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epistemologia
do projeto
Leandro Marino Vieira Andrade
Reprodução e Distribuição
Eis aqui o
problema.
Nós
desejamos
projetar
formas
claramente
concebidas
que sejam
bem
adaptadas a
um dado
Christopher Alexander
contexto.
Notes on the synthesis of form
1964
O desenho é uma forma de escuta | 1
Analogias e metáfora | 5
Apontamentos e esboços | 10
Materiais e ferramentas | 14
Registro de lugar | 19
Imitação e jogo | 22
Repetição e diferença | 24
Passo do tempo | 32
Espaços fractais | 34
Conceitos nômades | 39
Acaso e intenção | 41
Estratégico x tático | 42
Misturas e costuras | 44
Plano de montagem | 46
A frase que dá título a este ensaio, eu a trouxe de um outro texto – Sobre desenho – que escrevi em
2012, como reflexão sobre as práticas de ateliê de desenho no Instituto de Artes da UFRGS. Naquela
ocasião, reuni meus apontamentos para comentar (de certa maneira, celebrar) um semestre marcado
por algumas invenções e grandes descobertas, em um período em que frequentei, simultaneamente,
duas disciplinas de desenho, ministradas, respectivamente, pelos professores Nico Rocha e Flávio
Gonçalves.
Somadas, as duas disciplinas ocupavam dezesseis horas-aula semanais em ateliê, e mais outras tantas
horas de trabalho em casa (inquantificáveis precisamente), desenhando noites adentro, e incluindo
alguns “amanheceres” que se completavam com um café de padaria. E coisa melhor penso que não há,
para começar um outro dia.
Mas, naquele contexto, portanto, desenho significava representação através de um meio gráfico da ideia
que a imaginação, louca da casa, provocava3. Ou, talvez mais precisamente, conduzia. Desenhar pode se
tornar um modo de imersão (com risco de obsessão) em um mundo que, ao mesmo tempo, é e não é.
Agora, no entanto, neste novo contexto, nesse outro ateliê que busca refletir sobre o projeto urbano,
emprego a palavra desenho no sentido de projeto: design, desígnio, desejo, e por aí vai, ainda que, cada
vez menos me interesse esta distinção em si, e cada vez mais me pareça que estamos falando, nos
planos cognitivo e epistemológico, das mesmas coisas, ou de coisas que se completam e se implicam
mutuamente.
A recente oportunidade que me foi brindada pelo querido amigo Arnaldo (Nano) Vaca, professor da
Facultad de Arquitectura da Universidad Nacional de La Rioja, para falar, livremente, sobre meus
desenhos e seus processos4, me impôs uma disciplina de recordação, de resgate e, de alguma forma, de
catalogação da minha produção gráfica ao longo de duas décadas. E a preparação para esse encontro
(virtual, pelas circunstâncias já bem conhecidas) no ateliê coordenado por Nano me lançou em um
projeto de memorabilia sentimental e em uma teia de correlações com outros processos (pedagógicos,
táticos, epistêmicos) que me trazem ao momento presente tomando a forma de um esboço sobre uma
possível epistemologia da projetação e seus procedimentos.
As notas que transcrevo aqui (tradutor e traidor das minhas próprias anotações) estão organizadas em
torno das ideias que foram surgindo (muitas delas “requentadas” da minha pesquisa de doutorado5) ao
passo da organização daquela modesta conferência.
Neste contexto, a teoria que procura explicar certas qualidades ou características de um dado
fenômeno, estabelecendo ainda que provisoriamente, uma verdade quanto ao objeto, cede lugar à
simulação (onde um modelo – seja matemático, espacial, analógico ou digital, etecetera – permite
explorar incontáveis possíveis através da variação de parâmetros ou a simples mutação interativa das
variáveis e do próprio modelo). Assim, este conhecimento por simulação compara-se, mais 2
apropriadamente, a uma bricolagem cognitiva: a verdade, sabe-se, é indeterminada, na constante
construção e no rearranjo de uma realidade observável (acompanhando Virilio,19939) em velocidade.
Quase tudo, a cada momento, depende, em grande parte, de uma decisão. Ou da falta dela. Claro, isso
vale não apenas para o plano do projeto. Mas cada decisão é uma bifurcação. Duas hipóteses: ir por
este ou aquele caminho. Como se sabe, a flecha do tempo é irreversível, mas nem toda decisão é uma
sentença sem volta. Eis que a vida é projeto10: tudo é projeto, título do documentário sobre a pessoa e a
obra de Paulo Mendes da Rocha, dirigido por sua filha Joana, e que tornou-se, face ao seu recente
falecimento, mais do que um testemunho, uma espécie de belo e profundo testamento intelectual do
grande arquiteto brasileiro11.
Este ensaio é sobre método e procedimentos, mas também sobre razões e sentimentos. Falar em
processos de projeto (no plural, porque há muitos modos de construir o projeto) traz implicado o risco
de se revelar mais do que operações de desenho. Projetar é um processo que se vive interiormente
(mesmo quando se projeta em equipe). Isto é: a projetação (esse neologismo que buscamos no italiano
progetazzione) pertence aos campos da cognição e da epistemologia. Isto é, projeto é conhecimento, e
conhecimento é memória, e memória é inteligência12. Mas é, também, um processo que se vive
intensamente, e que pertence, também, ao campo sensual. Assim, com a palavra os mestres italianos:
Todos querem saber como se faz para andar no bosque sem se perder. Podem-se citar muitos
estratagemas experimentados: o nosso conselho é entrar no bosque e dele tentar sair. (Gabetti, Isola,
1997:83).13
E então:
Quem busca em nós uma receita para projetar rápido e bem, fuja depressa. Nós trabalhamos muito e
lentamente, segundo trajetórias incertas: não é um sinal ligado a nossa idade, ele provém de nossas
muitas e mais jovens experiências, muito mais que jovens - originárias. (Gabetti, Isola, 1997:85)
Com Carlo Scarpa, mestre da luz e do detalhe, é possível apreender o que vem a ser este "trabalhar
muito e lentamente" que caracteriza amiúde o ateliê do arquiteto. Por esta razão, agora é preciso situar
a breve frase que assinala a idéia encadeadora dos comentários que virão a seguir. Porque toda uma
lição sobre arquitetura, sobre seu fazer empírico, sua aprendizagem, e sua densidade conceitual, vem,
sintética, nas palavras que foram ditas, talvez sem pretensão ao registro histórico, mas que não foram
esquecidas por Sergio Los (1994), quando o arquiteto italiano afirmou:
Muitas vezes mencionado por seus analistas como um artesão ou um artista, dimensões de sua
personalidade que, mescladas ao seu rigor compositivo, plenamente se expressam em sua obra, Scarpa
projetava por figuras (Los, 1994): colecionava um imenso e rico repertório de precedentes figurativos,
formas e relações entre formas, tomadas da natureza e da cultura, para, em seguida, combiná-las em
uma linguagem em que as regras sintáticas e a carga simbólica, decantadas pela prática arquitetural,
referiam-se sempre ao contexto (histórico/ geográfico/ cultural) de sua aplicação. No depoimento de
Sergio Los, primeiro seu aprendiz, depois um de seus principais associados:
(…) Queria lembrar aqui as operações projectuais de Scarpa, o pensar por figuras. Conforme muitos
notaram, seu trabalho é dominado pela presença do desenho: quase todas as elaborações passam por
procedimentos gráficos de desenvolvimento e comunicação da informação. (…) tais operações influenciam
a organização prática do trabalho gráfico no atelier profissional de Scarpa.
Scarpa começava um projeto escolhendo configurações que reapareciam constantemente no seu trabalho
e que de cada vez tinham uma significação específica quando eram ordenadas à proporção do plano
horizontal para preencher no edifício uma função exatamente definida do ponto de vista da sintaxe. Os
desenhos mostram as diversas tentativas empreendidas para combinar configurações, bem como as
modificações progressivas nas relações dimensionais, que Scarpa qualificava de “trabalho de
aperfeiçoamento”. Todas estas operações têm a sua estrutura específica no processo de estudo e mudam
respectivamente de suporte: o papel transparente, cartão, prancha de desenho ou maqueta à escala, etc. 3
(Los,1994: 41-3)
Projetar por figuras: o desenho encanta, fazendo-se texto, mostrando detalhes, revelando o (re)
percurso do projetista. Como desenhos que visam a reflexão, os planos desenhados por Scarpa,
recordados por Sergio Los, revelam um sistema de pensamento estruturado de forma recursiva. Do
geral ao particular, da parte à totalidade: uma dupla espiral, uma dialética, uma genética. O universo
dos possíveis, mediado pelo real, atualiza-se, por escolhas e aproximações sucessivas, ao desenho
necessário e, porque fundado nas lições da história, é fruto de "um olhar marcado pela cultura"
(Los,1994:13).
O seu olhar marcado pela cultura é tão rico que não se pode pensar que seja uma simples experiência
baseada na percepção. A complexidade de sua maneira de ver, na qual uma imagem remete sempre para
outras imagens, exclui qualquer redução rápida à psicologia da percepção. Scarpa era capaz de se servir de
figuras formais desenhadas em conformidade com esta lógica visual – guiada por um profundo
conhecimento da tradição da linguagem formal, que lhe dava os critérios necessários para assinalar e
escolher a figura formal apropriada – o que era uma espécie de competência "lingüística". (Los,1994:13)
– Disegno perché voglio vedere – ver, perceber, refletir, dialogar, com e através do desenho: a frase de
Scarpa vem, pois, carregada de implicações. O olhar do arquiteto que percorre paisagens: aquelas que
enxerga, na natureza ou na cidade, e as que vislumbra como ebulição do pensamento. Estas poucas
palavras em uma só frase aportam a definição do fundamento arquitetural da precisão, ao juntar a ação
do desenho ao que os olhos apreendem, imagem que se desloca da periferia ao centro do sujeito, e,
retornando, realiza-se através do projeto de arquitetura.
Mundo e sujeito, portanto, implicam-se mutuamente. O sujeito explica o mundo quando, imerso em – e
emergente de – sua experiência de vida, constrói uma realidade. Corpo, visão, movimento, dimensões
integradas do conhecimento: as leis implacáveis da natureza física são moldadas em estruturas que
fazem sentido. O mundo que o sujeito conhece é o mundo das possibilidades que sua história de vida
revela. Um sistema que compreende um fechamento: limites da experiência do indivíduo, mas também
os limites expandidos de toda a experiência humana. O construtivismo, nesta perspectiva, se define
pelos processos que acontecem em um espaço entre o sujeito e as coisas.
Pensemos, de início, em projeto como sequência de escolhas a partir de uma pergunta. Uma pergunta
que surge porque estamos diante de um problema que nos exige uma escolha e uma decisão. O
desenho de uma garota com uma bola azul e um gato púrpura pode ser a resposta a uma pergunta
interior. A leitura de um livro de mil e oitenta páginas pode começar com uma pergunta que nos
inquieta. Uma casa é um texto cheio de perguntas: Bachelard as formulou em forma de filosofia, em
A poética do espaço16. A cidade nos pergunta: para onde vamos? O projeto urbano é um processo
contínuo de perguntas imprecisas e respostas incompletas. Pensemos, assim, no projeto como séries de
respostas provisórias e parciais para a pergunta inicial, aquela que dá partida a um pensamento. E este
pensamento nos pergunta outra vez.
Garota com uma bola azul e um gato púrpura, desenho, 2018 |Um livro de 1080 páginas | A poética de Bachelard
Trata-se, pois, de colocar tudo o que foi reunido até aqui na balança: balança da memória, balança do
devir. Refletir sobre as práticas, as praticagens, as formas de constituir um problema, uma pergunta,
uma pulsão. Os modos de lidar com a vontade, com a inquietação, com a liberdade. Trata-se de falar em
intenção, em projeto, em desenho. Em meio a um mar de acasos. Decisões e decisões: “lembretes” que,
penso, podem ser úteis quando nos aventuramos ao traço riscado entre a descoberta e a invenção17.
Assim, (…) pegue alguma coisa. Faça alguma coisa com isso. Então faça outra coisa com isso – como
ensina Jasper Johns. Ou (…) quebre, estique, dobre, esmague – como ensina Bruce Mau18. O
5
desenho/projeto é, pois, uma forma de escuta. E, “freireanamente”, é preciso aprender a escutar.
1 analogias e metáforas
Lúcia Leão sugere um exemplo claro (ainda que sombrio) para que se perceba a diferença:
(…) afirmar "meu trabalho é uma prisão" é muito mais forte do que dizer "meu trabalho é como uma
prisão". A metáfora, à medida que articula esquemas analógicos, não se interessa por similitudes ou
comparações. (Leão, 1999:15)21
Busco, então, outra imagem, mais arquitetural, para visualizar o que diz a autora. Eis que, afirmar, ao
modo de metáfora, que certo edifício é uma caixa suspensa no ar, ou dizê-lo, à maneira da analogia,
como uma caixa suspensa no ar, em ambos os casos, ainda que expressando diferentes potências, trata-
se de dar visibilidade a uma condição que, não sendo própria do objeto em si (a caixa, no caso), é
revelada pelo olhar de um observador capaz de construir a (re)descrição deste edifício a partir de um
outro campo e de uma outra imagem, deixando vagar o ponto de vista para estabelecer sentido para
aquilo que vê.
Uma caixa. “suspensa no ar”: o New Tamayo Museum, México, BIG / Michel Rojkind
Todo o edifício é um corpo vivo – escreveu Leon Batista Alberti, por volta de 1452, em Re Aedificatoria, o
paradigmático tratado sobre arquitetura que Françoise Choay (1980:7922) considera ser a obra
fundadora da teoria da arquitetura, e em relação a qual a autora assinala a força axiomática no
emprego da metáfora. Desde então, tomando a obra de Alberti como modelo (cidade, casa grande;
casa, pequena cidade), a literatura sobre arquitetura e cidade constitui uma tradição analítica que
remete, por um lado, às artes antigas da construção e, por outro, em especial, à derivação de regras de
composição geométricas e da recorrência de elementos compositivos que se repetem, em incontáveis
variações, ao longo dos séculos.
Inserindo-se nesta tradição, no importante artigo intitulado Matemática da casa ideal (199923), o
historiador e teórico inglês Colin Rowe comenta:
Com esses exemplos comparados, Rowe tenta desvendar as relações matemáticas incorporadas à
arquitetura, escolhendo, tanto no que se refere a Palladio quanto a Le Corbusier, respectivamente, duas
das suas obras mais celebradas. Mas é através da análise de dois outros edifícios que Rowe demonstra,
com mais rigor e precisão, a analogia iniciada com a referência da Villa Rotonda e da Villa Savoye. Assim,
é com a Villa Foscari, de Palladio, construída entre 1550 e 1560, e com a Casa Stein, de Le Corbusier,
construída em 1927, que a análise dessas relações geométricas da composição reunirá edifícios, tão
distintos em aparência quanto distanciados no tempo histórico, em um único esquema lógico.
Protocolos analógicos dessa natureza, que revelam regras compositivas rigorosas, são bem conhecidos
nos estudos da arquitetura e, em especial, no campo do urbanismo. A teoria da urbanização de Cerdá
(1867), que Choay (1980) coloca ao lado de Re Aedificatoria de Alberti, como texto instaurador da
disciplina urbanística; a concepção de cidade linear de Soria Y Mata (1880); os diagramas para a cidade-
jardim elaborados por Howard (1898) e o esquema gerador da cidade radiosa, proposto por Le
Corbusier em Urbanisme, em 1925, são exemplos que acompanharam o pensamento arquitetural e
urbanístico ao longo de todo o século XX.
Em seu momento histórico, a idéia de uma arquitetura-ciência – máquina e instrumento – que rechaça
os traços heterônomos herdados das artes e dos estilos decorativos, parece ser constantemente
reclamada – na verdade, exigida – na direção do que, pouco depois, veio a ser conhecido, com a
influência também de outros nomes do movimento moderno, especialmente Ludwig Mies van der Rohe
e Walter Gropius, como estilo internacional.
Essa concepção do espaço moderno aponta para uma espécie de modelo final totalizador: a caixa de
vidro, sem história ou geografia que lhe possa explicar, quando as palavras de Rowe, no entanto
dirigidas à Rotonda de Palladio, são outra vez pertinentes: (…) matemático, abstrato, quadrangular, sem
nenhuma função aparente e totalmente memorável, conta com derivados disseminados por todo o
mundo (Rowe, 1999:10).
Uma outra linha de pensamento investigativo que aproxima, como procedimento analítico, as teorias da
arquitetura e sobre o espaço urbano ao campo das analogias e metáforas é a que busca ideias e
imagens a partir da ficção. Nesta perspectiva, destaco a abordagem dada pelo arquiteto argentino 7
Rubén Pesci, em um livro, pequeno mas essencial, intitulado La ciudad in-urbana (198524), quando o
autor trata da problemática da cidade latino-americana contemporânea a partir de três narrativas
emprestadas de As cidades Invisíveis de Italo Calvino (197225).
Assim, Leonia é a cidade artificial, a cidade que é produto da projetação mecanicista (recordemos Uma
cidade não é uma árvore, de Christopher Alexander, 1965), construído a partir das ideias, ideais e
ideologias do Urbanismo. Zora é a cidade voraz, cidade que tudo consome do ambiente em que se
insere. E tudo que consome, transforma em dejeto. Pentesilea, por sua vez, é a cidade in-urbana, que
nega a condição da urbanidade, a cidade dissipativa conformada por uma periferia infinita, sem
centralidade e sem identidade. As ilustrações criadas pelo artista visual Juan Garese, penso, reforçam a
leitura metafórica de Pesci:
1. A cidade cósmica, forjada como expressão de crenças mágicas ou espirituais, e como representação
de diferentes visões do universo, conforme distintas culturas, com destaque para as teorias chinesa
(grelhas hierárquica baseada nos princípios da geomancia) e indiana (mandala espiral processional
que conduz os percursos dos rituais da periferia para o centro).
Diccionário Metápolis de Arquitectura Avanzada Olhar tático (no alto) | Natural / Artificial (acima)
2 apontamentos e esboços
Correndo o risco da redundância, uma vez que já tratei deste tema quando falamos do Caderno do
Urbanista, penso que seja importante dar ênfase a este ponto da pauta. Penso que a “disciplina” dos
registros, sejam escritos, gravados, desenhados, fotografados, filmados, “colecionados”, enfim, através
de qualquer meio de armazenamento da informação, são as bases mais sólidas para o desenvolvimento
de um bom projeto. Não é minha intensão me alongar exageradamente neste tópico, mas reunir alguns
pontos que parecem importantes e poderão ter alguma utilidade prática, no presente ou no futuro.
É um hábito que cultivo por toda minha já longa trajetória como arquiteto, urbanista e professor. E,
mais, recentemente, como estudante de artes visuais. Tenho guardadas agendas do século passado,
10
preenchidas com anotações das mais variadas formas (até hoje, quase nunca uso uma agenda para
apontar “compromissos”): são frases soltas, poemas, desenhos, eventualmente textos mais longos. Não
raro, entre as páginas, a folha de uma árvore que recolhi do chão, a nota da despesa em um
restaurante, um ingresso de um espetáculo musical ou teatral, o cartão de visitas de alguém que já não
lembro quem seja, guardanapos rabiscados, fotografias analógicas, aqueles cartões postais de
publicidade, etiquetas de lojas, um bilhete com uma declaração de amor, uma impressão digital.
Tenho blocos e cadernos de desenho, de diferentes épocas, de diferentes tamanhos, e são muitos.
Gosto especialmente dos de tamanho A6, que cabem no bolso, e A5, que são mais práticos quando se
trata de desenhos de observação. Há uns tantos em formatos “não-normatizados”: cadernos quadrados
são, particularmente atraentes. E há os cadernos não-cadernos, que são envelopes cheios de folhas
soltas e pastas de cartão ou papelão que, quase sempre, são preenchidos por “documentos” análogos
(os estudos preliminares para um projeto, por exemplo). Tenho, também, uma quantidade considerável
de “caixas temáticas”, abarrotadas de papéis variados, quase sempre séries de desenhos que fiz para
projetos específicos (um bom exemplo é uma caixinha de cartões de 10 cm por 10 cm que junta os
desenhos que fiz para cada guá do I Ching). E há, é claro, as caixas das fotografias analógicas.
Enfim, tudo isso me torna um colecionador (ou, tudo bem, confesso, também um “acumulador”), e não
desejo que ninguém se torne exageradamente obsessivo com isso de registrar e guardar coisas que,
provavelmente, para as outras pessoas, parecerão banais ou sem sentido. Fico imaginando que tudo
isso representa algo como uma arqueologia interior, e que todos estes documentos seriam úteis para os
estudos de um topoanalista29.
Mas este hábito, no entanto, me levou a outros comportamentos e interesses e, ao tempo em que
tenho todos estes registros guardados, o ateliê é preenchido, também, com coleções de materiais, e
coleciono papéis de muitos tipos e qualidades e alguma quantidade (tenho um estoque considerável de
papel, disponível para a lida diária do desenho), e tenho estojos grandes que estão abarrotados de lápis
e canetas, mais ou menos organizados pelas maneiras que costumo empregá-los.
De todo modo, esta Babel particular me tem sido muito útil na rotina do ateliê porque estou sempre às
voltas com a busca e a consulta desses apontamentos e esboços, enquanto estou envolvido com algum
projeto de escrita ou desenho. Mas, confesso, meus métodos de catalogação não são dos mais
eficientes e perco um tempo valioso até encontrar o que preciso para aquele momento, exatamente.
Tudo isso foi acontecendo sem planejamento (a ironia é que sou doutor em planejamento!) ou
sistemática biblioteconômica, de modo que poder-se-ia definir com precisão como uma bagunça
organizada. O princípio da ordem pelo caos! E, embora de grande utilidade para mim, foi só
recentemente que todos esses “guardados” se tornaram um tema de reflexão, no sentido de “abstração
conceitual”, para tentar compreender o que chamarei, provisoriamente, de “auto-epistemologia”.
Eu devo muitíssimo a Flávio Gonçalves, a quem mencionei bem no início deste ensaio e que foi referido
com destaque quando tratei, naquele outro texto, dos Cadernos do Urbanista, porque sua generosidade
o levou a compartilhar com seus alunos sua pesquisa, que me parece contínua e rigorosa, sobre o que
ele define como documentos de trabalho, ou seja:
Documentos de trabalho seriam assim como ‘pistas’, indícios que podem servir ao estudo das ações e
caminhos que constituem o contexto de concepção de um trabalho em arte. (Gonçalves, 2020:2530)
E, afinal, em perspectiva, penso que Gonçalves me fornece uma espécie de validação para esta minha
compulsão particular. Mas, principalmente, ele aponta para uma certa metodologia de como identificar,
reunir e seguir as pistas, para construir os fundamentos de um trabalho em arte ou, extrapolo, em outro
campo qualquer. Mas tenho que fazer menção, também, à Paola Zordan, que na disciplina Laboratório
de Texto, me empanturrou de referências maravilhosas, de provocações inusitadas e de conversas
inesperadas (de fato, não só Paola, mas todos os participantes daquele semestre pré-pandêmico, que
pudemos desfrutar sem desconfiar do que viria então).
Devo mais uma para Paola Zordan que é isso de tomar gosto por organizar listas dedicadas aos mais
diversos assuntos. Logo eu que me recusava, até recentemente, até mesmo fazer a lista das compras 11
antes de ir ao supermercado. A intensa e “descobridora” vivência em seu Laboratório de Texto me
levou, afinal, no espírito do pegue uma coisa, faça outra coisa, a pensar numa versão Laboratório de
Texto: Arquitetura, ou Arquitetura para poetas, que é o nome secreto do curso. Por razões diversas, o
laboratório ainda não aconteceu (cultivo, no entanto, minhas esperanças), mas, para concluir esta seção
do ensaio, quero compartilhar alguns apontamentos sobre esse que é mais um dos projetos em
processo. E comecei montando uma espécie de lista.
Comentário sobre o programa e suas intenções: apontamentos livres da obsessão crítica com a qual a
academia nos acostumou a conviver; apontamentos livres, também, da autoindulgência das coisas
médias e dos resultados ordinários; apontamentos livres, idem, dos escondimentos planejados e
enganações mal disfarçadas. Pré-requisitos: gostar de ler e escrever; disposição para explorar outras
coisas além da arquitetura. Detalhamento da escrita: os textos podem vir a ser quase tudo, um artigo ou
uma crônica, ou um poema ou uma carta, ou uma fábula ou um necrológio, ou um relógio ou um mapa,
ou um dicionário ou uma bula, ou um bilhete ou uma rosa, ou um lenço ou um documento, ou um amor
ou um quase-amor, ou uma simpatia ou uma dor: ensaios.
Uma inspiração permanente em meu processo de escrita (e que, penso, “contamina” meus desenhos e
“arquiteturas”) é a literatura de Georges Perec, prolífico e transgressor autor francês, autor de algumas
das obras mais intrigantes que já tive a oportunidade de ler. Destacadamente, A vida: modo de usar: 12
romances (197831), que narra a “biografia” de um edifício parisiense haussmanniano, inventariando cada
cômodo de cada apartamento, descrevendo cada objeto, e entrelaçando as vidas de incontáveis
personagens através da metáfora do puzzle. Em Espécies de espaços (1974), reúne diferentes
percepções e experimentações sobre o conceito e o sentido de espaço, numa prosa fragmentada e, por
vezes, próxima à poesia concreta. E não tive nenhum pudor em imitar Tentativa de esgotamento de um
local parisiense (1975), onde faz o inventário de tudo o que vê, em certo lugar, ao longo de três dias de
obsessiva observação, trazendo o exercício para o contexto de Porto Alegre.
Perec era integrante do grupo original OuLiPo – que, do francês Ouvroir de Littérature Potentielle,
poder-se-ia traduzir como oficina ou ateliê de literatura potencial – formado por um grupo de escritores
e artistas que, voluntariamente, formulavam regras (ou constrangimentos) ao seus processos de escrita,
no sentido de explorar os limites imaginativos da linguagem. Ele escreveu, por exemplo, um volumoso
romance, intitulado O sumiço (1969), sem usar, em nenhum momento, a letra E32.
Outro membro célebre do OuLiPo foi Italo Calvino, tantas vezes motivador das minhas aventuras
pedagógicas, especialmente a partir de As cidades invisíveis (1972). Em algumas de suas obras, o sentido
transgressivo oulipiano é muito evidente. É o caso, por exemplo, de O castelo dos destinos cruzados
(1993) e Se um viajante numa noite de inverno (1999).
Em 1984, Calvino foi convidado para realizar as Charles Eliot Borton Poetry Lectures, ciclo de seis
conferências que seriam proferidas na Universidade de Harvard, previstas para o ano letivo de 1985/86,
e pretendia abordar as qualidades que, em seu modo de ver, a literatura do século XXI deveria preservar
como valores maiores apreendidos da tradição. Ele faleceu repentinamente, pouco antes de embarcar
para os Estados Unidos, deixando escritos cinco dos seis textos que seriam apresentados à audiência de
Harvard. Leveza, rapidez, exatidão, visibilidade e multiplicidade são os temas que conduzem a reflexão
de Calvino ao longo dos cinco textos que compuseram, postumamente, as Seis propostas para o
próximo milênio (199033). Aquele que jamais foi escrito seria dedicado à noção da consistência.
Retomando a questão das analogias, estes cinco ensaios de Calvino, que podem ser lidos como
categorias literárias, não sugerem, imediatamente, uma intenção de extravasamento além dos limites
pensados pelo escritor. Mas, ao modo que interpreto, é impossível não os situar também em relação à
arquitetura e à cidade, como procedimentos adjuvantes à projetação.
“Leveza”, pois, como subtração do peso (Calvino, 1990:15); “rapidez”, reunindo pontos longínquos do
espaço e do tempo (1990:67); “exatidão”, como princípio de projeto, imagem e linguagem (1990:71-2);
“visibilidade”, dirigida tanto às realidades quanto às fantasias (1990:114); “multiplicidade”, como
modelo das redes dos possíveis (1990:134). O que percebo são potências para refletir sobre arquitetura
e cidade, como campo ampliado de conhecimento que, no plano da epistemologia, é quase uma
imagem no espelho da literatura.
Em relação à “consistência”, o texto não escrito, penso que a palavra em si mesma é suficiente para aqui
fazer sentido, implicando na coesão holística entre suas partes, isto é, entre narrativas, visíveis ou
invisíveis. E então:
Chego assim ao fim dessa minha apologia do romance como grande rede. Alguém poderia objetar que
quanto mais a obra tende para a multiplicidade dos possíveis mais se distancia daquele unicum que é o self
de quem escreve, a sinceridade interior, a descoberta da própria verdade. Ao contrário, respondo, quem
somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras,
de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma
amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras
possíveis. (Calvino,1990:13)
Eis a questão: – tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis!
Esta afirmação de Calvino, trazida para o âmbito da projetação, me leva de volta a Christopher
Alexander e sua mais conhecida e praticada teoria – Um modo intemporal de construir (197934) e Uma
linguagem de padrões (197735) são dois livros que não podem ser deixados de fora de nossa tentativa de
pensar uma epistemologia do projeto.
13
No primeiro, Alexander abandona o rigor matemático e lança as bases teóricas e filosóficas de sua
abordagem, preparando o terreno para, no segundo, como produto de oito anos de investigação, reunir
256 patterns que abordam desde a noção de região até os detalhes construtivos das edificações,
passando por temas variados que incluem redes, espaços públicos, lugares de trabalho e moradia,
espaços para o convívio social, enfim, quase tudo o que, como problemas projetuais arquetípicos, pode
ser “remexido e reordenado”. Não é um livro para ser lido de ponta a ponta; é um livro para ser
compreendido lentamente e consultado constantemente.
A areia, a pedra são descarregadas. Um servente as amontoa nos locais previstos do canteiro; um outro
leva parte para o ajudante de pedreiro que ajunta água e cal ou cimento, trazidos do depósito por um
ajudante diferente; um quarto despeja a argamassa em baldes ou carrinhos e o conduz ao pedreiro que
coloca tijolos, faz revestimento ou enche uma fôrma, seguido por seu ajudante que segura o vibrador ou
recolhe o excesso caído. Em cima, o carpinteiro prepara outras fôrmas com a madeira empilhada perto
dele depois de encaminhamento semelhante ao da argamassa e percorrido por ajudantes e serventes
próprios; o armador dobra as barras de ferro assistido do mesmo modo e, por todos os lados, pintores,
marceneiros, eletricistas, encanadores, etc. (…) Um mestre transmite as instruções, organiza a cooperação,
fiscaliza, impede atrasos: é, também, feitor (Sérgio Ferro, 1982:19).36
Esta longa citação que empresto da obra paradigmática de Sérgio Ferro – O canteiro e o desenho –
revela um fluxo de pensamentos sobre o real: a realidade contingente do canteiro de obras em que uma
multidão de processos e seus atores acontecem simultaneamente, de modo coordenado, às vezes
colisivo, e sabe-se lá de que maneira, afinal, ao final, vislumbramos e compreendemos a obra
construída. Nessas inspiradas linhas, o arquiteto brasileiro é capaz de sintetizar esta “simbiose” entre os
materiais, as ferramentas e os homens que, com suas ferramentas, transformam os materiais em um
edifício. Em outro momento, Ferro, tão obsessivo quanto Perec, sugere especializações e hierarquias,
funções precisas que demandam diferentes saberes:
14
Pás, enxadas, desempenadeiras, colheres, prumos, níveis, esquadros, réguas, fios, serrotes, martelos,
alicates, goivas, plainas, pincéis, rolos, espátulas, etc. Instrumentos simples, isolados, adaptados às
diversas operações, resultado de lento aperfeiçoamento e diferenciação para um uso preciso. Mais
raramente, betoneiras, elevadores, guinchos, vibradores, serras-elétricas, etc. Sempre, entretanto,
máquinas somente auxiliares nas tarefas pesadas; nenhuma operatriz que reúna os instrumentos
particularizados. (Ferro, 1982:19)
Eis que as máquinas e os materiais permaneceriam inertes, e o canteiro seria apenas espaço vazio, se
não houvesse o conhecimento (insisto na importância da memória que é produto da duração): há, pois,
uma epistemologia que é a ponte entre o fazer e o compreender e, neste sentido, quanto ao contexto
da nossa reflexão epistemológica sobre o desenho/projeto, Ferro nos fornece uma analogia
instauradora: quais são os materiais e as ferramentas à disposição dos desenhadores/projetistas para
que agenciem, como em um “canteiro de obras” que são pensamentos, a curiosidade projetual e a
imaginação das formas (ou das figuras, como fazia Scarpa) no campo virtual dos possíveis.
O pensamento do projetista vaga, pois, pela virtualidade. E eis que parece haver, neste sentido, uma
notável convergência entre aquele que Jean Piaget considerou o problema central da sua epistemologia
genética – (…) o da construção ou criação do que existia apenas em estado virtual do “possível’ e que o
sujeito deverá atualizar (1987:52) – e a caracterização do pensamento (ou da inteligência) projetual nos
campos da arquitetura e do urbanismo. Assim, nas palavras do epistemólogo:
Cada novo possível constitui ao mesmo tempo uma construção e uma abertura, pelo fato de engendrar
simultaneamente uma novidade positiva e uma nova lacuna a preencher. (Piaget, 1985:135)
Construção e abertura! Duas palavras apenas, justapostas na frase breve que empresto do grande
pensador suíço, fornecem, em minha interpretação, uma sintética e surpreendentemente precisa
definição para o que é arquitetura. Ao passo em que se constrói um pensamento (que poderia ser
qualquer pensamento, mas aqui estamos pensando no projeto da cidade), novas possibilidades surgem
(descobertas? invenções?) para o desenho em progresso.
É neste contexto que se revelam as ferramentas e os materiais com os quais o projetista lida, da
concepção ao aperfeiçoamento, em um continuum de cada vez maior complexidade e precisão. Quanto
à arquitetura, como afirmava Lúcio Costa, falando aos estudantes há mais de 80 anos, coisa para ser
vivida e, portanto, sentida, na medida das ideias e do corpo37. E estes são os materiais com os quais se
projetam edifícios e cidades.
15
Trata-se, simplesmente, de uma provocação: se Mies van der Rohe celebrizou o aforismo Less is more,
que se tornou uma espécie de lema da arquitetura moderna, e se Robert Venturi, décadas depois,
encontrou um argumento contrário satisfatório, ao dizer para quem quisesse ouvir que Less is a bore,
queremos relativizar e liquidificar essas duas afirmações históricas.
Em outras palavras, às vezes, menos é menos, porque falta alguma coisa; às vezes, mais é mais, porque
está sobrando alguma coisa. Não tenho dúvidas de que certas “obras-primas” do dito pós-modernismo
revelam seus excessos estéticos em nome de uma forçada ruptura (penso que, amiúde, produto da
atitude egocêntrica de certos arquitetos equivocados ainda que bem-intencionados ou do gosto kitsch
de implacáveis consumidores do mercado imobiliário). Tampouco tenho dúvida de que, em certas obras
que seus autores rotulam como minimalistas, falta alguma ou muita coisa, e a vida das pessoas comuns
requer uma ecologia mais diversa e “rica de coisas”, e não um ambiente estéril de laboratório clínico.
Mas, no papel de advogado do diabo em relação ao meu próprio ponto de vista, às vezes, menos é
menos porque se deseja uma pureza significante: é o caso da tradição zen dos jardins japoneses, por
exemplo; é o caso de uma cabana à beira-mar, ou de uma pintura de Mark Rothko. Por outro lado, às
vezes, mais é mais porque se deseja densidade semântica: é o caso das catedrais góticas; é o caso de
quase tudo que Frank Lloyd Wright projetou, ou da Guernica de Picasso, por exemplo.
Como dispositivo projetual, a questão pode ser colocada de maneira bastante prática: em seu processo
de desenho, acrescente tudo o que vier à cabeça; deixe decantar; depois de uma repousante noite de
sono, apague os excessos. Repita a operação até se sentir satisfeito. Penso que era mais ou menos assim
o método de Scarpa e sua ideia de aperfeiçoamento. Entre o menos e o mais há um lugar a ser
descoberto, ou inventado, em que as “coisas” do seu projeto estarão onde devem estar. E este é, ,
talvez, o mais intensamente poético ensinamento que aprendi com Christopher Alexander:
(…) A diferença entre o que é um bom edifício e o que é simplesmente um edifício ruim, entre o que é uma
boa e uma má cidade, é objetiva. Isso corresponde à diferença entre a saúde e a doença, entre o que seja
integral ou fragmentado, entre a auto-preservação e a auto-destruição. Em um mundo saudável, integral,
vivo e autoconservado, as pessoas podem ser vivas e auto-criativas. Em um mundo incompleto e auto-
destrutivo, as pessoas não podem permanecer vivas: elas inevitavelmente serão auto-destrutivas e
infelizes. Mas é fácil entender porque as pessoas crêem de forma tão convincente que não existe uma base
sólida para distinguir bons edifícios de maus edifícios. Isso se deve ao fato de que a qualidade, única e
central, que expressa essa diferença, é uma qualidade que não tem um nome. (Alexander, 1981:35)
Implosão de Pruitt Igoe: fotogramas do documentário The Pruitt Igoe Mith. Direção: Chad Freidrichs (2011)38
O movimento da collage é comparável à trajetória amorosa descrita por Roland Barthes, onde os
fragmentos são as figuras da ação da collage e o recorte, ou captura,
é o primeiro ato do trajeto amoroso.
16
Collage como trajetória amorosa, pequeno e importante livro do arquiteto e artista visual Fernando
Fuão (2011), querido amigo e colega na Faculdade de Arquitetura, expõe uma teoria sobre os
fundamentos, tanto técnicos como semióticos, da arte da colagem. É uma obra Importante porque
ajuda a preencher uma lacuna bibliográfica sobre o tema, mas, sobretudo, porque registra parte do seu
belíssimo trabalho.
É um livro que fala das ferramentas, dos materiais, da cola, dos recortes. Permite ao leitor, portanto,
compreender o passo a passo necessário para que a colagem se torne projetualmente possível. Mas
fala, também do corpo. E porque fala do corpo, abre uma brecha para que se fale do espaço entre as
coisas e entre os corpos: fragmentos de espaço, intercâmbios de espaços, errâncias de corpos no
espaço. É um livro sobre projeto – no sentido do método e dos procedimentos. E, na forma como foi
estruturado, a sequência dos temas e como os aborda, a leitura permite, de fato, compreender esta
ideia de fluxo que trago aqui como analogia, no sentido de mais um dispositivo projetual.
Assim, no contexto deste ensaio, collage implica em intenção diante do acaso. O procedimento do
recorte violenta a imagem precedente, a fragmenta em diversos pedaços e, com esse movimento, a
esvazia do seu significado original e a expõe a novas leituras. Estranhamente, primeiro destrói para
poder construir. Outra vez, é na aventura de vasculhar fora da arquitetura que encontro um conceito
análogo para justificar meu ponto de vista. É em 1947, mais exatamente entre janeiro e agosto,
enquanto dedicava-se a estudar a novela moderna, que o escritor argentino Julio Cortázar, então
professor de literatura francesa, concebeu sua teoria do túnel:
Este assalto à linguagem literária, a destruição das formas tradicionais, tem a característica própria do
túnel: destruir para construir. É sabido que basta deslocar uma atividade de sua ordem habitual para
produzir algum tipo de escândalo e surpresa (Cortázar, 2004:6740).
Escândalo e surpresa são elementos que não faltam à literatura cortazariana, e Rayuela, seu romance
maior, ilustra perfeitamente esse jogo de armar literário (curiosamente, 62: jogo para armar é o título
de outra novela de Cortázar) que, para além das intrigas extraordinárias que contém, mergulha na
descrição de espaços, abertos e fechados, arquiteturais e urbanos, que a leitura vagarosa torna
sensivelmente tridimensionais. Ao modo que monta um trajeto narrativo formado por fragmentos de
texto, o escritor sugere, ao leitor, não outra coisa senão collage.
Mas não apenas as analogias da destruição e da construção interessam à sustentação do meu ponto de
vista. Em um texto repleto de metáforas, Fuão, a certa altura de sua escrita-fluxo, metaforiza a collage
buscando, na imagem da ponte, a figura narrativa essencial para entender a trajetória amorosa.
Uma ponte que tem por finalidade conectar fragmentos de mundos, realidades distintas ou similares e, em
geral, se configura como uma “solução” ao problema do transporte sobre o abismo do recorte. É ela que
permite a comunicação entre os povos, as línguas, e as culturas separadas pelas gargantas dos abismos
geográficos (pp.80-1). A ponte é o lugar decisivo, de arrebato, de ir em frente ou retornar. Ali acontece a
consolidação do presente, do encontro (p. 82). A ideia de quem faz collages é criar pontes invisíveis, pontes
de significados, unir o sonho à realidade (p. 83)
Há, então, um nexo que é preciso evidenciar: essa dimensão onírica que envolve a colagem, ou mais
precisamente, envolve a imagem da colagem associada ao surrealismo e, ao mesmo tempo, situa a
collage no campo da psicanálise (o que abriria outra questão que tenderia a se alongar). Aproveito-me, 17
então, da metáfora da ponte, para estabelecer uma ponte mais, que reconduz ao que disse Cortázar:
A maior parte dos meus contos nasceu de meus sonhos e pesadelos, todos eles foram escritos
imediatamente depois, numa espécie de segundo estado onírico. Sou dominado pelo ambiente geral do
conto, sem saber de fato o que vai se passar. Escrevo para me curar de uma espécie de obsessão (Cortázar,
1986).41
De fato, certos teóricos das artes visuais, ao se referirem à colagem, já não o fazem circunscrevendo a
palavra à técnica dos recortes colados, justa ou sobrepostos, coisa que se associa, amiúde, ao surreal,
posto que, na sua forma usual, naturalmente transgressiva, há algo de transcendência do real na
composição fragmentada (há algo de fantasmagórico e de fantástico no mundo collage – um topos
delirante endereçado ao pensamento). Eles o fazem no sentido de um princípio de composição e de
uma operação interior: um procedimento insurgente de transliteração da imagem.
Neste sentido, como dispositivo, a colagem encontra lugar muito além dos papéis recortados, da
tesoura e da cola e do suporte cuja função é reintegrar o que foi partido, criando outra coisa. A collage-
conceito é matriz, também, para o mosaico, o desenho e para a pintura, por exemplo. Então – por que
não? – também como procedimento de leitura da cidade, também como matriz para o projeto urbano.
Assim, tomando este ponto de vista, Colin Rowe e Fred Koetter (198142) a buscam, como princípio de
composição, por justaposição ou sobreposição ou, mais precisamente, colisão, para o campo da teoria
da arquitetura; teoria embebida na história e na filosofia, quando os autores falam em teatro da
memória e em teatro da profecia, como um passado e um devir que coexistem na cidade collage que é a
cidade do encontro das formas no espaço, justapostas e comprimidas, e no tempo, destruídas e
reconstruídas, como camadas do palimpsesto. Além disso, o livro é belíssimo!
E, uma vez mais, se revela a vigência analógica da figura da ponte, ilustrada, neste caso, pela Ponte
Vecchio, em Florença, construção carregada por mil anos de história de um lugar, como imagem síntese
da colagem orgânica e intemporal43.
Mas, no limite deste princípio metamorfo, a vida pode ser, em si mesma, vivida como collage-fluxo, cuja
voragem é capaz de contaminar o corpo e a consciência, como um vírus, e pode fazer, do sujeito, um
simbionte inscrito em seu próprio projeto de fazer artístico. E eu me refiro, aqui, à obra e certos
pensamentos do genial artista alemão Kurt Schwitters, na primeira metade do século XX, à margem da
efervescência dos movimentos artísticos de vanguarda que tinham Pablo Picasso como centro e no
entorno de quem gravitavam uns tantos outros artistas mais ou menos geniais.
No final de 1918, eu me dei conta de que todos os valores existiam apenas em relação uns com os outros
18
e que a restrição a um só material era parcial e tacanha.
Desta percepção, eu formei Merz. (Schwitters apud Elderfield, 1985)
Não caberia, nos limites deste texto, um exame detalhado que se demorasse em seu multidimensional
trabalho que, penso, nos é pouco conhecido e, talvez, intencionalmente marginalizado. Mas vale situá-
lo, todavia, como potência que é, consciente ou não, para minhas próprias práticas. E impõe-se, em uma
perspectiva futura, como tema de investigação a explorar oportunamente, uma pergunta: O que é, ou
qual é, o espaço descoberto (ou inventado) por Schwitters em sua obra?
6 registro de lugar
Em 2018, em uma experiência na disciplina Percepção Ambiental e Urbanismo, juntamente com Maria
Ivone dos Santos, Fernando Fuão, Daniele Caron e um incrível grupo de estudantes, adotamos como
procedimento condutor para uma série de projetos, a realização de percursos na cidade. A cada projeto,
um itinerário deveria ser objeto de rigoroso mapeamento. Assim, definimos um espécie de conceito-
fluxo – percurso e texto / fotografia / desenho / vídeo / collage / intervenção – articulando cada
percurso urbano realizado a uma distinta forma de interpretação e descrição da experiência vivida50.
Escolhemos seis distintas “linguagens”, ou formas narrativas, para dar corpo aos registros dos percursos:
texto, fotografia, desenho, vídeo, collage e intervenção no espaço público. Cada uma delas devia ser
compreendida no sentido de um “campo ampliado” no qual se admitem diferentes modos de mescla e
hibridação e a exploração criativa de seus limites. Como ponto de partida, a noção de collage:
implicação com a mistura de coisas, produzindo sentidos outros além de coisas soltas no mundo. Sopa
de imagens gerando narrativas. Interface-espelho a observar/re/presentar a realidade.
De outro modo, um texto pode tomar a forma de uma crônica, um conto, um poema, uma cena de
teatro, um roteiro cinematográfico ou tudo isso ao mesmo tempo. Pode incorporar componentes de 20
outras linguagens, tornando-se uma fotonovela, uma história em quadrinhos, ou soar a partir de um
registro de áudio, uma composição musical. A produção textual atravessa todos os percursos, em
associação com outras formas de expressão. Desenhos e fotografias podem se mesclar em colagens,
explorar tecnologias digitais, ganhar movimento, experimentar a tridimensionalidade através de
maquetes. Cada linguagem opera como interface e contribui para a criação de hipertextos, tornando-se
interativa e ganhando as redes. No exercício Cidade Topográfica, por exemplo, utilizei a linguagem de
HQ para realizar o registo.
Na convergência de tudo isso, talvez pudéssemos concentrar a reflexão em torno de um único conceito:
pensamos e projetamos a cidade a partir e através de mapas: pensamos, espacial e temporalmente,
através de cartografias. Um mapa não é, simplesmente, algo bidimensional desenhado sobre uma folha
de papel; um mapa é uma experiência de pensamento, um cronotopo52 . Não sendo o mapa dos “guias
rodoviários”, não nos preocupemos com a precisão da escala das nossas medições psico-lógicas. Assim,
o epistemólogo brasileiro Rubens Alves situa a relação entre as pessoas e seus espaços:
Faz algum tempo comecei a ficar intrigado com um conhecimento que até então me havia passado
desapercebido. Eu tinha consciência dele mas nunca havia parado para pensar. Esse conhecimento é a
construção de mapas dentro da nossa cabeça. Os mapas, antes de existirem no papel, existem como
realidades virtuais, como idéias. (Alves, 2008:9153)
Confesso minha dificuldade em perceber a beleza da cidade. Não me vejo belo refletido nela. Mas sei que o 21
problema não está na cidade. Está nos meus olhos. (…) Para mim São Paulo é o caos. Ou, mais
precisamente, um labirinto. (…) Teseu só conseguiu sair porque levou consigo o fio de Ariadne… Em São
Paulo sinto-me perdido, sem mapas, incapaz de identificar direções, de dizer onde estou.
Mas por outro lado, acho fácil perceber a beleza na cidade: parques, museus, teatros, concertos, livrarias,
mercados, restaurantes, obras arquitetônicas. São oásis no meio de um deserto. Reconheço a beleza
quando chego lá. O meu problema é chegar lá. Desconheço as trilhas. Acho belos os cacos do mosaico.
Mas não consigo ver a beleza do mosaico. (Alves, 2008:114)
Há tantas cidades dentro de uma mesma cidade. Muitas mais do que a quantidade de seus habitantes.
Cada um tem dentro de si, uma cidade que são muitas. Deslocando-me, as reconheço: desde minha
razão de urbanista, de minhas aspirações de cidadão, de minhas emoções e meus desejos. Talvez por
isso, quando Italo Calvino (1991) traz Marco Polo para falar sobre as cidades do reino de Kublai Kahn, ele
conceba categorias bem definidas: as cidades e a memória, as cidades e os desejos, as cidades e os
nomes, as cidades contínuas… entre outras. Ler a cidade não implica apenas numa técnica cartográfica.
Ver a cidade implica, sobretudo na arte política. E a política – arte de viver a polis – implica na
solidariedade.
Interrompo, aqui, o fluxo dos pensamentos, percebendo que me estendo demasiado, ainda que
sentindo que falta alguma coisa a dizer. Estas notas sobre o registro do lugar tem seu objetivo bem
claro: compreender as geografias da percepção e da intuição como um possível ponto de partida para a
projetação.
Como operação voltada ao projeto, os registros podem incluir hipóteses iniciais sobre formas e usos,
programas, esboços de cenários. Podem assinalar visuais a explorar, elementos a conservar, mapas
temáticos esquemáticos, diagramas de fluxos, interfaces positivas ou negativas em relação ao tema
projetual. Não se trata, portanto, apenas de um registro “turístico”, mas orientado, desde a origem,
para fornecer elementos que virão a ser úteis para o desenvolvimento do tema.
7 imitação e jogo
A imitação parece-me ter um grande papel na formação da função semiótica. (…) a imagem mental, no
ponto de partida, nada mais é do que uma imitação interiorizada que engendra representação. (…) Uma
outra forma de função simbólica é o jogo simbólico. (Piaget,1983:214)
Crianças aprendem imitando os adultos e outras crianças (e isso não é uma exclusividade humana). De
fato, muito do que a criança aprende, nos primeiros estágios da infância, ainda começando sua
experiência de estar no mundo, é resultado da imitação do comportamento – gestos, expressões,
movimentos, por exemplo - das pessoas com quem convivem. E aos poucos, as coisas que estão no
mundo começam a fazer sentido e a ter valores próprios: é quando o jogo acontece.
A imitação e o jogo (como processos e modelos que orientam a construção simbólica e o juízo moral54)
são dispositivos que, desde o universo da infância, facilmente se engendram como pensamento
projetual. Um jovem estudante de arquitetura imita repetidamente os modos de fazer dos arquitetos
mais experientes e dos grandes mestres. Gradativamente, começa a compreender seu objeto de
imitação; começa, pois, a entender as regras do jogo dos espaços, das formas, das técnicas, dos
materiais. Desenvolve uma estética e uma ética em torno do projeto. Opera sistemas geradores para
inventar sistemas como um todo55. Comumente, nos referimos a tudo isso como metodologia.
Mas que fique claro para que a confusão não se estabeleça: imitar não é simplesmente copiar, muito
menos roubar uma ideia. A imitação “bem-sucedida” é, sobretudo, aprender e evoluir, transformar, 22
reinventar, redescobrir.
De fato, penso que estes dois dispositivos (que podem operar isolada ou integradamente) fazem parte
de todo processo projetual. Mas podem fazer parte de maneira epistemológica, no sentido da razão
projetual (ou razão compositiva, como denomina Mahfuz56), como elementos de método rigorosamente
pensado, ou de modo inconsciente, quando os precedentes apenas “acontecem e ficam acontecidos”,
parafraseando João Ubaldo, isto é, quando as referências estão embaralhadas de tal forma que, para o
projetista, tudo o que sai de sua prancheta de desenho é da ordem da sua invenção.
Está claro que a roda foi inventada por alguém, nunca saberemos quem, uma vez que as rodas já
existiam quando descobrimos o que é uma roda, assim como a lâmpada, e todos sabem quem foi seu
inventor, mas o inventor, para chegar à lâmpada, se valeu do conhecimento científico precedente,
avançou nesse conhecimento, e encontrou uma solução para um problema que estava bem definido.
Issac Newton não inventou a gravidade, e Albert Einstein não inventou a relatividade e Le Corbusier não
inventou os cinco pontos mágicos da arquitetura moderna. Mas ficamos em dúvida se Pablo Picasso
inventou o cubismo, uma vez que, em princípio, não encontramos o que poderia ser uma arte
precursora à Les demoiselles d’Avignon (1907), por exemplo. Ou não procuramos direito?
Assim, por alguns parágrafos, façamos uso da suspensão da descrença, e tomemos como dado que
indica que, ao projetar, estamos sempre, ou imitando, ou jogando, ou as duas coisas ao mesmo tempo,
e os precedentes fazem parte da nossa história como projetistas (e começamos a colecioná-los muito
cedo no percurso de formação em arquitetura e urbanismo), e as regras do jogo projetual estão
previamente entendidas, mesmo que possamos, a qualquer momento, virar a mesa e mudar as regras.
Pensemos, neste sentido, em imitação e jogo, na perspectiva de método como guia na escolha de
determinados procedimentos compositivos. Emprestando os processos de composição arquitetural
apontados por Mahfuz (199558), pode-se estabelecer, por analogia, uma relação provisória entre os
métodos (em arquitetura e urbanismo) e, trazendo da epistemologia genética, a taxonomia dos
possíveis (Piaget,1985).
i. O método inovativo, aquele que aporta a projetação do objeto inusitado, admitirá talvez possíveis
hipotéticos, que se constroem através do encadeamento de intuições geométricas para chegar a
uma totalidade arquitetônica. Talvez a ideia de inovação seja aquela que mais se aproxima da
invenção. O Objeto “inusitado” é gerado a partir de problemas e programas emergentes das
mudanças – sociais, tecnológicas, políticas e, no momento presente, pandêmicas – implicadas na
contemporaneidade. Ou nas interfaces entre a arquitetura, o urbanismo, e outras disciplinas
(contemporaneamente, com a biologia, a geografia, a computação, em especial).
ii. O método tipológico admitirá infinitos possíveis atualizáveis, referidos a totalidades arquitetônicas
precedentes que se definem, por seleção histórica de distribuições espaciais, por uma amplitude
“corretamente” parametrizada, ou possíveis exigíveis, porque derivados de uma estrutura
generalizável. Ao contrário do inovativo, o método tipológico se fundamenta na descoberta, ao 23
reconhecer categorias estabelecidas e estáveis. As operações do projetista o levam a encontrar as
figuras que melhor se adaptam ao problema e ao programa.
iii. O método normativo encontrará analogia com os possíveis dedutíveis, onde o projeto arquitetônico
ou urbanístico estará submetido a uma estrutura operatória, estando confinado às variações
admissíveis dessa estrutura. Trata-se, pois, do domínio das regras do jogo: no projeto de edificação,
os códigos compositivos e construtivos (larguras e alturas dos cômodos – nas palavras de Lúcio
Costa59); no projeto urbano, as densidades, as regulamentações morfológicas, os padrões de
parcelamento, a distribuição dos usos, por exemplo.
iv. E o método mimético que reunirá possíveis hipotéticos e atualizáveis, no plano de um processo de
seleção eclética: continente contingente da imitação que objetiva a inserção sensível de um artefato
novo em um sistema maior de formas construídas que o precedem. Remete à ideia, ou à figura, da
continuidade, aprendendo do entorno e emulando suas regras.
Tudo isto, é claro, é apenas didático. Nada disso se encontra em gavetas bem arrumadas. Ao contrário,
tudo está misturado, e sugere todas as formas de combinação.
Aprendendo 3D brincando: ( i ) Imitando Mies van der Rohe (2000) ( ii ) Jogando com Christopher Alexander (2000)
8 repetição e diferença
A ideia vem, é claro, da filosofia de Gilles Deleuze60, dos conceitos de cópia e simulacro. Atualizada para
o campo da arquitetura, aponta para a noção de tipo/tipologia. Pensada com vistas à cidade, remete à
morfologia histórica, de matriz italiana, e mais diretamente à Arquitetura da Cidade, de Aldo Rossi
(1966): tecido e estrutura primária. Esta é, pelo menos, a minha opinião.
De forma breve, procuro uma definição para cada um dos termos que formam este par:
Quanto à repetição, há, numa primeira vista, a implicação de um processo mecânico ou industrial de
produção de peças idênticas cuja relação estável – entre cada uma com suas vizinhas, ou de cada uma
com todas as outras – faz emergir uma totalidade homogênea. No entanto, se as peças não são iguais,
mas apresentam mutações sutis, o todo se afasta, em diferentes graus, do rigor mecânico industrial
para incluir variações mais ou menos pronunciadas. Ainda assim, é provável que continuemos a
perceber um padrão topo-tipo-lógico extenso e contínuo. Já, então, na repetição, existe a possibilidade
da diferença entre as partes, sem que isso decomponha a integridade de um padrão ordinário.
Quanto à diferença, de outro modo, a palavra sugere liberdade de operações e diversidade de partes a
combinar. Em certo grau, variações tipológicas significativas, contrastes, mudanças de escala, a inserção 24
do extraordinário. Ao extremo, anarquia e a ausência de regras de composição, Neste vale tudo, as
relações possíveis entre as peças dispares serão, ou da ordem da colisão, ou da dispersão.
Wiesbaden, 1900
Plano de figura-fundo
Entre todos os temas essenciais e arquetípicos do projeto da arquitetura e da cidade, talvez o problema
que é construir uma casa seja o mais importante. Mais do que hospitais e aeroportos, por exemplo.
Porque nenhum outro tema carrega tanta história e tanto significado. Porque todo mundo mora em
algum lugar: numa mansão, numa cabana, mesmo sob o vão de um viaduto, em um mundo tão desigual
e perverso. Mesmo o nômade mora, intermitentemente, em alguma localização geográfica ou
historicamente referenciada. Como os mongóis em suas yurtas, ou gers, belíssimos abrigos de couro e
feltro repletos de maravilhosos tapetes, capazes de resistir até mesmo ao sufocante domínio soviético.
Ou os viajantes, caixeiros ou turistas, em quartos de hotel. Ou os hippies dos 60’, em seus ônibus
coloridos cruzando e desestruturando sua bélica Amérika. Os clochards parisienses! E os andarilhos, os
que andam a zonzo, os caminhadores sonhadores, confundidos com loucos em sua lucidez itinerante:
Tenho passado dias difíceis e outros apenas pouco melhores. Mas vou seguindo o caminho que se alarga
diante dos pés, quando o sol cai ao entardecer. Ou perseguindo minha sombra, se o sol me chega vindo do
Oriente. Mas há também jornadas de chuva. E quando o vento corta a cara feia da noite. Mas se o
caminho se faz sinuoso, há que se buscar ao redor. E fazer, do caminho, paisagem, e do caminhante,
paisano. E voltar a olhar com alegria ao que me serve para seguir os passos da alvorada.
Em novembro de 1972, Lloyd Kahn e seu amigo Jack cruzavam Nevada pela autoestrada 50, quando
toparam com o andarilho Armand Basset e ofereceram carona. Ele, polidamente, recusou. Ele estava na
estrada há cerca de dez anos, e imaginava ter caminhado seis vezes a volta do globo. Não estou bem certo
das razões, mas em novembro de 2013, minhas palavras me lembram Armand. (Quase, 201361)
Apoiado na topoanálise, ferramenta auxiliar à psicanálise ideada por Gaston Bachelard em A poética do
espaço (2000), percebo que a casa seja a mais potente figura analógica para falar em repetição e
diferença. Mas há, no entanto, um obstáculo epistemológico62. Por onde começar? Talvez pelas palavras
do próprio filósofo que, diante do continente infinito que é a casa, seus cômodos e cantos, sótãos e
porões, armários e gavetas, compõe algumas das passagens poéticas mais intensas que conheço:
Aqui, com efeito, abordamos uma recíproca cujas imagens deveremos explorar: todo o espaço realmente
habitado traz a essência da noção de casa. Veremos (…) como a imaginação trabalha nesse sentido
quando o ser encontrou o menor abrigo: veremos a imaginação construir "paredes" com sombras
impalpáveis, reconfortando-se com ilusões de proteção – ou, inversamente, tremer através de grossos
muros, duvidar das mais sólidas muralhas Em suma, na mais interminável das dialéticas, o ser abrigado
sensibiliza os limites do seu abrigo. Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, através dos
pensamentos e dos sonhos.
(…) todos os abrigos, todos os refúgios, todos os aposentos têm valores oníricos consoantes. Já não é em
sua positividade que a casa é verdadeiramente "vivida", não é somente no momento presente que
reconhecemos os seus benefícios. Os verdadeiros bem-estares têm um passado. Todo um passado vem
viver, pelo sonho, numa casa nova. A velha locução: "Levamos para a casa nova nossos deuses
domésticos" tem mil variantes. (Bachelard, 2000:25)
25
Ou com Cortázar, que nos apresenta, em um conto mínimo, o dilema de um pequenino ser imaginário:
Nós também precisamos abrir a porta da casa para sair para a cidade, para conhecer a rua, tornar a rua
um caminho que nos leva à cidade, demorarmo-nos, misturarmo-nos, antes de voltar à casa. A literatura
que trata da casa é vasta, evidentemente, e é preciso enfrentar outro obstáculo que é fazer escolhas.
Detenho-me, de maneira um tanto arbitrária, em dois títulos: Casa collage, de Xavier Monteys e Pere
Fuertes (200163), e La buena vida, de Iñaki Ábalos (200064).
Começando pelo ensaio de Xavier Monteys e Pere Fuertes, cujo título imediatamente evoca Collage city,
de Colin Rowe e Fred Koetter (1981), é importante lembrar, neste sentido, que a ideia de colagem, e o
universo de coisas por trás da palavra, admite diferentes modos de pensar e proceder (como foi
destacado na seção 5). Como se verá, Casa collage nos levará por um diferente caminho de
investigação. Assim, as notas introdutórias de Monteys e Fuertes situam a origem do seu trabalho. Ele é
resultado da demorada reflexão dos autores a partir das lidas em ateliê. O livro, portanto, em sua
semente, trata de processos de projeto. E isso explica precisamente o motivo de trazer Casa collage
para discutirmos o tema da repetição e diferença. Penso que, de fato, há afinidades bastante fortes
entre a abordagem dos arquitetos espanhóis e o ensaio sobre epistemologia que tento rascunhar. E
levo, em relação a eles, uma oportuna vantagem: porque escrevo depois, posso trazê-los criticamente
para o nosso contexto.
O fio condutor da argumentação de Monteys e Fuertes nos permite conhecer diferentes componentes
do seu método de projetação, como uma espécie de hermenêutica da criação arquitetural. De um modo
bastante resumido, procurarei destacar alguns acontecimentos e algumas de suas ideias.
A questão que dá partida às reflexões incluídas em Casa collage diz respeito a uma escolha semântica.
Monteys e Fuertes explicam a razão da preferência pela palavra casa a utilizar o vocábulo vivenda, por
exemplo. Trata-se de uma escolha aparentemente banal que, no entanto, revela uma forma de olhar. E
uma pergunta: como a casa é ocupada? Algo que, possivelmente, muitos já tenham observado em
fotografias de interiores nas revistas de arquitetura, que mostram, quase sempre, espaços sem pessoas
e sem suas coisas, numa ausência de sujeitos e objetos. A imagem abaixo ilustra a questão.
A ocupação da casa (capturada pela fotografia) abre uma janela para que se pense, não apenas esse
contraste entre uma casa vazia (fotografada para destacar certa pureza arquitetônica) e uma casa cheia
(o problema já não é somente de arquitetura, mas, talvez, de sociologia, por exemplo). Os autores
aprofundam o exame da ocupação da casa analisando, em seguida, a intrigante obra do fotógrafo Peter
Menzel, Material World (1994), em que o artista fotografou trinta famílias em trinta diferentes países, à
frente de suas casas e rodeadas de todos os seus pertences domésticos. Em Casa collage, quando
Monteys e Fuertes comentam o interessante trabalho de Menzel, reproduzem as fotografias das 26
famílias da Inglaterra e de Cuba. Prefiro destacar, para ilustrar o tema com um interesse local e talvez
mostrando um contraste mais radical, a família brasileira e a mongol: aparentemente, famílias típicas da
periferia (embora esta palavra possa ter conotações diferentes), habitantes das grandes cidades.
Família De Góes, São Paulo, Brasil. | Família Regzen, Ullaambaatar, Mongólia | Peter Menzel (1994)
Todas estas casas mostradas na série fotográfica de Menzel são diferentes, é claro, e representam algo
de seus respectivos contextos geográficos e culturais. Mas o foco dos autores de Casa collage é outro;
estão mais interessados em observar as coisas que preenchem as casas das famílias em seus contextos,
seus móveis e utensílios diversos. Com isso chamam atenção para as coisas diferentes, representativas
de distintas culturas, e para as coisas que se repetem, como se fossem elementos universais (ou
globalizados), como é o caso de alguns eletrodomésticos (e a presença “abrumadora” da televisão) e
utensílios de cozinha. Assim:
(…) As fotografias convidam a pensar no significado que tem os pertences que acompanham as pessoas e
o sentido que estes guardam com a casa, completando-a, especialmente se os comparamos com a pouca
atenção que recebem no processo de projeto da casa, onde só encontram um reflexo dimensional nas
plantas de distribuição. (Monteys, Fuertes, 2001:20)
Este é o problema essencial que define o tom característico de toda a abordagem desenvolvida pelos
arquitetos espanhóis. Preocupam-se, pois, com a questão da continuidade entre as partes que formam a
casa. De certa maneira, discutem como se ajustam o imóvel e a mobília, o que tende a ser permanente e
o que pode ser, eventualmente, substituído por algo similar. Em toda a narrativa, penso, a tensão
diferença-repetição subjaz às análises de Monteys e Fuertes.
No contexto deste ensaio, um dos temas que os autores abordam e que me parece de particular
interesse é quando procuram definir a casa como um jogo. Neste caso, ilustram a questão a partir de
casas simbólicas: as cabanas e esconderijos da infância, casas em miniatura, ou casas de boneca, por
exemplo, que aparecem ao longo da história e em diferentes culturas. Assim, (…) a casa, algo que para
os arquitetos é parte simplesmente do nosso trabalho, é, para outros, objeto de veneração, de jogo ou,
apenas, a própria vida (2001:28).
O protótipo de casa de
bonecas, desenhado pelo casal
Eames para a Revell, fabricante
de modelos em escala, mas que
não chegou a ser produzido
comercialmente.
A análise revela pistas sobre as filiações filosóficas por trás do texto de Casa collage. Neste ponto, em 27
especial, a presença de Bachelard é evidente, eis que essas casas repletas de simbolismo, associadas a
infância e ao procedimento do jogo, expressam, também, uma poética implicada ao descobrimento do
espaço, da experimentação e aprendizagem do espaço e, finalmente, da conquista do espaço no sentido
de estar no mundo.
Mas esse vínculo com a filosofia Bachelareana não se esgota nas memórias da infância, segue
explorando outros elementos da casa, presentes em A poética do espaço, como alcovas, nichos,
armários, e tratam de refletir sobre os interiores das casas históricas mas, como meta, pensando o
habitar moderno e contemporâneo. Em relação à atualidade do tema (eu diria, a inesgotável atualidade
do pensamento sobre morar), os autores preocupam-se, em pelo menos duas escalas, a dos cômodos e
da casa como um todo, da flexibilidade como capacidade adaptativa dos usos e das formas de fruição
dos espaços domésticos.
Mais adiante, em torno da ideia de bricolagem, Monteys e Fuertes destacam, e defendem, a perspectiva
de uma relação mais ativa do sujeito ocupante da casa. Isto é, pensam torná-lo mais responsável por
fazer coisas: construir seus próprios utensílios, encarregar-se dos pequenos consertos e das reformas
necessárias, enfim. Quase como consequência direta desse postulado, os autores chegam à cozinha que
conquista, na lenta evolução da casa, um lugar central na vida cotidiana.
De fato, ao que parece cada vez mais, os arquitetos têm compreendido e assimilado uma revolucionária
mudança de hábitos domésticos em torno da cozinha. Antes um espaço necessário (um serviço essencial
à manutenção da vida), hoje um lugar simbólico representativo da vida moderna. Mas, penso, a questão
insere-se na compreensão da evolução da casa desde, pelo menos, a idade média e o renascimento
europeu. Sem querer me afastar da Casa collage, preciso fazer referência (presente na abordagem dos
autores espanhóis) ao livro Casa: pequena história de uma ideia, de Witold Rybczynski (1996)65, que se
debruça sobre a história do morar ao longo dos séculos, das origens da casa na antiguidade até a
revolução da engenharia doméstica, associada aos avanços técnicos pós segunda guerra mundial mas,
também e talvez principalmente, às mudanças dos papéis femininos na sociedade contemporânea, com
a inserção naturalizada no mercado de trabalho e os movimentos feministas.
Facilmente eu poderia seguir destacando os muitos temas que formam a collage que é o livro de
Monteys e Fuertes. Entretanto, quero concluir este ponto chamando atenção para uma questão: onde,
em meio a tudo isso, situa-se a cidade? Claro, há uma resposta imediata e satisfatória, ao menos para
uma primeira leitura. Aos autores, interessa, e esta é uma questão de recorte epistêmico, enfocar a casa
a partir do espaço interior e dos hábitos dos sujeitos que ocupam esses espaços. Arrisco-me a dizer que
esta é a resposta errada para a pergunta que faço. Penso que, ao contrário, a cidade está presente em
toda narrativa: a casa contém e é contida. O texto de Xavier Monteys e Pere Fuertes compreende a
noção de colagem “como campo ampliado”, quadrimensional (pois que o tempo é uma dimensão
insinuantemente presente), e convida o leitor a ir muito além das páginas do livro. A obra, como um
todo, é um convite à curiosidade66.
Quanto ao ensaio de Iñaki Ábalos (2000), sua abordagem vai revelar o que ele chama de as casas da
modernidade, através das quais o arquiteto espanhol, elaborando um rico mosaico representativo da
cultura urbana contemporânea, nos leva a uma visita guiada que se compõe de sete crônicas em que se
vislumbram memórias/metáforas dos distintos modos de morar, reflexões construídas em seu vagar
através do estudo da disciplina, e implicadas, em suas expressões mais caras às gerações formadas à
esteira da modernidade, ao que Ábalos denomina técnicas projetuais.
La buena vida estuda a relação que existe entre as formas de viver, os distintos filões do pensamento
contemporâneo, e as formas da casa, de projetá-la e de habitá-la. (Ábalos, 2001: 8)
O/A personagem que habita qualquer uma das casas-pátio de Mies, desenhadas entre 1931 e 1938,
deverá ser um criador de "espírito dionisíaco", que rechaça a moral conservadora do seu tempo. Trata-
se, interpreta Ábalos, de um homem ou uma mulher, ou melhor, um super-homem, solitário, que,
fragmentado em sua identidade, luta pela (re) construção de seu lugar no mundo.
Também por Bachelard, essa casa será construída pela topologia das palavras e das coisas que se
amontoam pelos cômodos da casa. A casa fenomenológica, ao contrário da casa de Zaratustra e de
Mies, é uma casa "cheia": "(…) uma casa desmesurada e anárquica, vivida com a desordem e a
despreocupação próprias de uma criança”.
O quinto modelo descoberto pela investigação de Ábalos aponta a uma forma híbrida de habitar:
apoia-se na dissolução do vínculo tradicional família-morada, ao mesmo tempo em que funda, como
técnica projetual, uma forma, até então inédita, de reciclagem. Neste caso, o autor espanhol troca a 29
companhia dos grandes filósofos, para acercar-se de um ícone pop,
Andy Warhol, e do modo de morar ilustrado pela instituição de
sua Factory, grande e polifônico ateliê das artes dos anos 1960,
situado, mais exatamente, no número 231, Rua 47 Leste, quase
esquina com a Terceira Avenida, em Manhattan.
Ao passo do tempo que impõe uma nova perspectiva a partir das novas tecnologias digitais e das novas
patologias que surgem em sua esteira, como tipo de fantasmagoria emergente das relações,
contemporaneamente tão celebradas, entre arquitetura e filosofia, uma nova técnica projetual tomará
o lugar de vanguarda, realizando um até então improvável estilhaçamento dos limites constitutivos do
edifício.
Penso haver um forte vínculo entre o quinto e o sexto arquétipos destacados por Iñaki Ábalos: indo
além da dissolução da casa como lugar da família, matéria da quinta narrativa, trata-se agora
da desconstrução da casa, que, com sua sexta crônica, toma formas nômades, fugidias, representativas
da imaterialidade do virtual.
A leitura do texto bem urdido de Ábalos leva o leitor a
compreender a tríplice imagem que institui a sexta metáfora −
a cabana, o parasita e o nômade − como componentes em
fuga, definindo a excentricidade do tema. A
condição desconstrutivista que subjaz ao plano espacial, ao
mesmo tempo, sinaliza o caminho para a reflexão filosófica
movida pela filosofia de Derrida, e seduz uma geração de jovens
arquitetos em torno das idéias de Frank Gehry e Peter
Eisenman, principalmente. Casa Gehry.
Completado o longo itinerário proposto por Ábalos, da casa de Zaratustra ao mergulho de Hockney na
piscina da casa do pragmatismo, foi possível conhecer, na paisagem, a cabana de Heidegger, a fábrica
30
de Warhol, o antagonismo das moradas de Monsieur Hulot e da família Arpel, além da fenomenologia
de Merleau-Ponty e de Gaston Bachelard e a dissolução de Derrida (nômades, parasitas), conformando
uma geografia de imaginários (lugares, encontros, diálogos) que se estende em todas as direções e
ocupa todos os confins.
Do texto de Iñaki Ábalos é preciso que se diga que há rigor e curiosidade em fartas doses, e penso que o
objetivo de Ábalos seja justamente este: La buena vida fala de arquitetura através de um
olhar poético que é também político (na construção de uma visão de pólis), cuja justaposição aponta
o conceitual. Em suma, o autor espanhol propõe, se o entendo bem, uma arquitetura e
uma cidade conceituais. Daí sua proximidade com a filosofia e com os filósofos: porque fazer arquitetura
com conceitos exige que o arquiteto seja amigo dos amigos dos conceitos.
A imaginação é a louca da casa – dizem que disse Santa Teresa de Jesus, e não canso de lembrar. É
louca e está solta, e sonha, livre, as casas da imaginação. Por isso o sol aceita o convite das janelas para
pintar as paredes da casa com redes de luz na casa do Humberto. Isso é, também, arquitetura, comento
com ele, ao ver a imagem mágica de sua casa ao amanhecer. Ele, arquiteto habitante de uma casa
sonhada e, de sonhos construída, concorda, e estamos todos bem. Sonhando arquiteturas como a louca
solta na cidade.
Ainda sobre casas, mas casas muito íntimas68: meu pai, que não era arquiteto, gostava de construir
casas. Não creio que alguma vez tenha pensado em construir casas como mercadoria para vender. As
casas que construiu, ele as fez para nós − minha mãe, minha irmã e eu, e minhas avós. Ao longo da sua
vida foram quatro, e haveria uma quinta que ficou inacabada na prancheta do filho já arquiteto, um
projeto suspenso na memória, um fantasma entre um antes e um depois.
A primeira que ele construiu foi uma casa pequena na zona sul de Porto Alegre − a “Casa da Tristeza”
que de triste não tinha nada: era uma casa feliz! − foi onde eu vivi entre os dois e seis anos, mais ou
menos. Não muito longe, estava o lago Guaíba, que então ainda se chamava rio; bem pertinho havia
uma enorme figueira; e um pouquinho além estava o colégio e a praça, com os brinquedos e a pira da
Pátria, que, aos cinco anos, era para mim uma coisa para escalar.
Depois veio o “Sobrado de Higienópolis”, quando mudanças incríveis começaram a acontecer: os novos
amigos, a nova escola, a vida aos poucos ganhando o espaço da rua. Uma casa moderna, quase um cubo 31
corbusiano, que só muito tempo depois, quando já não morávamos lá, eu soube que saíra da prancheta
do arquiteto Cláudio Araújo, um dos maiores mestres aqui do Sul e além.
A terceira das casas que meu pai construiu para a família foi a “Casa da Praia”: pequena, uma planta
irrepreensível, alvenaria de pedra grés, situada a duas quadras do mar, ela representa, de fato, a
experiência do crescimento. Casa de ritos de passagem, de varandas, de cantos e armários, espaços para
descobertas de sentido e de sensualidade.
A quarta casa estava em construção, quando ingressei na Universidade. A “Casa da Boa Vista” não é,
portanto, uma casa que guarde memórias de infância ou da adolescência, mas a casa do tornar-me
adulto. Mas se me refiro a essa última casa de meu pai como a melhor das lembranças, é porque,
muitos anos depois, foi nessa casa que nasceu Gustavo, meu filho com Cristina. E então tudo recomeça:
repetição e diferença.
Quando Gustavo tinha nove anos, o levei para conhecer, de fora, de longe, a casa da Tristeza. E lá estava
ela, muito bem conservada, quase intocada como na imagem da minha memória. Recentemente, soube
que estava à venda. Vi uma fotografia: estava em ruínas. Se pudesse a compraria de volta. Mas pediam
muito mais do que eu poderia pagar: tornara-se mercadoria.
Jogamos fora sapatos quando estão velhos e já não nos servem. Casas não são assim. Somos apegados
as nossas casas, como somos aos amores das nossas vidas. Casas são eternas, enquanto duram como
partes dos nossos projetos de vida. Casas são para sempre, pensamos, sem saber que o sempre também
acaba, como disse o poeta. Ou acabamos antes, como acabam, às vezes, os amores, como às vezes
acaba a vida, e partimos, e as casas seguem sua existência de pedra e cimento e outras pessoas irão
vivê-las, preenchendo-as com seus próprios amores e sonhos. Conheço muitos sonhadores. Alguns
deixaram suas casas algures, e habitam seus sonhos como se casas fossem. Casas tão diferentes e tão
iguais; casas vividas ou imaginadas; memórias e esquecimentos; apenas casas, muito mais do que casas.
Em minha casa, no centro da cidade, eu as junto, todas elas. Uma só casa, afinal. Repetição e diferença!
9 passo do tempo
Até recentemente, o campo do projeto ambiental estava focado em artefatos físicos permanentes: edifícios,
estradas e terrenos. Mas as atividades humanas que ocorrem “entre”, esses artefatos têm igual ou maior
importância para a qualidade de um lugar. Com este princípio em mente, o enfoque do projeto das coisas “físicas”
tem se ampliado para responder a um projeto “espacial”, planejando as formas de relação entre o comportamento
das pessoas e as coisas que estão no espaço. Mas se for para lidar com o comportamento humano, o projeto
deveria considerar, também, os padrões temporais, tanto quanto os espaciais, e se tornar uma arte de gestão da
forma mutável dos objetos e os padrões de permanência dos seres humanos e suas ações, simultaneamente, no
espaço e no tempo. As atividades mudam, cíclica e progressivamente,
no interior de seus continentes espaciais relativamente imutáveis. As
formas desses “recipientes” não podem, portanto, simplesmente
"seguir a função ", a menos que o uso de um espaço seja reduzido a algum
tipo de comportamento único e invariável. Mas destinar espaços
para um único uso (o que parece ser uma tendência crescente hoje) é,
geralmente, ineficiente, e muitas vezes socialmente injusto. O
momento em que alguma coisa acontece num determinado espaço
tem muito a ver com seu bom funcionamento e com o encanto de
um lugar, tanto quanto o lugar em si. Mas, de um modo geral, o tempo
ainda é tratado de maneira secundária. Planos e projetos
raramente se referem ao passo do tempo, seja desejado ou esperado,
exceto no que tange às horas de pico nos sistemas de transportes. (…) As pessoas, embora tenham alguma liberdade
de manobra, ainda estão entrelaçadas em um padrão de sincronismo socialmente aceito: os horários para as
refeições, para o trabalho, para viajar, para brincar, para dormir. Problemas de congestionamento e escassez
surgem não apenas porque muitos desejam as mesmas coisas, mas porque desejam as mesmas coisas ao mesmo
tempo. A gestão do tempo se torna um problema de projeto à medida em que começamos a perceber que podemos
fazer certas escolhas nestas questões.
Kevin Lynch, What time is this place?69
Para falar em passo do tempo, recorro, ao modo de criar um pano de fundo para a questão, a esta longa 32
citação, trazida de What time is this place?, maravilhoso livro em que Kevin Lynch (1972) investiga as
relações temporais com os continentes espaciais da vida humana ↔ urbana, na perspectiva de conceber
o que ele conceituou como uma nova definição de ambiente.
Entre a publicação de A imagem da cidade (1960), obra que projetou internacionalmente o nome de
Lynch como um dos mais importantes teóricos do urbanismo do século XX (tornando-o, também, de
certa forma, um “prisioneiro” daquelas ideias ainda iniciais em relação ao seu projeto intelectual) e a
aparição desse livro, particularmente importante mas relativamente pouco reconhecido em sua
bibliografia, passaram-se doze anos. Um lapso de tempo considerável (e o livro trata, justamente, do
tempo na vida das pessoas). Talvez porque, especulo, sua escrita exigisse a reflexão mais demorada, a
duração mais estendida, para que as questões abordadas alcançassem a densidade desejada.
Anos mais tarde, Lynch revelou que, entre todos os seus livros (e ele foi um autor prolífico), What time is
this place? era o seu preferido, aquele em que ele entendia que avançava por um campo inexplorado,
convencido de que as questões ali reunidas apontavam uma nova direção para o projeto da cidade.
Em uma escrita, ao mesmo tempo, precisa e poética, o livro revela uma agenda ampla e insinuante de
interrogações sobre o tempo na vida das cidades. Para comenta-lo apropriadamente, eu precisaria
ocupar muito mais tempo e espaço do que seria aceitável no escopo deste ensaio. Meu objetivo, aqui,
no entanto, é bastante específico: situar o passo do tempo como dispositivo projetual, incorporando-o a
este esboço para uma epistemologia do desenho.
1. Além de consultar relógios, calendários ou pessoas, como saber as horas no centro da cidade? E as
estações?
2. Em que ocasiões foi difícil saber se algo iria acontecer no centro da cidade?
3. Em que ocasiões você se sentiu frustrado por não conseguir fazer alguma coisa num certo momento?
4. Em que lugar do centro lhe parece que o tempo passa mais rápido? Ou mais devagar?
5. Em alguma ocasião, o centro lhe pareceu diferente do que o habitual? Que momentos do dia, ou das
estações, você gosta mais?
6. Que parte do centro está mudando mais rapidamente? Ou mais lentamente? Qual o objeto mais antigo,
e o mais recente, do centro da cidade?
7. Enumere as mudanças mais importantes que estão acontecendo no centro que você tenha
conhecimento. Qual a mais importante, no seu entendimento? Qual seria a mudança mais fácil e a mais
difícil de se realizar?
8. Que partes do centro se deveria preservar? E que partes deveriam mudar?
9. Que mudanças recentes foram confusas ou frustrantes? Que mudanças foram estimulantes e permitiram
fazer coisas novas? Que mudança foi a mais inesperada? Qual a que causou mudanças mais significativas
para você?
10. Há algo no centro que lhe faça recordar seus pais? Ou que recorde seu passado? Ou que o faça pensar
em seu futuro? Ou o futuro de seus filhos?
11. Que mudanças importantes você acredita que acontecerão nos próximos vinte anos?
12. Se você fosse escrever a “história do centro” e somente pudesse se apoiar no que conhece do espaço
público, que parte da história seria mais precisa? E que parte seria a mais imprecisa?71
33
Em meu modo de ver, parece-me especialmente importante, considerando os objetivos do ateliê, que
as questões formuladas por Lynch estejam dirigidas à compreensão da área central da cidade (de
Boston, no caso, mas adaptável ao nosso contexto). E, penso, o mesmo elenco de perguntas poderia ser
facilmente adaptado para buscar compreender, também, os processos de mudança nas periferias
urbanas. Assim, concluo esta seção buscando, outra vez, no texto original, uma passagem que entendo
como intensamente provocativa.
Nós temos dois tipos de evidências do passo do tempo. Uma é a repetição rítmica – o batimento cardíaco, respirar,
dormir e acordar, sentir fome, os ciclos do sol e da lua, as estações, as ondas e as marés, os relógios. A outra é a
mudança progressiva e irreversível – envolvendo o crescimento e a decadência. Não a recursividade, mas, antes, a
transformação. A humanidade sempre buscou explicações mágicas para tentar compreender este segundo
fenômeno como uma variante cósmica do primeiro, fingindo que a mudança também é cíclica, e imaginando que o
tempo progressivo é uma série de repetições eternas e contrastantes, cada
uma surgindo da anterior. Essa magia aquece o espírito humano para que
sintamos que o declínio e a dissolução são apenas aparências, e que a
ressurreição virá a seguir. Mas as coisas que amamos, de fato, nunca
voltam para nós. Quaisquer que sejam nossas esperanças, sabemos que as
coisas mudam irreversivelmente. Temos consciência de que o tempo “de
dentro” de cada um de nós é diferente do “tempo de fora”. O tempo social, que
coordena as ações de muitas pessoas simultaneamente, não corresponde,
necessariamente, aos ritmos internos dos nossos corpos. O tempo preciso e
abstrato da ciência e da eficiência está certamente muito distante da
experiência cotidiana. Os sujeitos aprisionados, entre o ciclo e o fluxo,
entre o tempo subjetivo e o tempo "objetivo", podem tentar suprimir um ou outro. Eles buscarão programar suas
vidas com maior precisão e com grandes detalhes, ou tentarão se isolar do tempo objetivo, mantendo-se
ostensivamente erráticos por horas, num modo de desorganização intencional, em uma forma de estupor. As
pessoas vão a espetáculos e buscam diversão, por exemplo, para poder esquecer o passo do tempo. Ou, de outro
modo, para tentar “matar o tempo” [enquanto há tempo – nota do tradutor].
Kevin Lynch, What time is this place?
10 espaços fractais
A pergunta pode soar retórica, e eu não saberia, nem de longe, a resposta. Mas não é uma pergunta
tola. A questão foi formulada pelo matemático polonês-franco-americano Benoit Mandelbrot, em um
artigo publicado na revista Science, datado de 1967, justamente intitulado How long is the coast of
Britain? Statistical self-similarity and fractional dimension., em que ele situa a complexidade e a
dificuldade teórica de resolver o problema:
As formas litorâneas são exemplos de curvas altamente complexas com a propriedade de – em termos
estatísticos – cada segmento poder ser considerado uma imagem em escala reduzida da totalidade. Esta
propriedade será denominada “autossimilaridade estatística”. A noção de “comprimento”, de um modo
geral, não faz sentido em relação às curvas geográficas. Estas formas se caracterizam por aspectos
sobrepostos e com medidas amplamente difusas; quando certos atributos mais precisos são considerados,
a medida do comprimento total tende a aumentar e, de uma maneira geral, não existem limites claros
entre o que faz parte do campo da geografia e certos detalhes que não interessam à disciplina geográfica.
(Mandelbrot, 1967:1)72
Na ocasião, ele estava muito próximo de escrever um novo e insinuante capítulo no campo da
geometria, e que viria provocar, desde então, importantes repercussões em variadas áreas do
conhecimento, da cosmologia às ciências sociais, por exemplo. Em 1975, utilizando programas
“primitivos” de computação gráfica, ele foi capaz de visualizar, com maior precisão, essa geometria
escondida nas formas da natureza. Ao que descobriu, deu o nome de fractais.
34
As curvas geográficas envolvem tal complexidade de detalhes que a medida de seus comprimentos é,
frequentemente, infinita, ou, mais precisamente, imensurável. No entanto, muitas destas curvas são
estatisticamente "autossimilares", o que significa que cada parte ou segmento pode ser compreendido
como uma imagem em escala reduzida da totalidade. Nesse caso, o grau de dificuldade do problema pode
ser descrito em termos de uma quantidade D que apresenta muitas propriedades de uma ‘‘dimensão”,
muito embora esta seja fracionária. (Mandelbrot, 1967:1)
Esta regra recursiva de divisão e subtração dos quadrados gerados é denominada iteração. E você pode
repeti-la quantas vezes desejar, até o infinito. O número de iterações realizadas define, por sua vez, a
dimensão fractal da figura. Matematicamente, constrói-se, inicialmente no plano e através das
sucessivas iterações, uma figura cuja área tende a zero, enquanto seu comprimento, resultante do
somatório dos lados externos e internos da figura, tende ao infinito. Esta intrigante forma geométrica
foi criada (inventada? descoberta?) pelo matemático polonês Wacław Sierpinski.
Quando o tapete imaginado por Sierpinski, com a contribuição de Karl Menger, matemático austro-
americano, evolui para um objeto tridimensional conhecido como Esponja de Menger, o volume de
espaço contido nesse cubo dissipativo tende a zero, enquanto a soma das áreas das faces geradas pelas
sucessivas iterações tende ao infinito (Gleick, 1990:96)73. O conceito emergente da recorrência da
operação é chamado de autossimilaridade entre partes e todo (define, assim, a qualidade sistêmica
autopoiética do fractal), e sugere um insinuante problema que envolve percepção do espaço e
topologia.
Esponja de Menger | i1, i2 e i3
Deixemos, então, vagar a imaginação. Assim, pois, esse objeto, que James Gleick adjetivou como
"monstruoso" (1990:96), sugere a potência da construtura arquitetural: não simplesmente um objeto,
mas um sistema de relações que se gera a partir de uma regra espacial, estabelecendo uma taxe (no
caos, como disse Mandelbrot) evolutiva, recursiva e de crescente complexidade. Uma arquitetura da
leveza, evanescente e de ordem implicada75 que, por volta de 2001, juntamente com Raquel Azevedo e
Felipe Drago, levou-nos em direção à metáfora do Hiperedifício76.
Desde então, motivado pelas minhas próprias “descobertas”, e incentivado pelo rápido
desenvolvimento da computação gráfica e de algoritmos de geração de conjuntos de fractais, passei a
estudá-los de forma sistemática, reunindo os resultados no projeto de pesquisa que chamei de
Pensando fractais como possibilidades projetuais, que se tornou uma investigação “contínua” (mas,
“fractalmente” composta de atividades eventuais).77
Gramática de Menger, 2020
As cidades apresentam uma estrutura fractal bastante distinta, no sentido de que suas funções são
semelhantes em muitas ordens e escalas. A ideia de bairros, distritos e setores dentro da cidade, o conceito
de diferentes ordens nas redes de transporte e o ordenamento das cidades com base na hierarquia de
lugares centrais, que espelha a dependência econômica do local em relação ao global e vice-versa, tudo
isso fornece exemplos de estruturas fractais que constituem as pedras angulares da geografia urbana e da
economia espacial. (Batty, Longley, 1994:5)
De outro modo, e para encaminhar o final do comentário desta seção, quero insistir na questão
possibilidades projetuais como motivação para a exploração fractal das formas arquiteturais e urbanas.
Assim, trata-se de desenvolver uma forma de olhar em relação aos temas e programas que se
apresentam, tipicamente, como projetos urbanos – o desenho de um segmento de orla; a evolução
gradativa do tecido urbano em áreas de periferia, redes de espaços públicos, como exemplos que fazem
parte de nosso objeto de estudo – e compreender e aplicar o princípio da autossimilaridade e da
interconexão das escalas, entre outras possibilidades, como procedimento de projeto.
Mas é preciso começar por algum lugar, e eu sugiro que se inicie buscando se familiarizar com os
fractais mais simples e intuitivos, baseados em fracionamentos geométricos elementares, como uma
curva de Koch (que resolve, visualmente, o problema do litoral da Inglaterra) ou a poeira de Cantor, que
são gerados a partir da divisão de uma linha reta, simplesmente. Ou, mesmo, brincando com a lógica da
subdivisão dos quadrados em quadradinhos, para criar o seu tapetinho de Sierpinski. Por mais primárias
que estas “montagens” possam parecer, os princípios fractais estão todos aí, e compreendê-los
empiricamente permitirá que o olhar encontre a fractalidade em sistemas mais complexos.
37
Princípios fractais na folha de uma árvore | Árvore de Koch gerada com Brazil Design | “Edificío” criado com a poeira de Cantor
Procure exemplos na natureza ao seu redor: examine detalhadamente as folhas de uma árvore, por
exemplo, e tire um tempo razoavelmente longo para ficar observando as formas das nuvens em uma
manhã de primavera (talvez o mais “clássico” exercício para entender a teoria do caos). Em seguida,
uma vez que esteja empolgado com a “fractalidade” do mundo ao nosso redor, comece a experimentar,
de maneira mais ou menos rápida, alguns aplicativos de geração de fractais (como o Incendia, por
exemplo, um dos meus favoritos79). Faça analogias, e isso pode ser um exercício muito divertido e
criativo.
A partir de então, “evolua”: exercíte o olhar, demorando-se no exame de imagens de satélite,
examinando diferentes tipos de cidades. Comece com a cidade em que você mora, tendo como ponto
incial a localização da sua casa; observe o entorno mais imediato, o quarteirão e seus arredores; busque
identificar os padrões do tecido do bairro, e prossiga ampliando o campo de visão, até incluir a cidade
como um todo. Ou vice-versa. Apenas esse “passeio” entre escalas já é suficiente para compreender o
que dizem Batty e Longlay sobre funções semelhantes em muitas ordens e escalas.
Em seguida, faça alguns exercícios comparativos: explore cuidadosamente uma pequena cidade (quanto
menor, melhor) comparando com a sua cidade: o importante é percorrer cada rua e buscar entender
como a cidade se formou; analise cidades de configurações regulares e irregulares, por exemplo.
“Visite” lugares emblemáticos dos estudos urbanísticos: para mim, Veneza e Brasília são paradigmáticas;
Barcelona, Manhattan, La Plata, são perfeitas para estudar a morfologia da quadrícula; Arrisque-se na
escala metro e megalopolitana e visite Tóquio, Cidade do México e São Paulo, etecetera.
38
Pensando fractais como possibilidades projetuais: estudos para padrões de tecido urbano (2012)
11 conceitos nômades
(…) os conceitos viajam e vale mais que viajem, sabendo que viajam. Vale mais que viajem
clandestinamente. (…) Com efeito, a circulação clandestina dos conceitos tem, apesar de tudo, permitido
às disciplinas evitarem a asfixia e o engarrafamento. (Edgar Morin, 1991:141)80
Atrevo-me a dizer que quase tudo nas teorias da arquitetura e do urbanismo são conceitos nômades,
viajantes que chegam de muitas origens. Muito bem-vindos, diga-se de passagem. Porque tanto a
arquitetura quanto o urbanismo não são, exatamente, arte ou ciência, ou são as duas coisas mais um
pouco de filosofia. São hibridações do conhecimento. A morfologia urbana clássica, por exemplo, é
puramente geográfica. Suas variantes contemporâneas se alimentam principalmente da matemática, da
física e da cibernética, entre outras “clandestinidades”. Mesmo toda a teoria alexanderiana,
originalmente fundada na matemática dos conjuntos, incorporou sensivelmente analogias biológicas e,
com destaque, a teoria da forma de D’Arcy Thompson (1917, 1942)81.
Exemplos não faltam, mas tenho minha definição própria para o que penso ser arquitetura. 39
Arte constrangida pela ciência, a arquitetura é física aplicada: "a forma vem, a gravidade empilha" –
memorável frase de Helena Xavier82 É, também, biologia aplicada: forma de pele necessária para a
adaptação vital do homem ao ambiente. É geologia: o exoesqueleto humano na proposição de Manuel de
Landa83. Na prancheta, seja analógica ou digital, ela é geometria e cálculo, matemática aplicada. No
canteiro, no agenciamento do trabalho dos operários da construção, a arquitetura é antropologia; nos
canteiros das pobres metrópoles, ela é a arqueologia das mãos mais ásperas e dos rostos mais sofridos. Na
extensão das cidades, a arquitetura se faz geografia e traz materialidade à história. Rechaço absoluto ao
ponto de vista que deseja à arquitetura o status de ciência do artificial84, justamente em oposição as ditas
ciências naturais. Nada mais natural que a arquitetura, e nada mais natural, à humanidade, que a
projetação85.
Interessa-nos, no entanto, esta migração conceitual, não apenas no plano teórico, mas, especialmente,
como ferramenta projetual. O belo livro de Julia Schulz-Dornburg (200286) abordando o que a autora
chama de novas afinidades entre artes e arquitetura ajuda a compreender este enfoque: a série de
categorias metafóricas/conceituais que utiliza – barômetro, passagem, reflexão, som, luz, observação,
escavação, memória – trazem ilustrações detalhadas do processo de incorporação de ideias “do lado de
fora” da disciplina. Neste sentido, concordando com Morin, a posição assumida pelo arquiteto francês
Colin Fournier (2004), responsável juntamente com Peter Cook, pelo projeto da Kunsthaus Graz – Casa
das Artes – em Graz, na Áustria, conhecido como alienígena amistoso, é divertidamente esclarecedora:
40
Essa figura do alienígena, obviamente, não é coisa nova e, na história humana, sempre esteve presente.
Pensemos na rota da seda, no domínio mouro da península ibérica, no império de Gengis Kahn, na
chamada era dos grandes descobrimentos, nos processos coloniais de todos os tipos ao longo de todos
os tempos, culminando no que hoje chamamos, seja para o bem ou para o mal, de globalização. Tudo
isso faz parte da história contingente das cidades: das línguas, das culturas e de suas arquiteturas.
Para concluir este tópico, um último comentário: o Diccionário Metápolis de Arquitetura Avanzada
(2001), ao qual me referi ao comentar o uso das analogias e metáforas, é uma extraordinária coleção de
exemplos de conceitos científicos ou filosóficos, e de alienígenas, que encontram lugar na concepção e
na composição arquitetônica e urbana (além da prolífica criatividade para neologismos, como cybrido,
deleuzável, digitonatura por exemplo87). Embora a transliteração nem sempre esteja tão evidente.
Por isso, não tenha medo da contaminação, nem hesite em trazer para dentro do seu projeto as ideias
que estão lá fora. Aventure-se em seu próprio arquivo X. Saia do centro e, como disse Bruce Mau: ande
por aí e explore as adjacências, crie novas palavras, cruze campos, pule cercas, colha ideias, etecetera!88
12 acaso e intenção
A uma ponte é possível construir de incontáveis maneiras, utilizando diferentes técnicas e materiais 41
diversos, conforme se revela o problema da travessia, que se apresenta distinto em certo contexto que
se define em cada caso. Uma ponte é sempre, ao mesmo tempo, aquela única ponte e todas as pontes
do mundo. Ao fazer uma ponte, é preciso compreender, portanto, a natureza do problema. É o que
permitirá a construção do desenhador vencer vãos pequenos e grandes, conquistar riachos ou rios
caudalosos, na medida do possível e conforme seja necessário. Já sobre o problema da ponte, é possível
projetar todo um quadro sobre o conhecimento que é necessário gradativamente precisar.
Estas três personagens que atravessam a ponte que ilustra a breve fábula que escrevi há, talvez, vinte
anos, definem, como metáforas para compreender uma epistemologia da projetação, posições distintas
neste quadro do conhecimento. Enquanto ao percorredor cabe o papel do sujeito em movimento, que
frui e se apropria do espaço em sua dimensão imediata, o desenhador é capaz de compreender as
potências e os desajustes do contexto, organizando-os numa forma para responder à construção do
artefato. Pensa forma e contexto, buscando um bom ajuste. A terceira personagem, alternando seu
papel entre o filósofo e o cientista, é capaz de abstrair a materialidade da ponte, debruçar-se sobre o
intangível, olhar para além das aparências.
Quanto aos acasos e as intenções que fazem parte da paisagem onde se construiu uma ponte (e a ponte
é a metáfora que reúne as três personagens em um mesmo sujeito epistêmico), situo a questão da
indeterminação que acompanha a complexidade dos processos cognitivos, chamando ao debate, outra
vez, o sociólogo e filósofo francês Edgar Morin. Dedicado a compreender o que chamou de pensamento
complexo, Morin pôs em evidência a incerteza que reside em sistemas ricamente organizados, como é o
caso, por exemplo, de edifícios (por mais simples que pareça sua construção), cidades (por mais bem
planejadas que possam ser), e a inteligência humana (e suas tecnologias, artefatos, casas, cidades)90.
Todavia, perseguimos, de modo inquebrantável, a intencionalidade, numa espécie de tarefa de Sisifo.
Persistimos, resistimos, planejamos e nos comprometemos: diante da incerteza, às vezes absurda
(quando, como escreveu Albert Camus, exige revolta91), é preciso projetar através e além do caos.
13 estratégico x tático
Eis uma questão delicada, da qual nos ocupamos, de longa data, nas conversas mais epistemológicas
que temos, os professores, quando estamos avaliando o que andamos fazendo, e isso acontece, amiúde,
não sem tensões e conflitos e saudáveis desentendimentos. Temos, no entanto, alguma sabedoria
acumulada pela experiência, e porque nos queremos bem, sabemos que juntos será mais fácil decidir
por qual caminho iremos seguir quando nos encontramos em alguma encruzilhada conceitual.
O que não nos impede de errar, e erramos muito. Bruce Mau sugere que cometamos erros mais
depressa que os outros. Particularmente, eu acredito em “dançar mais devagar”, o que me coloca,
quase sempre, em certa desvantagem, pois o tempo passa cada vez mais depressa ao passo em que
ficamos mais velhos e a verdade é que quase sempre os mais jovens não tem muita paciência com a
longa duração que pode ter um pensamento (nota para pensar em outra ocasião: isso parece muito
mais agudo na era da bomba informática92).
Quanto à oposição E x T que destaquei neste ponto do ensaio, há, de imediato, a definição de dois
campos que, em um certo sentido, ocupam o mesmo lugar no espaço. Tentarei, com poucas palavras,
definir um e outro termo. As estratégias são da ordem das grandes operações. Stratègós é a palavra
grega cuja tradução é general. Assim, estratégia é a arte do comando – comando firmemente exercido,
posto que o termo não esconde sua origem militar. De outro modo, as táticas são da ordem dos 42
pequenos movimentos. A palavra também tem origem no grego – taktiké – o que nos leva à taxe e é
aparentada com técnica – tekhné – e guarda o sentido originário de resolver ou arrumar as coisas,
colocar as coisas em ordem.
Não são palavras, pois, originariamente contrárias: táticas podem estar a serviço das estratégias. Mas
algo pode passar: as táticas, a certa altura, podem se tornar insurgentes ao comando. É neste sentido
que os termos estão colocados (ainda que de modo esquemático): associamos as estratégias ao que
vem de cima para baixo, enquanto as táticas emergem de baixo para cima. Algo como Golias e Davi,
mas a questão não se resolve com uma estilingada. Mas se esta definição reduzida não resolve os
impasses, ajuda a nos localizarmos diante das tensões a que me referi no primeiro parágrafo.
O físico inglês Freeman Dyson, em Mundos imaginados (199893), refletindo sobre as forças motrizes por
trás dos avanços da ciência, elaborou uma sofisticada analogia: ele associou estratégia à figura de
Napoleão enquanto definiu o sentido de tática através da personalidade de Tolstói. O que, ao menos
para mim, faz bastante sentido.
(…) Gosto de usar os nomes de Napoleão e Tolstoi para simbolizar dois estilos contrastantes: a
organização e a disciplina rígida representadas por Napoleão, o caos e a liberdade criativa representados
por Tolstói. No mundo dos computadores, Napoleão é o pesado mainframe da IBM; Tolstói é o humilde
Macintosh. A revolução da informática representou uma saída das ambições napoleônicas de Von
Neumann em direção à anarquia tolstoiana da Internet. Revoluções futuras trarão outras saídas deste tipo
(1998:45).
E não é difícil trazer esta ideia de Dyson para o debate sobre o projeto urbano, em especial. Ora, ao
nome de Napoleão não escapamos da figura do general. Ao final da campanha da Rússia, derrotado,
mas ainda assim, na soma de seus feitos, um brilhante estrategista. Quanto a Tolstói, é claro,
associamos aos meandros cuidadosos do romance, Se o primeiro remete ao assalto da cavalaria e da
infantaria, o segundo nos faz pensar numa tapeçaria feita com palavras. Ao colocar em destaque esta
questão, era exatamente esta a imagem que tinha em mente:
Gosto de ilustrar a ação tática com a sequência de fotografias das crianças empenhadas na construção
de uma casa na árvore94. Claro que contaram com algum apoio “estratégico” das mães e dos pais, mas o
que de fato importa é que criaram uma iniciativa coletiva (arriscaria dizer horizontal) porque, em um
terreno baldio, havia uma árvore e, entre as crianças, surgiu o desejo de fazer uma casa na árvore.
Como contraponto, vejamos como Christopher Alexander (1975)95 ilustra o que acontece quando o
projeto muito simples de instalar um balanço em uma árvore é pensado através de uma visão
napoleônica:
43
A anedota fala por si mesmo: entre o que pensava o patrocinador do projeto (certamente, um adulto) e
o que as crianças queriam, passando pelas várias instâncias de um “exército” de projetistas, uma
máquina hierárquica (na forma de árvore, como Alexander definiu, em outro momento e contexto96) se
põe a produzir desajustes em série.
O leitor já terá percebido minha simpatia irrevogável pelas ações táticas e minhas reservas
epistemológicas quanto às estratégias. Mas não guardo, em relação à projetação, a ilusão ingênua de
que tudo sempre funciona melhor de baixo para cima: não acho que Tolstói seria bem-sucedido se
estivesse empenhado em construir um aeroporto, por exemplo. Ao final, quem sabe, se teria, não um
aeroporto, mas uma outra coisa. Talvez, mesmo, uma coisa muito mais interessante para a cidade. Mas
este é o tema do tópico que fala em acasos e intenções.
Já participei de projetos em um e outro canto oposto. Quando, em 2012, integrava uma numerosa
equipe encarregada de desenvolver um grande projeto urbano na cidade de Canoas, RS97, ainda que, em
nosso modo de trabalhar encontrássemos considerável liberdade tolstoiana, a encomenda fora
formulada de cima para baixo, com objetivos claros, de natureza técnica e, sobretudo, política. Em outra
ocasião, na coordenação de uma equipe de urbanistas que elaborou o Plano Diretor para a cidade de
Carlos Barbosa, RS98, a encomenda de cima para baixo, como havia sido formulada pela administração
pública, nos exigiu certo grau de subversão que foi construir, no plano tático, o maior espaço possível à
participação cidadã. Nas lidas do ateliê, sempre repetimos nosso “mantra” sobre as qualidades
necessárias ao ofício do urbanista: a paciência, conquanto o projeto urbano, quase sempre, acontece
em tempos lentos e largos e a cidade preexiste e ultrapassa o tempo do urbanista; a capacidade de lidar
com as frustrações, eis que o planejamento e o projeto urbano são, no campo decisório, quase sempre
reféns dos objetivos e interesses políticos imediatos; e o gostar de gente – porque sem pessoas o
projeto não faz sentido, sequer existe, e porque o urbanista se torna urbanista, tomando emprestada
uma expressão de Le Goff, por amor à cidade99. E talvez esta seja a única lição que me atreva sustentar.
14 misturas e costuras
– O conhecimento do método projectual, do como se faz para construir ou conhecer as coisas, é um valor
liberatório: é um “faz” por ti mesmo. (Bruno Munari, Das coisas nascem coisas. 1998:14100)
Os artistas visuais, especialmente aqueles que se dedicam ao desenho e à pintura, costumam empregar
uma analogia que é insinuantemente visual: eles falam, amiúde, na cozinha, ou na culinária, do ateliê,
para explicar o conjunto heterogêneo de todas as coisas que vão juntando em seus espaços de trabalho,
e a partir das quais concebem e fabricam suas respectivas artes. Dessa multidão de coisas muito
diversas, eles as misturam segundo suas próprias maneiras de “cozinhar”. Todos têm, de modo mais ou
menos consciente, suas receitas de fazer.
E porque falamos em cozinha, se observamos as lidas na cozinha, enquanto alguém se dedica a preparar
um suculento risoto, por exemplo (aqui você pode substituir risoto pelo seu prato favorito), percebemos 44
as destrezas do cozinheiro ou cozinheira, enquanto certa panela é a escolhida, os ingredientes são
selecionados, lavados, cortados, amassados, triturados, quando o sal e os temperos são acrescentados,
a adição do óleo ou da água ou do vinho, a precisão na intensidade da chama, o tempo da cocção, o
momento de levar uma pequeníssima porção à boca como prova para se certificar de que tudo está
perfeito. Eu mesmo me arrisquei, certa vez, a uma modesta experiência culinária, e foi algo assim:
Bruno Munari, artista, designer e teórico italiano, autor do extraordinário livro Das coisas nascem coisas
(1998, leitura altamente recomendada!), em outra obra exemplar, O ofício da Arte (1987), ensinou que
(…) o belo é a consequência do justo101.
Quando falamos, no ateliê de urbanismo, em misturas e costuras, estamos buscando exatamente isso.
Juntar, sem moderação, estética e ética, como, recordando, escreveu Paulo Freire em seus
ensinamentos necessários às práticas educativas quase com as mesmas palavras, refletindo sobre a
autonomia essencial à condição humana, sem a qual não somos sujeitos em nossas vidas, mas objetos
da vida de outros.
Munari dedicou uma significativa parte do seu tempo para pensar sobre projetar. Também escreveu
livros que são uma alegria especial quando os temos em nossa biblioteca, como Supplemento al
dizionario Italiano102, onde ele brinca com os gestos manuais tão característicos daquela língua e seus
significados “indescoláveis” do seu modo de falar. Mas, sobre projeto, ele diz coisas importantes como:
Projectar é fácil quando se sabe como fazer. Tudo se torna fácil quando se conhece o modo de proceder
para alcançar a solução de algum problema, e os problemas que se nos deparam na vida são infinitos:
problemas simples que parecem difíceis porque não se conhecem os problemas que se mostram
impossíveis de resolver. Se se apresentar a enfrentar pequenos problemas pode-se pensar também em
resolver problemas maiores. O método projetual não muda muito: apenas mudam as áreas: em vez de se
resolver o problema sozinho, é necessário no caso de um grande projecto aumentar o número de
especialistas e dos colaboradores; e adaptar o método à nova situação. (Munari, 1998:12)
45
A afirmação do célebre projetista italiano pode soar ou ingênua ou “simplificadora” do problema que
busca resolver. Afinal, sabemos muito bem o quão complexo pode ser o projeto de uma simples casa. O
que se dirá da cidade? Christopher Alexander – o jovem Alexander de Notes on synthesis of form (1964)
– faz notar que um problema simples de projeto pode facilmente se tornar um grande problema, se não
se tem clara sua delimitação. O exemplo do qual se vale é uma simples chaleira usada para ferver a água
do chá. Se desejamos desenhar uma chaleira e o problema da chaleira não está bem definido, é possível
que nos encontremos redesenhando a cozinha e, logo, a casa inteira. Ou tentando descobrir modos
mais eficazes de ferver a água (Alexander, 1997:17).
O modo que o jovem Alexander encontrou para resolver problemas de projeto foi trazer, para o centro
do método, a matemática e a lógica. Assim, usando o raciocínio lógico e, principalmente, a teoria dos
conjuntos e a análise combinatória, ele se dedicou a desenvolver algoritmos para entender a geração da
forma. Afinal, ele explica que (…) o objetivo final do projeto é a forma (p.15). O interessante é que,
algum tempo depois, Alexander deixou de lado sua matemática objetiva e passou a pensar a projetação
como uma forma de linguagem: mais exatamente, uma linguagem de padrões (1977).
Alexander, com a concepção das linguagens de padrões (no plural, porque a cada contexto corresponde
a sua linguagem), deseja que esteja ao alcance de cada pessoa, individualmente, ou de uma comunidade
– um grupo de vizinhos, um coletivo de artistas, uma turma de crianças que deseja construir uma casa
na árvore – a possibilidade de mudar para melhor o seu mundo. Por isso, voltando ao que pensa Bruno
Munari sobre método, projetar é fácil, quando se pensa sobre o pensamento: a curiosidade
epistemológica, como diz Paulo Freire. E acho que é o mais importante que ele ensina sobre isso tudo.
15 plano de montagem
Curioso. Para escrever sobre estas casas foi preciso esquecer a arquitetura. Foi preciso, sobretudo
inicialmente (e não sem culpas e vergonhas), desqualificar a arquitetura como ofício e seus procedimentos
mais usuais, teóricos e práticos. (Lúcia Brandão, A casa subjetiva. 2002:3)103
Curioso, sim, porque penso que é quase exatamente isso que deveríamos fazer quando estamos imersos
no processo projetual, em especial no ateliê de urbanismo, quando estamos rodeados das peças desse
complexo jogo de armar que é a cidade. E desqualificar, neste sentido, não é negar ou descartar, mas
sim ressignificar, transgredir e rejeitar qualquer modo de acomodação às fórmulas vigentes e ir de
encontro a toda forma de discriminação.
O exercício narrativo proposto por Lúcia Brandão – cartografar a subjetividade dos atos de morar –
compreendo-o, portanto, apesar das aparências, como semelhante aos processos engendrados pelo
projeto urbano. Assim, assumir uma condição insurgente é o que faz do jogo um desafio irresistível.
Porque, em relação à cidade e seu planejamento, nunca é possível ter certeza objetiva, em uma ecologia
onde tudo é movimento, e a cidade está continuamente em projeto e, a qualquer momento, em
qualquer movimento, em qualquer lugar, um acaso qualquer pode anular uma vigorosa intenção.
Como regra operatória que estabelece o plano de montagem, Brandão define três conjuntos de peças
para compor o jogo (e que são bem conhecidos, penso, pelos arquitetos e urbanistas, ainda que possam
ganhar outros nomes e feitios): as imagens, os conceitos e os conectores (p. 145). 46
Quanto às imagens, de todos os tipos e formas (imagens visíveis, mas, também, sons, cheiros,
sensações, tudo o que é próprio ao domínio da percepção), elas são as peças imprecisas, impuras e
contamináveis, e geralmente híbridas e múltiplas, imagens que carregam, associadas, outras imagens,
ou conceitos, ou conectores (pp. 145-6). Imagens podem carregar qualquer significado.
Quanto aos conceitos, são o contrário e o complemento das imagens, pois deles se exige pureza, clareza
e nitidez, mas (…) só realizam sua natureza na conexão com as imagens, quando as operam (p. 146). É,
pois, papel do projetista encontrar os sentidos e os nexos.
Quanto aos conectores, como já se pode adivinhar, eles juntam imagens e imagens, ou imagens e
conceitos, ou conceitos e conceitos, formando blocos de diferentes naturezas e escalas, e podem ser
rígidos ou permitir angulações variáveis, conforme o caso. Sua função é dar passagem de um bloco a
outro e, com isso, garantir alguma estabilidade ao conjunto (pp. 147-8).
E com estes muitos elementos (pois que cada conjunto tende ao infinito), joga-se o jogo, e o jogo é
movimento, sua liberdade ou restrição. Sendo um sistema aberto ricamente organizado, a cidade (e o
projeto urbano nas múltiplas escalas que se intersectam) move-se em meio à indeterminação.
– Extrema ordem traz extrema desordem. A razão entre ordem e desordem é contingente – escreveu
Robert Smithson, em 1966, para apresentar a arte de Sol Levitt. O que parece fazer sentido, quando se
pensa no trabalho de Levitt como uma reflexão em que se destacam as instruções de como montar
(contemporaneamente, dir-se-ia algoritmos) uma obra de arte. No seio da arte conceitual das décadas
de 1960 e 1970, Smithson, como Levitt, interessava-se pela incerteza porque desejava, penso, dar forma
ao acaso. Ao se dar conta que o sentido de ordem pertence ao campo da relatividade, ele haveria de
buscar geometrias e materiais que fossem resistentes (contemporaneamente, dir-se-ia resilientes) aos
ventos desorganizadores do pensamento. O rigor matemático de Spiral Jetty (1970), assim como os
materiais empregados, parece ser um claro exemplo de seus procedimentos projetuais.
Untitled (Three Spiral Jetty Drawings). Robert Smithson, 1970 | Constructing the Spiral Jetty, 1970. Fotografias: Gianfranco Gorgoni
Uma cidade porosa (…) pode ser atravessada em qualquer direção. Em uma cidade porosa, vários
movimentos são possíveis, como por meio de corpos filtrantes. Como uma esponja, uma cidade porosa é
permeável, conectada e isotrópica: as mesmas condições são encontradas em todas as direções. Mais do
que uma cidade polarizada, a cidade porosa é uma cidade de lugares significativos distribuídos. É uma
cidade que dá espaço para a água e para as relações bióticas; uma cidade de biodiversidade filtrada e
onde os parques não estão isolados. É uma cidade em camadas, onde, por várias vezes, a cidade foi
construída sobreposta à cidade anterior; onde a acessibilidade aos transportes públicos é generalizada.
(…) Construir a cidade porosa é a única chance que temos para dar [aos problemas reconhecidos] uma
resposta e soluções adequadas. (Secchi, Viganò, 2010:5105)
Cidade porosa | diagramas
Secchi, em Primeira lição de Urbanismo (2006106) já havia tratado das figuras semânticas que compõem
o projeto urbano, destacando a ideia de jardim como metáfora expansível para a cidade como um todo,
e a própria figura do urbanista como operador privilegiado no centro da gestão do território.
Depois, em A cidade dos ricos e a cidade dos pobres (2019107), que viria ser seu último livro publicado
antes do seu falecimento, o urbanista italiano esboçou o que chamou de nova questão urbana, e que diz
respeito à tendência recente de, em um mundo já mergulhado em grandes desigualdades mas que 48
lentamente caminhava para uma diminuição da pobreza extrema e para a inclusão de cada vez mais
pessoas em uma condição de dignidade vital, o espectro do incremento da desigualdade entre os mais
ricos e os mais pobres volte a aumentar.
Enfim, uma questão nova mas muito velha. Mas, de fato, em sua análise lúcida dessa realidade incerta,
Secchi reconhece que a diminuição da pobreza no passado recente não aconteceu de modo igualmente
distribuído em todo o planeta, mas localizado em certos territórios emergentes de desenvolvimento,
situados, sobretudo, na Ásia e na América do Sul. Talvez o mais importante, no entanto, deste seu
testamento intelectual, seja a afirmação no sentido de que:
(…) a urbanística tem responsabilidades fortes e precisas em relação ao agravamento das desigualdades
sociais e (…) o projeto da cidade deve ser um dos pontos de partida de toda e qualquer política que vise à
eliminação ou o combate dessas desigualdades (2019:13).
E é no ofício do urbanismo, em suas práticas de ateliê, que o respeitado urbanista italiano buscou
concretizar este postulado. No projeto elaborado para pensar essa possível Paris do futuro, associado à
Paola Viganò, como que reescrevendo aquela primeira lição do Urbanismo, eles revelaram um novo
conjunto de figuras: entre outras, em primeiro plano, é claro, a figura da porosidade, mas, em relação a
qual, contrapõe-se a figura que os autores chamaram de as propriedades de Lúcifer, que correspondem
ao conjunto de lugares desagregadores (como aeroportos, ferrovias, rodovias, zonas industriais,
cemitérios, grandes complexos degradados), conformando um mapa das áreas “cinzentas” identificadas
no tecido da Grande Paris.
As propriedades de Lúcifer. Paola Viganò apresenta as reflexões iniciadas em 2008, durante a consulta
para a Grand Pari(s) isto é, a aglomeração parisiense. Destaca as “paredes”, fronteiras e limites presentes
em toda a metrópole. Elaborou assim um mapa de territórios inacessíveis, intitulado “Mapa de Lúcifer”,
ilustrado por um excerto do trabalho de tese realizado por Kaveh Rashidzadeh em torno de Aubervilliers,
que mostra os limites criados pelas infraestruturas rodoviárias e ferroviárias. (Le Monde, 29/11/2013)
Secchi e Viganò: Mapa de Lúcifer ................
Em linhas muito sumárias, para estes urbanistas, o problema do projeto da cidade (que, no caso, é Paris,
mas penso que se possa trazer essas premissas para pensar o nosso meio) se define, então, através de
estratégias porosas (ou que sejam capazes de promover a porosidade urbana) que ataquem (mitiguem,
superem) as propriedades luciferinas.
Neste sentido, o cenário108, isto é, a hipótese projetual, de Secchi e Viganò, construída na forma de 49
plano de montagem (ou um plano estratégico), busca tornar visíveis novas figuras narrativas, agora de
natureza projetiva: ( i ) uma estratégia para as águas; ( ii ) uma estratégia energética; ( iii ) uma
estratégia para a biodiversidade; ( iv ) uma estratégia para a mobilidade; e ( v ) uma estratégia de
lugares significativos.
Juntas, as cinco linhas de ação definem de modo operativo o conceito de porosidade, que antes
destaquei, organizando as pautas sobre as quais é necessário intervir. Compreende uma espécie de
“mapa de cidade possível”, desenhado em uma perspectiva de igualdade e comunidade, cidade nem
para ricos nem para pobres, nem para mulheres ou homens ou negros ou brancos ou homo ou
heterossexuais, ou jovens ou velhos, ou conservadores ou progressistas, ou qualquer fração identitária
que frature a condição humana partilhada por todos e todas. Apenas cidade de gente para gente:
cidadãos! Uma sociedade da urbanidade, em que cada sujeito tem seu quinhão de respeito e justiça109.
No entanto (e isso já sou eu e não Secchi e Viganò que o dizem), cada estratégia (que responde a um
objetivo estratégico e que, quando juntas, formam um plano estratégico) precisa ser taticamente
desconstruída. No sentido de apontar as operações próprias de cada estratégia. De que forma se
alcança uma gestão eficaz e justa das águas urbanas? Quais as ações e os projetos capazes de alterar
positivamente, numa perspectiva desde os interesses cidadãos, os sistemas de mobilidade? Como
mexer na rede de espaços significativos e, com perdão do jogo de palavras, o que isso pode vir a
significar? Eis algumas questões que o plano Secchi-Viganò nos suscita.
Será preciso, penso, uma série de dispositivos hábeis para desmontar a montagem para que se possa
examinar as peças do jogo proposto e refletir sobre o alcance das proposições e o papel dos jogadores.
Quando comentei a tensão estratégias versus táticas, já me preocupava situar a encruzilhada onde o
urbanista, em determinadas circunstâncias, pode ficar paralisado: é fácil perder-se ali, sem saber por
qual direção seguir. A clareza de critérios, e o rigor nos planos de montagem, indicam uma forma de
poder sair da encruzilhada. Trata-se, na mais sintética expressão, de uma questão de método.
∞ literarquiteturas, etecetera, ao modo de concluir
A literatura fantástica é algo que me fascina e me faz companhia. Desde muito jovem tornei-me um fã
de histórias de ficção científica. Se a memória não me trai, comecei, por volta dos doze anos, com Isaac
Asimov – Eu, robô, e logo depois, Fundação – e, pouco depois, Brian Aldiss me abriu os olhos quando li o
extraordinário conto intitulado Intangíveis Inc. (sobre o qual escrevi um texto que virou outro texto que
virou outras coisas111). As crônicas marcianas de Ray Bradbury foram outro momento marcante, abrindo
caminho para Fahrenheit 451 e a descoberta de que algo estava muito errado no mundo ao meu redor.
Foi quando, na adolescência, passei a compreender as contradições implicadas à condição humana. E 50
doeu. Poul Anderson é mais um autor, para mim, muito importante, porque foi depois de ler A espada
quebrada que me animei a tentar escrever minhas próprias estórias. Um pouco mais tarde foi a vez de
Douglas Adams e o Guia do mochileiro das galáxias (não perca tempo com o filme!), e por aí seguimos.
A citação que transcrevi ao alto, quase na forma de epígrafe, foi tirada de Até mais, valeu o peixe, que é
o quarto livro da série, e é quando Adams nos conta como foi a destruição da Terra para abrir uma
highway espacial e também fala da linda história de amor que une Arthur e Fenchurch cujos pés nunca
tocam o chão. A passagem que destaquei introduz um estranho personagem chamado Wonko –
conhecido como o sensato por alguma razão – mas o que espero que seja lido em primeiro plano é a
narrativa das características peculiares da casa onde ele vive.
As questões que subjazem a construção dessa casa são muitas, e por isso a tomo como síntese e
modelo. Conseguimos visualizar a construção desta casa? Compreendemos a intencionalidade no plano
das ideias do escritor, como se arquiteto fosse? Como a casa funciona e qual seu significado? Se
fôssemos desenha-la no papel, como se pareceria?
Eu a considero – a casa de Wonko – uma espécie de síntese, ou um modelo, na forma de uma daquelas
montagens que juntam imagem e conceito de que falava Lúcia Brandão (2003)112 e que mencionei na
seção anterior. No caso, a imagem é essa estranha casa virada do avesso, e o conceito que escolho
conectar à imagem (poderíamos eleger entre vários que aparentemente se encaixam) é a do espaço
entre o dentro e o fora, apontado pela filósofa Elizabeth Grosz (2001: 92-3113). Mas detenhamo-nos,
primeiramente, na explicação de Brandão, contida no seu Manual (+ ou menos) prático para jogar:
O objetivo é montar casas subjetivas ou construir modelizações parciais de casas subjetivas (…) este jogo
admite resoluções infinitas. Todavia, cada resolução (que não é exatamente uma resolução mas sempre
uma modelização parcial) nunca é concluída. Por natureza, essas casas são da ordem do inacabado e do
gerúndio, do sendo casas, cuja qualidade é estar sempre a beira de um abismo, pronto a deixar de ser
(Brandão, 2002:144)
Em seguida, Brandão declara a não-existência de regras fixas, decididas na antecipação do jogo, e que
para começar (…) é preciso apenas começar. A esta altura, Brandão revela os componentes do jogo, a
superfície e as peças, quando então o que leio parece-me com Wonko explicando como se pode, afinal,
construir uma casa pelo lado do avesso:
Os componentes podem ser pensados em termos de o fora e o dentro das montagens. Fora e dentro não
definem exatamente um topos mas uma espécie de comportamento em relação à montagem, apenas.
Não é necessário estar dentro da montagem para compô-la, é possível compor de fora. Como "fora" temos
a superfície, como "dentro", as peças. (Brandão, 2002:144)
Claro que já estou me deixando levar (não há referência a Douglas Adams em sua bibliografia), mas a
presença de Wonko se aprofunda quando Brandão conota o componente superfície à noção de plano de
montagem e aponta para seu caráter fragmentário (Brandão, 2002:145). O que leva a fractal.
A montagem da casa subjetiva não se dá sobre esse plano, como se poderia primeiramente crer, mas
acontece ao lado, e a própria superfície é, também, objeto de montagem, empregando fragmentos de
outras superfícies que podem ser encontrados, seja na lixeira (aguardando reciclagem), seja na caixa de
acasos, seja nas prateleiras de lançamentos. Para qualificar como imagem, a superfície que se monta ao
lado e não necessariamente antecede à montagem da casa (às vezes sucede de acontecer depois),
Brandão a explica com uma nova imagem ou analogia:
(…) uma espécie de satélite especular que acompanharia qualquer montagem, sempre ao lado, em
distância e angulação variável, é sensível a ela (montagem), e é, ao mesmo tempo, o que lhe compõe "de
fora". (Brandão, 2002:145)
Experimente ler as frases de Brandão, substituindo a palavra casa por cidade, e veja o que acontece. A
filiação ao pensamento deleuzeano que impregna a escrita de Brandão sugere uma aproximação
definitiva ao construto da filósofa australiana Elizabeth Grosz, pois também, em complementaridade:
(...) O lado de fora insinua a si mesmo em pensamentos, desenhando um conhecimento fora de si, fora do 51
que é esperado, produzindo uma concavidade que se pode habitar – simultaneamente um dentro/fora ou
fora/dentro. (Grosz, 2001:68)
Juntas, Brandão e Grosz tentam explicar, não sem dificuldades epistemológicas pois as palavras
parecem não bastar, a emergência de um espaço que não está contido na geometria em termos
euclidianos. Ao final, a montagem produz um espaço formado por muitos, distintos, planos de
interseção entre sujeitos e coisas, sejam tangíveis ou imateriais. E para tentar entender isso, voltemos
ao que diz Grosz:
(...) O espaço entre as coisas é o espaço em que as coisas são desfeitas, um espaço ao lado e em volta que
é o espaço para a subversão e desgaste dos limites de qualquer identidade. Em suma, é o espaço da
delimitação e desfazedura das identidades que o constituem. (Grozs, 2001:92-3)
Sinto-me confuso (e imagino que o leitor também). Por isso eu preciso de uma imagem que seja capaz
de fixar e dar legibilidade a este fluxo conceitual. Peço que o leitor examine a figura que acompanha a
citação de Douglas Adams no início da seção e que nos leva de volta à La buena vida de Iñaki Ábalos
(2000), mais precisamente para a sexta narrativa, dedicada ao desconstrutivismo. O arquiteto espanhol
traz, então, para tornar visível seu pensamento, uma analogia tão divertida quando conceitualmente
rigorosa, ao evocar as imagens trazidas da filmografia ingênua, todavia precursora, do genial Buster
Keaton, com um enredo que o tempo pouco afetou:
Na sequência capturada de One week, procurei destacar as fases da desconstrução: (i) a casa, construída
conforme as “instruções” propositadamente erradas; (ii) a casa, após a tempestade; (iii) a casa,
construída no lote errado (66 ou 99?) precisa ser deslocada; finalmente, o trem aproxima-se, sinalizando
a destruição final. Uma última imagem, em destaque, mostra o casal no momento exato da colisão.
52
Penso que agora temos a referência que faltava. Dois criadores geniais, Keaton e Adams, cada qual em
seus tempos e ofícios. O primeiro, pioneiro da arte cinematográfica, nas primeiras décadas do século XX
(é realmente impressionante o que ele consegue, à época, com recursos tão precários). O segundo, um
escritor marginal na galeria dos grandes escritores, mas responsável por uma literatura-fluxo, com
narrativas intensas e intencionalmente escritas em um estilo coloquial afrontante à sisudez da literatura
inglesa, quase sempre formal e rigorosa, quase sempre levando-se exageradamente a sério.
Como alguém já disse de modo muito apropriado, às vezes é preciso confundir para depois tornar claro
o que se pretende dizer. Brandão e Grosz, a primeira, arquiteta em namoro sério com a filosofia, a
segunda, filósofa flertando com a arquitetura, dizem, se bem as compreendo, mais ou menos as
mesmas coisas. Estão como trilhando caminhos que tem origem, cada qual, nos polos opostos dessa
direção teórica. Encontram-se, eventualmente, no meio do caminho. Trocam impressões, compartilham
conceitos e a admiração de ambas por Deleuze. Elas têm, em comum, a mesma caixinha de ferramentas.
Ao longo deste ensaio (cabe lembrar que se trata de uma versão em progresso, inacabada, com muitos
fios soltos em sua tecedura), busquei, também, elaborar uma espécie de montagem para uma caixa de
ferramentas que reúna vários dispositivos projetuais. Meu esboço para refletir sobre epistemologia do
projeto – às vezes, em um sentido generalista, projeto de qualquer natureza; em outras, buscando
situar mais diretamente o projeto urbano – tenta formar um método componível de distintas maneiras,
de forma a que se possa experimentar diferentes fluxos neste fazer e compreender. Afinal, projetar se
define como um conhecimento prático; uma teoria a ser praticada. E nada mais prático – alguém já o
disse – do que uma boa teoria.
Ao tempo em que escrevo, neste exato momento, faço um intervalo e me dou ao luxo de assistir, em
um canal do Youtube114, a um estranho concerto. Enquanto uma violinista toca seu instrumento, criando
distintas atmosferas musicais, um desenhista realiza, de improviso, um grande desenho a carvão. A peça
dura exatos dezenove minutos e vinte oito segundos, ao longo dos quais o desenhista, que desconhece
a partitura, nada sabe sobre a música que virá a seguir e é surpreendido a cada instante. Parece-me,
pois, uma providencial metáfora ao que tento dizer.
Há, em meu texto, no entanto, um objetivo escondido (ainda que, imagino, ele tenha aos poucos se
tornado claro): construir método e processo, sim, mas não uma receita; antes uma lógica mais
rizomática (contaminação deleuzeana inevitável) do que uma linha. O que quer dizer que, se fosse o
caso de começar a escrever tudo de novo (se meu computador simplesmente apagasse tudo o que
escrevi até agora), eu escreveria um outro texto, muito diferente deste que está aí. O que quer dizer,
também, que é um texto com o qual talvez se possa fazer outra coisa com ele.
Neste mar de referências em que há muito de muitas coisas, um mar líquido que mistura referências de
muitos campos, que junta algo da geografia com filosofia e biologia e matemática e artes visuais e muita
coisa da literatura e por aí vai, um mar bastante poluído (talvez algum cínico me diga) eu gostaria de
poder finalizar com alguma forma de porto a ancorar.
Não foi apenas para situar a divertida obra de Douglas Adams e trazer à baila a casa de Wonko, o
sensato, que incluí um parágrafo sobre ficção científica e meus autores favoritos (mas, como vimos, a
casa de Wonko tornou-se um modelo para pensar arquitetura). Cada qual contribuiu, é verdade, para
minha educação, ou melhor, para a educação do meu pensamento. Acredito que, em alguma medida,
estes escritores, e tantos outros, me conduziram à arquitetura e ao urbanismo. A ficção científica, não
sendo um gênero literário considerado “culto”, brinca, no entanto, amiúde, com a Utopia. E, tal como
em relação à ficção científica, sou grande fã do pensamento utópico.
Talvez, numa próxima ocasião, eu escreva mais sobre isto, mas, aqui e agora, este pequeno recorte da 53
minha biografia literária serve para destacar o conto de Brian Aldiss que mencionei, e sobre o qual
escrevi um artigo mutante, que, no espírito do pegue uma coisa, faça outra coisa… já foi reescrito várias
vezes. Como Adams, Brian Aldiss é inglês. Não é muito conhecido por aqui, mas escreveu muitos livros e
influenciou gerações de jovens escritores do gênero
fantástico. Para situar sua importância, basta citar
que é o autor de Superbrinquedos duram o verão
todo, história que deu origem ao filme A.I.
Inteligência Artificial, dirigido por Steven Spielberg, e
que, por sua vez, tomou forma a partir de um
projeto de Stanley Kubrick. Imagino que muitos dos
leitores, senão todos, tenham assistido ao filme de
Spielberg (se você não assistiu, fica a dica).
Quando comecei a escrever este texto, na quinta-feira, sete de outubro de 2021, o pensava como algo
com, talvez, cinco páginas. A intenção era reunir alguns comentários sobre pauta poética | projeto
conceitual, tema proposto para nosso exercício de ateliê. Ultrapassamos as cinquenta páginas. Antes
que escreva mais uma ou mais cinquenta, inscrevo um provisório ponto final.
todas as notas e referências 54
todas as notas e referências (que, reunidas, sugerem outros textos, a ler e a escrever)
1 Este texto é uma versão em progresso e sem revisão fina. Trata-se um texto-fluxo, no sentido de deixar que a deriva
das ideias assuma o timão da escrita. É, também, um texto-collage, ou um texto-ladrão, que busca e reproduz ou
recria fragmentos de outros textos. Por fim, é um texto-rizoma, e suas partes se embaralham e remetem a outras
partes. Sua utilização é exclusivamente para fins didáticos.
2 ALEXANDER, C. (1997). Notes on the synthesis of form. Cambridge: The Harvard University Press. Ed. Orig. 1964.
Tradução livre do autor. Todas as citações de obras em língua estrangeira seguem a mesma sistemática.
3 A frase A imaginação é a louca da casa é atribuída à Santa Teresa de Jesus, e dá título ao livro de Rosa Montero
prof. arquiteto Arnaldo Vaca. TDA4. Escuela de Arquitectura. Universidad Nacional de la Rioja. 8 de junho de 2001.
5 ANDRADE, L. M. V. (2011). Construção e Abertura: diálogos Christopher Alexander-Jean Piaget. Porto Alegre:
10 Alusão ao belo livro de Rubén Pesci: PESCI, R. (2000). Del Titanic al velero: la vida como proyecto. La Plata:
Ambiente Libros.
11 Documentário sobre vida e obra do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, contada por ele em entrevistas para sua filha.
Com mais de 80 anos de idade, Paulo Mendes é hoje um dos mais importantes e renomados arquitetos no mundo e
é, acima de tudo, um pensador cujas ideias e opiniões polêmicas sobre urbanidade, natureza, humanidade, arte e
técnica merecem ser ouvidas. Em um constante diálogo entre entrevistado/pai e entrevistadora/filha, Joana é o fio
condutor do filme. Como em todas as relações pessoais, principalmente entre pais e filhos, o fio que conduz é
também o que é conduzido. Direção: Joana Mendes da Rocha e Patrícia Rubano. 2007. Sinopse do Canal Curta.
12 PIAGET, J. (1987). O nascimento da inteligência na criança. Rio de Janeiro: Guanabara. V. também: MONTANGERO,
J., MAURICE-NAVILLE, D. (1998). Piaget ou a inteligência em evolução. Porto Alegre: Artes Médicas.
13 GABETTI, R., ISOLA, A. (1997). A Arquitetura do colóquio. In: FAROLDI, E., VETTORI, M. P.. Diálogos de arquitetura.
55
São Paulo: Siciliano.
14 Referida por LOS, S., FRAHM, K. (1994). Carlo Scarpa. Köln: Benedikt Taschen. P.11.
17 Inspirado por: DEWDNEY, A. K. (2000). 20.000 léguas matemáticas - um passeio pelo misterioso mundo dos
19 Quanto às analogias, aponta Aldo Rossi, elas (…) não só existem dentro da disciplina da arquitetura, mas são
também a essência do seu significado, sendo que os (…) verdadeiros significados são imprevisíveis no início, e se
revelam apenas no final do processo. (Leão, 1999:15)
20 Quanto à metáfora, coloca Leão (1999:15): (…) sua característica principal é conceber uma outra categoria de
conhecimento que envolve os dois campos de saber ( A e B). A interação entre esses campos se dá de tal forma que,
após o vínculo metafórico, nossa compreensão se altera tanto em relação ao campo A, como em relação ao B. Da
relação metafórica entre os campos A e B é possível extrair C, um outro tipo de conhecimento que emerge a partir
dessa inter-relação. Em síntese, a metáfora, ao possibilitar a aproximação de dois mundos ou domínios
heterogêneos, viabiliza uma re-descrição de um determinado assunto e oferece uma visão criativa e inesperada.
21 LEÃO, L. (1999). O labirinto da hipermídia: arquitetura e navegação no ciberespaço. São Paulo: Iluminuras.
23 ROWE, C. (1999). Maneirismo y arquitectura moderna y otros ensayos. Barcelona: Gustavo Gili.
26 LYNCH, K. (1985). La buena forma de la ciudad. Barcelona: Gustavo Gili. As ilustrações que acompanham os
comentários foram montadas pelo autor para a disciplina Teorias sobre o Espaço Urbano do Curso de Graduação
em Arquitetura e Urbanismo da UFRGS (2020).
27 O termo operativo não deve ser confundido com o termo operatório. Com efeito, o que é figurativo e operativo no
conhecimento é o aspecto, ou, ainda, a maneira de apreender o real. Esses dois termos designam, pois, o modo de
apreensão do real, ao passo que operatório designa o mecanismo de apreensão. Veja: DOLLE, J. M. (1975). Para
compreender Jean Piaget. Rio de Janeiro: Zahar. P. 60.
28 GAUSA et al. (2001). Diccionario Metápolis, de Arquitectura Avanzada. Barcelona: Actar.
29 A topoanálise seria então o estudo psicológico sistemático dos locais de nossa vida íntima. Nesse teatro do passado
que é a memória, o cenário mantém os personagens em seu papel dominante. Por vezes, acreditamos conhecer-nos
no tempo, ao passo que se conhece apenas uma série de fixações nos espaços da estabilidade do ser, de um ser que
não quer passar no tempo: que no próprio passado, quando sai em busca do tempo perdido, quer "suspender" o vôo
do tempo. Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido. É essa a função do espaço (Bachelard,
2000:28).
30 GONÇALVES, F. (2020). Documentos de trabalho: percursos metodológicos. In: Revista-Valise, Porto Alegre, v. 9, n.
32 Acredite: essa obra inusitada e um tanto louca foi traduzida para o português por José Roberto Andrade Féres, ou
35 ALEXANDER, C. et al. (1981). A pattern language / un lenguage de patrones: ciudades, edificios, construcción.
37 COSTA, L. (1995). Registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes.
38 Aqui, eu penso, de modo mais esclarecedor, em Pruitt Igoe, Saint Louis, Estados Unidos. Um gigantesco conjunto
residencial que se tornou lar de cerca de 10.000 pessoas. Na maioria, negros. Em 1951, o projeto foi premiado pelo
Instituto dos Arquitetos Americanos como exemplo da moderna ciência urbana. Em 1972, foi implacavelmente
implodido, edifício por edifício, tal era o estado de deterioração física do conjunto, e tamanha era a violência e o
vandalismo atribuídos por sociólogos e psicólogos aos moradores. Conforme PORTOGHESI, Paolo. Depois da
arquitetura moderna.
39 FUÃO, F. F. (2003). A collage como trajetória amorosa. Porto Alegre: Editora UFRGS.
40 CORTÁZAR, J. (2004). Obra crítica I: Teoria del tunel.. Buenos Aires: Suma de Letras Argentinas.
42 ROWE, C, KOETTER, F. (1981). Collage city / Ciudad collage. Barcelona: Gustavo Gili.
43
Imagens: Google Earth (2020) / Leila Coffy (2018). 56
44 Schwitters denominou “Merz”, depois que as palavras “Kommerz und Privatbank” apareceram em uma de suas
primeiras assemblages. O termo “Merz” descreve, gradualmente, todas as suas atividades artísticas até culminar no
ponto em que o próprio Schwitters designava-se como Merz. (Maria Ivone dos Santos, Ateliê de Escultura II, Ocupar
um canto – referência 1)
45 THOMAS, E. (2012). In Search of Lost Art: Kurt Schwitters’s Merzbau. In: MoMa.org: Inside/Out.
48 PEREC. G. (2016). Tentativa de esgotamento de um local parisiense. São Paulo: Gustavo Gili.
49 PEREC. G. (2001). Especies de Espacios. Barcelona: Montesinos. p. 91-2. Edição original: Espèces d’espaces. Éditions
(2018). Caminhando paisagens: cidade que se vive, cidade que se sente, cidade que ser quer. In: Anais do 5º
Colóquio Ibero-Americano: Paisagem Cultural, Patrimônio e Projeto. Belo Horizonte.
51 Antony Muntadas: Warning/Atención. (1999, com versões em diferentes cidades, até o presente).
52 Com Bakhtin, em seus apontamentos: Cronotopicidade do pensamento do artista (em particular na arte antiga). Um
ponto de vista é cronotópico, ou seja, inclui tanto o momento espacial como o temporal. Nisso se vincula
diretamente ao ponto de vista dos valores (hierarquizado) – a relação com o acima e o abaixo. Cronotopo do
acontecimento representado, cronotopo do narrador e cronotopo do autor (da última instância). Espaço real e
espaço ideal. A pintura de cavalete situa-se fora do espaço construído (hierarquicamente), fica no ar. BAKHTIN, M.
M. (1997). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes. p. 373.
53 ALVES, R. (2008). Aprendiz de mim: um bairro que virou escola. Campinas: Papirus.
54 Veja: PIAGET, J., GARCIA, R. (1991). Hacia una lógica de significaciones. PIAGET, J. (1994); O Juízo moral na criança.
57 DEWDNEY, A. K. (2000). 20.000 léguas matemáticas - um passeio pelo misterioso mundo dos números. Rio de
alusão ao encontro de Lloyd Kahn e seu amigo Jack, com o andarilho Armand, narrado em: KAHN, L. (1973). Shelter.
São Francisco: Shelter Publications.
62 Problema que o mesmo Bachelard abordou em A psicanálise do conhecimento objectivo. V. BACHELARD, G. (2018).
66 Afirmo este “convite á curiosidade” a partir da minha experiência de leitor: ao passo de cada página, a leitura me
exigia pesquisa, em livros ou nas redes, buscando imagens e explicações mais aprofundadas para a torrente de
informações que o pequeno livro contém.
67 ANDRADE, L. M. V. (2016). Casa de Humberto (razões para sonhar arquitetura). Disponível em:
lounge.obviousmag.org/literarquiteturas/
68 Os comentários sobre as casas que meu pai construiu tem origem em ANDRADE, L. M. V. (2002). Casas de meu pai e
outras casas. Porto Alegre: Congresso Internacional de Psicanálise e Intersecções: Psicanálise e Arquitetura (Anais)
Posteriormente, o texto foi atualizado e publicado em lounge.obviousmag.org/literarquiteturas/
69 LYNCH, K. (1975). ¿De que tiempo es este lugar? Barcelona: Gustavo Gili. Tradução (ou traição) livre do autor. De
fato, trata-se, mais precisamente, de uma recriação a partir do texto original em inglês, conquanto uma tradução
mais “literal”, a meu ver, não era capaz de comunicar o “espírito” das ideias de Lynch sobre o tema. Atenção a uma
das afirmações: quando Lynch menciona a tendência atual de projetar espaços monofuncionais, é preciso lembrar
que What time is this place? foi originalmente publicado em 1972, na vigência plena dos postulados do zoneamento
rígido e do lema modernista em que “a forma segue a função”.
70 Mais uma vez: BAKHTIN, M. M. (1997). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes. P. 373.
71 Adaptação livre do questionário-teste realizado por Lynch. V. LYNCH, K. (1975). ¿De que tiempo es este lugar?
projeto Estudos e Criação em Hipermídia. LELIC-UFRGS, entre 2000 e 2004, com coordenação de AXT, M. e
ANDRADE, L. M. V..
77 ANDRADE, L. M. V. (2008). Pensando fractais como possibilidades projetuais. Porto Alegre: Departamento de
79 Acesse: incendia.net
81 THOMPSON, D. W., BONNER, J. T. (1992). On growth and form. Cambridge: Cambridge University Press.
82 A arquiteta Helena Xavier, então estudante, em um comentário explicando seu projeto: A partir da metáfora da
estalagmite, aí vem uma cadeia do DNA, uma pilha de jornais girados no espaço... até chegar à idéia do arranha-céu
espiralizado, os pavimentos se contorcem e se parecem com uma forma da natureza, crescendo naturalmente
oferecendo-se ao sol, como naquela brincadeira com areia da praia (quem nunca brincou de castelo?), e a forma
vem, a gravidade empilha… pode ser misturado à vegetação… Os pavimentos não precisam ser empilhados como
pratos… Arquitetura do céu, plantas e animais. 28/08/2002..
83 DE LANDA, M. (2003). A thousand years of nonlinear history. New York: Swerve/Zone Books.
84 Cf. proposto por KRÜGER, M. T. (1986). Teorias e analogias em arquitetura. São Paulo: Projeto.
85 In: ANDRADE, L. M. V. (2011). Construção e Abertura: diálogos Christopher Alexander-Jean Piaget. Porto Alegre:
87 Verbetes do Diccionário Metápolis. Cybrido: relativo a objeto ou entorno que é produto doa interação entre o
ciberespaço e o mundo físico. Deleuzável: objeto de pensamento inconstante e imprevisível. Penso que derive de
Deleuze, como espécie de ironia. Digitonatura: se bem compreendo, algo como natureza modelada digitalmente,
como perspectiva de um dispositivo projetual.
88 Recordando o Manifesto (incompleto) pelo crescimento (1999).
89 Outra vez, ANDRADE, L. M. V. (2011).
90 MORIN, E. (1991). Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget.
91 CAMUS, A. (1991). The Myth of Sisyphus and Other Essays. New York: Vintage Books.
93 DYSON, F. J. (1998). Mundos imaginados: conferências Jerusalém-Harvard. São Paulo: Companhia das Letras.
95 ALEXANDER, C. et al. (1975). The Oregon Experiment. New York: Oxford University Press. p. 44.
96 ALEXANDER, C. (1988). A city is not a tree. In: THACKARA, J. Design after modernism. Londres: Thames and Hudson.
97 Convênio Departamento de Urbanismo, UFRGS / Instituto Canoas XXI / Prefeitura Municipal de Canoas (2012).
Projeto Praia do Paquetá. Coordenador geral: Eber Marzulo. Coordenador adjunto: Leandro M. V. Andrade.
98 Convênio Departamento de Urbanismo, UFRGS / Prefeitura Municipal de Carlos Barbosa (2002). Carlos Barbosa:
Plano Diretor de Sustentabilidade Urbana Coordenação: Juan Luis Mascaró e Leandro M. V. Andrade.
99 LE GOFF, J. (1988). Por amor às cidades: conversações com Jean Lebrun. São Paulo: Fundação Editora UNESP.
100 MUNARI, B. (1998). Das coisas nascem coisas. São Paulo: Martins Fontes.
103 LEÃO, L. (1999). O labirinto da hipermídia: arquitetura e navegação no ciberespaço. São Paulo: Iluminuras.
104 ATLAN, H. (1992). Entre o cristal e a fumaça: ensaio sobre a organização do ser vivo. Rio de Janeiro: Zahar.
105 SECCHI, B., VIGANÒ, P. Paris Métropole 2021: la constructions d’une stratégie. Veneza: IUAV.
107
SECCHI, B. (2019). A cidade dos ricos e a cidade dos pobres. Belo Horizonte: Editora Âynê.
108 Um cenário não é uma previsão: se estivéssemos em condições de prever, muitos de nossos problemas estariam
resolvidos; nem é a representação de desejos: se tivéssemos condições de realizar os desejos, não teríamos nenhum
problema. Construir cenários quer dizer aceitar a ignorância e construir uma ou mais ordens hipotéticas entre os
diversos fenômenos que investem a cidade, a economia e a sociedade, para esclarecer suas consequências. SECCHI,
B. (2006:177). 58
109 Alusão ao mito platônico da fundação das cidades, em Protágoras. A versão que Labucci (2013) recria diz o
seguinte: Os homens procuravam reunir-se e salvar-se fundando cidades; mas tão apenas se reuniam, começavam
a se maltratar reciprocamente, ignorantes que eram da arte política. E assim tornavam a se dispersar, e a morrer.
Então Zeus começou a temer pela extinção total da nossa espécie, e enviou Hermes para que levasse ao meio dos
homens o sentido do respeito e da justiça, de maneira a dar origem aos ordenamentos civis e a todos os vínculos
que geram fraternidade. Mas Hermes interrogou Zeus: de que maneira deveria distribuir para os homens o sentido
do respeito e da justiça? “Como as outras habilidades técnicas? Devo fazer do mesmo jeito? As habilidades técnicas
são distribuídas assim. Um único médico é suficiente para muitos que não são médicos, e assim os especialistas de
cada uma das outras profissões. Devo distribuir assim, entre os homens o sentido de respeito e o de justiça? Ou
devo distribuir para todos?”. “A todos – disse Zeus -, e que todos tenham uma parte disso; porque, de outro modo,
não poderão existir cidades, se apenas poucas pessoas gozarem desse privilégio, como acontece com as outras
habilidades profissionais”. (pp.163-4)
110 ADAMS, D. (1988). Até mais, valeu o peixe. São Paulo: Brasiliense.
111 A primeira versão deste texto “mutante” chama-se O intangível no cotidiano: quando as circunstâncias estão
além das aparências e assim é se lhe parece. está disponível em lounge.obviousmag.org/literarquiteturas. O conto
que inspira o texto está em ALDISS, B. (1971). Intangíveis Inc. In: O Planeta de Neanderthal. São Paulo: Cultrix. pp.
112-34.
112 BRANDÃO, L. L. (2002). A casa subjetiva: matérias, afectos e espaços domésticos. São Paulo: Perspectiva.
113 GROSZ, E. (2001). Architecture from the outside: essays on virtual and real space. Writing Architecture Series.
115
ALDISS, B. (1971). Intangíveis Inc. In: O Planêta de Neanderthal. São Paulo: Cultrix. pp. 112-34.
Graduado em Arquitetura e
Urbanismo pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul,
com mestrado e doutorado
em Planejamento Urbano e
Regional pela mesma
Universidade. Entre 1999 e
2004, realizou estudos na
área de Ciências Cognitivas
LEANDRO MARINO Aplicadas, no PPGIE-UFRGS,
VIEIRA ANDRADE desenvolvendo pesquisas
junto ao Laboratório de
Estudos em Linguagem,
Interação e Cognição –
LELIC-UFRGS. Desde 1988, é
professor da Faculdade de
Arquitetura da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul,
contato imediato ministrando disciplinas de
leandro.marino@ufrgs.br teoria urbana e projeto
urbanístico. Em 2012, iniciou
o bacharelado em Artes
Visuais no Instituto de Artes
da UFRGS.
CRIAÇÃO E PRODUÇÃO
Etimologicamente, a palavra “texto” quer dizer tecido, e a palavra linha, um fio de um tecido de
linho. Textos são, contudo, tecidos inacabados (...). A literatura (o universo dos textos) (...)
necessita de acabamento.. Vilém Flusser