escolha e consciencialização do
acto de desenhar e da função do desenho. Não devemos esquecer também
que o modo como vemos implica uma relação total do corpo com aquilo
que vemos. O modo como nos movimentamos ao ver, onde embatem no
meu corpo as imagens daquilo que vou formando ao ver, como aproximo ou
afasto o olhar, qual o ecrã que estabeleço para o que vejo, como aquilo que
vejo se relaciona com as minhas articulações espaciais básicas: o alto, o bai-
xo, o frente, o trás, o esquerdo, o direito são matéria de exercício prévio ao
executar. É fundamental o continuado exercício desta disposição ao ver e ao
imaginar na extraordinária riqueza de invenção que essa disposição provoca.
Criando um terreno de escolha e ordenação onde se possa fundamentar a
execução do desenho.

O hábito de imaginar. Exercer uma visão activa aberta à realidade, reco-


locando-se perante ela, encontrando-lhe novos modelos, novas articulações,
criando, pelo seu poder constitutivo, novos objectos, é o princípio do exercí-
cio de desenho. Materializar essa visão, torná-la objecto, por sua vez visível,
é a finalidade do exercício. Mas o que o desenho final deixa ver não é apenas
um momento de uma visão estática, mas todo um processo de construção
onde a imaginação tem um papel fundamental. A imaginação de que falo
não é aquela que apenas se limita a um trabalho associativo e combinatório,
aquela que coloca numa espécie de palco imaginário, num lugar por detrás
dos olhos, as personagens que vai elaborando. A imaginação de que falo é
aquela que tem o paradoxal poder de se imaginar como imaginação. E, para
se imaginar como imaginação, ou poder imaginativo, necessita de imaginar
as suas relações com o modo de ver, a sua relação com a totalidade do
corpo e, além disso, a sua relação com o modo como categorizamos os
objectos já constituídos na realidade, ou o nome que damos às coisas e
às acções. Os exercícios com base neste poder da imaginação quase que
podem ser infinitamente multiplicados. Desde os mais simples, até aos mais
elaborados. Acontece que, mesmo no campo da aprendizagem da arte, é
dada pouca importância a esta necessidade. Talvez por ser difícil de siste-
matizar e ordenar. No entanto, as consequências desse exercitar são sur-

28
Do exercício do desenho e da disposição para ele.

preendentes. Vou dar um exemplo simples, para poder concretizar a minha


ideia: Se me proponho imaginar de olhos fechados uma simples esfera com
um movimento de rotação, por hábito imagino-a num espaço interior, ao
nível dos olhos e com uma dimensão que caiba nesse espaço. No entanto,
se me proponho imaginar essa esfera rodando num espaço diferente, tendo
em conta a realidade material do meu corpo, por exemplo, frente ao meu
peito, ela aparece-me com características completamente diferentes, muda
de dimensão, de movimento, até me aparece com características materiais
mais evidentes. E isto é apenas um passo simples. O perguntar como vou
imaginar faz parte do exercício de imaginação.

O hábito de nomear. A densidade de objectos, e de relações entre eles,


que a capacidade constitutiva dos meus actos de ver e imaginar pode re-
alizar, não equivale aos objectos, e relações, que são delimitados pelo uso
corrente da linguagem. O “modelo” que propomos representar não nos é
dado envolvido por um nome, o olhar que o gera coloca-o num mundo dife-
rente das categorizações comuns. O acto de olhar, prévio ao desenho, deve
desfazer a grelha linguística que é normalmente associada ao nome das
coisas. Se fosse correcto falar de uma “gramática do ver” verificaríamos que
na sua morfologia os elementos não teriam qualquer fixidez. Nomes, verbos,
adjectivos, advérbios, complementos e tudo o mais seria permutável, o que
tornaria a sintaxe de uma ordem diferente daquela que nos é oferecida pelo
uso da linguagem. No desenho é possível falar de “árvore alta” ou de “alto
árvore”, da “sombra de um objecto” ou “do objecto de uma sombra”, “uma
pedra iluminada à esquerda” ou “uma iluminação de esquerda pedra” o que
corresponde a visões e objectos diferentes. O exercício de pôr em causa o
uso comum da linguagem multiplica a possibilidade de ver e articular a reali-
dade e, consequentemente, de formar novos objectos de representação. Faz
parte da formação do terreno de disposição para o desenho este continuado
exercício de libertar o acto de ver das teias da linguagem verbal.

João Queiroz
Lisboa, Julho, 2004

29
Caricatura. modelo, desenho e imagem.

Vitor da Silva

31
32
Caricatura, Modelo, Desenho e Imagem

“Le rire humain est intimement lié à l’accident


d’une chute ancienne, d’une degradation
physique et morale. Le rire et la douleur
s’expriment par les organes où resident le
commandement et la science du bien et du
mal; les yeux et la bouche”.
Baudelaire

A caricatura é um desenho que se constrói, talvez, numa zona


indiscernível, numa zona de confluência problemática, onde imagem e
desenho se constituem como processos de distinção e de relação. Refiro-
me, é certo, à caricatura no contexto do modo histórico que a tornou um
acontecimento singular da arte do desenho e do qual hoje, provavelmente,
resta apenas a sua própria caricatura.
Em certo sentido, esta zona indiscernível convoca na sua origem uma
ordem de questões, da qual podemos apontar: por um lado, a arte, as suas
imagens e a aprendizagem do desenho, por outro, os efeitos da sua função
emblemática e alegórica, bem como da sua compensação subjectiva. No séc.
XVII, em particular, no seio da Accademia dei Carracci, o feio, o burlesco, a
paródia do quotidiano, o retrato caricato não são temas previamente dados,
mas categorias que constituem uma relação do real a partir da qual se
exprime uma implícita caracterização do humor necessário à lenta e difícil
aprendizagem da arte.
Para o entenditore Baldinucci, a caricatura é “una sorte di disegno”, “un
modo tenuto da pittori o scultori in fare ritratti, quanti si può somigliante al
tutto alla persona ritratta, ma per gioco, e talora por ischerno, aggravando o
crescendo i difetti delle parti imitate sporporzionalmente”.
Da academia dos Carracci, passando por Bernini, Mola, Stefano della
Bella, Baccio del Bianco, os Bamboccianti, várias gerações de artistas
socorrem-se do divertimento da caricatura como atitude jocosa e satírica.
A caricatura resulta numa atitude de anti-naturalização do natural, num
modo de ver e de compreender a amplitude expressiva, cómica, existente
entre aquilo que releva da observação da natureza e aquilo que releva do
estudo das próprias imagens. Giovan Battista Agucchi refere a caricatura
como recurso pedagógico orientado para o exercitar da memória e da

33
desenho e ‘modelo’

imaginação desenhativa. Neste processo, a caricatura determinava, no


seio da “pedagogia” carraciana, uma função didáctica, de entretenimento,
próxima das indovinelli e dos pictogramas: sugerir um inconsciente simulado
ou dissimulado nos signos, isto é, sugerir a existência de uma diferença não
resolúvel entre as imagens e os signos.
A relação entre mimésis e fantasia, entre belo e feio, entre forma e
deformação, entre emoção e expressão permite, pensar uma “iconologia
de intervalos” onde na realidade se estabelece o jogo destas diferenças
e a apreensão de uma desmistificação prática da representação. Uma
desmistificação do seu princípio de soberania e de identidade, da mimésis,
da lógica do modelo e da cópia, cujas consequências a anamorfose, a sua
exacta “perspectiva”, soube demonstrar.
A expressão constitui-se da “estética” barroca, para além do emblema
e da alegoria, no turbilhão das forças que se subtrai da experiência formal,
perceptiva e ideal das imagens, revelando-se como o aspecto, ao mesmo
tempo imperceptível e residual do desenho. Deste modo se compreende
como o sentido da mancha, do claro-escuro e da caricatura, “a colpi caricati”
se extraem da idealidade da linha e da força dos contornos. A expressão
pertence por isso à dimensão do gesto, do movimento e do pathos que
afecta a construção e a receptividade emocional das imagens. A expressão
podendo ser entendida também como um resto da identidade e da soberania,
um sintoma, um sinal da crise simbólica, que uma vez destituída, continua
a sobreviver no eterno retorno do sagrado e do profano.
Mas o que é a expressão? No domínio do desenho, a expressão é,
de acordo com Hubert Damisch, uma forma de actividade do traço, uma
actividade proteiforme não redutível à descrição imagética - geometria ou
contorno - nem à idealidade da linha, a sua espécie sublimada. A expressão
é a força que sobrevive sob a linha, a natureza indicial e material que conecta
a pulsão, o movimento e a existência corporal das formas, das figuras e
das representações. A expressão implica a vida e o ritmo das formas, a
sua dimensão conflitual, o campo das suas variadas acções e reacções
construtivas. Na sua acepção latina, expressão deriva de exprimere, o qual
significa “apertar com força, espremer”, modalidade do extrair, do forçar, de
premer aquilo que se encontra no interior de qualquer coisa, mas também
significado de representar, de retratar, de expor e declarar formalmente.
Neste sentido, a expressão entende-se como sendo a manifestação de algo

34
Caricatura, Modelo, Desenho e Imagem

interior, intrínseco à coisa espremida, algo configurável que se derrama e se


verte sobre o real, algo “retratável”, que por isso mesmo está ali mas que
rapidamente se retira, qualquer coisa como a mutação quase instantânea
das emoções, como um esgar, um tique ou uma esquiva.
O que explica a simultaneidade imperceptível e excessiva da sua
caracterização: ora imediata ora duradoira, difícil de captar. Existe
expressão sempre que existe relação de forças, sempre que se exterioriza
uma intensidade não formalizável, inesperada e por vezes contraditória. A
expressão, no contexto das imagens e do desenho, constitui-se como um
limiar da sensação, um limiar da relação do pensamento com as forças
do visível, da imagem, o qual releva da natureza da variação, da subtileza
ou da crueldade dos contactos, dos diferentes modos de sentir, de tocar e
de captar. A expressão gráfica é subjacente ao desenho enquanto vector
de intensificação, enquanto pathos, atrito ou inércia material, mas também
enquanto zona de afectação, de tracção afectiva, de vida interior: tal como
os traços passionais e fisionómicos, surpreendentemente variáveis, de uma
face.
A caricatura corresponde então a uma zona de indiferenciação, de
contrastes expressivos e inexpressivos, de montagem e desmontagem, e
mesmo de sobreposição, onde há lugar ao modelo ( o modelo gráfico) e
lugar à sua deformação, onde há também lugar ao retrato e ao anti-retrato,
onde preexiste a identidade e se obtém como resposta a carga e a descarga
agressiva sobre essa mesma identidade. Ernest Kris e Gombrich analisaram
a natureza desta predisposição psíquica, inconsciente, expressiva, por onde
a “alegre transformação da semelhança” se converte em imagem ridícula
para se propor como terapêutica das paixões. Na realidade, a caricatura
força o tabu que proíbe de blasfemar a efígie ou o retrato de uma pessoa, o
que significa que ela desafia a existência da magia, do mito e da metáfora,
enquanto protocolos de legitimação, obscuros e simbólicos, das próprias
imagens. E orienta o estatuto ontológico da agressividade e da violência
que as imagens implicitamente transportam, porque as similitudes são por
vezes cruéis e informes. A malícia é o exorcismo, a inflexão expressiva que
contempla o mal e a cura para o mal, tendo como seu requisito mínimo a
empatia, o rir de si mesmo.

35
desenho e ‘modelo’

Da caricatura podemos dizer que ela é simultaneamente um modelo


culto e popular, um modelo de baixa e de alta cultura, uma imagem cujo
modelo formal é a deformidade local, o exagero e o excesso de um puctum
da imagem. Ela é uma imagem do desenho que se faz e se desfaz, mas
que no essencial se pensa como crítica e exibição satírica, maliciosa,
da identidade. A caricatura seria assim o traçado imediato, simples,
simplificado, paradoxalmente ingénuo e genuíno, a garatuja, por vezes o
enigma, de uma intensificação mal-intencionada das imagens. Neste
sentido corresponderia a uma reserva de imagens malvistas e malditas,
mas intensas, cuja identidade é desfeita para prefigurar o traço, a emoção, o
aspecto intencional da energia que nele se prende e desprende. A caricatura
propõe por isso um olhar mordaz sobre a identidade e a semelhança, mas
também uma reflexão correlativa sobre a “monstruosidade” feroz que
habita o âmago das próprias imagens. Como se a caricatura transpusesse
e exibisse a sua própria insuficiência e banalidade como força de pensar
as imagens, a lógica do mesmo, isto é, como se ela permitisse desfazer
o princípio e a estabilidade da representação, para decidir sobre o plano
da morfologia, as transformações e as variações que dominam a vida das
formas. Com a caricatura trata-se, deste modo, de ver e de dar a ver a
baixeza, a força da carga, ou seja, a força daquilo que carrega uma imagem
baixa, uma imagem não ideal, uma imagem do corpo não forçosamente
bela, bem intencionada, bem educada ou bem vestida. A caricatura supõe
uma lógica de consequências - o sentido de uma imagem espremida, de um
“modelo” de distinção e de relação da perfeição ideal - cujo processo supõe
erros, lapsos, arrependimentos, mas com os quais se faz a aprendizagem
do desenho e se compreende a fatica, o labor, o trabalho da arte. Por outro
lado, a caricatura supõe também a lógica de uma recompensa subjectiva
que dá conta do poder desenhar, do poder de figurar e de desfigurar, com
humor, a inquieta récita do trágico carregando-a de cómico. Nas palavras
de Manlio Brusatin o projecto moral da caricatura, “projecto de estético
sarcasmo”, consistiu “em revelar tragicamente o fim da beleza”. É do ponto
de vista deste deslocamento que a caricatura permitiu desenvolver a matéria
mínima necessária para desenhar um rosto, para imaginar uma idealidade
do feio, do ridículo e do grotesco.
A caricatura investe o seu fazer sobretudo sobre o rosto, sobre a face, o
dispositivo básico da subjectivação – visageité (rosticidade), tal como Deleuze

36
Caricatura, Modelo, Desenho e Imagem

e Guattari o souberam interpretar. A exemplo do palhaço, do pantomimo;


cuja distribuição de pontos de significação orienta os traços que choram,
que riem, ou que, impassíveis como em Buster Keaton, se suspendem sobre
a intensa brancura da face. Momus personifica a maledicência, a farsa, a
momice, o macaquear, o imitar, o arremedo, sendo, por isso mesmo, capaz
de desorientar a ordem dos traços e da expressão, alterando o seu sentido.
Diante deste “dispositivo” expressivo é a nudez e o revestimento das
imagens que se colocam em jogo, e com elas o sentido e o significado de
uma contradição implícita do corpo, feita de pudor e de obscenidade. A
figuração do corpo rebate-se sob a fórmula subjectiva da face, do retrato,
reproduzindo uma extensa retractação de todas as suas partes, fazendo
com que a persistência empática e antropomórfica do rosto se redistribua.
As imagens do corpo constituem a atracção genérica das forças, do pathos
e dos afectos que nele se retratam: a fisionómica e a teoria das expressões
tornam-se o lugar pensável desta redistribuição onde a singularidade afectiva
das paixões do indivíduo e da sociedade se passam a medir. Porque não é
apenas a representação ou a narrativa que encena uma medida das acções
e das paixões humanas, mas a face enquanto processo de individuação e
diferenciação.
O pathos clássico da face soube construir-se na base do seu modelo
jurídico. Imago é o nome da constituição jurídica das semelhanças,
enquanto processo de produção e de transmissão de imagens. Imago era
exactamente o retrato do antepassado em cuja fisionomia se modelava
a máscara mortuária e se construía a linhagem familiar. Com a imago é
a ordem da identidade patrícia romana que se desenvolve constituindo o
repertório identificativo dos traços e da similitude, bem como o sentido
antropológico da empatia visual. O retrato constituía o instrumento social
das similitudes e a garantia da sua coesão. Foi através do retrato e da sua
reduplicação que se construiu a moeda corrente, a moneta, com a qual
se instituiu a necessidade mnemotécnica e o poder genealógico do retrato
imperial, tal como mais tarde da face crística. A marca do rosto como marca
da lei.
É interessante compreender como uma imagem de semelhança extrema
é produzida através de procedimentos banais e nada artísticos. Como afirma
Didi-Hubeman, a imago não é uma imitação no sentido clássico porque
ela não requer nenhuma ideia, nenhum talento, nenhuma magia artística.

37
desenho e ‘modelo’

A semelhança produzida é um ritual que serve de suporte a um processo


de legitimação, a um direito privado. O que permite pensar o processo da
mimésis como uma fórmula de contacto, indigna do artifício artístico mas
condigna e legitimadora das semelhanças. Segundo Plínio com o ciclo vicioso
da permutação, da troca e do comércio da imago traiu-se a sua função
original, transformando-a. A dignidade da semelhança dá lugar à luxúria,
a uma degradação da imitatio que significa uma decaída do seu estatuto
jurídico e social. A circulação e a transmissão tornam-se o procedimento
cómico, a atitude risível e sobejas vezes obscena, que vai afectar o destino
das imagens.
A caricatura ressurge como a fórmula expressiva capaz de se substituir ao
domínio do direito romano e da soberania da representação, vinculada pela
sua função genealógica, significante e reprodutiva. Os graffitis, ao contrário
das pequenas estatuetas em cera, indiciam o percurso mais acessível e
directo da produção do retrato. Exemplo prático desta demonstração reside
na forma arcaica como a degradação do retrato romano preferiu traçar,
sobre os muros e as paredes, os rostos de perfil, solução que sobrevirá
séculos mais tarde, após a sofisticada fórmula do retrato renascentista a
três quartos.

“Le rire n’est qu’une expression, un


symptôme, un diagnostic. Symptôme de
quoi? Voilà la question. La joie est une: Le
rire est l’expression d’un sentiment double,
ou contradictoire; et c’est pour cela qu’il y a
convulsion”
Baudelaire.

No séc. XVIII e XIX a caricatura reassume proporções narrativas inéditas


preferindo intensificar o espaço social e político das paixões humanas. Diderot
fala da caricatura como “uma espécie de libertinagem da imaginação”. Para
Baudelaire, a caricatura representa tout court a modernidade em arte. O
lugar da contradição moderna entre o riso e o trágico. A caricatura passa a
ser um instrumento figurativo polémico, a partir do qual se mede não só a
relação das forças do indivíduo e da sociedade, como a relação da arte com
a vida moderna. A caricatura é um desenho que dá sentido ao efémero da

38
Caricatura, Modelo, Desenho e Imagem

moda e ao fétiche da mercadoria. A caricatura é em certo sentido o desenho


infantil, um desenho de quem, como Hogarth pretendia, nunca desenhou.
Hoje, a caricatura é um cliché que perdeu não o seu objecto mas
se perdeu na sua formalidade figurativa: o retrato e o palco das paixões
humanas. Assim sendo, a caricatura emerge na desordem imagética como
um “modelo” sem aplicação e sem interferência para se constituir, talvez, na
recitação da própria história dos estilos. O que leva Étienne Sauriau, no seu
Vocabulário de Estética, a afirmar que “é por vezes difícil traçar um limite
entre caricatura e um certo realismo ou expressionismo” E isto de acordo
com uma percepção alucinatória, feita de micro-percepções, de estilhaços e
de fragmentos dos processos históricos da arte.
De facto, a prática do desenho contemporâneo continua a criar novas
relações de forças que implicam a vida de um corpo-força sujeito à
materialidade das sujeições: um corpo autográfico. Deste modo a experiência
actual da caricatura não significa a reprodução do seu cliché mas o
imperativo de um fazer que se sabe feito de contradições, de princípios e de
consequências, de deformações explícitas, amorais, anónimas, apessoais e
a-subjectivas um pouco como Steinberg fez e soube criar.
Quando olhamos para uma caricatura somos impelidos para uma
imanência risível da imagem, na qual nos identificamos como parte e como
um resto incluído. Sentimos que a caricatura se sustenta na dissemelhança,
na produção de uma deformação que reage à intenção do olhar, a esse
movimento que parece conter em si mesmo o seu próprio fim, ou seja,
perceber, extrair, espremer, um menos da totalidade que se lhe oferece.
Daí o sentido da provocação, do grotesco, do exagero até à obscenidade.
E a exclusividade do pormenor, da acentuação do detalhe, da polaridade
contraditória e convulsiva do humor.

Porto, 10 de Junho de 2004

39
desenho e ‘modelo’

1 - Antigos graffitis sobre os muros de edifícios em Roma e Pompeia.


2 - Giovan Lorenzo Bernini - Caricatura do Cardeal Scipione Borghese; desenho;
Biblioteca Vaticana; Ms Chigi.
3 - G.L. Bernini – Caricatura do Cardeal Giacomo Nini (detalhe de uma folha);
Gabinetto azionale delle Stampe.
G.L. Bernini – Caricatura de um Cavalheiro francês; Gabinetto Nazionale delle Stampe.
4 - G.L. Bernini - Caricatura do Papa Inocêncio XI; desenho;
Museum der Bilder Kunst; Leipzig.
5 - Pier Francesco Mola (1612-1666) – Dois entendidos admiram uma pintura;
PierPont Morgan Library.
6 - P.F. Mola – Caricatura de um homem a defecar; pintura; PierPont Morgan Library.
7 - Pieter Van Laer, O Bamboccio – Taverna de artista em Roma;
Staadliche Museen Preussischer Kulturbesitz; Berlin.
8 - Anamorfose Schemas anamorphotiques de P.Breuil. portrait de LouisXIII; Paris;1649.
9 - Philipon - Les Poires Le Charivari; Paris; 1834.
10 - Rodolph Topffer – Essais d’autographie; Genève; Schmid; 1842.
11 - Wolfgang-Adam Topffer – Étude d’expression d’aprés quelques têtes savantes “les amateurs”.
12 - Topffer – Mr. Pencil; Genève; Schmid; 1840.
13 - Jean Jacques Lequeu (1757-1828) - il tire la langue; J.A. Boiffard - Sem título; 1930.
14 - Saul Steinberg – Sem título; 1961; Yale University.
15 - S. Steinberg – Sem título; 1974; Yale University.
16 - Sebastião Sanhudo - O Sorvete.
17 - Almada Negreiros – Auto-retrato; 1949; s/d.
18 - A. Negreiros – Auto-retratos; Exposição dos caricaturistas; Jornal O Século;1913.
19 - A. Negreiros – Auto-retratos; 1938, 1940; CAM; Lisboa.

40
Modelo e Representação

Rui Vasconcelos

41
desenho e ‘modelo’

1110 x 1190 mm, encaústica s/ papel.

42
Modelo e Representação

Texto organizado a partir da intervenção realizada na conferência do dia


11 de Junho de 2004 no Museu Nogueira da Silva, a propósito da relação
Modelo / Representação.

(…) Queria dar relevo ao facto de, ao longo deste tempo ter vindo a
usar o mesmo local como modelo, a que recorro com frequência e onde
efectuo os registos fotográficos, os elementos que irão servir de base para
os trabalhos; acentuar que o modelo é um só, e que, até à data, salvo raras
excepções, é sempre o mesmo sítio que é representado.
(…) Relativamente às fotografias, cheguei mesmo a efectuar registos
nocturnos, que me permitissem experienciar o local de forma diversa. Voltei,
portanto, com alguma frequência ao mesmo sítio, e fui-me apercebendo,
a cada visita, espaçada no tempo, que este ia sofrendo alterações, e, na
mesma medida, a percepção foi-se alterando, o contexto transformou-se
e o que quer que restasse do local deu origem a outras manifestações;
uma vegetação própria que mudou apesar de se manter intacta a sua
matriz. Os registos fotográficos foram sendo feitos e captados uma série de
momentos.

No meu trabalho tem que haver sempre uma fuga ao registo fotográfico
original, daí a necessidade de se manifestarem acontecimentos sobre
o suporte, o desencadear de uma pulsão, um movimento nervoso, a
possibilidade de gerar um elemento estranho à paisagem, alheio, na sua
natureza, ao modelo que serve de base. Porque a mera representação
naturalística é em si a forma, e uma forma que é dada à partida, facilmente
reconhecível e familiar, aceite como modelo de representação, catalogado,
datado, etc. Em consequência, o processo é um contínuo lutar contra
esta forma, esta ordem, a capacidade de nomear. E este movimento de
resistência é o veículo que permite o transporte, o desligar do modelo inicial
ou fotográfico e o imiscuir-se na sua proximidade: uma necessidade que
não se revê ou reflecte no registo do modelo original, mas precisa dele
para se manifestar, para ter lugar, tornar-se presente. É isto o que está

43
desenho e ‘modelo’

em jogo. E é este o papel que desempenha o modelo; desliga-se da sua


dimensão documental para possibilitar uma outra natureza, num terreno
fecundo que dá abertura a manifestações, encontros que se realizam e
surgem ou efectivam na superfície do suporte; movimentos que permitem
trazer à superfície uma outra evidência, aferir encontros fora da sua esfera
própria, numa zona de vizinhança da fotografia. Assim, os elementos inscritos
– sinais, marcas a grafite ou acrílico sobre o suporte, apontamentos que se
foram desvanecendo, processos ou meios de representação utilizados, etc.
– interagem entre si, convocando presenças ou gestos, com os quais a
paisagem vai ganhando a sua autonomia e tomando parte no todo. Estes
vão permitir desenvolver o acontecimento da representação ou poder operar
uma transformação, reflectir ou evidenciar no suporte actuações diversas
(e sucessivas) neste processo de construção da paisagem. Todas estas
marcas, e como se realizam ou surgem no suporte, contribuem para que
a paisagem vá ganhando contornos mais evidentes e vá tomando esta ou
aquela configuração. Por fim, há determinadas premissas que funcionam
como agentes de contenção, moderadores, que implicam com o modelo e a
sua representação – em primeiro lugar o papel. Não sendo apenas o suporte,
o receptáculo do pigmento ou acção, ele desempenha parte integrante em
todo o processo e joga com as zonas onde têm lugar acontecimentos. De
uma maneira mais pragmática, quer a mancha, ou zona preenchida, quer
o papel, actuam num sistema de relação que supostamente potencia um e
outro – neste ponto joga-se com a eficácia da linguagem. Da mesma maneira
o médium é simultaneamente um entrave e um campo de possibilidades
nesta aproximação à realidade através do modelo. As suas características, a
forma como se espraia sobre a superfície, a sua presença, comportamento,
etc., tomam lugar no momento em que se revelam sobre o papel e se
realizam como acontecimento. Um pouco como se não só o sistema
nervoso actuasse, como uma série de códigos de representação tivesse
oportunidade de se insurgir bloqueando ou abrindo possibilidades perante a
natureza do médium: o sucumbir a uma situação que é o resultado de um
longo investimento e preparação, uma necessidade de fazer prosperar e de
não conformar o trabalho a uma forma, a uma imagem dada à partida, um
processo que envolve uma série de coordenadas e variáveis que contribuem
para reconhecer uma etapa, um processo a que se põe termo quando se dá
uma certa coordenação entre os elementos presentes.

44
Entrevista feita a Gaetan
por correspondência, em Setembro de 2004

Carlos Corais

45
Entrevista feita a Gaetan

Carlos Corais: A propósito da exposição “Algum Retrato”, na SNBA em 1982,


diz nunca ter chamado auto-retratos aos desenhos e, em entrevista a João
Pinharanda, afirmou que procura a “verosimilhança” e não a “semelhança”.
Pode explicitar um pouco mais?

Gaetan: O termo “verosimilhança” é aí utilizado como equivalente a


“semelhança provável” ou “possível” ou “plausível”, por aqui se afastando
da etimologia do termo (semelhança com o vero, com o verdadeiro) e do
próprio vero ou verdadeiro… Repare-se que “verosimilhança” é correntemente
utilizado como sinónimo de “provavelmente”.
Em contrapartida, “semelhança” refere-se à parecença física sem mais, ou,
se se preferir, “retratística”.

C. C.: “…há momentos em que estou a olhar para o espelho e devo estar
completamente alheio a tudo o que estou a ver. Porque o que aparece no
papel não tem nada a ver com o que eu estou a ver, certamente” *.
O retrato é associado à semelhança, mas pratica a inexactidão da cópia pela
utilização da mão esquerda, embora seja dextro. Podemos falar da procura
de expressividade ou de uma “distância moderna”, uma atitude casual e
espontânea relativamente ao “modelo”?

Gaetan: Não se trata “de uma procura de expressividade ou de uma


‘distância moderna’ ”, mas, isso sim, de uma atitude de espontaneidade
em relação ao “modelo”. Em rigor, nem sequer se procura: desenha-se.
A própria expressão “procura de espontaneidade” seria contraditória nos
termos.

47
desenho e ‘modelo’

C. C.: O trabalho de Gaetan não surge da memória ou da imaginação,


pressupõe a presença do modelo e do espelho, superfície de confronto com
a sua imagem. O rosto é o motivo e a imagem no espelho é o modelo
impermanente, o engenho que põe em movimento os mecanismos da
imaginação e do desenho.
Qual a função do modelo para a revelação do desenho?

Gaetan: No desenho, o modelo físico, seja ele qual for, é a presença do real,
a chamada de atenção para o real, para aquilo que pode ser captado pelos
sentidos, para o real visível. É esta a função do modelo para o comummente
chamado “desenho à vista”.

C. C.: São retratos portadores de humor, sarcasmo, um jogo de máscaras. A


ironia não surge do acentuar de aspectos psicológicos, apesar de os olhares
transparecerem espanto, firmeza, confronto provocador, medo, desconforto,
etc.
Parece-me que, em vez de procurar passar mensagens, pretende transmitir
energias, tensões, pulsões que os desenhos sugerem.
Para além da representação do rosto, o que “é próprio” dos desenhos?

Gaetan: Uma vez mais, não se trata de “procurar passar mensagens, etc.”.
Os desenhos transmitirão naturalmente “energias, tensões, pulsões”, mas
não porque pretendam fazê-lo. Em todo o caso, e em todos os casos, o que
“é próprio” do desenho e o próprio desenho, aquilo de que é feito: traços e
riscos.

C. C.: Em “Algum Retrato”, 1982, o desenho reflecte o descontrole provocado


pela utilização da mão esquerda. A autonomia do traço em relação ao
modelo surge intencional.
O significado está no acaso, na recusa da “boa técnica” (mão esquerda) e
do controle da forma?

Gaetan: Há de facto que ter em conta algum acaso e a recusa da “ ‘boa


técnica’ e do controle da forma” na execução destes desenhos. Na leitura
da resposta a esta questão, tenham-se também presentes as respostas às

48
Entrevista feita a Gaetan

questões anteriores.
C. C.: A partir de 1989, a mão esquerda adquire um controle, permitindo
uma maior “sofisticação” técnica.
Para além de um maior domínio do registo gráfico, este controle da mão
contribui para um novo relacionamento com o rosto do modelo?

Gaetan: Se por “novo relacionamento com o rosto do modelo” se entender


“um relacionamento mais difícil com o rosto do modelo”, certamente que
sim.

C. C.: Trabalha por períodos intensos, sessões curtas, ou os desenhos são


construídos ao longo do tempo, com momentos de repouso intermédios?

Gaetan: Raramente por períodos intensos (por momentos intensos, talvez)


e geralmente em sessões curtas. Quanto ao mais, tudo neste mundo é
efectivamente construído ao longo do tempo. Certamente com momentos
de repouso (ou períodos de repouso, talvez) no que toca à prática do
desenho.

C. C.: Os títulos das séries surgem logo de início, contribuindo para a pose,
adereços ou surgem depois como elemento agregador e organizador?

Gaetan: Os títulos das séries nunca surgem logo no início, nem só no


fim, mas durante (aí pelo terceiro quartel), quando, frente à necessidade
de nomear a coisa, começa a ganhar credibilidade a adequação de algum
nome à coisa.

* Machado, José Sousa, “Do lado de lá do espelho”, in Artes & Leilões, ano 4, junho-julho,
1993, pags. 55-60.

49
Entrevista feita a Gaetan

O exame ao mundo voluptuoso


O desenho do natural como prática corpo/mente.
O modelo como objecto de direccionamento/fixação da consciência.

Suzana Vaz

51
o exame ao mundo voluptuoso

O desenho de modelo do natural como prática corpo/mente

O desenho de modelo do natural, ou desenho do natural, insere-se na


tradição do studio do Renascimento, “de observação pessoal da realidade1” e
de representação naturalista, mimética, da realidade. Nestas representações
naturalistas, a imitação da natureza, ou de modelos do natural, caracteriza-
-se por uma correspondência isomórfica entre os dados visuais da realidade
objectiva e os dados visuais do registo gráfico. No desenho do natural, o
desenhador distribui no plano bidimensional da representação, do desenho,
os elementos plásticos, linhas e manchas, que constituem os dados visuais
do registo gráfico, em correspondência isomórfica com os dados visuais da
realidade objectiva percepcionada.
O resultado objectivo de um exercício de desenho do natural, patente
materialmente no preenchimento da página do desenho, é a substância
residual de uma experiência subjectiva qualificada, durante a qual o
desenhador está absorvido num elaborado exercício de coordenação
do complexo corpo/mente, envolvido numa dinâmica de consciência sui
generis, que tentaremos elucidar.
Sendo uma actividade prática que combina o exercício de percepção
de um modelo do natural e o exercício de registo gráfico, o desenho do
natural implica o uso do corpo e depende de uma consciencialização dessa
experiência. Nessa medida, o desenho de modelo do natural é uma prática
corpo/mente: uma actividade determinada pela relação empírica entre corpo
e mente, num processo concreto e presente, sincrónico e dinamicamente
interdependente, ou seja, que configura um avanço empírico sobre o
complexo corpo/mente.
No desenho de modelo do natural, e à semelhança do que acontece

53
desenho e ‘modelo’

noutras práticas corpo/mente, a relação entre corpo e mente é caracterizada


por uma dinâmica que visa tornar consciente a experiência subjectiva dessa
relação empírica que decorre entre ambos2. No caso do desenho de modelo
do natural, efectuado num paradigma de correspondência isomórfica e
mimética, o desenhador percepciona dados visuais da realidade objectiva
e pode aferir a consciencialização que faz destes, porque ficam patentes
no conjunto de dados visuais do registo gráfico, sob a forma de elementos
plásticos, linhas e manchas, segundo índices de representação e índices de
iconografia3.
O exercício de desenho de modelo do natural combina as experiências
somatossensorial e proprioceptiva, já que depende de estímulos físicos
provenientes tanto da percepção sensorial das várias modalidades,
designadamente da visão, como da propriocepção de acções corporais. Estas
acções consistem, por exemplo, em acertos posturais, ligados ao sentido de
equilíbrio e a um favorecimento da percepção pela modalidade sensorial da
visão, designadamente no respeitante à referenciação do sujeito no espaço,
e consistem ainda em movimentos e gestos instrutórios, implicados na
localização de elementos visuais no espaço ou na forma percepcionados.
Estas acções, dependentes da interacção somatossensorial e coordenadas
no âmbito da propriocepção, relacionam-se com as exigências e condições
do desempenho cognitivo, inerentes tanto ao exercício de percepção do
modelo natural como ao exercício de percepção e de execução manual do
registo gráfico, e a sua amplitude alcança, por exemplo, neste último caso,
a motricidade fina.

A experiência subjectiva de direccionamento da consciência

Na aplicação pedagógica do exercício de desenho do natural, um


acervo de procedimentos corporais instrutórios, globalmente físicos e
especificamente visuais, medeia a consciencialização dentro do vasto
conjunto de estímulos decorrentes da percepção do modelo e do seu
registo gráfico. Os procedimentos corporais instrutórios permitem avançar
progressivamente na consciencialização e discriminação de estímulos
e visam o direccionamento, em primeira instância, da atenção, depois,
o direccionamento da concentração e, finalmente, o direccionamento na
exteriorização e na fixação da consciência, para os estímulos relevantes nas

54
o exame ao mundo voluptuoso

diferentes etapas do exercício de percepção e de registo gráfico. Por exemplo,


para medir e comparar, de modo a estabelecer, no modelo, a amplitude do
campo visual (no caso de um espaço) ou as proporções gerais (no caso
de uma forma), o desenhador utiliza pontos de referência que identificam
e fixam a sua própria localização (o centro do seu cone visual), bem como
pontos que definem os limites do modelo e permitem aferir distâncias e
medidas máximas (altura e largura). Para detectar e estabelecer relações
visuais objectivas entre estes pontos, o desenhador adopta procedimentos
corporais específicos que, numa aplicação pedagógica, podem ser
designados como instrutórios, já que dependem de instruções volitivas
direccionando a consciência no complexo somatossensorial da percepção e,
consequentemente, permitem instruir o desempenho perceptivo e cognitivo.
A partir da sua configuração consciente, estes estímulos ficam presentes ao
sujeito, tornam-se pontos de fixação, objectos mentais relevantes/centrais
na dinâmica da exteriorização da consciência, predominando sobre os
demais objectos e fluxos de actividade mental. No exercício de desenho de
modelo do natural não existe percepção discriminada sem direccionamento
da consciência, factores interdependentes que se tornam característicos da
experiência subjectiva desse mesmo exercício. Assim, o exercício de desenho
do natural é uma prática corpo/mente que compreende uma componente de
adestramento físico, em interacção com uma componente de adestramento
da consciência, evoluindo a partir da realização experimental de uma
modalidade sensorial.
Na experiência subjectiva do exercício de desenho do natural, uma
parte importante do empreendimento será orientado, portanto, para a
consciencialização de estímulos sensoriais endógenos e exógenos, por meio
de um avanço empírico sobre o complexo corpo/mente. O sujeito fixa-se,
centra-se – concentra-se – predominantemente nos estímulos provenientes
da modalidade sensorial da visão, bem como em estímulos proprioceptivos
e somatossensoriais correlatos e/ou associados4. O exercício de desenho
do natural é uma prática corpo/mente em que a dinâmica da consciência
do sujeito pode ser decomposta em três incidências da actividade de
exteriorização e fixação da consciência, sincrónicas e mutuamente
dependentes:
a) actividade relativa aos dados perceptivos da realidade, designadamente
dos objectos mentais respeitantes à percepção visual do modelo, e ao

55
desenho e ‘modelo’

processamento cognitivo da forma e do espaço. O sujeito direcciona-se


para uma realidade exterior objectiva (um objecto, um espaço) preexistente,
autónoma perante factores subjectivos, porém doravante constitutiva da sua
experiência subjectiva, propiciadora de uma dinâmica de consciência sui
generis – ou seja, o sujeito direccionado concentra-se no modelo;
b) actividade relativa aos dados visuais do registo gráfico, designadamente
dos objectos mentais respeitantes à incidência dos elementos plásticos
no suporte de representação, numa adequação entre, por um lado, os
instrumentos e técnicas e, por outro, os índices de representação. O sujeito
relaciona-se com a realidade exterior objectiva (o plano bidimensional da
representação), não preexistente, não autónoma perante factores subjectivos,
ao mesmo tempo constitutiva e decorrente da sua experiência subjectiva
– ou seja, o sujeito direccionado concentra-se no registo gráfico;
c) actividade relativa ao desempenho físico e corporal subjacente ao
exercício de desenho do natural, que se estabelece desde (1) a percepção
visual dirigida da realidade, até ao (2) desempenho manual intencionado
do registo gráfico, incluindo (3) os procedimentos corporais instrutórios que
permitem a consciencialização dos estímulos relevantes para um registo
gráfico de isomorfia e mimesis, bem como (4) a fixação da atenção sobre
a realidade e a fixação da concentração sobre a consciência. O sujeito
relaciona-se com a ocorrência da sua realidade interior, pelo direccionamento
da consciência, designadamente sobre os objectos mentais relativos a essa
experiência subjectiva de concentração - o sujeito concentra-se no sujeito,
isto é, na sua experiência subjectiva.

Permanência da atenção e da concentração, e fixação da consciência

Esta aproximação aos fluxos de actividade – direccionamento/fixação da


consciência – durante o exercício de desenho do natural pressupõe que a
experiência subjectiva5 se compõe do material muito diverso da permanente
e incessante exteriorização da consciência. Na experiência subjectiva de
uma qualquer actividade do complexo corpo/mente, integra-se a ampla
e variável diversidade de estímulos suscitados no seu decurso, incluindo
estímulos sensoriais provenientes do conjunto das modalidades sensoriais e
da sua interacção somatossensorial, bem como outros objectos mentais, por
exemplo, provenientes da memória, ou relativos ao estado de tensão interior,

56
o exame ao mundo voluptuoso

ou ainda relativos ao estado emocional. No exercício de práticas corpo/mente,


a experiência subjectiva caracteriza-se também, necessariamente, pelo
processamento de estímulos provenientes da interacção somatossensorial e
da propriocepção, promovendo uma dinâmica de consciência peculiar.
Na dinâmica do complexo corpo/mente que caracteriza o exercício de
desenho do natural, o modelo é o objecto do direccionamento do sujeito,
de permanência da atenção e da concentração, o modelo é o objecto de
direccionamento e fixação da consciência. Entre a diversidade interactiva de
estímulos sensoriais, o sujeito consciencializa (faz assomar à consciência),
os estímulos relevantes dos dados visuais da realidade objectiva e seus
estímulos correlatos (proprioceptivos e somatossensoriais: posturas, gestos),
quando permanece nestes, dirigindo a sua atenção e firmando a sua
concentração. O modelo é o objecto a partir do qual se efectua um exercício
de concentração, consciente e volitivo, por parte do sujeito. O modelo é
o objecto a partir do qual se dá essa experiência subjectiva de fixação e
exteriorização direccionada da consciência, num exercício de permanência
da concentração cujos dados subjectivos passam a constituir também
objectos mentais conscientes para o sujeito.
Assim, a consciência detém-se, deixa-se absorver, concentra-se sobre
dados da realidade objectiva e da realidade subjectiva: esse exercício de
concentração, que o sujeito repete perante cada novo modelo para desenhá-
lo do natural, constitui um processo consciente e volitivo da experiência
subjectiva, e é uma parte relevante na totalidade de factores da mesma.
Para comprová-lo podemos analisar, nos documentos resultantes da prática
pedagógica de desenho do natural (páginas de exercícios de desenho do
natural), a incidência dos procedimentos instrutórios, necessariamente
conscientes, revelados pelos índices de representação, ou pela presença
de referências gráficas auxiliares (como marcação de distâncias, ou rectas
coordenadas auxiliares, entre outros). A aquisição de consciência da
amplitude do campo visual, por exemplo, depende da percepção e localização
consciente das últimas presenças visuais, antes da zona de desvanecimento,
dados visuais que correspondem aos estímulos recebidos pela orla média
da retina6. A determinação progressivamente mais correcta da amplitude
do campo visual no espaço (ou do enquadramento na forma ou figura)
por parte do desenhador principiante é, assim, um processo consciente ou,
desde logo, um processo dependente de uma dinâmica direccionada da

57
desenho e ‘modelo’

consciência, de um fluxo de actividade consciente e volitiva.


A experiência pedagógica de ensino de desenho do natural, visando
um adestramento progressivo de capacidades perceptivas e cognitivas,
aconselha-nos a adequar a duração dos exercícios à capacidade de
concentração do desenhador que, quando principiante, é inexperiente,
pouco desenvolto nessa prática corpo/mente e, portanto, pouco assíduo no
exercício de direccionamento e fixação da consciência para essa solicitação
empírica. Os exercícios de longa duração, de permanência detalhada sobre
o modelo são proveitosos no desfecho de uma metodologia prática que
prepara a concentração do desenhador para exercícios progressivamente
mais longos e progressivamente mais rápidos. A capacidade de concentração
de um desenhador versátil, treinado – assíduo no exercício de desenho
do natural e, portanto, assíduo no exercício de direccionamento e fixação
da consciência subjacente a essa prática corpo/mente – deixa-o apto a
exercícios de permanência de duração prolongada, bem como a exercícios
de permanência de duração muito curta.

Variações do registo gráfico e direccionamento da consciência.

Um desenhador versátil estará experimentado nas variações que o registo


gráfico pode apresentar. Estas variações do registo gráfico foram observadas
e consideradas pelo desenho moderno, surgido no Renascimento e marcado
pelo advento do desenho do natural e da representação em perspectiva, e
configuram a sua tradição. Charles de Tolnay explica-nos como as categorias
de desenho encontradas no Renascimento evoluíram na continuidade
das categorias de desenho praticadas na Idade Média, situando entre as
primeiras o studio, que corresponde ao exercício prático de desenho do
natural: “O pensiero encontra a sua técnica nas ilustrações primitivas a
pena; o studio do natural tem a sua origem nos desenhos de modelos dos
livros medievais de exempla; e o modello nasceu dos desenhos compositivos
dos livros de modelos (que vêm das miniaturas) ou nos desenhos de
projecto à escala. Mas em qualquer dos casos um novo espírito ultrapassa a
tradição. O pensiero baseia-se doravante, na invenção espontânea. O studio
baseia-se na observação pessoal da realidade. O modello é o resultado
do procedimento criativo para ser usado uma única vez. Assim, podemos
dizer que aquilo que é novo no desenho do Renascimento e no desenho

58
o exame ao mundo voluptuoso

moderno deriva da descoberta e valorização da personalidade artística7”.


A globalidade das variações do registo gráfico comprova a diferenciação
que é possível observar, e induzir ou proporcionar, no direccionamento da
consciência durante o exercício de desenho, quando entendido como uma
prática corpo/mente - e não apenas como imagem gráfica. No exercício
de desenho como prática corpo/mente, a imagem é o resíduo material,
derradeiro, de um fenómeno empírico que convoca toda a extensão do
complexo corpo/mente, cuja experiência subjectiva (tal como temos vindo
a descrevê-la) se suspende, ou modifica, no momento em que a imagem
gráfica fica concluída.
Entretanto, na prática do exercício de desenho do natural, modalidade que
vem na tradição do studio, a variação do registo gráfico pode ser facilmente
constatada na variabilidade da aplicação dos elementos plásticos dentro
de um conjunto que seja significativo de imagens de desenho do natural.
A análise da incidência gráfica dos elementos plásticos (linha e mancha)
no campo bidimensional e a decorrente caracterização dos índices de
representação e dos índices de iconografia, permite diferenciar e estabelecer
tipologias, que recebem designações diversas como, por exemplo, esquisso,
esboço, desenho linear, desenho de mancha, desenho detalhado, desenho
diagramático, ou outras. Estas designações não estão uniformizadas, e a
sua aplicação suscita a necessidade de definir as características da imagem
analisada e os termos da sua análise, enquadrando cada tipo de registo
gráfico (e correspondente designação) num mapa geral dos diversos tipos. A
caracterização dos índices de representação e de iconografia implica ainda,
necessariamente, a consideração das condições de execução da imagem,
tais como a técnica, instrumento, material e suporte utilizados, ou o tempo
de duração desse exercício de desenho do natural, que é possível estimar
pela apreciação da incidência dos elementos plásticos em relação com a
técnica, instrumento e material utilizados.
Concretamente, a variação do registo gráfico pode sintetizar-se numa
matriz de dois factores polarizados, o factor duração e o factor elementos
plásticos, que estabelecem quatro vectores: a duração longa, a duração
curta, a utilização da linha e a utilização da mancha. As opções relativas aos
dois factores determinam a variação da incidência gráfica na execução da
imagem, cobrindo o vasto espectro de possibilidades. Por outro lado, a técnica,
o instrumento, material e suporte utilizados condicionam a aplicação dos

59
desenho e ‘modelo’

elementos plásticos e a duração do exercício de desenho do natural. Assim,


por exemplo, um instrumento que produza linhas de espessura reduzida
adaptar-se-á provavelmente melhor a um registo gráfico linear, e a duração
do exercício dependerá do teor de preenchimento pretendido e da área do
suporte para a imagem; entretanto, os instrumentos de mancha adequam-se
plasticamente ao registo gráfico de intensidades lumínicas, por permitirem
cobrir em pouco tempo áreas consideráveis do suporte da imagem e por
exigirem um menor labor manual na construção da intensidade lumínica das
manchas do que, para o mesmo efeito, os instrumentos lineares.
Mais notavelmente, estas variáveis constituem condicionantes efectivas
para o direccionamento da consciência no seu rastreio diligente pelas três
instâncias da experiência subjectiva do exercício de desenho do natural: a do
sujeito direccionado que se concentra no modelo, a do sujeito direccionado
que se concentra no registo gráfico e a do sujeito direccionado que se
concentra no sujeito, isto é, na sua experiência subjectiva. Um exercício de
desenho do natural de duração muito curta (1 minuto), executado com um
instrumento linear médio (marcador), numa área reduzida do suporte (em
escala reduzida, por exemplo, A7), e que vise a apreensão de informação
para índices de representação e de iconografia gerais (por exemplo,
relativos ao sistema de planos de uma escadaria percepcionada) molda
no sujeito/desenhador uma experiência subjectiva de interacção cognitiva
necessariamente muito diferente daquela que será induzida por um exercício
de duração média (20 minutos), executado com um instrumento de mancha
médio (barra de pastel), numa área de escala média do suporte (A3), e
que visa a apreensão de informação para índices de representação e de
iconografia médios (por exemplo, relativos às incidências luminosas da
mesma escadaria).
As diferentes condições de execução em cada um dos casos descritos
propiciarão no desenhador uma interacção cognitiva também diferente, já
que o direccionamento da consciência vai incidir sobre percepções distintas,
em cada caso, dentro de um conjunto eventualmente comum de estímulos
susceptíveis de alimentar a exteriorização da consciência perante a realidade
percepcionada. Provavelmente, as condições de execução no primeiro
caso (um esquisso rápido feito com instrumento linear), levarão a um
direccionamento da consciência para a resolução das arestas relevantes no
sistema de organização dos planos (rectas principais, verticais e oblíquas),

60
o exame ao mundo voluptuoso

estímulos informativos que ganham ênfase sobre os demais objectos


mentais do conjunto geral de estímulos, enquanto as condições de execução
no segundo caso (um esboço de duração média feito com instrumento de
mancha), levarão a um direccionamento da consciência mais prolongado
e, portanto, desencadeado por etapas que, num primeiro momento, pode
incluir a resolução das mesmas arestas para, num segundo momento,
se centrar na resolução de intensidades lumínicas, seja nos estímulos e
percepções relativos à delimitação da sua configuração (rectas, curvas),
seja nos estímulos e percepções relativos à sua harmonização conjunta
em claro/escuro. No exercício de desenho do natural, as variações do
registo gráfico promovem a prontidão e a desenvoltura no direccionamento
da consciência, diversificando os moldes da interacção cognitiva relativa
aos factores plásticos da realidade percepcionada e do registo gráfico do
espaço e da forma, entre estes a dimensão (medida, proporção e escala),
a estrutura (organização do todo e das partes), a cor, a luz (incidências
luminosas e intensidades lumínicas) e a textura (padrões, ritmos).

Um exame ao mundo voluptuoso e o resgate da sensorialidade

Numa prática corpo/mente, a assiduidade do exercício de direccionamento


e fixação da consciência promove uma transformação neuronal, resgatando
e/ou formando circuitos psico-físicos inéditos na actualidade do complexo
corpo/mente. A assiduidade desse exercício suscita uma dinâmica cognitiva
produtiva, que suplanta a activação automática de circuitos psico-físicos
pré-existentes, estes últimos responsáveis pela incidência de atavismos
cognitivos no desempenho empírico corpo/mente nas diversas modalidades
sensoriais. No exercício de desenho do natural, as ‘discrepâncias na
isomorfia’ entre o modelo e o seu registo gráfico, típicas nos exercícios
do desenhador principiante, e que evidenciam, numa análise imediata,
uma percepção errónea, comprovam também a prevalência de atavismos
cognitivos e, sobretudo, a incipiência do exercício de direccionamento
e fixação da consciência, na coordenação do exercício de percepção do
modelo e do seu registo gráfico.
As ‘discrepâncias na isomorfia’ denotam a amplitude do condicionamento
do desempenho empírico corpo/mente. J.-P. Changeaux8 explica-nos um
postulado essencial da teoria neurobiológica, segundo o qual a aprendizagem,

61
desenho e ‘modelo’

ou seja, o registo em memória de um objecto mental como traço estável,


se dá de maneira indirecta. Antes da interacção com o mundo exterior, o
cérebro produz espontaneamente representações transitórias, imprecisas,
cujo grafismo varia a todo o instante. Estas pré-representações existem antes
da interacção com o mundo exterior e resultam da recombinação de grupos
de neurónios, cujas ligações são provisórias e efémeras. Destas ligações,
aquelas que perduram são memorizadas, sendo essa memorização fruto
de uma selecção. No contacto com o mundo exterior, por um processo
de isomorfia ou semelhança de forma, o cérebro determina o grau de
coincidência entre o grafismo de um percepcionado e o grafismo de uma
pré-representação. O grau de coincidência é determinado pela quantidade
de ligações entre grupos de neurónios que ambos têm em comum. A
implicação mais notável deste processo de sobreposição de informações é
a de provocar cortes, perdas, na componente sensorial do objecto exterior
em processamento, que atenuam a vivacidade e o realismo da imagem
(mental) desse objecto exterior. Estas perdas devem-se ao facto de que,
sendo as pré-representações transitórias, variáveis de instante para instante
e, portanto, diferentes em momentos diferentes, apenas alguns traços do
objecto percepcionado coincidirão com os da pré-representação ficando, de
entre esses, também apenas alguns colocados na memória.
Este postulado coincide com a observação empírica testemunhada
no vocabulário de uma prática corpo/mente ancestral, o Yôga. Esta
psicotecnologia9, pertencente à tradição milenar hindu, apresenta uma
acepção do complexo corpo/mente que pode ser tomada como referencial,
pela completude do acervo de técnicas aplicado para o avanço empírico sobre
o complexo corpo/mente, abrangendo as diversas modalidades sensoriais
enquanto veículos físicos e veículos energéticos, susceptíveis de percepções
de subtileza variável. No Yôga Sútra de Pátañjali10, estão presentes duas
designações para as pré-representações preconizadas pela moderna teoria
neurobiológica: vásaná, que é definido como “impressão subconsciente,
tendência ou disposição que condiciona o homem”, e samskára, que é
definido como “as raízes profundas dos condicionamentos humanos,
tendências subconscientes de carácter inato e hereditário”. Samskára
pode também ser entendido como o próprio processo da aprendizagem, a
formação neuronal de novos circuitos psico-físicos, mais evoluídos do que
aqueles que vêm suplantar ou transcender e, nessa acepção do termo,

62
o exame ao mundo voluptuoso

samskára é a designação para um fenómeno dinâmico pelo qual se forma e


treina a mente11, designado como “activador subliminar12”.
Tendo por objectivo alcançar o samádhi, o estado de hiperconsciência,
o Yôga visa a destrinça da dinâmica de consciência no seio da experiência
subjectiva, e a consideração ulterior de uma teleologia de criação, pela
qual a realização do samádhi indica a possibilidade de uma educação ou
instrução na direcção da potência criativa. Enquanto na tradição ocidental
o conhecimento sobre a experiência subjectiva permaneceu um assunto
teórico, situado seja no âmbito especulativo da filosofia (do Idealismo Alemão
à Fenomenologia), ou um objecto de análise experimental, no âmbito da
pesquisa científica (das neurociências à psicologia), na tradição oriental
foi abordada empiricamente, sondada como um fenómeno experimental,
atingida por experiência e vivência próprias e observável e transmitida por
testemunho ou depoimento de experiência própria13. O acervo de técnicas
do Yôga, que abrange a diversidade das modalidades sensoriais e concretiza
o avanço empírico sobre o complexo corpo/mente, demonstra a eficácia
formativa das práticas corpo/mente na abordagem ao conhecimento acerca
da experiência subjectiva, designadamente da experiência da dinâmica de
consciência direccionada e, portanto, qualificada ou, por outras palavras, na
abordagem prática ao auto-conhecimento.
No exercício de desenho do natural, entendido como prática corpo/
mente que concretiza uma abordagem ao auto-conhecimento, a realização
de um desenhador versátil advém não apenas do grau de sucesso obtido
na correspondência isomórfica entre modelo e registo gráfico, mas também
da plenitude do exercício de direccionamento e fixação da consciência, pelo
qual suplanta atavismos cognitivos, institui e frequenta novos circuitos psico-
físicos, vivenciando uma experiência subjectiva que lhe dá conta de extensões
inéditas na sua propriocepção e na interacção somatossensorial, traduzidas,
em termos práticos, por uma maior acuidade na aproximação ao conteúdo
realista dos objectos percepcionados e pela permanência da atenção e da
concentração. Pela assiduidade do exercício de direccionamento e fixação da
consciência, o desenhador treinado atinge um desempenho empírico corpo/
mente descondicionado e detém o conhecimento empírico e subjectivo da
interacção cognitiva que lhe permite renovada e autonomamente efectuar o
exame ao mundo voluptuoso.
Por partir da percepção de um modelo do natural e da interpretação

63
desenho e ‘modelo’

isomórfica do seu conteúdo realista, o exercício de desenho do natural,


quando aplicado como método pedagógico, demonstra empiricamente a
progressiva suplantação de automatismos perceptivos, e uma correspondente
reparação da integridade subjectiva individual. O processo de tentativa/erro/
correcção(nova tentativa) que, nessa didáctica, caracteriza cada exercício e o
conjunto de exercícios, deixa visível, nas formas paulatinamente alteradas, e
em tempo real, a dinâmica de activação e superação de circuitos psico-físicos
responsáveis pela apreciação imprecisamente direccionada de estímulos
de diversas proveniências. Ao mesmo tempo, a bateria de procedimentos
instrutórios didácticos que permitem ao desenhador direccionar-se para
consultar o modelo e alterar as hipóteses, é uma parte relevante do material
empírico, somatossensorial e proprioceptivo que está na base da experiência
subjectiva de reparação da integridade individual, conferindo-lhe a autonomia
necessária para o avanço empírico sobre o complexo corpo/mente. O
exercício assíduo dessa dinâmica de consciência direccionada, volitiva,
concretiza um laborioso resgate da sensorialidade, patente sempre que uma
forma é corrigida com sucesso e um novo circuito psico-físico passa a ser
frequentado, efectuando empiricamente uma transformação neuronal sem
precedentes na educação e na formação anteriores do desenhador.

Desenho, práticas corpo/mente e processo criativo.

As práticas corpo/mente caracterizam-se pelo avanço empírico sobre o


complexo corpo/mente, que consiste no direccionamento da consciência para
o conteúdo realista das percepções veiculadas pelas diversas modalidades
sensoriais, e também para as percepções que advêm do decurso da
própria experiência subjectiva, produto da exteriorização da consciência,
vindas da memória ou, por exemplo, relativas ao estado emocional ou de
tensão interior. Nessa medida, o desenho é uma prática corpo/mente cujo
património de possibilidades, enunciado pela tradição e consagrado numa
prática diversificada, carece de uma abordagem científica susceptível de
caracterizar a sua configuração, fundamentar o seu desenlace, e considerar
as implicações do seu alcance, manifesto ou potencial.
A abordagem ao exercício do desenho do natural como prática corpo/
mente demonstra que este é uma técnica particularmente eficaz no
direccionamento da consciência para o conteúdo realista das percepções

64
o exame ao mundo voluptuoso

veiculadas pela modalidade sensorial da visão, promovendo não apenas uma


dinâmica de consciência volitiva, mas também o processamento cognitivo
produtivo, pelo qual se dá uma transformação neuronal em que ficam
activados novos circuitos psico-físicos e, concomitantemente, a potência
superadora/criativa dessa dinâmica de consciência. O processamento
cognitivo produtivo atesta, ao mesmo tempo, a potencialidade de discriminar
e abordar informação inédita e de resolvê-la (cognitivamente, ao nível
celular, neuronal) de modo também inédito. No vocabulário da neurociência,
o processamento cognitivo produtivo logra suplantar a pré-representação,
actualizando-a, segundo a complexa álgebra neuronal, sob a forma de traço
mais estável; no vocabulário do Yôga, o processamento cognitivo produtivo
logra desactivar um samskára para substituí-lo por outro samskára mais
evoluído14. Por outro lado, a abordagem ao exercício de desenho do natural
como prática corpo/mente demonstra também a necessidade de cruzamento
de âmbitos científicos para a constituição de um campo de conhecimento
abrangente, consequente, inovador e dinâmico, útil e produtivo para a
contextualização do desenho na contemporaneidade ou, de resto, enquanto
actividade humana.
Entretanto, o direccionamento da consciência para o conteúdo realista
das percepções veiculadas pelas modalidades sensoriais, ou seja, o exercício
de práticas corpo/mente, caracteriza o núcleo de disciplinas práticas do
ensino artístico, nas artes visuais e plásticas, e nas de expressão musical,
corporal e dramática, bem como no design ou na arquitectura. O facto das
práticas corpo/mente proporcionarem a vivência empírica de uma dinâmica
de consciência de potência superadora/criativa, coloca-as num patamar de
eficácia formativa que contrasta com a solicitação de um desempenho de
processamento cognitivo reprodutivo subjacente ao núcleo de disciplinas
teóricas, frequentemente agravado pelas condições desfavoráveis em
que decorre a prática pedagógica destas últimas15. Todavia, as práticas
corpo/mente, sendo exemplarmente formativas, como acontece com o
desenho nos cursos de arquitectura, destinam-se mais propriamente à
preparação de capacidades básicas (por exemplo, de cognição da forma
e do espaço plásticos, sonoros, ou corporais), não constituindo, enquanto
metodologias práticas, recursos directos para a concretização do projecto
ou da realização criativos. Por outro lado, o exercício de práticas corpo/
mente no ensino artístico obedece a um critério disciplinar, que restringe a

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desenho e ‘modelo’

formação do artista às modalidades sensoriais directamente intervenientes


no produto criativo da actividade artística para a qual o estabelecimento de
ensino está convencionalmente vocacionado, sem contemplar a diversidade
ou a globalidade de modalidades sensoriais necessária e inevitavelmente
envolvidas no processo criativo, com a excepção do ensino das artes
de expressão corporal e dramática, que integra no produto criativo da
sua actividade artística desempenhos relativos às várias modalidades
sensoriais.
Nesse sentido, o depoimento dos enunciados artísticos da vanguarda,
e particularmente da vanguarda artística performativa, vem sublinhar
a importância do intuito experimental e da primazia do processamento
empírico sobre a busca teórica no que respeita à experiência de criação.
O recurso ao exercício de práticas corpo/mente que é preconizado em
grande parte desses enunciados artísticos, e que se efectua pela integração
combinada de linguagens e tecnologias de disciplinas artísticas díspares -
em ruptura com as convenções linguísticas e tecnológicas e abrangendo
a diversidade das modalidades sensoriais - pode ser entendido como um
programa experimental para restringir atavismos cognitivos, e suscitar
um processamento cognitivo em direcção a dinâmicas de consciência
qualificadas, (designadamente em direcção à sua potência superadora/
criativa), o que aponta para a utilização de práticas corpo/mente como
contributos operativos/produtivos no processo criativo. De resto, muito do
empreendimento artístico da vanguarda performativa sustenta o processo
criativo como um guia de métodos empíricos que estabelece a ponte até
ao fenómeno interior da experiência subjectiva de criação, ou da realização
da potência criativa, desviando assim o ênfase do objecto de arte para o
processo e metodologia criativos. O ensejo de enquadramento do exercício
do desenho no processo criativo da vanguarda artística performativa implica
a sua fundamentação como prática corpo/mente, de modo a que seja
possível abordar, enquanto métodos e técnicas, ‘modalidades’ de desenho
que são vulgarmente identificadas, por exemplo, como ‘desenho do natural’,
ou como ‘desenho de imaginação’, desse modo permitindo a contextualização
da sua especificidade e do seu alcance, manifesto e potencial.

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o exame ao mundo voluptuoso

NOTAS
1 - Charles de Tolnay, em History and Technique of Old Master’s Drawings, Hacker Art
Books, New York, 1983.
2 - POPPER, Karl, Knowledge and the Mind-Body Problem: In Defence of Interactionism, M.
A. Notturno (ed.), Routledge, London, 1994.
3 - Como índice de representação entendemos a quantidade de elementos de representação
gráfica, correspondentes a dados visuais de informação da realidade percepcionada. Por
exemplo: num exercício de desenho do natural de espaço interior, podemos considerar
como índice de representação geral, as rectas verticais e oblíquas de caracterização geral
desse espaço, correspondentes a elementos visuais de carácter estrutural que representam
a articulação de planos desse espaço; como índice de representação médio, podemos
considerar as rectas verticais e oblíquas correspondentes a elementos visuais integrados
nesses planos, que caracterizam morfologias e tipologias desse espaço, e que localizam
e descrevem estruturalmente os elementos arquitectónicos desse espaço, por exemplo,
aberturas, rampas, etc; como índice de representação detalhado, podemos considerar
as demais rectas subsidiárias, que correspondem às morfologias e às tipologias dos
elementos arquitectónicos. Como índice iconográfico entendemos a combinação particular
de elementos iconográficos constituintes da imagem, correspondentes a dados visuais da
realidade percepcionada e portadores de significado, e que permitem a interpretação da
imagem segundo os três níveis de interpretação previstos na iconologia: um primeiro, de
significados relativos ao conteúdo plástico, um segundo, de significados relativos aos motivos
representados, e um terceiro, de significados relativos ao sentido (intenção comunicativa) da
imagem. Estes elementos correspondem, na imagem, às decisões relativas à composição e
ao regime gráfico adoptado (linha, mancha), aos motivos da representação gráfica, e a um
intento comunicativo, respectivamente.
4 - EDELMAN, Gerald M., Wider than the sky, the phenomenal gift of conciousness, Yale
University Press, London, 2004, pp. 72-73. Na sua teoria da selecção de grupos neuronais
(theory of neuronal group selection, TNGS), Edelman explica como, no desenvolvimento
biológico humano, as primeiras discriminações da consciência (qualia) se reportam a
categorizações perceptivas relacionadas com o próprio corpo, “relatando a relação do corpo
com o ambiente externo e com o ambiente interno”, dependentes de sinais designados como
proprioceptivos, cinestésicos ou somatosensoriais, bem como componentes autonómicos.
“Estes componentes sinalizam, respectivamente, a posição do corpo, a acção de músculos e
articulações e a regulação do ambiente interno. (…) Assim, previamente ao aparecimento da
consciência superior, é construída uma cena [conjunto de qualia], com base em referências
centradas no espaço e no corpo e de base corporal neural”.
5 - DAMÁSIO, António, O Sentimento de Si, 9ª ed., 2000, À Procura de Espinoza, 2003,
Europa América.
6 - LENT, Roberto, org., Cem Bilhões de Neurónios, Conceitos fundamentais de neurociência,
Atheneu, São Paulo, 2001, p. 296.
7 - TOLNAY, Charles de, History and Technique of Old Master’s Drawings, Hacker Art Books,
New York, 1983.
8 - L’Homme Neuronal, Librairie Arthème Fayard, Paris, 1983, pp. 174-177.

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desenho e ‘modelo’

9 - Designação usada por Georg FEURSTEIN, em A Tradição do Yôga, Ed. Pensamento,


2003.
10 - A codificação do Yôga Clássico é atribuída a Pátañjali, o autor que se estima ter vivido
no século III a.C., e apresentada no seu livro Yôga Sútra. As referências foram tiradas do
glossário da versão de M. DeROSE do Yôga Sútra de Pátañjali , 3ª edição, 2000.
11 - Este entendimento do termo samskára é referido no Cologne Digital Sanskrit Lexicon:
“putting together, forming well, making perfect, accomplishment, making ready, preparation;
(…) forming the mind, training;(…) correction, correctness, purity; (…) a mental conformation
or creation of the mind” .
12 - Na versão do texto do Yôga Sútra de Pátañjali de G. Feurstein, em A Tradição do Yôga,
Ed. Pensamento, 2003.
13 - WILBER, Ken, Uma Breve História de Tudo, Via Óptima, Porto, 2002.
14 - Até finalmente desactivar o último samskára, numa completa conversão do complexo
corpo/mente (metanóia) que caracteriza a kaivalya, libertação através do samádhi, estado
de hiperconsciência, objectivo do Yôga
15 - A reduzida carga horária das disciplinas, o elevado número de discentes, a extensão
dos conteúdos programáticos e a sua desarticulação relativamente ao contexto geral de
formação, designadamente relativamente às disciplinas práticas, e desadequação das
metodologias pedagógicas, que ignoram a importância do exercício prático, oral ou escrito,
na estruturação do pensamento e do discurso na formação consequente do discente.

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