Você está na página 1de 1

Por anos considerei Eyes Wide Shut homólogo ao Gertrud, um filme que teria tido

nos anos 1990 um papel semelhante ao que o Dreyer teve nos anos 1960 (e
que Coisas Secretas teria nos anos 2000): "ao mesmo tempo narrativa do sonho e
sessão de análise", fruto de anos e anos do exílio de um americano que acabou
absorvendo a cultura e principalmente o humor do velho continente, um cineasta
de uma intransigência absurda para com a sua arte que no momento em que fez o
seu último filme lançou um olhar espirituoso sobre a castidade dos seus
protagonistas (conterrâneos seus, nova-iorquinos), a qual é claramente encarada
como atraso cultural - vide as modelos, ao que tudo indica procedentes do velho
mundo, que flertam com o Dr. Bill enquanto o galanteador Sandor Szavost, essa
entidade da velha Europa, corteja sua esposa Alice. Culturalmente, socialmente e
esteticamente é impossível não vê-lo como uma grande obra anacrônica, um avanço
terminal de um legado cultural, científico e técnico muito mais próximo do autor
de Två människor que do de Home From the Hill.
Conversando com um amigo um dia desses, não coincidentemente um especialista
em Kubrick, dei-me conta de que essa semelhança entre os filmes de Kubrick e
Dreyer é menos tonal do que estrutural: fiquei sabendo nessa conversa que o
Kubrick dizia que para estruturar um filme você só precisa de "five or six non-
submersible units", o equivalente ao "three great scenes and no bad scenes" do
Hawks. É daí que vem essa impressão de deslizamento, essa fluência tão específica
que Dreyer confere aos blocos compactos de Gertrud, e que Kubrick produz nas
passagens de uma sequência hiper-suturada a outra em Eyes Wide Shut: os
encadeamentos entre esses blocos-sequências parecem feitos com as principais
cenas já isoladas desde a concepção inicial do filme, como se o filme não tivesse
outra forma de se organizar que ao redor dessas cenas. Daí essa consistência
ritualística, essas simetrias que os filmes cultivam e colhem sistematicamente no
interior de suas construções, de forma que as cenas "não tão boas", ainda que "não
ruins", dão o contexto para as "grandes cenas", ou supostamente muito boas (afinal
de contas é nesse contexto, e não em outro, que tais cenas possuem essas
qualidades). Os filmes se organizam formalmente ao redor dessas grandes cenas (é
o que ocorre nos grandes filmes), ao invés de se reduzirem a elas
contingencialmente (como ocorre com os filmes medíocres).
Uma última palavra sobre o anacronismo (igualmente presente em um filme tão
pouco e mal falado como o Cassandra's Dream, estupendo, o melhor que Allen fez
até aqui): é ele que assegura a verdadeira contemporaneidade, aquela que
caracteriza a permanência de uma imagem dos anos 1990 (as caminhadas do Tom
Cruise por Nova York) ou dos anos 2000 (Nathalie e Sandrine esperando o metrô)
nos dias de hoje. Cenas soltas, poder-se-ia dizer que não verdadeiramente
"grandes". Pois há também isto: o verdadeiro conhecimento de um filme - ou seja, o
conhecimento do seu todo - altera a percepção linear dele.

Você também pode gostar