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2 - INDEX
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FILMOGRAFIA - 3
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Cem mil cigarros


Os filmes de Pedro Costa
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AS CASAS QUEIMADAS
Do I really want to be integrated into a burning house?
James Baldwin, The Fire Next Time

Cem Mil Cigarros é uma colecção de textos sobre a obra de Pedro Costa que reúne diversos
artigos, ensaios e notas críticas, na sua maior parte inéditos, escritos e compilados ao longo
dos últimos dois anos. A recente visibilidade internacional da obra de Pedro Costa – permi-
tida pela selecção em 2007 de Juventude em Marcha para a competição oficial do Festival de
Cinema de Cannes, pela circulação da sua obra em diversas retrospectivas que tornaram
possível um acesso organizado ao conjunto da sua filmografia (nomeadamente na América
do Norte, onde o seu trabalho foi divulgado em 2007/08 na mostra Still Lives: The Films of
Pedro Costa) e pela disponibilização dos seus filmes em DVD – deu origem a uma profusão
de artigos, comentários, notas críticas de imprensa e a várias entrevistas com o realizador. Este
livro não é estritamente sobre a recepção dos seus filmes, nem tenta ser um reflexo dessa
bibliografia em composição, procurando antes de mais sedimentar e fixar ressonâncias de
magnitude diversa, possibilitadas por uma visão retrospectiva da sua obra, num momento
particular de produção (e alguma dispersão) crítica sobre o seu trabalho.
O livro foi concretizado sob o signo do reencontro dos autores com a obra de Pedro Costa,
espelhando de algum modo a forma colaborativa que preside à concepção dos seus filmes,
sobretudo a partir de No Quarto da Vanda. À excepção dos textos previamente publicados –
que nalguns dos casos foram revistos e expandidos para esta edição – pediu-se aos autores
que, consoante as afinidades com os filmes, estabelecessem um percurso pela obra que
abrisse passagens, relações e circulações de temas e formas recorrentes nos filmes (e entre os
filmes).
A estrutura do livro pretende então corresponder a isto mesmo: não respeita a cronologia
da filmografia, sugerindo antes um trajecto feito em dois movimentos. Há uma primeira
sequência de textos monográficos que percorrem a sua obra, começando n’O Sangue, obra
ainda preambular, e continuando pelo ciclo iniciado em Casa de Lava, ciclo prosseguido em
Ossos, No Quarto da Vanda, Juventude em Marcha e concluído até ao momento com Rabbit
Hunters e Tarrafal, dois filmes que condensam de modo exemplar as estruturas formais e as
ordens temáticas do cinema de Pedro Costa. A reflexão do segundo grupo de textos concentra-se,
por um lado, no método de trabalho do cineasta, através de notas e descrições detalhadas do
filme que constitui a sua ars poetica, o retrato cinematográfico do pensamento em acto dos
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cineastas Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, Onde Jaz o Teu Sorriso?. Por outro lado, in-
cluem-se textos que se aproximam de outras dimensões da sua obra: a utilização do som
(abrindo caminho para a discussão do seu trabalho mais recente, a versão longa de Ne change
rien) e uma reflexão sobre o trabalho expositivo de Pedro Costa, sobre as instalações que
constituem uma extensão do seu pensamento quanto ao espaço e o tempo relacional das
imagens e dos sons nos seus filmes.
Não se procuraram evitar as repetições que ocorrem entre os textos, que em muitos casos
insistem, com ligeiras variações, em determinadas sequências e detalhes. São exactamente
essas repetições e desdobramentos que, de algum modo, definem a força da nossa relação
com os filmes e a capacidade de ecoar de formas diferentes a visão de determinados mo-
mentos de uma obra.
A relação entre os textos, e de filme para filme, estabelece-se quase a um nível premoni-
tório, que remete constantemente, de forma consciente ou não, para os filmes que se se-
guem. Entre os vários ecos, ao rever os filmes de Pedro Costa, recordei-me sempre da frase
do velho Bassoé em Casa de Lava: “Não me pintem cruz na porta”, referência às cruzes que,
na Ilha do Fogo, marcavam a tinta as casas dos doentes da leprosaria. Trata-se da mesma
cruz que é limpa da porta da casa que a família constrói para Leão, e que se vai repetir, dois
filmes mais tarde, como marca do aviso irreversível nas paredes das casas/ vidas por demo-
lir, em No Quarto da Vanda (e que João Bénard da Costa identifica como o símbolo dos pestí-
feros de outros tempos).
Percebida retrospectivamente, a força dos filmes de Pedro Costa é acentuada por essa
continuidade dos signos, de aviso, que indicia uma estranha permanência temática e uma
constante viagem de regresso a formas e temas, numa teia complexa que relaciona os filmes
uns com os outros. Estabelece-se uma genealogia (real e fictícia) entre personagens e histó-
rias (as suas e dos outros) e sublinha-se a dimensão de apresentação e preservação da identi-
dade e memória (colectiva, individual, da voz e histórias de cada um) e de transmissão como
forma de rejeição activa e militante da exclusão – ao mesmo tempo que se reafirma o cinema
como potência, e a imagem e o som como meios fundamentais dessa preservação.
Os textos do livro dão um lugar muito particular à palavra do cineasta recolhida em diversas
ocasiões em entrevistas e ao que é dito pelos protagonistas dos seus filmes. A transmissão
oral, tão evidente na figura do poema ensinado por Ventura e memorizado por Lento em
Juventude em Marcha – cujo texto replica o da carta enviada por Leão e lida por Mariana em
Casa de Lava (e de que também fazem eco as letras das canções que nesse filme se cantam)
– reenvia para a questão da língua e da memória do que é dito (e do modo como se dizem as
coisas), algo que está presente logo desde os primeiros filmes (e a que o cineasta dá tanta
atenção no filme com Danièle Huillet e Jean-Marie Straub e à atenção que dão ao modo como
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o texto é dito em Sicilia!: “ ‘coisa / de padres’ e não ‘coisa de padres!’ ”). A essa memória da
língua de origem, da que é aprendida e mesmo da que é esquecida, acrescenta-se um jogo
determinante com a tradução e a legendagem, do vaivém entre o português e o crioulo e da
forma como ouvimos e percebemos aquilo que os protagonistas dizem. A tradução dos tex-
tos estrangeiros aqui publicados segue de perto os originais das listas de diálogos, tendo
ainda assim em conta que a forma como os seus filmes são compreendidos não só passa pela
tradução mas também por uma aproximação pessoal ao que é dito nos filmes de Pedro Costa,
às histórias que são contadas e à forma como cada um as conta e como nós as escolhemos
ouvir.
De filme para filme, os exilados de Pedro Costa (como, de resto, os exilados de outros
filmes) têm de reaprender e esquecer uma série de coisas para se manterem à tona de água.
Esquecer o país de origem é esquecer a língua (como Edite em Casa de Lava), única hipó-
tese para fingir uma integração. Recusá-la é igualmente ter de reinventar os espaços e es-
quecer os caminhos aprendidos. Como os índios – os “exilados” da noite branca no filme
homónimo de Kent MacKenzie, protagonistas reais dos programas de realojamento norte-
americanos dos anos 50 que os transportavam das suas terras para a cidades, para os integrar
no tecido social – também os protagonistas de Costa, encontrados e protegidos nos corredo-
res labirínticos das Fontainhas e do Casal da Boba (esses bairros onde tudo é terra e muito
pouco céu), têm agora de reaprender o seu caminho, reconquistar o seu espaço, tactear as saí-
das e apoiar-se nas paredes para encontrarem pontos de fuga. Ventura caminha rente às
paredes, nunca sabemos a distância real que percorre entre os dois mundos em que vive.
Se Casa de Lava surge hoje como o epicentro deste percurso, filme dos retornos inversos
e das expulsões forçadas, é por ser o filme que marca o abandono dos espaços metafóricos
de O Sangue, que enterra aquilo que nesse filme era já uma inércia e uma ficção sem saída
(o rosto cadáver de Isabel de Castro, a feiticeira do primeiro filme), dando início a uma série
de transformações da narrativa que caracterizariam o seu cinema desde então. O filme foi
planificado (com o recurso a um caderno de trabalho do realizador) segundo um princípio
modernista de colagem/ montagem e aproximação sensível de influências cinematográficas
(o Hawks de Land of the Pharaohs, Tourneur, Chris Marker), literárias (Desnos, Faulkner),
musicais (Stravinsky, a música de Cabo Verde), visuais (imagens de pintura, fotografias –
Costa cita a propósito a sua admiração por Eugene Smith como hoje cita a que tem por Jacob
Riis, entre outros) e fontes documentais (notícias de jornal, fait divers) – este processo de
trabalhar permite aceder, num estádio ainda de desenvolvimento, ao método do cineasta e
compreender de que modo a questão da referencialidade é antes de mais um instrumento de
trabalho e de montagem (procedimento percebido e replicado peloas ensaios visuais feitoas
a propósito da sua obra, nomeadamente por Andy Rector). Casa de Lava resulta do confronto
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entre essa planificação e o improviso e contacto com os espaços e as pessoas que filma, esta-
belecendo as características do cinema do autor e o terreno intersticial dos seus filmes, ancora-
dos no concreto das coisas e dos locais onde filma, mas com uma alusão permanente à
desadequação e procura de um lugar de pertença daqueles que os procuram ou que a eles
estão confinados.
A dicotomia operacional entre o interior e o exterior, tão referida a propósito da sua obra,
surge aqui pela primeira vez com a sugestão feita pelo realizador da visão das casas cons-
truídas de lava (viradas dao avesso) como tumbas, no contraste com o exterior, e na procura de
um equivalente – apenas permitido pelo cinema – de um tempo e espaço comum e univer-
sal, algures entre a morte e a vida, o interior e o exterior. Não deixou desde então de perscrutar
e filmar a “alma dos quartos” (usando a expressão de Dreyer), aquilo que apenas se revela na
intimidade dos espaços reais, na sua complexa acumulação de histórias, presenças e au-
sências, uma busca que culmina no espaço de Tarrafal. Um filme militante, que responde a
uma urgência, a um facto real da vida de um dos protagonistas – Zé Alberto, que acabou de
receber uma ordem de expulsão do território – o filme tem como base um espaço que vai per-
dendo referentes (“Quando eu para aqui vim não havia casas”, diz-se), um vasto terreno ci-
nematográfico que já só pertence aos que neles habitam e que, ainda que ameaçado pelo
exterior (o aviso de expulsão cravado com uma navalha, os vampiros que espreitam a oportuni-
dade) é orgulhosamente deles, das suas histórias, do seu repouso; e é, tal como noutros filmes,
uma oferenda do cineasta às pessoas que filma.
Este livro dá conta do carácter insular dos filmes de Pedro Costa: descobre passo a passo
a formação do método do cineasta e a forma como foi progressivamente elidindo os géneros
cinematográficos e as próprias referências de que se socorre, desenvolvendo um conjunto
de estranhas e atípicas sequelas, cada uma com um tratamento próprio do tempo dos prota-
gonistas, das histórias contadas. Um longo caminho que neste livro é muitas vezes identifi-
cado com uma compreensão cada vez mais complexa das ordens da narrativa, pelo modo
utiliza elipse na construção das suas histórias, pela descoberta desse “presente tornado ab-
soluto” (usando as palavras de Shiguéhiko Hasumi) e pelo interesse na construção de ficções
polifónicas (como num monogatari, as suas histórias desenvolvem-se em blocos de tempo,
justapostos em sequências que se desenrolam muitas vezes sem dependerem do que veio
antes ou do que se segue, assentes no detalhe da palavra e dos gestos significativos).
Finalmente, mas não menos relevante, os filmes de Pedro Costa têm vindo a aproximar-se
de uma economia de produção e distribuição cinematográfica que se inscreve numa genea-
logia particular de cineastas que construíram a sua obra no interior e com a participação di-
recta das comunidades que filmam – num certo sentido, do cinema de Andy Warhol na
concentração formal e na elisão das fronteiras entre personagens reais e filmados (e os jogos
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que isso possibilita), mas certamente, com a obra de cineastas que, tal como o japonês Tsu-
chimoto Noriaki, que acompanhou durante anos as consequências trágicas para os habitan-
tes do lugar de Minamata do desastre ambiental ou da prática do colectivo das Produções
Ogawa que acompanharam ao longo de dez anos a resistência dos habitante da aldeia de San-
rizuka à construção do aeroporto de Narita (referidos por Thom Andersen no seu texto).
Os seus filmes parecem nessa medida oferecer cada vez mais um refúgio contra o es-
quecimento e uma possibilidade de reconquista para aqueles que neles intervêm, reinventando
de modo exemplar um dos papéis primeiros do cinema (o realizador fala do poder vingativo
do cinema no seu início, de Chaplin, “da possibilidade de vingança, sobretudo na ficção”).
Presente nos seus filmes desde logo, a combustão dos espaços (as fogueiras na noite do pri-
meiro filme, o vulcão em erupção que abre o segundo, as casas de fogo seco de Casa de Lava),
dos corpos (em No Quarto da Vanda, o Muletas que se salva do fogo por um triz, as fogueiras
que ardem dia e noite nas Fontainhas e à volta das quais a comunidade se reúne). Os quar-
tos carbonizados em que Lento surge de mão dada com Ventura (e que contam uma histó-
ria verdadeira de desespero) em Juventude em Marcha recordam a frase de James Baldwin em
epígrafe, e que tão bem resume a recusa da assimilação e da invisibilidade a que as ilusões
de integração parecem querer remeter aqueles a quem o cinema de Pedro Costa dá presença,
corpo, peso e voz.

Ricardo Matos Cabo


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O NEGRO É UMA COR ou


O CINEMA DE PEDRO COSTA
João Bénard da Costa

Nos nossos dias, arte


radical significa arte sombria,
negra como a cor fundamental
Theodor W. Adorno

Méfiez-vous des roses noires


Il en sort une langueur
Épuisante et l’on en meurt
Robert Desnos

The Blackness of Black

De 30 de Junho a 5 de Novembro de 2006, a Fundação Maeght de Saint-Paul de Vence orga-


nizou uma exposição, “homenagem viva a Aimé Maeght”, no centenário do seu nascimento,
comissariada por Dominique Païni, à época director artístico da citada fundação.
O título era o mesmo da primeira exposição organizada por Aimé Maeght em Dezembro de
1946, em Paris: “Le noir est une couleur”, frase atribuída a Matisse e que em português tanto
se pode traduzir por “o negro é uma cor” como por “o preto é uma cor”, única língua que
conheço em que os termos são rigorosamente sinónimos.1 Em 1946, a seguir à guerra, o título,
sem esquecer as ruínas e os lutos, transformava-se em energia e esperança, em cor. Em 2006,
após cerca de sessenta anos, a frase de Matisse quase que adquire um sentido inverso, como
se, chegado o tempo de abandonar “os prazeres pueris das cores”, ficasse o negro, “fogueira
apagada, consumida, que cessou de arder”, “fim dos fins” a que talvez se siga – quem sabe?
– “o nascimento de um outro mundo” (Kandinsky).
O negro é uma cor? Longa polémica.
Durante a Idade Média, o negro foi cor interdita devido à sua associação com o demoníaco
ou com a melancolia.2 Só no Renascimento o negro se afirmou como cor nos retratos de
Lotto, Tiziano, Tintoretto, Dürer, Holbein, etc. Curiosamente, foi pelo realismo que o negro
se introduziu. Se de negro se vestiam os reis e nobres retratados, como pintá-los diversa-
mente? O maneirismo insinua-se por essa brecha. Fugindo ao idealismo renascentista, e em
plena época da Contra-Reforma, a grande pintura devia ser a de uma dramaturgia onde as
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trevas e as luzes violentamente se contestassem e violentamente contrastassem. Quanto


maior o negrume, maior a luminosidade. Cerca de cem anos mais tarde – as Pinturas Negras
de Goya – já só o negrume, que o sono da razão gera monstros e todos somos os filhos de-
vorados por Saturno. Goya levou às últimas consequências o tenebrismo do século prece-
dente, ou libertou a pintura de visões de luxo, calma e volúpia? Tinha que ir dar uma longa
volta pelo romantismo, pelo impressionismo e pelo simbolismo para responder e o tema do
artigo impõe-me limites.
Recordo apenas três pontos capitais para esse mesmo tema:
a) O negro como cor emblemática das vanguardas mais incisivas, desde Kandinsky e
Malevich às grandes obscuridades de Mark Rothko. Se há, na história da pintura do século XX,
quem o tenha usado como apelo da noite, ou apelo à noite, ou como expressão da “treva mais
que mística do silêncio” (as Iconostasis de Parmiggiani, por exemplo) a maior parte dos gran-
des pintores utilizaram-no ou como exorcismo ou como reforço da ameaça. The Blackness
of Black, para citar o título de uma tela célebre de Motherwell ou a aproximação a Beckett de
Judit Reigl. 3
b) O surto de novas artes figurativas (a fotografia, o cinema), de que grande parte da
história só se pode fazer a preto e branco ou com tintagens posteriores, químicas ou manuais.
No caso do cinema, do advento do sonoro aos anos 50-60, a grande parte da produção é
a preto e branco, tornando-o, como na profecia seiscentista de Kirscher, “a grande arte da luz
e das sombras”. Sobretudo o cinema americano, nos anos 40 e 50, foi, muito mais do que um
cinema expressionista, como hoje errada e apressadamente se diz, um cinema nocturno e um
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cinema negro, alegoricamente reproduzindo o combate das luzes e das trevas, com o branco
muito branco para as primeiras e o negro muito negro para as segundas. Nunca, talvez, o
negro tenha sido tanto uma cor como nessa época da história do cinema.
c) Mas a partir dos anos 60 (na América) e dos anos 70 (um pouco por toda a parte) o
preto e branco, no cinema (muito mais do que na fotografia, o que levaria a outra digressão)
desaparece, como desaparecera, nos anos 50, o onirismo tecnicolorizado, só surgindo em
casos excepcionais e por criadores que como excepção se assumiam.4 Ou seja, em épocas em
que lhe coube na pintura uma primazia e um significado fundamentais (no sentido do nosso
próprio fundamento) o negro deixou de ser uma cor no cinema, ou rarissimamente o foi, a não
ser como efeito especial (penso por exemplo no filme de Malick, The Thin Red Line (1998).
Sob este pano de fundo, posso passar à obra de Pedro Costa. Ou eu vejo tudo escuro ou
só nesse escuro ela se deixa ver com a sua assombrosa claridade.

Sangue escuro e Sarça Ardente

Em 1989, aos 30 anos, Pedro Costa iniciou o seu primeiro filme, O Sangue, estreado em
1990, e que obteve, nesse ano, a Menção da Crítica de Roterdão.
Com Pedro Hestnes Ferreira e Inês Medeiros (actores típicos desses anos, actores da
geração de Pedro Costa) nos protagonistas e ainda com secundários tão relevantes, na história
do nosso cinema e do nosso teatro, como Canto e Castro, Luis Miguel Cintra, Isabel de
Castro, Henrique Viana e Manuela de Freitas (parece o cast quase exemplar de um filme
“política e esteticamente correcto” desses anos).
O Sangue começa quase de noite ou quase de dia, à hora indistinta do escurecer e do cla-
rear. Antes de o sabermos, e durante alguns segundos é só o que sabemos, ainda não vimos
ninguém. Mas já vimos negro. O negro, o muito negro, dos planos negros do início do filme.
Misturados com eles, diversos ruídos: trovões, vento, motores de arranque e de desarranque.
De súbito – um dos começos mais súbitos de qualquer filme, como sempre sucederia depois
em filmes de Pedro Costa – vinda do escuro, a primeira personagem do filme está diante de
nós. Um rapaz alto, novo, magro, com expressão obstinada. É enquadrado a meio-corpo
(plano de busto) e se está diante de nós não nos olha a nós. Olha quem? A resposta não vem
de nenhuma palavra mas duma mão que atravessa rapidíssima o enquadramento e lhe dá
uma bofetada. Contraplano (ou novo plano?) e vemos quem deu a bofetada. Um homem
baixo, de meia idade, gordo, com uma expressão perdida. Novo contraplano (ou novo plano)
e voltamos a ver o rapaz. A expressão não mudou, continua a olhar o homem mais velho e
não esboça nem movimento de defesa nem movimento de resposta. Seguem-se mais dois
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contraplanos (ou mais dois planos), o primeiro do homem olhando o imóvel rapaz, o segundo
deste. Pela primeira vez, alguém fala. É o rapaz. E diz: “Faça de mim o que quiser.” O ecrã
volta a ficar todo escuro, todo negro.
Mas sabemos que entre aquele rapaz e aquele homem – filho e pai, como a seu tempo
saberemos – se perdeu a confiança. Só a morte é tão súbita, tão preparada e tão irremediável
como a confiança perdida. Diz-se “faça de mim o que quiser”, mas não há qualquer doação
ou qualquer entrega. Não há nada. Nada que se possa fazer. Nada que se possa dizer. Nada
que se possa ver. Escuro, muito escuro.
Como é escuro, muito escuro, o acordar das crianças na noite, que se segue a esses pla-
nos (ainda antes do genérico). “Acordam no meio da noite, tomados de um súbito e inven-
cível terror”, como nos anos 50 escreveu Nuno Bragança a propósito de Il Bidone (1955) de
Fellini. “Mais do que medo porque não tem objecto inteligível.” “O que são as coisas e o que
somos nós, no meio do verbo ser?” Este filme começa aí no meio do verbo ser, ainda não sa-
bemos quem é Nino, ainda não sabemos quem é a miúda que dorme ao lado dele.
À época, houve muito quem se espantasse com a opção de Pedro Costa de filmar a preto
e branco. Não era o vulgar brilho da pobreza nem o ardor banal da originalidade. Era mesmo,
pela raridade da película utilizada e pelo recurso ao grande operador alemão Martin Schäfer,
o luxo dessa produção barata. Nenhuma cor podia reproduzir o sonho ou o pesadelo que O
Sangue também é. Em noites dessas não se vêem cores. Por isso não foi por modas, moder-
nismos ou pós-modernismos que este filme é preto e branco. O preto é uma cor e essa cor é
a necessidade deste filme circulatório, onde o fondu é palavra proibida. “Mes faims, c’est les
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bouts d’air noir”, dizia Rimbaud, e podiam dizer as personagens d’O Sangue que “bateau
ivre” também é. Cercle noir sur fond blanc é um quadro de Malevitch, e se a luz se apaga e
acende, como se esconde e adormece no primeiro plano d’O Sangue, efeito de surpresa seme-
lhante ao negro inicial é o que nos dão as letras muito brancas do genérico, logo após a noite
das crianças. Passou uma eternidade e dela vem, na escola, a mulher do filme, fabuloso
contra-luz. Passará outra eternidade até vermos a luz do dia.
Mas Pedro Costa não inventou um novo preto e branco, como não inventou uma nova
história de amor, nem uma nova história de fantasmas.
Se Nicholas Ray (o Nicholas Ray de They Live by Night, 1948) visita O Sangue é porque
aquele rapaz, aquela rapariga e aquele miúdo “were never properly introduced to the world we
live in”. Por isso Vicente e Clara (o rapaz e a rapariga) se perguntam se os sonhos existem
mesmo. A resposta é a árvore assombrada. Ou melhor, as respostas são a árvore assombrada,
a dívida reclamada e o homem com um grande termómetro no chapéu. Na noite mítica do
amor, Vicente e Clara descobrem-se sós e têm medo. “Estás a tremer… Pede-me coisas… Mais
perto… Mais.” Um tal diálogo ouvia-se pela primeira vez n’O Sangue e voltar-se-ia a ouvir na
Casa de Lava, nos Ossos. Como nesses filmes, reencontramos os bichos mais famintos e mais
antigos que nos restam da magia negra. Eles ofuscam a magia dos juncos e dos pântanos,
ou a magia do plano final de Nino, no barco, de gorro e a olhar para nós. E reconhecemos
naquele imaginário o das águas envenenadas do poço de Stars in My Crown (1950) de Jacques
Tourneur (esse filme tão amado por Pedro Costa) como reconhecemos os zombies com
que nos passeámos. Os ogres de Laughton, as mulheres evanescentes de Siodmak. Um
dia, o cinema foi assim, e esse dia, transfigurado, só pode voltar a esse canto da infância, a
esse quarto escuro onde tudo estremece tão de dentro.
Houve quem visse no filme um lirismo desesperado e incerto que, no final, nos deixa
suspensos no longuíssimo plano do olhar de uma criança navegando de estígios antigos para
estígios novos. Mas as personagens escondiam algo de ainda mais terrível. Tão doces carnes
ocultavam a estrutura óssea que no filme seguinte o realizador começou a desvelar. Quatro
anos depois d’O Sangue (Cannes, “Un Certain Regard”) Pedro Costa olhou pela primeira vez o
mundo dos cabo-verdianos. O filme foi quase todo rodado na Ilha do Fogo, em Cabo Verde,
onde um vulcão adormecido de quando em vez retoma actividade. Nesse filme, pela primeira
vez, Pedro Costa usou a cor, que usaria, depois, em toda a obra futura. Mas usá-la-ia, sempre,
nas suas dominantes negras. Não há um só plano na obra de Pedro Costa (se o há, não o recordo
agora) em que as chamadas cores vivas (as “cores acidentais” de Buffon) sejam dominantes.
Algum leitor mais atento terá notado que, nos meus apontamentos sobre O Sangue, tornei
quase sinónimo, não o negro e o preto de que falei na introdução, mas o negro e o escuro. Ora
não são a mesma coisa. O escuro não é uma cor, mas é a origem das cores, como é também a
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origem do visível. Como dizia Goethe: “o olhar não vê forma nenhuma. São o claro, o escuro
e a cor conjugados que fazem com que o olhar distinga um objecto do outro.” “A realidade
é concebida ao mesmo tempo que o olhar.”5
Se O Sangue necessitava do preto (como necessitava do branco) para a sua evocação-in-
vocação, só nos confins das sombras há algo para ver. Do filme noir que O Sangue tende a ser,
é nos ditos confins das sombras que Pedro Costa situa a obra futura. Se o negro é o primeiro
grau do “escuro”, as cores prosseguem, encadeadas umas nas outras nesse ritmo tenebroso.
Daí que Casa de Lava, um filme quase todo situado durante a erupção de um vulcão, seja
simultaneamente um filme púrpura (“o mundo é um braseiro, tudo se incendeia”)6 e um
filme negro. O fogo e o mar, ou, para melhor rodear a poderosa metáfora líquida, a lava e o
mar. “Assim o amarelo, quando se alaranja pela intensidade e escurecimento, emite uma
radiação avermelhada que vai aumentando. A púrpura é, por conseguinte, a luminosidade no
escurecimento.” Mas a sua cor contrapolar, o violeta e ou índigo, mais “luminescente” e mais
escura do que o azul, vai desembocar no mesmo efeito.7
Mas Casa de Lava não se passa só na Ilha do Fogo para onde uma rapariga (de novo Inês
Medeiros) levou, de regresso à origem, um operário cabo-verdiano. O que se pode chamar
o prólogo do filme – sequências em Lisboa, na construção civil – são as do acidente quase
mortal (ou mortal) que o cabo-verdiano sofre. Por isso, na “sinopse oficial”, Pedro Costa
escreveu: “No início é o ruído, o desespero e o obscuro [sublinhado meu] […]. Morrer quer
dizer sair do Inferno […]. Mariana, plena de vida, pensa que talvez possam escapar juntos do
inferno. Acredita que pode trazer o homem morto para o mundo dos vivos. Sete dias e sete
noites mais tarde percebe que estava enganada. Trouxe um homem vivo para o meio dos
mortos.”
Entre mergulhos na casa dos mortos e ascensão a ela, entre erupções e lavas decorrentes,
Casa de Lava é um filme onde se pode passar mais facilmente da morte à vida do que da vida
à morte. De que se lembrava todo o tempo que estava morto o protagonista de Casa de Lava?
“Do sangue / do Escuro a lamber-nos / do teu cheiro / das tuas mãos.” Neste filme que
explode em ocre (vermelho púrpura) a cor do sangue é cercada por todos os lados pela cor
negríssima do mar.
E se o luxo d’O Sangue, como atrás referi, fora a fotografia a preto e branco, o luxo de Casa
de Lava é a presença não só, novamente, de um operador de excepção (Emmanuel Machuel)
como sobretudo, no papel mais entrelaçante do filme, a presença mágica de Edith Scob, vinda
de Les Yeux sans visage, de Thérèse Desqueyroux, de Judex e de Thomas l’imposteur, filmes de
Franju dos anos 50-60, para revisitar simultaneamente Musidora e Christiana, voltando a
ser o pássaro que esvoaça eroticamente, a mulher que dá realidade ao irreal, o outro lado das
mortes e reaparições do protagonista. Filme sobre um mundo de mortos-vivos, de zombies,
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religa, nessa explosão do espectro das cores, os nocturnos de Tourneur com as trevas de
Franju. “As trevas em cor é uma coisa que eu não entendo”, dizia Franju. A partir de Casa de
Lava, Pedro Costa começou a entendê-lo. E a suspender nelas o que delas emana.

A Descoberta dos Ossos

A que meio social pertencem as personagens d’O Sangue, vamo-lo sabendo, a pouco e pouco, ao
longo do filme. Dívidas e credores, professoras primárias, natais burgueses. Em Casa de Lava,
o acidente do operário e a nacionalidade deste recordam-nos como se fazia e faz a mão-de-obra
em Portugal nos anos 90. Imagens chamadas documentais viam-se neste último filme, bus-
cadas a um filme conservado por Orlando Ribeiro8 sobre a grande erupção do vulcão do Fogo,
em 1951. Mas, para além do fortíssimo sublinhado das sequências do operário, no início de
Casa de Lava, o meio social não é muito acentuado nos primeiros filmes de Pedro Costa,
como o não é qualquer matriz documental. Argumentos do autor são ficções, com partici-
pação relevante de actores vários.9
Ossos, estreado no Festival de Veneza em 1997, é o primeiro filme de Pedro Costa situado
quase integralmente no Bairro das Fontainhas, que, desde então até hoje, não mais deixou de
ser a morada de Pedro Costa, com a óbvia excepção do filme sobre os Straub de 2001 Onde Jaz
o Teu Sorriso? ou das 6 Bagatelas que o prolongam. Ossos é o último filme de Pedro Costa
onde ainda surgem alguns actores, ou melhor, algumas actrizes como Isabel Ruth ou Inês
Medeiros. Ossos é o último filme rodado em película por Pedro Costa, com o mesmo Machuel
de Casa de Lava. Também é o último filme com uma produção “convencional” assegurada,
como no filme anterior, por Paulo Branco. Ossos é assim o mais mutante filme de um rea-
lizador associado a mutantes, embora seja certo que os intérpretes “autóctones” (Vanda Duarte)
ainda não são eles próprios, como depois sempre sucederia, mas representam personagens.
O Sangue e Casa de Lava são filmes líquidos. A um e outro convêm os verbos irrompidos:
brotar, manar, derivar, mesmo se é verdade que a irrupção ou a erupção alagavam e incen-
diavam o mais íntimo. Fosse no preto e branco ortocromático, fosse no ocre e púrpura pan-
cromático, eram filmes escuros, muito mais que filmes obscuros.
Com Ossos, pelo contrário, toda a seiva parece retirada e todas as cores parecem a rever-
beração de uma ausência de cor original e circundante.
Ossos é um filme traçado em semifusas e o que fica é essa textura do que está para além
do cerne secreto, num filme traçado em “sons agudos e palavras orantes”, cortadas pelo tutano.
“E é outra ossatura mais forte / que o esqueleto comum, de todos / debaixo do próprio es-
queleto / no fundo centro dos seus ossos.” São versos de João Cabral de Melo Neto, de quem
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tanto me lembrei ao ver o filme, sozinho numa manhã do Monumental. A resistência dele
é, em termos de João Cabral, a do “aço do osso, que resiste / quando o osso perde seu cimento”.
Já imaginaram cor para esse aço ou para esse osso? São as cores que aparecem na fronteira
entre o corpo e as coisas, são as cores que se adequam aos “sons agudos e palavras orantes”,
cores sinestésicas como as do célebre poema de Rimbaud. E, dessas cores, prevalece a vogal
inicial, “o A noir”, “golfes d’ombre”.
“Os ossos são a primeira coisa que se vê nos corpos” disse Pedro Costa numa entrevista. Mas
são também a última coisa que resta deles. O que mais me espanta neste espantoso filme é que
ele vai, incessantemente, osseamente, brancamente, do mais exposto ao mais oculto, da
evidência básica da nossa imagem à da desaparição dela. É um filme de corpos vivos atraves-
sado pela morte ou por aquilo que na morte implica o desaparecimento dos corpos. É um filme
de mutantes, no mais radical sentido da palavra, pois que todos uns nos outros se mudam.
Este filme suporta, simultaneamente, duas visões tradicionalmente opostas. Uma coloca
em primeiro plano a realidade social que é o Bairro das Fontainhas (ou a secção dele onde vivem
os protagonistas) e escancara-nos existências que João Miguel Fernandes Jorge, num texto
admirável, situou num “post-humano português, se, acaso, as nacionalidades permanecerem
na linguagem cifrada do replicante”. E continuou: “Neste filme mostra-se como se ultra-
passou um tempo histórico e social. Como a comunidade na qual nos inserimos já é outra.
Como já não se situa no ponto exacto onde cada um de nós ainda a concebe. A ficção fílmica
alastrou a toda a geografia portuguesa e, nisso, o filme tem também força documental.”
Mas uma outra visão, que não anula nem abala esta, pode colocar em primeiro plano
uma realidade fantasmagórica, se o fantasma é, como foi na pintura veneziana do século XVI
(Giorgione ou o primeiro Tiziano que os grandes planos e a composição do quadro neste
filme tão fortemente evocam) um ex-novo da realidade. A uma tal visão, a visão do filme
reflecte a das primeiras páginas d’Os Cadernos de Malte Laurids Brigge, aquelas que Rilke
escreveu na Rue Toulier, em Paris, perto do Val de Grâce, hospital militar. Como Rilke, Pedro
Costa viu cheiros, sons, e o medo, sobretudo o medo. Viu casas singularmente cegas. Viu bebés
embrulhados em plástico ou a dormir debaixo de camas. Viu um rapaz a correr e viu-o, por três
vezes, beber a água de um chafariz. Viu janelas como molduras e viu como são fortes os
fechos das portas. Viu muros esburacados de inscrições, restos de graffiti políticos de antanho.
Viu troncos de árvores miseráveis. Viu rafeiros a ladrar. Viu mulheres a sufocar em barracas
e a aspirar andares alheios. Viu um corpo caído no chão de um hospital e viu os que não
viram esse corpo. Viu um corredor enorme com muitas portas e lâmpadas amarelas. Viu fru-
tos e miolo de pão. Viu as doenças que não deixam ficar com ninguém. Viu fogões de gás com
as torneiras todas abertas, único sopro ainda possível ou jamais possível. E viu, como única
contra-imagem, os ruídos, o som que escava os ossos dos corpos aguentados neles.
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O “aço osso” deste filme são esses ruídos. Mas, e volta Rilke, “há alguma coisa aqui ainda
mais terrível: o silêncio. Nos grandes incêndios deve haver, às vezes, também, este instante de
tensão extrema. Os jactos de água apagam-se, os bombeiros deixam de subir escadas, ninguém
se move. Sem barulho, uma cornija preta desloca-se, lá em cima, e uma parede enorme, atrás
da qual o fogo alastra, inclina-se, sem barulho. Toda a gente fica imóvel e espera, de ombros
levantados, de rosto contraído em torno dos olhos, a terrível queda. Aqui, o silêncio é assim”.
O mais terrível desses silêncios (até porque não há silêncio) é o do plano na Praça da
Figueira, quando o pai, com o bebé nos braços, pede esmola para ele. Ao fundo, da estátua
do rei que foi trocada e não se sabe quem é, só se vê o pedestal. E nenhum dos transeuntes
com que o rapaz se cruza tem olhos, corpos enquadrados abaixo do pescoço, nenhum olhar
devolvendo o olhar do protagonista.
Como o mais terrível desse ruído é o do plano (repetido) à noite nas Fontainhas, com a
porta da casa aberta, as escadas e duas janelas iluminadas de amarelo, pouco antes ou pouco
depois de o marido de Clotilde dizer a Tina que pode ficar entre as pernas dela como ficou
entre as pernas de Clotilde.
“A morte não nos larga”, diz-se a certa altura. E Ossos é também uma dança da morte em
que a morte estabelece a semelhança entre as personagens e torna todas aquelas mulheres
espelhos umas das outras, como se a morte as fizesse todas iguais, na véspera ou no dia
seguinte de coisa nenhuma. Porque se os ossos são, em tradição cristã imemorial, a figura
usada para nos lembrar que somos pó e em pó nos havemos de tornar, neste filme a metá-
fora desdobra-se pela insistência (grandes planos) com que nos é recordado que eles são,
também, a parede contra a qual bate a morte, o limite da resistência e da vida. Ossos brancos.
Ossos negros.

No Quarto de Vanda e Na Carta de Ventura

Pedro Costa contou numa entrevista que, quando terminou a rodagem de Ossos e se deixou
cair numa cadeira extenuado, Vanda veio ter com ele e perguntou-lhe se o cinema tinha que
ser sempre assim, tão difícil, com tanta gente, tanto bulício, tanta maquinaria. Histórias? As
histórias dela, e as histórias de tantas e tantos como ela, davam dezenas de filmes. Porque não
vinha ele, ele Pedro Costa, até à beira dela, ela Vanda, e ficavam a conversar ou só os dois ou
com quem lá entrasse e muita gente entrava no quarto de Vanda, quando o quarto de Vanda
ainda era nas Fontainhas.
Vanda Duarte tinha sido em Ossos a mais relutante a seguir as instruções do realizador,
a mais resistente às ordens do realizador. “Não havia maneira de fazê-la dizer o que eu
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O NEGRO É UMA COR - 25

queria nem fazê-la ir às marcas.” Pedro Costa começou então a pensar – há uma entrevista
em que diz a “sonhar” – “se o cinema não se fez para as pessoas dizerem o que querem dizer,
para as pessoas fora das marcas”. E um dia bateu à porta do quarto de Vanda e pediu licença
para entrar, com uma câmara de vídeo, um tripé e três reflectores de esferovite. Durante dois
anos (1998 e 1999) viveu nas Fontainhas, nas ruas das Fontainhas, na casa de Vanda e de
algumas pessoas mais, no quarto de Vanda. Foram esses dois anos em que o bairro foi arrasado,
supõe-se que com o louvável interesse de acabar com tais misérias, tais vergonhas, as chama-
das chagas sociais. Filmou 120 horas, com umas dezenas de moradores de que ficámos a
conhecer, por nome ou alcunhas, vinte e seis. Depois, aproveitou desse material 170 minutos.
Passou o vídeo a 35mm. E estreou-o em Locarno, em Agosto de 2000, quase dez anos depois
da primeira apresentação d’O Sangue.
No Quarto da Vanda. Também chamado “quarto das meninas”. É nele que mais tempo
estamos, é ele o espaço que melhor ficamos a conhecer. Mas não é todo o tempo do filme,
nem todo o espaço do filme. Que espaço é esse que não é o quarto da Vanda? Fora alguns
declarados exteriores, nunca sabemos ao certo se é dentro ou fora que estamos. Podem ser
casas ou ruínas de casa, ou restos de casa, ou caminhos entre casas. Relentos ou abrigos.
Mas fora ou dentro quase nunca se está certo, quase nunca é certo. O espaço, bem como o
tempo, perdeu fronteiras no bairro e para as pessoas dele. Antigamente, diz Vanda e confirma
Zita, não era assim, não foi assim. Mas como foi, quando ainda estavam orientadas, ou
quando ainda estão desorientadas?
Penso naquele plano da venda das couves. “Dona, quer alfaces ou couves?” Quem é que
está dentro? Quem é que está fora? Nunca se sabe bem. Há coisas que já só são o resto delas e
outras que são comidas por uma escavadora amarela, que parece um animal pré-histórico e,
quando actua, fica de olho vidrado, a olhar o que já consumiu. A própria ideia do “dentro”
passa a deixar de fazer sentido a não ser no quarto da Vanda. “Não há remédio: não podemos
deixar de ver.” “Jamais poderemos deixar de ver.” Mais uma vez o ecrã todo negro.
A esse negro, do outro lado do quarto de Vanda, responde o diálogo dela com Pango. Para
o doce Pango aquela vida “é a vida que a gente é obrigado a ter. Parece que é já um destino,
é um traço…” Vanda pergunta-lhe: “Achas?” e repete o que começa por afirmar: “É a vida que
a gente quer, acho eu.” Depois de ouvir a confissão daquele que saiu de casa para não fazer
mais mal à mãe, “não aguentou ouvir mais nada”.
Pedro Costa também não. Seguiram-se os anos dos seus filmes com os Straub, últimos
anos de vida de Danièle Huillet e dos sorrisos ocultos. Numa das 6 Bagatelas (DVCam) Straub
está na sala de montagem, talvez com passo mais ágil que jamais e diz a Danièle que está um
dia lindo lá fora. Aqui dentro, que me adianta isso, pergunta, entre o desabafo e o amuo, Danièle.
E estão jazendo dentro sempre mais dentro, sempre no negro, cor dos sepultados.
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Por esses anos, os habitantes das Fontainhas saíram do bairro ou o bairro saiu deles e
foram viver para horríveis prédios de horríveis imobiliárias, tentando reinventar neles o
quarto de Vanda que continua a existir. Já não existe a lista amarela, lista sórdida, onde Vanda
guardava a droga. A droga também já não existe, substituída pela metadona, mas, apesar de
uma aparente claridade, o negro ainda é mais negro agora do que era dantes.
Estou já a falar de Juventude em Marcha, filme de 2006, o filme de Ventura, aquele que
viveu um outro 25 de Abril a trabalhar na parede do Museu Gulbenkian, onde agora se podem
ver dois Rubens e um Van Dyck. E há a luz coada do museu e há as cores exuberantes de
Rubens, mas há sobre tudo e todos a mole negra de Ventura, esse a quem o filho pede um
dia que lhe conte a carta de amor.
Para mim, Juventude em Marcha, filme de ousadia e de fidelidade, para usar termos de
Pedro Costa, é o filme do homem que escreve uma carta de amor que outros homens já
escreveram. É – e também Pedro Costa o disse – “a história secreta daquele corredor negro”.
A 15 de Julho de 1944, Robert Desnos escreveu à mulher do campo de concentração de
Flöha uma última carta, a cerca de um ano da sua morte.
Diz que lhe queria oferecer “100 000 cigarros louros, doze vestidos de grandes costu-
reiros, o apartamento da Rua de Seine, um automóvel, a casinha da mata de Campiègne, a
de Belle-Isle e um raminho de flores de cinco tostões. Na minha ausência, compra à mesma
as flores, que eu tas pagarei. O resto, prometo-o para mais tarde. Mas, acima de tudo, bebe
uma garrafa de bom vinho e pensa em mim.” Ventura em Juventude em Marcha diz e rediz
ao filho para que este nunca mais a esqueça, a carta que escreveu há trinta anos: “Eu gos-
tava de te oferecer cem mil cigarros / uma dúzia de vestidos daqueles mais modernos / um
automóvel / uma casinha de lava que tu tanto querias / um ramalhete de flores de quatro
tostões / mas antes de todas as coisas / Bebe uma garrafa de vinho bom / Pensa em mim.”
“Para contar o amor e o sofrimento do Ventura foi preciso ouvir o amor e o sofrimento de
um poeta francês.”
Nem Desnos nem Ventura reencontraram as mulheres. Nem Desnos nem Ventura rece-
beram sequer resposta a essas cartas. Nem Desnos nem Ventura verão as mulheres que ama-
ram com os vestidos que sonharam. Em lugar de tudo isso ficou aquele plano fantomático
com que começa Juventude em Marcha, onde, para o saguão negro de uma ruína negra, uma
mulher (a mesma? outra?) atira janela fora os restos dos pertences do marido. “Julgo que vou
esquecer de mim” é a última linha da carta de Ventura. Não se esqueceu, na enganadora apa-
rência da memória. Mas esqueceu-se no corredor escuro. De cor que era ao tempo d’O Sangue,
o negro volveu-se na ausência de toda a luz. Sobreviver é repetir incessantemente uma carta
de amor ou, como Vanda, repetir incessantemente a história do dia em que deu à treva a
filha.
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O NEGRO É UMA COR - 27

Cá fora, no extremo de outro espectro da cor, uma cadeira encarnada, tão antiga como a
carta e tão sem eco como ela. O negro é uma cor? De que cor é então o estado do mundo que,
com outros cineastas, ele trajou em 2007, sob forma da caça ao coelho com pau?
Não o sei e não sei se Pedro Costa o sabe. Sei é que essa cor é a cor que nos circunda, nos
novos desertos em que os quartos se perdem e as juventudes se fixam.

1. Em 1980, Manoel de Oliveira projectou adaptar ao cinema a peça teatral de Vicente Sanches O Negro e o Preto.
O projecto nunca se concretizou, mas, nas referências que lhe foram feitas por comentadores estrangeiros, transpa-
rece a dificuldade de qualquer tradução. Jacques Parsi escolhe, em francês, Le Noir et le noir. Em inglês aparece The
Black and the Nigger, o que desvirtua totalmente o sentido inicial. Mesmo The Black and the Dark ou Le Noir et le Sombre
são coisas completamente diferentes. Nada a ver com Pedro Costa? Ver-se-á.
2. Cf. Gérard-Georges Lemaire, “La quête du noir” no catálogo da exposição referida, pp. 47-55.
3. Pense-se, ainda, no caso da pintora húngara, na série de obras New York September 11, 2001.
4. Obviamente não estou a pensar no Spielberg de Schindler’s List (1993), em que o preto e branco (aliás colorido) fun-
cionou apenas como efeito para “o grande e horrível crime”.
5. Cf. Philippe Blon, “Índigo – A Papoila de Goethe” in Cinema e Pintura, Ed. Cinemateca Portuguesa – Museu do
Cinema, Lisboa, 2005, pp. 85-120; cf. sobretudo, pp. 96-102.
6. Ibid., p. 99.
7. Ibid., p. 100.
8. Orlando Ribeiro (1911-1997) foi o mais marcante geógrafo português do século XX. Professor universitário de
grande prestígio, deixou uma obra vastíssima e muitas “reportagens” geográficas e fotográficas de erupções vulcânicas
(Cabo Verde, Açores).
9. Embora deva ser notado que o protagonista d’O Sangue é um miúdo não-actor (Nuno Ferreira).
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STILL LIVES
James Quandt

De todos os filmes apresentados em 2006 em Cannes, o momento mais chocante não foi
Paul Dawson a engolir o próprio esperma em Shortbus, de John Cameron Mitchell, nem Sergi
Lopez a suturar o rosto recém-esfolado com um kit de costura doméstico em El Laberinto del
Fauno de Guillermo Del Toro, ou mesmo o sortido de provocações sub-borowczykianas em
Taxidermia de György Pàlfi, que incluía uma erecção que também fazia as vezes de maça-
rico, um concurso para ver quem era mais rápido a comer seguido de vómitos abundantes,
gatos gigantes a devorarem as entranhas do dono que explodiu e o auto-embalsamamento
que proporciona ao filme o seu final de mortificação da carne. Nenhum destes momentos
à caça do escândalo conseguiu igualar o absoluto poder de desorientação do plano súbito de
um quadro – a Fuga para o Egipto, de Rubens, exposto no Museu Calouste Gulbenkian de
Lisboa – em Juventude em Marcha de Pedro Costa. Inserido numa fase adiantada da sucessão
aparentemente infindável de conversas declamadas em quartos decrépitos e sombrios, a
surpreendente aparição desta obra-prima do barroco holandês, com o seu cenário luxuoso e
tranquilo, funcionou como uma bofetada visual e tonal – a transição de plano como ataque
sensorial. (Maurice Pialat era um profissional destas montagens vertiginosas.) Mas as multi-
dões que tinham abandonado a projecção uma hora atrás, durante o primeiro monólogo
prolongado do filme, não estavam lá para saborear o golpe formal de Costa, sendo Juventude em
Marcha o género de obra exigente e calculada a que Cannes é cada vez mais hostil. Comparado
com o filme de Costa, muito do que se passou no festival foi complacência e lisonja.
O realizador português de quarenta e oito anos dificilmente terá ficado surpreendido com
o desprezo da crítica; há muito que os seus apoiantes têm sido escarnecidos como cultores
da depressão, devotos impávidos do seu tipo peculiar de pornomiseria lusitana. Costa encaixa
menos confortavelmente junto de compatriotas celebrados como Manoel de Oliveira e João
César Monteiro do que no grupo pan-europeu de miserabilistas que inclui o húngaro Béla Tarr,
o alemão Fred Keleman e o lituano Sharunas Bartas. Divergentes nas suas visões, partilham,
no entanto, uma propensão para o plano-sequência e a estrutura em tableaux, uma predilecção
por paisagens desoladas e por rostos atormentados, maltratados pela vida, e um sentido
dostoievskiano da existência enquanto inferno.
Costa demorou algum tempo a atingir o seu estilo rigoroso, deixando para trás a poética
romântica da sua impressionante estreia, O Sangue. Um daqueles primeiros filmes que
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30 - JAMES QUANDT

parecem ser a libertação de forças reprimidas – ideias visuais há muito alimentadas, home-
nagens acumuladas a filmes e realizadores favoritos e um romantismo que não se via desde
os primórdios da obra de Leos Carax – O Sangue lembra-nos, em vários momentos, The Night
of the Hunter (Charles Laughton, 1955), Murnau, Bresson (a bofetada na abertura é uma
referência directa a Mouchette, 1967), Cocteau, El espíritu de la colmena (Víctor Erice, 1973),
Boy Meets Girl (Leos Carax, 1984). Um Traumspiel filmado em preto e branco carregado – a
luz do dia parece frequentemente noite cerrada – e com uma magnífica banda sonora de
Stravinsky, O Sangue desenrola-se entre o Natal e o Ano Novo, numa cidade ribeirinha de pro-
víncia. Dois irmãos, o jovem e frágil Nino e Vicente, o mais velho, que está profundamente
apaixonado por Clara, uma professora – “Salva-me. Só confio em ti”, diz-lhe ele num dos
momentos de cine-romantismo mais poderosos do filme –, são perseguidos por homens peri-
gosos (um tio de Lisboa e dois violentos cobradores de dívidas) após o desaparecimento do seu
pai. Simultaneamente conto de fadas, film noir, história de amor e mistério policial, O Sangue
foi também uma espécie de falsa partida, na medida em que o tom nocturno e sonhador, a cine-
filia evidente e o trabalho de câmara exibicionista não estabeleceram o verdadeiro caminho
de Costa, que progrediu em direcção a um cinema materialista e despojado.
Isto talvez não fosse ainda evidente no filme seguinte, Casa de Lava, com o seu acréscimo
de enigma numa isola nera no arquipélago vulcânico de Cabo Verde, invocando Stromboli,
terra di Dio (Roberto Rossellini, 1950) e I Walked With a Zombie (Jacques Tourneur, 1943)
(o poema de Desnos, que é tão importante em Juventude em Marcha, ouve-se aqui pela
primeira vez). Uma enfermeira portuguesa chamada Mariana (Inês Medeiros d’O Sangue)
viaja até lá para acompanhar um imigrante (Isaach de Bankolé) que ficou em coma na sequên-
cia de um acidente de trabalho em Lisboa. Enquanto ele jaz durante seis dias e seis noites
entre a vida e a morte, Mariana tenta reconstituir a história da existência dele nesta ilha de
areia vulcânica negra e gente supersticiosa e orgulhosa, mas quanto mais investiga mais
misteriosa (e perigosa) se torna a situação. Entre as muitas personagens enigmáticas com
que se cruza encontram-se uma viúva portuguesa, interpretada por Edith Scob, cujo filho
bem-parecido parece determinado a ser salvo – de quê? – por Mariana. Em Ossos, o primeiro
filme da trilogia que é concluída com Juventude em Marcha, a abordagem onírica e alusiva
de Costa cede lugar a um arsenal bressoniano – montagem elíptica, ausência de planos gerais
que contextualizem o espaço, pouca música extra-diegética, actores não-profissionais e inex-
pressivos que recitam os diálogos num tom monocórdico, uso do som de modo a substituir
a imagem e sugerir um mundo fora de campo, tratamento rigoroso e materialista dos objectos,
dos corpos e do espaço – que o realizador aplica a um tema e a um cenário decididamente
não-bressonianos: as vidas pobres e abandonadas nos bairros miseráveis dos subúrbios de
Lisboa.
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STILL LIVES - 31

O próprio título, Ossos, despojado até do artigo utilizado em O Sangue, dá alguma ideia
da austeridade esquelética que o filme se esforça por ter. Muito antes de L’Enfant (2005), dos
Dardenne, Costa conta a história do bebé de uma mãe adolescente com tendências suicidas,
cujo namorado, igualmente jovem e inexpressivo, usa a criança como adereço para mendigar
e depois tenta vendê-la – primeiro a uma enfermeira que foi bondosa para com ele e, a seguir,
a uma prostituta. (Ele esconde a criança dócil debaixo da cama enquanto tem relações sexuais
com a prostituta.) A sensação de desespero do filme é tão insistente e condensada que lembra
um dos mais deprimentes Fragmentos de Kafka, de György Kurtág, em que a heroína resume
a sua existência em seis palavras: “Dormi, acordei, dormi, acordei, vida miserável.” A mãe do
bebé tenta suicidar-se com gás, não uma mas duas vezes, a primeira das quais com o filho;
e a sua amiga mais próxima, uma mulher-a-dias, também usa um fogão a gás para se vingar
do pai.
As composições em bloco e a montagem elíptica de Costa, que por vezes nos obrigam a
transpor com dificuldade abismos de incidentes omitidos e relações ambíguas, sugerem
austeridade, tal como a sua predilecção por efeitos bressonianos – planos aproximados de
mãos, fechaduras e ombreiras de portas; a câmara que por vezes, durante um ou dois tempos,
mantém fixo o enquadramento depois de a figura o ter abandonado, indicando o som off um
espaço contíguo. Mas Ossos é mais sensual que ascético, move-se mais no pesar do que na
negação. Os grandes planos comoventes que Costa concede às suas personagens abjectas
raiam a beatitude – o pai de cabelo liso e comprido, com olhar distante, evoca uma das madonne
contemplativas de Bellini – e a iluminação refinada transforma dois planos simétricos de uma
fotografia, algumas chaves e maços de cigarros amachucados pousados num toucador ver-
melho em naturezas mortas coloristas. Costa também não está longe do virtuosismo: é óbvio
o seu prazer durante o longo e difícil travelling de acompanhamento do pai caminhando pela rua,
e por duas vezes faz uso de uma pouquíssima profundidade de campo para ostensivamente
produzir um efeito. O seu verismo cru cai por vezes em coincidências forçadas, de forma a
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32 - JAMES QUANDT

estabelecer relações entre as personagens, e ainda não abandonou completamente a utilização


de actores profissionais (Inês Medeiros no papel da prostituta, por exemplo). Em Ossos, Costa
ainda segura com firmeza o seu passaporte para aquilo a que Godard chamou “esta magnífica
região da narrativa”.
Mas abandona completamente esse domínio no filme seguinte, No Quarto da Vanda, a
obra-prima de Costa e um dos filmes mais extraordinários da última década. Aparentemente
insatisfeito com Ossos, Costa regressou àquele mesmo cenário do bairro da lata, que estava
então a ser demolido, para contar a história de uma das suas actrizes, Vanda Duarte, que
interpretou a amiga vingativa do filme anterior. O plano inicial de Costa era filmar integral-
mente No Quarto da Vanda no quarto epónimo, mas decidiu sabiamente estender o seu âmbito
a todo o Bairro das Fontainhas, um mundo claustral de toxicodependentes, bêbados e todo
o tipo de marginais, cercado por bulldozers e martelos pneumáticos, e em breve destinado
ao desaparecimento. O retrato de três horas que daí resultou possui uma densa plenitude;
é simultaneamente contido e coral, minimal nos seus meios mas prodigioso na sua visão. Ao
abandonar as afectações bressonianas de Ossos, Costa chega ao seu próprio estilo rigorosa-
mente empático, exigente, íntimo e intensamente observador. Inteiramente rodado com uma
câmara digital fixa – as figuras entram, saem e atravessam o enquadramento, e há sequências
inteiras que incluem a voz off de uma personagem que está, obviamente, próxima, mas fisica-
mente ausente do limite da imagem – e fotografado apenas com luz natural, mesmo na mais
escura das casas do bairro da lata, que são como grutas, No Quarto da Vanda alcança a
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STILL LIVES - 33

austeridade a que Ossos aspirava e contradiz o desespero fácil do filme anterior com a mais
simples das verdades: a vida pode brindar estas pessoas com um “absoluto desprezo”, como
afirma uma das personagens, mas, através das relações ténues que estabelecem entre si num
mundo que está literalmente a desabar à sua volta, elas afirmam o seu valor, a sua bondade
e a sua dignidade.
No seu quarto infestado de moscas, Vanda e a sua irmã Zita fumam heroína, raspando
ocasionalmente resíduos de droga das páginas de uma velha lista telefónica. Viciadas há muito
tempo, fumam e raspam droga durante o filme inteiro, mas também conseguem trabalhar;
Vanda, por exemplo, ganha a vida a vender couves e alfaces porta a porta. Após um par de
referências a uma mulher que tentou vender o seu bebé e depois o deixou, já morto, num
caixote de lixo (deduzimos que seja Tina, a mãe desesperada de Ossos), o filme abandona de
vez qualquer semelhança com a narrativa convencional e passa a acumular cenas aparente-
mente aleatórias de Vanda, da sua família e vizinhos e dos homens do bairro, pontuadas
por “pillow shots” influenciados por Ozu, cenas intersticiais do quotidiano do Bairro das
Fontainhas. O rachar, esmagar e triturar das infernais máquinas de demolição acompanham
por vezes estas imagens na rica paisagem sonora do filme, uma algazarra constante de cães,
miúdos e televisões barulhentas, de discussões, tosse e queixas. (Habitualmente, Costa evita
a música extra-diegética, mas tem um óptimo ouvido para “acidentes” que funcionam como
contraponto irónico; entre as composições que ouvimos fugazmente no esquálido mundo
de Vanda estão “Memories”, de Cats, o refrão “I’ve Got the Power” de “I’m Going to Get You”
e a mais bela das árias de Bach, “Agnus Dei, qui tollis peccata mundi”, do fim da Missa em
Si menor.)
No Quarto da Vanda é normalmente considerado um documentário, o que é conveniente
mas difícil de sustentar. A intimidade surpreendente com que Costa filma as suas personagens
– e elas são personagens, ainda que estejam a representar-se a si próprias – é obtida com
esforço, e é o resultado de muitos ensaios. Costa tornou-se amigo e trabalhou durante muitos
anos com alguns membros da comunidade das Fontainhas, e a naturalidade e a franqueza
com que os “actores” se entregam à sua (pequena e discreta) câmara resulta claramente dessa
solidariedade. Os momentos não são roubados mas ensaiados, registados, e depois organi-
zados de uma forma não muito diferente das elipses narrativas de Ossos; os pedaços dispersos
de história vão-se tornando gradualmente coerentes e claros, nomeadamente a prisão de Nela,
a irmã de Vanda, a morte de uma traficante de droga chamada Geny, o destino de Pedro, um
toxicodependente recuperado. Este último é visto pela primeira vez no início do filme, com
o corpo apertado no canto inferior direito do enquadramento, segurando uma labareda de
flores vermelhas e cor-de-laranja, um plano aparentemente inexplicável e arbitrário, sem
ligação a qualquer outra imagem ou história, até que, uma hora mais tarde, volta subitamente
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a aparecer numa longa e comovente sequência em que ele e Vanda discutem a asma de
ambos. Poucos documentários procedem de um modo tão intencionalmente fragmentário.
É claro que Costa também não está nada interessado em qualquer tipo de “ar” de docu-
mentário enquanto falso indicador de autenticidade. Trabalhando digitalmente pela primeira
vez, o que permite liberdade mas limita a precisão, Costa esforça-se por garantir que a ilumi-
nação e as composições sejam imaculadas, explicitamente belas: muletas encostadas a uma
parede, a brilharem sob uma luz escassa; um homem nu a lavar-se durante a demolição, com
cortinas de vapor soltando-se do seu corpo castanho e esguio; uma composição cubista de dois
rostos, usando espelhos que se cruzam; uma montagem poética de quartos vazios; um balde
de plástico vermelho cheio de isqueiros gastos, aninhados num saco verde-vivo; e uma
justaposição espantosa de dois cubos de luz azuis, um deles uma televisão tremeluzente, o
outro a porta aberta de um quarto distante, a flutuar na escuridão doméstica. Apesar de muito
se perder no crepúsculo dos interiores do bairro da lata de Costa – por vezes os rostos mal se
distinguem na escuridão – ele consegue evitar o negrume digital, transformando, por exemplo,
uma sequência de toxicodependentes a injectarem-se à luz da vela num Georges de La Tour
em versão submundo.
Ao contrário de Ossos, qualquer desespero em No Quarto da Vanda teria de ser conquis-
tado, considerando aquilo que vemos da imobilidade e pobreza destas vidas. Apesar de um
homem proclamar “Nós os beras nunca morremos, quem morre são os inocentes”, e de a
própria Vanda dizer “É triste, realmente este, o nosso país é o mais pobre e é mesmo, e o mais
triste”, o desespero parece um luxo na sua dura existência quotidiana. A atitude de Costa é
escrupulosamente isenta de julgamentos morais, e aborda a toxicodependência como nada
mais que um facto; um homem continua a limpar a sua barraca, com uma agulha pendurada
no braço, enquanto outro diz que vai pôr o lixo lá fora depois de se injectar. A pior coisa que
a heroína parece ter trazido a Vanda são os espasmos de tosse asmática. No Quarto da Vanda
também não é desprovido de humor. Um toxicodependente, de alcunha Blondie, está sempre
a arranjar o cabelo, enquanto outro se queixa de subir cinco lanços de escadas para pedir
esmola a uma velhota, que no final lhe dá dois iogurtes; enquanto desce, vai rezando para que,
pelo menos, sejam de morango. Dois drogados conversam acerca dos seus hematomas –
“Eu era um hematoma andante”, diz um deles – como donas de casa a compararem receitas.
A mãe de Vanda e de Zita ralha-lhes pela desarrumação dos quartos, como se elas fossem
Cindy e Marcia Brady, e elas respondem com maus modos, entre baforadas dos cigarros
carregados de heroína. Na sequência final, Zita brande uma pequena pistola e conta como
viu uma actriz sacar de uma arma semelhante das mamas gigantescas em Academia de Polícia.
Mas as gargalhadas não duram muito. Pouco depois, Zita está deitada na cama, pedrada, e o
barulho dos martelos pneumáticos, que estão a demolir o mundo dela e da irmã, fica cada vez
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mais próximo e mais alto. Ela desperta do seu torpor para brincar com uma criança cega,
seguindo-se um demorado plano da ruína de um edifício demolido que termina num ecrã
negro – uma escuridão repentina e envolvente, em que imaginamos os habitantes do Bairro
das Fontainhas a transformarem-se em fantasmas.
Em Juventude em Marcha, esses habitantes foram realojados no novo bairro lisboeta do Casal
da Boba, e muitos vivem em casas decentes de baixo custo, incluindo Vanda. Agora a tomar
metadona, Vanda ainda sofre de uma asma atroz, e o queixume agudo da sua voz contribuiu
sem dúvida para a fuga em massa da imprensa em Cannes quando ela se lança, logo no início
do filme, num longo monólogo acerca do nascimento da filha. No entanto, Juventude em
Marcha não lhe pertence a ela mas a Ventura, um velho trabalhador cabo-verdiano cuja mulher
– o seu nome, Clotilde, é um eco da personagem interpretada por Vanda em Ossos – o aban-
dona no princípio do filme. Uma alma perdida, a quem o nome Ventura assenta que nem
uma luva, empreende uma odisseia, vagueando de casa para barraca, de quarto para quarto,
ouvindo as histórias dos vários “filhos”, cuja verdadeira relação com ele nunca é clarificada.
A qualidade coral de No Quarto da Vanda é amplificada em Juventude em Marcha; as muitas
vozes dos tristes e espoliados que contam a Ventura as suas histórias têm qualquer coisa de
polifonia primitiva, cujo cantus firmus é a canção frequentemente repetida por Ventura, onde
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conta o que faria reconquistar Clotilde. (Para este efeito, Costa recorre a uma carta que o
surrealista francês Robert Desnos enviou do campo de Flöha, também uma inspiração para
Casa de Lava.) Ao contrário da promessa irónica do título português do filme, Juventude em
Marcha – uma frase exclamada num raro momento de alegria em Casa de Lava –, parece
bastante evidente que a juventude nunca estará em marcha no Casal da Boba.
Cada um dos supostos filhos de Ventura trouxe a sua história a Costa – muitas envolvendo
famílias destroçadas ou oportunidades perdidas – e tendo Costa filmado 320 horas (segura-
mente um recorde como rácio de filmagem!) ao longo de quinze meses, ensaiou rigorosamente
os actores, fazendo por vezes trinta takes para chegar à interpretação que desejava. (Nisto é
como Bresson, embora o objectivo deste fosse a mais completa neutralidade, e o de Costa uma
espécie de naturalismo estilizado.) Costa mantém a abordagem visual de No Quarto da Vanda,
mas restringe-a ainda mais. Filmadas com câmara fixa e luz natural, as takes de Juventude em
Marcha duram frequentemente muitos minutos. (A predilecção de Costa por grandes planos
de fechaduras de portas, mãos e corpos truncados ao estilo de Bresson regressa, desde Ossos.)
De vez em quando, Costa deixa ficar os erros, como quando Ventura chama “Zita” a Vanda
por engano – Zita que, descobrimos, morreu depois de No Quarto da Vanda –, e gosta que
a câmara registe detalhes inconsequentes mas agradáveis, como uma fila de garrafas que
estremecem com os passos pesados de Ventura. Uma mistura semelhante de acaso e rigor
é aplicada à banda-sonora, um denso acréscimo de sons registados em DAT com um ou
dois microfones: um vento enervante, o guincho agressivo de uma serra, gás a silvar para
dentro de um apartamento, cartas de jogar a serem batidas sobre uma mesa.
Ainda mais do que No Quarto da Vanda, Juventude em Marcha concentra-se na beleza.
Num certo sentido, o filme é sobre a luz e a sua ausência; nos seus interiores inacabados ou
em degradação, uma luz pálida, que mal consegue entrar, vai mudando, estagnando e recuando,
e Costa chama a atenção para este efeito, repetindo composições com diferentes tipos de
luminosidade. (Em No Quarto da Vanda, usa um eclipse para conseguir uma ênfase seme-
lhante.) Nos planos exteriores, comparativamente poucos, a luz agressiva do sol varre tudo,
decompondo edifícios de apartamentos brancos em planos construtivistas. Quando Costa
diz que os filmes de Mikio Naruse influenciaram Juventude em Marcha, pensamos primeiro
nas vidas pobres e marginais de algumas das personagens acossadas de Naruse (apesar de,
comparadas com as de Costa, estarem relativamente confortáveis). Mas depois lembramo-nos
do historiador de arte André Scala, que relaciona o cinema quotidiano de Naruse com a pintura
de género holandesa do século XVII e os seus parâmetros formais. Apesar da sua decrepitude,
os espaços fechados muito bem filmados por Costa, com a fonte de luz a surgir frequentemente
de uma janela ou ombreira de porta à esquerda, parecem versões actualizadas desses mesmos
interiores holandeses; poder-se-ia chamar aos seus grandes planos tronies. As composições
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de Costa – Paulo na cama do hospital, por exemplo – são frequentemente rentes ao chão,
com as personagens situadas no terço inferior do enquadramento, uma vasta parede branca
acima delas, e os mais impressionantes são os planos de Vanda, Ventura e do marido de
Vanda à mesa de jantar, com um candelabro em filigrana a marcar delicadamente a parte
central superior da imagem. (O estranho e deslocado globo terrestre atrás de Vanda é muito
Vermeer.)
Costa fez um documentário brilhante, Onde Jaz o Teu Sorriso?, sobre a dupla de realiza-
dores Jean-Marie Straub e Danièle Huillet enquanto estavam a montar o seu filme Sicilia!
(1999), e a influência da sua estética materialista é evidente em todo o Juventude em Marcha, e
certamente nas suas rigorosas imagens, filmadas no formato clássico, quase quadrado, de 1.37
– literalmente desajustado no cinema contemporâneo, posto que são poucas as salas que
ainda estão equipadas para projectar neste formato caído em desuso. Os monólogos em
Juventude em Marcha parecem inspirar-se nos filmes recentes de Straub e Huillet, como
Operai, Contadini (2001), em que camponeses italianos declamam de pé, numa paisagem. E os
breves planos de Arcádia urbana de um parque, árvores, água, sol, pássaros, uma auto-estrada
que Costa vai alternando na sua procissão de interiores parecem aqui menos herdeiros de
Ozu que os de No Quarto da Vanda; aqui lembram mais as cenas marítimas e de nuvens
esvoaçantes que Straub e Huillet intercalam com os interiores do século XVIII de Chronik der
Anna Magdalena Bach (1968).
Alguns críticos em Cannes queixaram-se de que Juventude em Marcha, além de ser um
aborrecimento cheio de pessoas desinteressantes e um gesto de turismo na favela tornado
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grande arte, era, na verdade, anti-cinema. Não há actores, não há movimentos de câmara, não
há música, ergo não há cinema, foi o raciocínio. A paciência vale ouro em Cannes, a derrisão
é a reacção mais fácil e, portanto, a grande obra de Costa foi, previsivelmente, objecto de troça
ou ignorada. Mas Ventura perdura de um modo mais tenaz na memória do que qualquer
outra personagem de Cannes, e nenhum outro filme no festival se aproximou da emoção
evocada por uma sequência em que ele está agachado, sem que lhe vejamos o rosto, a ouvir
um velho gira-discos portátil, ou pelo seu belíssimo gesto de parar a mão de um homem que
arranha freneticamente a superfície de uma mesa, para que ambos se possam sentar e
contemplar os seus destinos. No inesquecível grande plano final do filme, Ventura está deitado
numa cama enquanto toma conta do bebé de Vanda. Estamos novamente “no quarto da
Vanda,” com Costa a repetir conscientemente o plano final de Zita e da criança em No Quarto
da Vanda. Um realizador menor teria tornado o velho e a criança numa representação das
“idades do homem” ou numa banalidade do género “a vida continua”, mas o plano final e
demorado de Costa acumula simplesmente um sentido de imobilidade e de exaustão, de uma
vida suspensa no passado, desferindo um golpe com uma força tão serena que, no fim,
Juventude em Marcha [Colossal Youth no título inglês] parece mesmo colossal, um épico de
arte povera.
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STRAUB ANTI-STRAUB
Tag Gallagher

Pedro Costa define o seu Onde Jaz o Teu Sorriso? como “anti-straubiano. É o oposto da forma
como (Danièle Huillet e Jean-Marie Straub) fazem as coisas”.1
E, no entanto, o filme é também sobre “a forma como os Straub fazem as coisas – e talvez
seja o melhor filme alguma vez feito sobre o processo de fazer filmes”.2
É óbvio que Pedro Costa adora os Straub. “De repente, Godard pareceu-me muito velho,
quando vi [...] os filmes dos Straub. Eram os mais rápidos e furiosos, belíssimos, sensuais,
antigos, modernos.”3
Mas, ao vermos os primeiros filmes de Costa, podemos não nos aperceber disso. As
cores “bem marcadas” (é assim que ele lhes chama) de Casa de Lava e Ossos podem dever-se
ao facto de ter visto Dalla nube alla resistenza (1979) dos Straub e She Wore a Yellow Ribbon
(1949) de John Ford “completamente pedrado”.4 Mas mais que os Straub, as primeiras três
longas-metragens de Costa evocam Robert Bresson, Michelangelo Antonioni, Yasujiro Ozu,
Alain Resnais, Jacques Tourneur, Jean Renoir, Charlie Chaplin, Howard Hawks, Jean-Luc
Godard, Kenji Mizoguchi – e séculos de pintura. Apesar de as telas de Costa evocarem a
tradição, ele quer que tudo pareça novo, “como as primeiras coisas a aparecer no mundo”,
nas suas próprias palavras.5 De facto, os seus filmes transbordam de entusiasmo em fazer
cinema. E os três foram filmados com toda a parafernália da produção tradicional: dezenas
de pessoas e camiões com equipamento.
O que era um problema.
“Vi apenas 20% das coisas que devia ter visto diariamente porque o meu olhar era atraído
para a equipa de filmagem e assim; os meios e os fins não foram devidamente pensados. Foi
então que percebi que tinha de fazer as coisas de outra maneira. E percebi também que a
forma habitual de fazer filmes é completamente errada.”6
Assim, no seu filme seguinte, No Quarto da Vanda, Costa reduziu esta parafernália a
uma pequena câmara de vídeo, reflectores (em vez de projectores) e um operador de som.
Durante um ano, o realizador foi todos os dias para um bairro de lata de Lisboa, as Fontainhas,
que estava em demolição, e aí viveu com os seus habitantes. “De certa forma, este é o meu
primeiro filme, porque é a primeira vez que encontro a possibilidade de uma família.”7 Costa
filmou os seus actores ao longo de 130 horas, representando cenas e conversas baseadas em
acontecimentos das suas vidas naquela altura.
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Isto era liberdade, mas a arte precisa de restrições. Por isso, Pedro Costa nunca mexe a
câmara, e grande parte das sequências são filmadas em plano-sequência, num espaço pequeno
e limitado – uma sucessão de planos como os dos Lumière compostos para a sua câmara, e sem
contracampos, como em Hawks. E apesar de o estilo neo-Lumière ser “anti-straubiano”,
porque os Straub, na sua busca de clareza, constroem cenas a partir de vários planos (e contra-
campos), também pode ser “straubiano”, como explica Jean-Marie em Onde Jaz o Teu Sorriso?:
“Há quem se cinja à realidade e não use a imaginação, a imaginação limitada de criaturas
limitadas. E depois há quem distorça a realidade em nome da suposta riqueza da sua imagi-
nação.”
Straub desaparece atrás da porta, mas volta:
“O facto é que [...] a imaginação está muito mais limitada no trabalho da segunda famí-
lia do que no da primeira. É porque há menos paciência no trabalho da segunda família e,
como alguém disse um dia, o génio humano não é mais do que uma boa dose de paciência.
Porque quando se possui essa boa dose de paciência, com ela vêm também as contradições. De
outra forma, não haveria tempo para contradições. A paciência duradoura está necessariamente
imbuída de ternura e violência. [...]
Primeiro tem-se a tentação de mostrar uma montanha. […] Depois, um belo dia, percebe-
mos que o melhor é ver o menos possível.

Dá-se uma espécie de redução que não é bem uma redução, é antes uma concentração,
que acaba por nos dizer mais. Mas isto não se consegue de um dia para o outro! É preciso
tempo e paciência. Depois, até um suspiro se pode transformar num romance.”
Também em Costa, como em Ford, olhar para pessoas que olham é mais interessante do
que olhar para o que elas vêem. E, em No Quarto da Vanda, Costa dedica-se a deixar que a
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pessoa se mostre, contrariamente às suas tentativas bressonianas iniciais de apanhar as


pessoas em fragmentos.
E há ainda uma ênfase renovada na clareza. Se os Straub procuram ser “claros, inteligentes
e interessantes”, Costa tem por hábito ser inteligente, interessante e desafiador – desafiando
o espectador a encontrar a ligação entre um plano e o seguinte. Estaremos no mesmo lugar?
No mesmo ano? Será esta a mesma pessoa? Homem ou mulher? Só a correspondência certa
fará sentido – talvez. Se o enredo do seu filme mais recente e mais straubiano, Juventude em
Marcha (montado a partir de 340 horas de gravações feitas ao longo de 15 meses com as
pessoas de No Quarto da Vanda), não é imediatamente “claro”, talvez seja por não percebermos
português, mas será decerto porque Costa nos quer desafiar, porque a consciência do herói
é surreal e porque (ao contrário dos seus filmes em película) é raro vermos os rostos clara-
mente, e quase nunca os olhos.

Os olhos são, de facto, quase tudo para cada um dos realizadores de que Costa gosta (e
que têm um papel importante no seu primeiro filme). Pense-se nos olhos esbugalhados de
Chaplin; a obsessão de Ford com os olhos. Os Straub até ensinam os seus actores como fixar
o chão de forma a que lhes consigamos ver os olhos, Costa mostra-os a contar isto em Onde
Jaz o Teu Sorriso?. Mas mesmo em Onde Jaz o Teu Sorriso?, só vemos Jean-Marie em planos
gerais pouco iluminados, e quase nunca os olhos de Danièle.
Ao longo de 6 semanas, Pedro Costa e Thierry Lounas, seu assistente, filmaram 150 horas
na sala de montagem dos Straub no Fresnoy, onde o casal, em 2001, aceitara, com relutância,
participar na série de televisão francesa Cinéma, de notre temps – mas sem iluminação.8
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STRAUB ANTI-STRAUB - 43

O Fresnoy é um estúdio de artes multimédia situado perto de Lille. Os Straub, conta Costa,
montavam cinco cortes por dia “no máximo, e trabalhavam das 10 às 5”. Estavam a montar
ali porque lhes davam gratuitamente a sala, mais uma cópia do filme, em troca de um
seminário. “No primeiro dia, [apareceram] 30 pessoas, no segundo 15, no terceiro 5; no final
já só vinham duas.”9
Para Costa, foi como estar uma segunda vez no quarto da Vanda – um outro espaço limi-
tado. E tal como Vanda Duarte e os seus amigos “projectavam algo para fora das suas quatro
paredes [...], o Jean-Marie e a Danièle tinham um sonho, e estavam agora ali a montá-lo.”10
Assim, se Onde Jaz o Teu Sorriso? é, por um lado, o retrato de um casal notável e fascinante,
os maiores realizadores do último quarto de século, e uma análise da sua estética, por outro
lado é também um filme de Pedro Costa, que, como toda a sua obra, é a vários títulos “anti-
straubiano”.
Costa, para dar um exemplo, combina de forma criativa imagens e sons captados separada-
mente, como sempre fizeram os realizadores. Mas os Straub não. Quando, por exemplo, filmam
uma conversa num comboio em movimento, e alternam entre personagens, recusam a solução
mais fácil, que seria gravar sons do comboio e acrescentá-los à mistura mais tarde, para que
sejam contínuos ao longo de toda a cena. Em vez disso, propõem-se a tarefa impossível de
acertar os sons do comboio de plano para plano.
Porquê?
A mistura, explicam-nos os Straub, cria uma “sopa”, um caldo onde tudo se afunda, mistu-
rado. Nenhum dos elementos mantém a sua autenticidade. Mas a realidade é mais rica que a
nossa imaginação, e a arte só sairá empobrecida se despejarmos tudo para dentro de uma sopa.
Os Straub demonstram que a tarefa da montagem é clarificar: primeiro, através de uma
geometria coerente dos ângulos de filmagem; depois, cortando a meio do movimento; ou
então observando uma personagem antes de ela começar a falar, o que lhe realça a psicologia.
Será que precisamos de mais 35 ou 36 fotogramas para nos apercebermos daquele sorriso
escondido? Os Straub discutem durante horas, razão pela qual apenas têm tempo para cinco
cortes por dia. Mas o resultado é a clareza.
Costa, pelo contrário, usa os cortes para desafiar o espectador.
Também com os actores, o objectivo dos Straub é clarificar. Tal como Costa, os Straub
viveram com os seus actores. E falam-nos do seu esforço para suscitar o entusiasmo dos
actores por fazerem 30 takes, depois de longos dias de trabalho nos empregos habituais. Os
Straub contam-nos como ensinam os seus actores a, depois de ouvirem o som da claquete,
levarem o tempo necessário a “[…] acalmar-se, concentrar-se, pensar, meditar e entrar em
sintonia com o corpo. [...] As coisas só ganham existência quando têm um ritmo ou forma
próprios. É da forma do corpo que nasce a alma, não me canso de o dizer.”
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A liberdade advém do domínio da técnica. Huillet compara a preparação da recitação dos


actores à de um pianista clássico, que repete vezes sem conta uma determinada passagem, até
todas as subtilezas se tornarem claras (“Espontaneidade, uma ova!”); até porem cá para fora
a alma em verso musical, não apenas com a voz, mas com o corpo inteiro, concentrando-se
nos olhos. As emoções jorram dos olhos como os raios do sol ou a lava de um vulcão.
A cada plano, os olhos saltam-nos à vista.

Em Costa, pelo contrário, e apesar dos seus retratos espantosos, que evocam Jan Vermeer
na utilização da luz, cor, atmosfera e uso das portas; que evocam Huillet-Straub pela sua imensa
sensualidade; apesar disso, as personagens de Costa parecem frequentemente separadas do

próprio corpo, mortos-vivos, que nunca estão bem aqui. Jacques Tourneur e não Straub. Será
que Costa instrui os seus actores a não pensarem nem meditarem, nem estarem em sintonia
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com o corpo? As personagens dos Straub e de Vermeer dominam o seu espaço, as de Costa
estão de visita. São formas, figuras em composições magníficas. Casa de Lava é uma sucessão
de jogos maravilhosos com a profundidade de campo e o primeiro plano, que inclui um
bailado de sedução entre amantes de costas voltadas – são figuras, mesmo quando há rostos.
E apesar de haver em Casa de Lava bastantes olhos bem abertos e fixos (por oposição aos
seus filmes em vídeo), Costa nega-nos ainda assim o acesso às suas personagens, seja para nos
mostrar como são poucos os pontos de contacto entre as pessoas, mesmo entre amantes –
como em Antonioni. Os actores de Costa não recitam como os dos Straub, que assim nos
oferecem uma porta de entrada especial, uma clareza obtida através de ritmos treinados, vozes
como instrumentos musicais. Os diálogos de Costa são por vezes monocórdicos, emitidos em
curtas rajadas e muitas vezes elípticos e inescrutáveis, como os diálogos dos filmes em língua
inglesa de Antonioni – mais um desafio ao espectador. No entanto, conseguimos sentir uma
sensualidade straubiana de pessoas que impregnam profundamente o espaço à sua volta,
inundando-o com as suas vibrações, mesmo quando ali estão apenas de visita. De facto, em
Juventude em Marcha, mesmo quando sai de campo, Ventura continua de alguma forma ali.
É por isso que os espaços arquitectónicos antonionianos – brancos, novos e ainda vazios
– do Casal da Boba, o novo projecto governamental de realojamento dos habitantes das
Fontainhas, não esmagam Ventura.

O agente imobiliário poderá sublinhar as vantagens: “A casa é sua, cheia de sol”; só que
Ventura repara nas aranhas. No entanto, isto é o futuro, o paraíso. “Quando nos derem as
salas brancas”, reflecte Bete, “deixaremos de ver estas coisas” – as criaturas que imaginam
nas paredes velhas e sujas – “Acaba-se.”
Ventura vive, em parte, num mundo de fantasia, que Costa torna real; aí, passado e presente
co-existem, os mortos vivem, Lento morre duas vezes, as paredes têm criaturas e nem tudo
bate certo. A mulher de Ventura, conta-nos ele, tinha “a cara da Clotilde mas não era a Clotilde”.
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O que vem muito no espírito de Dalla nube alla resistenza, o filme dos Straub a partir de Ce-
sare Pavese a que se alude com reverência em Onde Jaz o Teu Sorriso?.
E, em Juventude em Marcha, as portas nem sempre comunicam, nem para o agente
imobiliário nem para Ventura. “É aquele pesadelo que eu sinto há mais de trinta anos”, diz
Ventura. “Uma aflição debaixo dos cobertores que me matava todas as noites. [...] Antigamente
enganava-me muito. Vinha do trabalho bêbado, acabava sempre numa cama estranha. [...]
Naquele tempo, as portas eram todas iguais.”
Juventude em Marcha tem mais portas do que qualquer outro filme na história do cinema
– em parte por causa da ansiedade de Costa quando estava a fazer Onde Jaz o Teu Sorriso?.

“Só ao fim de um mês é que consegui ver a porta [da sala de montagem]. Quando [finalmente]
a vi e ao Jean-Marie [a entrar e] a sair, percebi as possibilidades, a ficção, e o que estava por
detrás da parede.”2
No filme de Costa, Jean-Marie não pára de brincar com a porta. Começa uma frase.
Desaparece pela porta. Espreita e diz qualquer coisa. Desaparece. Volta a entrar, a falar. E assim
sucessivamente. Porta fora e porta dentro. Como é, aliás, seu hábito. Pedro Costa chama-lhe
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“o James Dean da Alsácia”.12 Canta e seduz a câmara, os alunos que estão na sala (e que não
vemos) e Danièle, que, à sua maneira, também representa para a câmara, ao voltar-lhe as
costas, ignorando-a.
Mas o namoro de Pedro Costa com as portas já é antigo.
Conta-nos o realizador:
“Um jornalista perguntou certa vez a Mizoguchi se ele gostava dos filmes de Ozu, ao
que Mizoguchi respondeu: ‘Com certeza’.
‘Porquê?’
‘Porque o trabalho dele [filmar portas] é muito mais difícil e misterioso que o meu.’
No Akasen chitai (A Rua da Vergonha, 1956) de Mizoguchi, há uma jovem que fecha a
porta e olha para nós, e a porta fecha-se-nos na cara. [...] Aquilo que vai acontecer é tão insu-
portável [que] não é possível o filme continuar. É o terror [...].
A ficção é sempre uma porta que podemos querer ou não abrir. [...] A ficção é [...] quando
nos vemos projectados no ecrã. […] Quando [realmente] vemos um filme, é quando ele não
[nos] deixa entrar, quando há uma porta a dizer: ‘Não entres.’ [...] É [então] que ficamos de fora.
Quando vemos um filme, transformamo-nos numa coisa diferente; passam a existir duas
entidades.”13
Não por acaso, o quadro que chama a atenção de Ventura no museu é a Fuga para o Egipto
(Peter Paul Rubens).
Um quadro é também uma porta, e talvez Ventura se veja a si próprio. Maria e o filho
seriam Vanda com a criança, e José seria Ventura. As suas vidas têm sido uma fuga, todas elas.
E, como em Rubens, também eles são mais vultos que rostos. Costa nem sequer nos mostra
a fuga de Zita, o seu funeral – Zita morreu durante as filmagens, depois de já ter participado
em No Quarto da Vanda.
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Em vez disso, (um pouco como Ford em The


Sun Shines Bright, 1953), Costa dá-nos apenas
o som de um funeral e das pessoas que a ele
assistem.
E Ventura (parafraseando o filme de Jean
Renoir, La Bête humaine, 1938) faz o elogio fú-
nebre: “Não foi o veneno que ela tomou. Foi
todo o veneno que tomaram por ela antes dela
nascer.”
Em Juventude em Marcha, todos procuram
uma casa. E quase todos os seus passos são en-
quadrados por uma porta. A vida é uma porta.
Por um lado, ninguém tem raízes; por outro,
tratam-se todos por pai, mãe, filho ou filha.
Quase nunca sozinhos, sentam-se uns com os
outros à mesa ou em cima de camas.
A perda não sara. Vanda pensa nas campas
da mãe e da irmã: “Até parece que estou de luto
por mim própria.” Ventura revive a morte de
Lento com uma faixa que se desenrola aos seus
pés, lembrando-me a morte de Mary (Maureen
O’Hara) em Long Gray Line (John Ford, 1955), tão
caro aos Straub; e, trinta anos depois, Ventura
estira-se na cama de Vanda, um eco de Lento,
morto no chão.
Agora a mulher de Ventura foi-se embora, o
seu bairro vai ser demolido, e ele vai reformar-se.
Juventude em Marcha é sobre a morte. Ventura
procura uma nova casa na brancura, tenta reunir
os “filhos” que durante anos ignorou (no início,
Bete recusa-se a abrir-lhe a porta de casa), e re-
flecte sobre o rumo da sua vida. Pelo caminho,
descobre um pouco sobre si próprio através de
uma série de encontros, um pouco à seme-
lhança do que acontece com Stefano em Sicilia!
(Straub/ Huillet, 1999); e também através da
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STRAUB ANTI-STRAUB - 49

memória do falecido Lento, o amigo de juventude de Ventura, que ele revive com o seu corpo
de agora. Diz Costa:
“Ventura é, de certa forma, uma personagem dúplice. Por um lado, vemo-lo a olhar para
os jovens; por outro, é um tipo que não é quem é, que vive no passado, que podia ser o irmão
do primeiro, ou um seu duplo. Lento, o amigo com quem joga às cartas, é o Ventura em mais
novo. É o mesmo, com um pouco de passado e de futuro.”14
Vivem todos na corda bamba. “É a vida que a gente quer”, convencia-se Vanda em
No Quarto da Vanda, quando estava viciada em heroína e o mundo desabava à sua volta. Mas
agora Vanda está a metadona. Treme com medo de morrer a qualquer instante. Treme tanto
que ensina o bebé a cantar: “A mamã está doente, filha!”, “A mamã acha que não te vai criar,
filha.” Apesar de tudo, Vanda tem, por ora, uma casa e uma família. “É a vida”, diz ela.
O cenário da sala de jantar de Vanda é a Versalhes da classe operária: lustre, globo do
Império, brancura.
A televisão nunca está desligada, e o seu som intromete-se entre as vozes, no lugar do
barulho dos bulldozers nas Fontainhas. Os olhos fitos na televisão, como estavam no funeral
de Zita. Mas que interessa isto, a sua dignidade é colossal. Ao mesmo tempo, é extraordina-
riamente engraçado observar Ventura a aperceber-se aos poucos de que a sua filha está casada
com o irmão.
As paredes brancas podem não ser deles, porque Ventura precisa de paredes escuras para
imaginar nelas coisas. E talvez Ventura não consiga reunir todos os filhos, mas por agora
vemo-lo a tomar conta de uma criança no último plano de Juventude em Marcha. O filme tem
um final feliz, ainda que ténue.
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“Nas casas dos mortos há sempre muitas figuras”, observa Ventura. Mesmo antes do final
do filme, vai visitar o falecido Lento a uma destas casas. “É uma casa branca que com o fumo
ficou escura. Imaginamos logo que tenha havido um incêndio; os vultos começam a aparecer”,
diz Costa.15 Sorriem do “medo que nós tínhamos de morrer naquela altura” – há trinta anos.
Costa filma-os como colossos, em contrapicado. Estão ligados não só pelas mãos dadas,
mas também pelo facto de Lento “devolver” a Ventura a carta de amor que este recitava
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STRAUB ANTI-STRAUB - 51

continuamente, e que Lento não conseguia decorar. E como é colossal a saudade que inflama
o mundo quando, por fim, Ventura fixa o seu olhar. “Adeus, Lento.”
“Temos que saber ver o fogo que se esconde numa pessoa ou numa paisagem”, afirmou
Pedro Costa, citando Paul Cézanne no filme dos Straub (Cézanne, 1989). “Devemos lutar
sempre pelo que Jean-Marie Straub disse: se não houver fogo num plano, se não houver qual-
quer coisa a arder num plano, então é um plano inútil.”

1. Pedro Costa no CalArts, 28 Setembro 2006, em conversa com Thom Andersen.


2. Ibid.
3. Ibid.
4. Pedro Costa, in Mark Peranson, “Pedro Costa: An Introduction”, Cinema Scope n.°27, Verão 2006.
5. Pedro Costa, “Seminar at The Film School of Tokyo, 12-14 March 2004”, in Pedro Costa: Film Retrospective in Sendai,
transcrição de Valérie-Anne Christen, tradução inglesa de Downing Roberts (Sendai, Japão: Sendai Mediatheque,
2005), pp. 130-49.
6. Mark Peranson.
7. Ibid.
8. As duas versões do filme de Costa – Cinéma, de notre temps e Onde Jaz o Teu Sorriso?, ambas em língua francesa –
diferem em parte quanto ao material usado. Uma e outra foram incluídas no DVD português (com legendas em
inglês).
9. Mark Peranson.
10. Ibid.
11. Ibid.
12. Pedro Costa, CalArts.
13. Pedro Costa, Film Retrospective in Sendai.
14. Costa, in Cahiers du cinéma n.°619, Janeiro 2007, p. 78.
15. Ibid., p. 76.
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POLÍTICA DE PEDRO COSTA


Jacques Rancière

Como pensar a política dos filmes de Pedro Costa? Num primeiro nível, a resposta parece
simples: os seus filmes têm aparentemente como objecto essencial uma situação que está no
centro do que está em jogo, em termos políticos, no nosso presente: a sorte dos explorados,
daqueles que vieram de longe, das antigas colónias africanas, para trabalhar nos estaleiros de
construção portugueses, que perderam a família, a saúde, por vezes a vida nesses estaleiros;
aqueles que se amontoaram ontem nos bairros de lata suburbanos antes de serem expulsos
para habitações novas, mais claras, mais modernas, não necessariamente mais habitáveis. A
este núcleo fundamental vêm juntar-se outros temas sensíveis: em Casa de Lava, a repressão
salazarista que enviava os opositores para campos situados no mesmo sítio de onde partiam os
africanos à procura de um trabalho na metrópole; a partir de Ossos, a vida dos jovens lisboetas
que a droga e a deriva social enviaram para os mesmos bairros de lata, para aí partilharem
a mesma vida.
Uma situação social não chega, porém, para fazer uma arte política, como também não
chega uma evidente simpatia pelos explorados e pelos desamparados. Exige-se habitualmente
que a isso se acrescente um modo de representação que torne essa situação inteligível enquanto
efeito de certas causas, e que a mostre como produzindo formas de consciência e afectos que
a modifiquem. Reclama-se que os procedimentos formais sejam governados pelo esclareci-
mento das causas e da dinâmica dos efeitos. É aqui que as coisas se complicam. Em nenhum
momento a câmara de Pedro Costa faz o trajecto habitual que a desloca dos lugares da miséria
para os lugares onde os dominantes a produzem ou geram; em nenhum momento o poder
económico que explora e desterra, ou o poder administrativo e policial que reprime e desloca
as populações aparece nos seus filmes; em nenhum momento nada que se pareça com uma
formulação política da situação ou um afecto de revolta se exprime pela boca das suas perso-
nagens. Dantes, alguns cineastas políticos, como Francesco Rosi, davam-nos a ver a máquina
que desterrava ou deslocava os pobres. Outros, como Jean-Marie Straub ainda hoje, tomam o
partido inverso, afastando a sua câmara da “miséria do mundo” para nos dar a ver, num qualquer
anfiteatro de verdura, evocador de grandezas antigas e de combates de libertação modernos,
homens e mulheres do povo que enfrentam a história e reivindicam orgulhosamente o projecto
de um mundo justo. Nada disso em Pedro Costa: nem inscrição do bairro de lata na paisagem
do capitalismo em mutação, nem instauração de um palco apropriado à grandeza colectiva.
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54 - JACQUES RANCIÈRE

Dir-se-ia que não se trata de uma escolha deliberada, mas da realidade de uma mutação
social: imigrantes cabo-verdianos, brancos de classe social baixa e jovens marginais já não
compõem nada que se assemelhe ao proletariado, explorado e militante, que era o horizonte
de Rosi e continua a ser o de Straub. O seu modo de vida, mais do que de explorados, é de
entregues a si próprios. Até os polícias estão ausentes do seu universo, tal como os comba-
tentes da luta social. Os únicos habitantes do centro que vêm por vezes visitá-los são as
enfermeiras: e, ainda assim, é uma fractura íntima que as leva a perderem-se ali, mais do
que os cuidados a prestar às populações doentes. E os habitantes das Fontainhas vivem a
sua condição de um modo que era condenado nos tempos brechtianos, como um destino,
que eles discutem no máximo para saberem se foi o céu, a sua escolha ou a sua fraqueza
que os submeteu a ele.
Mas então o que pensar da maneira como a câmara de Pedro Costa se instala nestes
espaços? Àquele que escolheu falar da miséria prescreve-se habitualmente que se lembre
que ela não é um objecto artístico. E, no entanto, Pedro Costa parece fazer exactamente o
contrário. Parece aproveitar todas as oportunidades para transformar o cenário das vidas
miseráveis em objecto artístico. Uma garrafa de água de plástico, uma faca, um copo, alguns
objectos espalhados numa mesa de madeira clara numa casa ocupada e eis que, com uma luz
rasante, surge a oportunidade para uma bela natureza morta. Se a noite descer sobre essa casa
sem electricidade, duas pequenas velas em cima da mesma mesa darão à conversa miserável
ou a uma sessão de chuto um ar de claro-escuro holandês do Século de Ouro. O trabalho das
retroescavadoras constitui uma oportunidade para pôr em relevo, com o desabamento das
casas, cotos de betão esculturais ou grandes pedaços de parede, contrastantes, de cor azul,
rosa, amarela ou verde. O quarto onde a tosse da Vanda lhe dilacera o peito encanta-nos com
as suas cores esverdeadas de aquário, onde até vemos mosquitos a rodopiar.
À acusação de esteticismo podemos, é claro, responder que Pedro Costa filmou os lugares
tal como estavam: as casas dos pobres são normalmente mais sarapintadas do que as dos
ricos, as suas cores brutas são mais agradáveis ao olho do apreciador de arte do que o esteticismo
standard das decorações pequeno-burguesas e, já na época de Rilke, as casas esventradas
proporcionavam ao mesmo tempo aos poetas exilados um cenário fantástico e a estratigrafia
de um modo de habitar. Mas o facto de Pedro Costa ter filmado estes lugares “tal como estavam”
quer dizer outra coisa, que diz respeito à política da arte. Depois de Ossos, renunciou a compor
cenários para contar histórias. Dito de outro modo, renunciou a explorar a miséria como
objecto de ficção. Instalou-se nesses lugares para aí ver viver os seus habitantes, ouvir-lhes a
palavra, apreender-lhes o segredo. A câmara que joga virtuosamente com as cores e as luzes
faz corpo com a máquina que dá àqueles actos e palavras tempo para se desenrolarem. Mas
a resposta que lava o autor do pecado de esteticismo provoca imediatamente outra suspeita,
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POLÍTICA DE PEDRO COSTA - 55

outra acusação: que política é essa que toma como seu dever registar, durante meses e
meses, os gestos e as palavras que reflectem a miséria de um mundo?
Em resumo, a crítica coloca as conversas no quarto da Vanda ou a errância de Ventura no
interior de um simples dilema: ou esteticismo indiscreto, indiferente à situação dos indiví-
duos em questão, ou então populismo que, pelo contrário, se deixa cair na cilada dessa
mesma situação. Mas isso é situar a abordagem do cineasta numa topografia bem mesquinha
do alto e do baixo, do próximo e do longínquo, do dentro e do fora. É situá-la num jogo
demasiado simples de oposições entre a riqueza das cores e a miséria dos indivíduos, entre
a actividade e a passividade, entre o que é dado e aquilo que é tomado. O método de Pedro
Costa esforça-se justamente por fazer explodir este sistema de oposições e esta topografia, em
benefício de uma poética muito mais complexa de trocas, correspondências e deslocações.
Para a abordarmos, vale a pena determo-nos num episódio de Juventude em Marcha que
poderia resumir, nalguns “quadros”, a estética de Pedro Costa e a política desta estética.
O episódio coloca-nos primeiro no cenário “normal” da existência de Ventura, o de um
trabalhador imigrante que partilha com um dos irmãos uma casa pobre. Ouvimos primeiro
a voz de Ventura a recitar uma carta de amor, enquanto a câmara se fixa num canto de parede
cinzenta que rompe o rectângulo branco de uma janela, diante da qual quatro garrafas de
vidro compõem outra natureza morta. Pressionada pela voz do amigo Lento, a recitação de
Ventura esbate-se lentamente. No plano seguinte, mudança brutal de cenário: à natureza
morta que servia de cenário à recitação sucedeu um outro rectângulo colorido, retirado de
uma parede ainda mais sombria, um quadro cujo recorte parece romper pela sua própria luz
o negrume envolvente que, porém, lhe toma as margens. Cores bastante semelhantes às das
garrafas desenham aí arabescos onde se consegue reconhecer a Sagrada Família fugindo para o
Egipto com um bom séquito de anjos. Anunciada por um barulho de passos, uma personagem
aparece-nos no plano seguinte: Ventura, encostado à parede entre o retrato de Hélène Fourment
pintado por Rubens, o autor da Fuga para o Egipto, mostrada no plano precedente, e um Retrato
de um Homem de Van Dyck.
As três obras são célebres e bem localizadas: estamos entre as paredes da Fundação
Gulbenkian. Não se trata evidentemente de um edifício situado no bairro de Ventura. Nada
no plano precedente anunciava esta visita, nada no filme indica que Ventura tenha um gosto
particular pela pintura. O realizador transportou brutalmente Ventura para este museu, que
a ressonância dos passos no chão e a iluminação nocturna nos fazem supor vazio de quaisquer
visitantes, requisitado para esta sequência. A relação entre os três quadros e a “natureza
morta” cinematográfica anterior, a relação entre a casa arruinada e o museu, mas também
talvez entre a carta de amor e a distribuição pictórica compõem, portanto, uma deslocação
poética bem específica, uma metáfora que, no interior do filme, fala da arte do cineasta, da
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56 - JACQUES RANCIÈRE

sua relação com a arte dos museus, da relação que cada uma delas mantém com o corpo da
sua personagem, e portanto da política de cada uma.
Num primeiro momento, podemos pensar que apreendemos esta política de um modo
muito simples. Num plano mudo, um vigilante, também negro, aproxima-se de Ventura e
murmura-lhe qualquer coisa ao ouvido. Enquanto Ventura sai da sala, o vigilante tira do bolso
um lenço e apaga o vestígio dos seus pés. Compreendemos: Ventura é um intruso. O vigilante
dir-lhe-á mais tarde: este museu é um refúgio, longe da algazarra dos bairros populares e
daqueles supermercados onde ele antes tinha de proteger as mercadorias do roubo genera-
lizado; é um mundo antigo e tranquilo, perturbado apenas quando por acaso aparece ali
alguém do mundo deles os dois. Isso já Ventura confirmara com a sua atitude, deixando-se
levar sem resistência para fora da sala e depois para fora do próprio museu, pela escada de
serviço, mas também já com o seu olhar, perscrutando um enigmático ponto, aparentemente
situado bem acima dos quadros. A política do episódio seria lembrar-nos que os prazeres da
arte não são para os proletários, mais precisamente ainda que os museus estão fechados aos
operários que os construíram. É isso que o diálogo entre Ventura e o vigilante do museu nos
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POLÍTICA DE PEDRO COSTA - 57

jardins da Fundação torna explícito, dizendo-nos por que razão Ventura está no seu lugar
neste sítio onde está deslocado: dantes não havia ali senão mato e pântanos povoados de rãs.
Foi ele quem limpou o mato com outros operários, quem terraplanou, quem fez as canali-
zações, transportou os materiais, pôs no seu lugar a estátua do fundador e lhe semeou erva
aos pés. Foi também ali que caiu de um andaime.
O episódio seria, portanto, uma ilustração do poema de Brecht que pergunta quem
construiu a Tebas das sete portas e outros esplendores arquitectónicos. Ventura representaria
aqui todos os que construíram à custa da sua saúde e da sua vida os edifícios cujo prestígio
e fruição ficaram reservados a outros. Mas esta lição simples não justificaria que o museu
estivesse deserto, vazio até daqueles que desfrutam do trabalho dos Venturas; não justificaria
que as sequências filmadas no interior do museu fossem inteiramente silenciosas; que a
câmara se demorasse no betão das escadas de serviço pelas quais o vigilante conduz Ventura;
que ao silêncio do museu sucedesse uma longa panorâmica por entre as árvores, pontuada
por um canto de pássaros, nem que Ventura contasse por ordem a sua história, desde o dia
preciso da sua chegada a Portugal, 29 de Agosto de 1972, e que a sequência se detivesse
brutalmente na designação do local de onde Ventura caiu um dia. Ventura é aqui algo
completamente diferente de um trabalhador imigrante que ilustre a condição dos seus. A
vegetação do cenário, a posição de Ventura, inclinado por cima do vigilante, o tom solene das
suas palavras que parecem recitar um texto que o habita, tudo isso está o mais longe possível
de qualquer crónica da miséria. Ventura é aqui um contador da sua própria vida, um actor
que manifesta a grandeza singular dessa vida, a grandeza de uma aventura colectiva à qual
o museu parece incapaz de fornecer um equivalente. A relação da arte de Pedro Costa com
aquilo que está exposto nas paredes do museu excede a mera demonstração da exploração do
trabalho ao serviço do prazer do esteta, da mesma maneira que a figura de Ventura excede a
do trabalhador despojado do fruto do seu trabalho. Para compreender isto é necessário
inscrever a sequência num núcleo bem mais complexo de relações de reciprocidade e
não-reciprocidade.
Em primeiro lugar, o museu não é o lugar da riqueza artística por oposição à indigência
do trabalhador. Os arabescos coloridos da Sagrada Família não mostram nenhuma superio-
ridade evidente em relação ao enquadramento da janela e das quatro garrafas da habitação
pobre dos dois operários, e a moldura dourada que a encerra aparece como um recorte do
espaço mais mesquinho do que a janela dessa habitação, um modo de anular o que a rodeia,
de tornar desinteressantes as vibrações da luz no espaço, os contrastes de cores nas paredes,
os ruídos do exterior. O museu é o lugar onde a arte está encerrada nesta moldura sem trans-
parência nem reciprocidade. É o lugar de uma arte avarenta. Se exclui o trabalhador que o
construiu, é porque exclui o que vive de deslocações e de trocas: a luz, as formas e as cores
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58 - JACQUES RANCIÈRE

cambiantes ou o rumor do mundo, da mesma maneira que os trabalhadores vindos das ilhas
de Cabo Verde. É talvez por isso que o olhar de Ventura se perde algures na direcção do tecto.
Poderíamos pensar que visa já em pensamentos o andaime donde caiu. Mas também pode-
mos pensar noutro olhar para o ângulo de um outro tecto, no novo apartamento que visita
conduzido por um outro irmão de Cabo Verde, muito parecido com o empregado do museu:
igualmente seguro de que Ventura está ali fora de sítio, neste lugar que reclama para uma
família imaginária, igualmente preocupado em apagar os vestígios do intruso neste lugar
asséptico. À sua lábia, gabando os equipamentos sócio-culturais do bairro, Ventura opôs
apenas um braço esquerdo majestosamente estendido para o tecto e uma frase lapidar: “Está
cheio de aranhas.” Nem o funcionário municipal nem nós estamos em condições de verificar
a presença das aranhas no tecto. Talvez seja Ventura quem tenha, como se costuma dizer,
“uma aranha no tecto” [“Avoir une araignée au plafond”: expressão francesa equivalente a
“ter macaquinhos no sótão”]. E mesmo supondo que estes insectos se passeiam de facto
pelas paredes da habitação social, isso será certamente coisa pouca em comparação com a
lepra que corrói as paredes da casa do amigo Lento ou de Bete, e nas quais “pai” e “filha”
se divertiam, como bons discípulos de Leonardo da Vinci, a ver toda a espécie de figuras
fantásticas desenhadas. Mas o erro das paredes brancas da casa no bairro social que acolhe
o proletário – tal como o das paredes sombrias do museu que o rejeita – é precisamente esse,
o de rechaçar essas figuras aleatórias em que a imaginação do proletário, que atravessou os
mares, afugentou as rãs do centro da cidade e escorregou do andaime, se pode igualar à do
artista. A arte pendurada nas paredes dos museus não é apenas ingrata em relação ao construtor
de museus. Também é avarenta em relação à riqueza sensível da sua experiência, como àquela
que a luz faz brilhar nas casas mais miseráveis.
É o que diz já a narração de Ventura ao contar a sua partida de Cabo Verde no dia 29 de
Agosto de 1972, a chegada a Portugal, a transformação de um paul em fundação de arte, e a
queda. Colocando Ventura neste cenário, Pedro Costa também lhe fez ganhar um tom à la
Straub, o tom da epopeia dos descobridores de um mundo novo. O problema, então, não
é abrir os museus aos trabalhadores que os construíram, mas fazer uma arte à altura da
experiência desses viajantes, uma arte que provenha deles e que eles possam, por sua vez,
partilhar. É o que nos mostra, depois da queda brutal da narrativa de Ventura, o episódio
seguinte, construído como um duplo regresso: um regresso à leitura da carta e um flash-back
do acidente. Vemos Ventura com a cabeça ligada voltar a uma barraca de madeira com o tecto
devastado, sentar-se acabrunhado a uma mesa, exigir imperiosamente a Lento que venha
jogar às cartas e, enquanto bate ruidosamente carta após carta, retomar a leitura da carta de
amor que quer ensinar a Lento, o analfabeto. Esta carta, várias vezes recitada, serve de refrão
ao filme. Fala-nos de uma separação e de um trabalho nos estaleiros longe da amada, mas
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POLÍTICA DE PEDRO COSTA - 59

também de um reencontro próximo que irá abrilhantar duas vidas por vinte ou trinta anos,
do sonho de oferecer à amada cem mil cigarros, vestidos, um automóvel, uma pequena casa
de lava e um ramo de flores de quatro tostões, e do esforço para aprender cada dia novas pa-
lavras, palavras belas talhadas à medida apenas de dois seres, como um pijama de seda fina.
Ventura não tem ninguém a quem enviar esta carta, feita para uma só pessoa, mas ela é na
realidade o seu desempenho artístico, que ele gostaria de partilhar com Lento porque é o de-
sempenho de uma arte da partilha, de uma arte que não se separa da vida, da experiência dos
deslocados e dos seus meios para preencherem a ausência e para se aproximarem da pessoa
amada. Mas também a carta pertence tão pouco a Ventura como a este filme. Ela escandia já,
mais discretamente, o filme “ficcional” de que Juventude em Marcha é como que o eco e o
avesso: Casa de Lava, a história da enfermeira que vai para Cabo Verde para acompanhar
Leão, um trabalhador com a cabeça fracturada, como a de Ventura, num outro estaleiro.
A carta aparecia primeiro nos papéis de Edite, a exilada da metrópole que foi para Cabo
Verde para estar perto do amante enviado pelo regime salazarista para o campo de concen-
tração do Tarrafal, e que aí ficou depois da morte deste, adoptada, no seu descaminho, pela
comunidade negra que ela sustentava com a sua pensão e que lhe agradecia em serenatas. A
carta de amor parecia, portanto, ter sido escrita pelo condenado. Mas no hospital, à cabeceira
de Leão, Mariana dava-a a ler à jovem Tina, irmã do ferido, pois estava escrita em crioulo; Tina
apropriava-se da carta, que se tornava então para o espectador uma carta enviada, não do
campo da morte pelo deportado, mas de um estaleiro em Portugal por Leão. No entanto,
quando Mariana interrogava Leão por fim saído do coma, a sua resposta era peremptória:
como teria ele escrito aquela carta de amor? Não sabia escrever. E subitamente a carta já não
pertencia a ninguém em particular nem era dirigida a ninguém em particular; aparecia como
a carta de um desses escritores públicos, igualmente capazes de formular as emoções amo-
rosas dos iletrados e os seus requerimentos administrativos. A sua mensagem de amor per-
dia-se na grande transacção impessoal que ligava Edite ao militante morto, tal como ao
trabalhador negro ferido, mas também à cozinha da antiga cozinheira do campo ou à música
do pai e do irmão de Leão, com quem Mariana partilhara também o pão e a música, que não
queriam ir ver Leão ao hospital mas refaziam a casa dele, a casa onde só entraria pelas suas
próprias pernas, ao mesmo tempo que eles próprios se preparavam para partir para os esta-
leiros de Portugal.
É a esta grande circulação entre o aqui e o alhures, entre os militantes da metrópole e os
trabalhadores forçados ao exílio, entre os letrados e os iletrados, os sensatos e os desenca-
minhados, que pertence a carta que Pedro Costa dá a ler a Ventura. Mas, prolongando o seu
destino, a carta volta à sua origem, e uma outra circulação vem enxertar-se no trajecto dos
imigrantes. A carta foi, na verdade, escrita por Pedro Costa misturando duas fontes: uma
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60 - JACQUES RANCIÈRE

carta de trabalhador imigrante, mas também a carta de um “verdadeiro” escritor, Robert Desnos,
escrita sessenta anos antes num outro campo, o de Flöha na Saxónia, no caminho que o levou
a Teresin e à morte. Assim, o destino ficcional de Leão e o destino real de Ventura vêem-se
englobados no circuito que liga o exílio vulgar dos trabalhadores aos campos da morte. Mas
também a arte do pobre, a arte dos escritores públicos e a dos grandes poetas se vêem incluídas
no mesmo tecido: uma arte da vida e da partilha, uma arte da viagem e da comunicação para uso
de todos cuja vida é viajar, vender a sua força de trabalho e construir as casas e os museus dos
outros, mas também transportar a sua experiência, a sua música, a sua maneira de habitar e de
amar, de ler nas paredes ou de escutar os cantos dos pássaros e dos homens.
A atenção a todas as formas de beleza que as casas dos pobres podem apresentar – como
a escuta das palavras muitas vezes anódinas e repetitivas, no quarto da Vanda ou no aparta-
mento novo onde a encontramos desintoxicada, mais gorda e mãe de família – não releva,
portanto, nem do formalismo esteticizante nem da deferência populista. Inscreve-se numa
outra política da arte. Esta política é estranha à que constituía em espectáculo o estado do
mundo para apelar à tomada de consciência das estruturas da dominação e à mobilização
das energias. Encontra os seus modelos na carta de amor de Ventura/ Desnos ou na música
da família de Leão: uma arte onde a forma não se separa da construção de uma relação social
e da mobilização de uma capacidade que pertence a todos. Não se trata do velho sonho
vanguardista da dissolução das formas da arte nas relações do mundo novo. Trata-se de pensar
a proximidade da arte com todas as formas em que se traduz a afirmação de uma capacidade
para a partilha ou de uma capacidade partilhável. O pôr em relevo dos verdes no quarto da
Vanda não se separa da tentativa que Vanda, Zita, Pedro ou Nhurro fazem para examinar as
suas vidas e assim se reapoderarem delas. A natureza morta luminosa, composta com uma
garrafa de plástico e alguns objectos recuperados do lixo em cima da mesa de madeira clara
de uma casa ocupada está em harmonia com a teimosia do ruivo em limpar com a sua faca,
apesar dos protestos dos seus companheiros, as manchas desta mesa votada aos dentes da
retroescavadora. Não é a “miséria do mundo” que Pedro Costa filma, mas a sua riqueza, a
riqueza de que qualquer um se pode apoderar: a de apreender o esplendor de um reflexo de
luz, mas também a de falar à altura do seu destino. Mas trata-se também de fazer com que a
riqueza sensível e o poder da palavra e de visão que são subtraídos à vida e ao cenário das vidas
precárias lhes possa ser restituído, possa ser posto à sua disposição, como uma música de que
possam desfrutar, como uma carta de amor cujos termos possam tomar de empréstimo para
os seus próprios amores.
Não será isto o que podemos esperar do cinema, a arte popular do século XX, a arte que
permitiu ao maior número de pessoas, àqueles que não transpunham as portas dos museus,
deleitar-se com o esplendor de um efeito de luz num cenário vulgar, a poesia de um tinir de
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POLÍTICA DE PEDRO COSTA - 61

copos ou uma conversa banal ao balcão de um café qualquer? Confrontado com os que o
colocam na linhagem dos grandes “formalistas”, Bresson, Dreyer ou Tarkovski, Pedro Costa
reclama-se por vezes de uma linhagem completamente diferente: Walsh, Tourneur ou outros
mais modestos, autores anónimos de séries B, fabricantes de histórias bastante formatadas
com orçamento apertado para lucro das empresas hollywoodescas, e não era por isso que
faziam os espectadores dos cinemas de bairro deleitar-se menos com o esplendor igual de
uma montanha, de um cavalo ou de uma rocking-chair, sem qualquer hierarquia de valor
visual entre homens, paisagens, animais ou objectos.1 O cinema revelava-se, assim, no coração
mesmo de um sistema de produção voltado apenas para o lucro dos detentores, enquanto
uma arte da igualdade. O problema, infelizmente sabemo-lo, é que o próprio capitalismo já
não é o que era: se Hollywood continua florescente, os cinemas de bairro já não existem,
substituídos pelos multiplex que dão a cada público, sociologicamente determinado, o tipo de
arte para ele formatado; e, como todas as obras que escapam a esta formatação, os filmes de
Pedro Costa vêem-se imediatamente etiquetados como filmes de festival, reservados ao
prazer exclusivo de uma elite de cinéfilos, e tendencialmente empurrados para o espaço do
museu e dos apreciadores de arte. Disto, é claro, Pedro Costa acusa o estado do mundo, quer
dizer, a dominação nua do poder do dinheiro que coloca na classe dos autores de “filmes para
cinéfilos” aqueles que se esforçam por oferecer a todos a riqueza da experiência sensorial
disponível nas vidas mais humildes. É o sistema que faz uma espécie de monge triste daquele
que quer um cinema partilhável como a música do violinista cabo-verdiano ou como a carta
comum ao poeta e ao iletrado.
É bem verdade que o domínio do dinheiro tende a constituir hoje este mundo onde a
igualdade deve desaparecer até da organização da paisagem sensível: toda a riqueza deve aí
aparecer como separada, atribuída a uma categoria de detentores ou apreciadores particulares.
Aos humildes, o sistema envia uns trocos da sua riqueza, do seu mundo, formatados para
eles, separados da riqueza sensorial da sua própria experiência. É a televisão do quarto da
Vanda. Mas esta distribuição do jogo não é a única razão que quebra a reciprocidade e separa
o filme do seu mundo. A experiência dos pobres não é apenas a das deslocações e das trocas,
dos empréstimos, dos roubos e das restituições. É também a da fractura que interrompe a
justiça das trocas e a circulação das experiências. Em Casa de Lava havia o mutismo de Leão
na sua cama de hospital, e já não sabíamos se isto era a manifestação do coma traumático ou
o desejo de não voltar a encontrar o mundo comum; havia também a “loucura” de Edite, o
seu “esquecimento” do português e o seu encerramento na bebida e na língua crioula. A
morte do militante no campo salazarista e o ferimento do imigrante num estaleiro português
instituíam, no coração da circulação dos corpos, dos cuidados, das palavras e das músicas,
a dimensão do não-permutável, do irreparável. Em Ossos, havia o mutismo de Tina, a sua
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62 - JACQUES RANCIÈRE

incapacidade em saber o que fazer da criança que tem nos braços, senão levá-la consigo para
a morte. Juventude em Marcha encontra-se como que cindido entre duas lógicas, dois regimes
de troca da palavra e da experiência. Por um lado, a câmara instala-se no novo quarto da Vanda,
um quarto branco asséptico, atravancado por uma cama de casal com design de super-
mercado. Uma Vanda ajuizada e mais cheia conta aí a sua nova vida, a desintoxicação, a
criança, o marido e os seus méritos, o tratamento e as preocupações com a saúde. Por outro
lado, segue Ventura, muitas vezes mudo, outras falando por ordens imperiosas ou sentenças
lapidares, outras perdido na sua narração ou na recitação da carta. Instala-o como um animal
estranho, demasiado grande ou demasiado bravio para o cenário, por vezes com o olhar fixo
com um brilho de animal selvagem, mais amiúde com a cabeça curvada para o chão ou virada
para cima: o olhar de um ausente, de um doente. Com Ventura não se trata de recolher o
testemunho de uma vida difícil, mesmo que seja para perceber como, com quem e sob que
forma será preciso partilhá-la; trata-se de confrontar o não-partilhável, a fractura que separou
um indivíduo de si próprio. Ventura não é um “trabalhador imigrante”, um humilde a quem
seria preciso restituir a dignidade e a fruição do mundo que ajudou a construir. Ele é uma
espécie de errante sublime, uma personagem de tragédia, que interrompe por si próprio a
comunicação e a troca.
Com a passagem das paredes leprosas, dos cenários coloridos e das cores berrantes do
bairro de lata às paredes brancas dos prédios novos, essas paredes que já não fazem ecoar as
palavras, parece ter-se produzido um divórcio entre dois regimes de expressão. Mesmo se
Vanda se presta a fazer o papel de uma das “filhas” de Ventura, mesmo se este se senta à sua
mesa, conversa no seu quarto e aí faz até ocasionalmente baby-sitting, a fractura de Ventura
vem lançar a sombra deste grande corpo quebrado, deste grande corpo deslocado, sobre a
crónica da vida reabilitada de Vanda, e tingir de vaidade a sua história. Este divórcio íntimo
pode dizer-se nos termos de uma velha querela, resumida há mais de dois séculos por
Jean-Jacques Rousseau no prefácio de La Nouvelle Héloïse: estas cartas familiares são reais ou
inventadas?, perguntava o objector ao escritor. Se são reais, são retratos. Aos retratos pede-se
apenas que sejam fiéis ao modelo, mas interessam a pouca gente fora da família. Os “quadros
imaginários”, em contrapartida, interessam ao público, mas para isso é necessário que se
assemelhem já não a um determinado indivíduo, mas ao ser humano. Pedro Costa diz as
coisas de outra maneira: da paciência da câmara – que vem filmar todos os dias mecanica-
mente as palavras, os gestos e os passos, já não para “fazer filmes”, mas como um exercício
de aproximação ao segredo do outro – deve nascer no ecrã uma terceira figura, uma figura
que já não é nem o autor, nem Vanda, nem Ventura, uma personagem que é e não é estranha
às nossas vidas.2 Mas este aparecimento do impessoal vê-se por sua vez implicado na disjunção:
é difícil para a terceira personagem escapar à escolha entre ser o retrato de Vanda, encerrado
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POLÍTICA DE PEDRO COSTA - 63

no círculo de família das identificações sociais, ou o quadro de Ventura, o quadro da fractura


e do enigma que torna fúteis os retratos de família e as crónicas familiares. Um dos nativos
da ilha di-lo a Mariana, a enfermeira bem-intencionada: ela não tem a cabeça partida. A fractura
divide a experiência em partilhável e não-partilhável. O ecrã onde deve aparecer a terceira
personagem está esticado entre estas duas experiências, esticado entre a história das vidas,
arriscando-se a cair na banalidade, e o confronto com a fractura, arriscando-se a cair na fuga
infinita. O cinema não pode ser o equivalente da carta de amor ou da música dos pobres. Já
não pode ser a arte que restitui simplesmente aos humildes a riqueza sensível do seu mundo.
É preciso que se separe, que consinta ser apenas a superfície onde a experiência daqueles que
foram relegados para a margem das circulações económicas e das trajectórias sociais se tenta
traduzir por meio de figuras novas. É preciso que esta superfície acolha a cisão que separa o
retrato do quadro, a crónica da tragédia, a reciprocidade da fractura. Uma arte tem de se subs-
tituir a outra. A grandeza de Pedro Costa é aceitar e recusar ao mesmo tempo esta alteração,
fazer ao mesmo tempo o cinema do possível e o do impossível.

1. Pedro Costa in Pedro Costa e Rui Chafes, Fora! Out!, Fundação de Serralves, 2007, p. 119.
2. Ibid., p. 115.
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CONDENADOS À MORTE,
CONDENADOS À VIDA
RUI CHAFES

Cemitério do Alto de São João, Praça Paiva Couceiro, Rua Morais Soares, Praça do Chile, Rua
Quirino da Fonseca, Alameda Afonso Henriques, Cinema Império, matiné ao domingo,
Avenida Almirante Reis, Café do Império, mesas escuras, cadeiras escuras, empregados escuros
desaparecendo na maligna penumbra que nos rodeia. Luzes escuras. Infância escura. Vou
mostrar-vos o país mais triste do mundo. O ar que respiramos é veneno. Aqui quase não
chove, chuvisca. Chuvisca sempre. As ruas cinzentas povoadas por figuras pardas que tentam
abrigar-se da chuva: ninguém tem nome nem rosto, apenas casaco ou gabardina cinzenta.
Uma cidade de pequenas árvores de Natal, algumas em plástico, outras naturalmente raquí-
ticas. Como vos posso mostrar a obscuridade que envolve a cidade mais triste do mundo?
Sento-me num banco do autocarro e estudo cuidadosamente a tristeza das montras que vejo
através das gotas de chuva. Noite de Natal ou de Fim de Ano, para mim é tudo a mesma
coisa. Quero mostrar-vos as montras pardas que abrigam roupa e ferragens cinzentas, da cor
do puré de batata que, no Café do Império, aquele adulto quer obrigar aquela criança a comer.
“Não gosto de restaurantes”, responde a criança, “e não me lembro da tua cara. E eu nunca
me esqueço de nada”. Palavras piores do que pancadas. O primeiro tremor da fala… Sinto-me
quase feliz: este miúdo recusa-se a engolir o jantar.
De novo a chuva, as poças de água no passeio reflectindo a inexistência desta cidade
iluminada. Barrete de lã, cachecol, casaco de xadrez, botas, Vick, Melhoral, Milo, o lago do
Campo Grande. Também os Armazéns do Grandella e a multidão fantasma que me recusa.
Vou mostrar-vos o país mais triste do mundo e começo pelo início: a dureza do rosto de uma
criança abandonada por todos. A solidão do seu olhar luta com a frieza da madrugada. Uma
criança decidida a viver sem a ajuda de ninguém. Um pai que desapareceu, um irmão que
seguiu outro caminho, uma mãe que nunca apareceu e de quem não se fala. De um pequeno
mundo assim, eu gosto. Pelo menos, é isso que as pessoas dizem de mim. Sei muito bem
quem é este miúdo de doze ou treze anos. Na luz fria desta madrugada, pergunto-lhe: “Não
te perdes?” “Não”, responde-me secamente. Sei que é verdade, que nunca se irá perder. Por
agora foge, no seu barco, sobre as águas sombrias e imparáveis.
A ela peço-lhe para repetir de novo a corrida através do bosque. Amo esse movimento
extremamente exaltado dos corpos que atravessam em corrida os bosques despidos de folhas,
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66 - RUI CHAFES

as pernas brancas brilhando na escuridão. Tudo estudado ao pormenor, como vi nos filmes
de que mais gosto. A respiração ofegante, o furtivo olhar, a fugaz e comovente imagem da
palpitação quase indefesa dos seus pequenos seios por debaixo da camisola de lã. Benditos
os que dão sem saber que dão. A respiração ofegante e a expressão de quem finge não saber
que está a ser muito bem observada. Peço-lhes coisas. Peço-lhe a ela para perguntar onde
está. Peço-lhes para se entregarem ao beijo que têm vindo a adiar há muitos anos. Ao lado
da eterna corrente de água negra. No chão, entre as árvores.
Aqueduto das Águas Livres, Praça de Espanha. Tenho vivido sempre sozinho, sem o apoio
de ninguém. O meu Pai só existe no nome, na palavra. Nunca nos encontramos, não o supor-
taria. É uma enormidade acharem que um morto pode vir a curar-se. Espero por mais foguetes
no céu desta cidade, uma festa feita de explosões e rebentamentos. Fogo-de-artifício, daquele
que é bom para se ver ao longe, da janela do apartamento. Daquele que nunca esqueceremos e
que nos acompanhará até ao fim da nossa vida, tal como as vozes dos adultos que permanente-
mente falam de assuntos que não compreendemos. Incompreensíveis resíduos da infância.
Um mundo que não foi feito para as crianças. A escuridão do olhar dos adultos que nos dão
ordens incompreensíveis. As poças de água nos passeios, a vertigem das pequenas luzes, a
incomensurável tristeza do Natal. “Que queres fazer hoje? O que te apetece fazer? Vamos ao
Jardim Zoológico?” “Não.” “De que gostas tu, afinal?” “De tudo, menos de estar contigo”,
deveria responder a criança. Os adultos estão sempre a tentar arranjar programas para preen-
cher o vazio das crianças, mas não percebem que apenas pretendem preencher o seu próprio
vazio: a solidão das crianças não precisa de programas organizados, só precisa de tempo.
Aquário Vasco da Gama: todas as crianças de Lisboa a verem o seu próprio reflexo no espesso
vidro que as separa das épicas e entediadas figuras de longínquos oceanos. Os insondáveis
olhos dos peixes, a magia desnudada dos reflexos da água nos tectos. Um bom sítio para
fazer um filme. “Não gostas de peixes? Queres ver os monstros pré-históricos?” Uma aventura
entre focas empalhadas, tubarões embalsamados, espécimes raros encerrados em frascos de
formol, da qual o desfecho é a constatação de que esta tristeza envidraçada e silenciosa mais não
é que o líquido espelho das suas próprias vidas. É muito duro ser criança: ter de conquistar a
compreensão das palavras e do mundo, sacrificando toda a pureza da sua preciosa solidão.
Tentam sempre roubar-nos a solidão, mas eu defendo-a ferozmente, é o que tenho de mais
precioso.
Espectadores nas varandas, uma espécie de apoteose a prudente distância. “Nunca me
contaste o teu segredo.” “Não, o nosso segredo.” Lá dentro, longe das sirenes e estrelas que
rebentam no céu, o menino prepara-se para a luta. Ensaia golpes marciais, armas que não
passam de mãos fechadas. “O meu irmão está quase a chegar. Vem disfarçado de noite.”
Espera, espera. “Queres vir comigo também?” Espera. “Se eu dormir, acordas-me.” É isto
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CONDENADOS À MORTE, CONDENADOS À VIDA - 67

que quero mostrar: alguém que acredita que o outro lhe disse para esperar por ele. “Vou
contar até 100 e o meu irmão vai chegar.” Criança à espera num apartamento. O espaço é
minúsculo e apertado, o espaço onde se comprimem as vidas antes que elas expludam.
“… 83, 84, 85, 86…” Veste o casaco para sair. “… 98, 99, 100!” Dois irmãos à procura um do
outro. “Porque é que me deixaste sozinho?” “Vou buscar-te.” “Agora já não vale a pena.”
Miúdo que corre na noite, sozinho, com as luzes da cidade ao longe. Corre na escuridão,
o negro rio acompanha-o. Na verdade, o que quero mostrar é a escuridão violentada pela luz.
Espero, aguardo pacientemente até a luz certa irromper e iluminar a violência destes olhos
de animal acossado, a luz dos seus olhos assustados. Como no cinema.
Não sou o que pareço, mas podem confiar no que faço. O meu caminho não é o vosso
caminho. Dizem-me que sei muito, que já vi muitas coisas e que sei tudo. Não sei muito,
mas a minha profissão é olhar e saber ver. Ver a triste e cinzenta cidade através dos vidros
molhados do autocarro. E também ouvir as vozes que, sem o saberem, me alimentam com
as suas histórias: a imensa odisseia das suas pequenas vidas. Sou uma aranha à espera da
presa na teia. É essa a minha profissão.
A única coisa que é importante neste mundo é uma voz que nos sussurra palavras de
conforto e de promessa ao ouvido. Segredos que nos confiam. “Espera por mim…” ou “Ouves-me?
Eu estou aqui, não tenhas medo.” Ou “Não tentes falar, descansa.” Ou mesmo apenas alguém
que nos sopre suavemente nas pálpebras depois de nos cortar o cabelo. Mas nós não gostamos
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68 - RUI CHAFES
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CONDENADOS À MORTE, CONDENADOS À VIDA - 69

de cortar o cabelo, não queremos ficar diferentes. Palavras que salvam ou que matam. Entre
a minha liberdade e o meu desejo. A minha felicidade e a minha infelicidade, permanente-
mente juntas, inseparáveis, alternando-se e completando-se, consolo depois do medo. As raízes
do bem e do mal entrelaçadas no silencioso coração da terra. Nada é mais contagioso do que
o mal. Chegará sempre o momento da palavra que mata dar voz à crueldade da absoluta
inconsciência: “Pai, que pena demorares tanto a morrer!...”
Árvore de Natal, criança com frio a dormir no sofá. Recebe um presente de Natal, um
pequeno jogo que a faz sorrir de felicidade. “Eu guardo-te, coso a tua camisola. É bonita.”
Uma festa na cara, nos olhos. Para sempre lado a lado, aquilo a que chamam amor. As crianças
devem dormir sempre no sofá da sala, o seu sono é provisório, móvel e transportável. É uma
sua enorme qualidade. “Não te escondas. Porque é que fugiste?” “Tive medo.” “De mim?”
“Não me deixes. Fala comigo!”, “ Nunca te esqueças de que ninguém nos pode fazer mal,
ninguém é como nós.”
Noite escura, esta é uma história para chorar. Luzes baratas com a música desafinada e
sentimental de uma feira ao longe. Mas não é na América distante, é ali na zona do Barreiro,
Seixal, Valada do Ribatejo. É o que se arranja. Os dois de mãos dadas, apaixonados sem o
saberem. Na escuridão, com a feira ao fundo. “Nunca mais vamos ter uma noite assim.”
Claro. Rostos iluminados no escuro. “Fica o corpo mole, dormente…” “Pede-me.” Um sorriso.
“Não sei.” “Pede-me coisas.” Eu à espera que ela diga isto. À espera do seu sorriso. Sou
permanentemente a aranha, sempre atenta, à espera do que cai na sua teia. Muito paciente,
posso esperar anos até ver o sorriso certo, os olhos certos, a luz certa e ouvir as palavras
certas: “Pede-me coisas.” É essa a minha profissão. Paro. Paro e olho. Vejo-os a correr por
entre as árvores na noite. Peço-lhes uma vez e outra ainda para correrem. Um escuro bosque
de fantasmagóricas árvores. Peço para ela me encarar por entre as folhas; lembra-me Bresson,
Ozu, os grandes clássicos americanos, também, que me ensinaram a revelar o espaço, a educar
o olhar até ser como o primeiro olhar. O seu belo rosto entre as folhas das árvores; aqui começa,
para mim, o cinema. É este o ponto do meu começo, o início do meu caminho: este rosto
entre as folhas. A preto e branco.
A beleza do seu rosto, será que me posso permitir filmá-la? Não será uma fraqueza? O
perfil, o nariz, o suave pescoço, a brancura da pele, aquela cova da base do pescoço, a maneira
suave como as madeixas de cabelo afloram a testa. O seu olhar no escuro, o espectro das
enormes árvores sem folhas, iluminadas na noite. “Só tu me falas de bater as asas”, digo-lhe.
“Com as tuas asas geladas, só tu subirás aos rochedos e penhascos da minha alma”, res-
ponde-me ela. Não costumo falar da alma.
Amanhece silenciosamente no rio, nuvens negras que se parecem comigo. A história do
Mundo: o rosto de uma criança que dorme. “O meu Pai estava ali, não estando lá”, é este o
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sonho. É este o coração do abismo. Peço-lhe para passar levemente os dedos na testa da
criança adormecida. Como no cinema. É preciso construir as imagens, elas não nascem
espontaneamente. “Depois de passar a nuvem, o sol já não é o mesmo.” As crianças é que
sabem, deixo-as falar por mim; e elas gostam do meu silêncio estrangeiro. Lêem nos meus
olhos que ser compreendido é ser humilhado. Nunca entro, fico sempre à porta. Lá fora, as
árvores e as negras águas do rio. “O Pai não vai voltar.” “Há coisas que é melhor não dizer a
ninguém. Podemos fazer o que quisermos, nós os dois.” “Mas ele ia tratar-se.” “Fica comigo
hoje, vamos à feira.” “Nunca mais o vemos?” Peço-lhe para repetir uma vez mais a pergunta,
confio na dureza do seu olhar. “Não veio postal nenhum.” Está na altura de escrever uma
carta para nós próprios. Para fingir que o Pai nunca se esquece de nós. “Somos irmãos para
sempre. Mas ninguém adivinha.”
A respiração ofegante de um rosto que caminha no negrume frio desta noite gelada. Só
trabalho durante o Inverno, só isso me faz sentido. “Não tenho amigos”, diz ele. As ruas
molhadas da beira-rio; Barreiro, Seixal, casas húmidas e frias, casas ao longe, habitadas por
rostos fechados, silenciosos. Todos os nomes desconhecidos. Estamos sozinhos, ninguém
nos ouve. Pai e filho olham-se, quase que se abraçam mas não o fazem. Esta minha história,
que não é bem uma história, é sobre pais e filhos; sobre ser pai e sobre ser filho; e sobre ser
filho sem poder ter um Pai. Terreola feia, triste e escura. Peço-lhe para assaltar a farmácia,
esta noite. “Nunca acreditei nessa doença.” A débil luz de um triciclo motorizado atra-
vessando a feia povoação adormecida. Rostos iluminados nas trevas, suaves madeixas de
cabelo. “Salva-me, só confio em ti.” Espero, agachado no escuro. Aguardo que vençam o seu
próprio medo da noite. Que cavem a vala, que empurrem o corpo, que o tapem de terra.
Espero que acabem de enterrar o corpo. “Não lhe toques.” “Está frio.” “Não o deixes ir
assim.” Tal como lhe pedi, foge a correr na noite. “Não chores, quase não o conhecias.” “Não
é por ele.” Abraçam-se na escuridão. “Se nos vêem assim ainda vão pensar…” “Não digas
nada.” “Olha, é quase dia.” Ela tapa os ouvidos, apavorada, para não ouvir o sinistro rumor
da pá a escavar a terra.
Procuro a dureza do olhar de uma criança que ninguém compreende. A aranha continua
alerta, impassível, à espera, no canto deste quarto pobre: sofá, cobertor, chaleira velha num
fogão velho. Como no cinema. Uma criança doente, rodeada de tempo e de espera. Rodeada
de ansiedade. Aquela que esperamos que seja o filho com que o céu há-de tocar o inferno.
“Nasceste antes do tempo, eras mais pequenino do que os outros.” Criança sempre doente.
Dorme e sonha: “Pai…”, chama, “Pai…”. Um sono agitado, não o sono leve com que todos
sonhamos. É preciso ser paciente com os nossos filhos como é preciso ser paciente com os
nossos Pais. “Estás a crescer depressa demais.” Porque crescem as crianças tão depressa?
Era melhor que dessem tempo ao tempo.
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CONDENADOS À MORTE, CONDENADOS À VIDA - 71

“Ainda não és órfão. Não tenhas pena de mim nem de ti..” Laços de sangue, a voz do
sangue. Talvez o sangue, afinal, não exista. Uma invenção histórica para dar sentido ao que
nunca poderá ter sentido.
Um país de ervas daninhas. Paisagens de ervas daninhas e rasteiras, feias charnecas sem
fim. Longínquos trovões no céu. O país mais triste do mundo. Quero mostrar o país mais
triste, mais desolado, vazio e pobre que existe à face da terra. Escuridão e árvores esquálidas,
motoretas e triciclos motorizados. Tempestade, chuva, lama. Pegadas na terra encharcada.
Um rosto de menino pobre a brilhar no escuro. Uma bofetada na cara. “Faça de mim o que
quiser.” Cara muito séria. “O que digo ao Nino?” “Que morri.” Árvores despidas, negras,
pavorosamente esquálidas. Como é possível existir um país assim? Um país que gostaria de
não conhecer. Uma paisagem sem país. Aguardo. Olho. Espero. Sou uma aranha paciente. Não
chego a estar triste, tenho o veneno da aranha. Observo, condenado a esta morte, condenado
a esta vida.
“Não te perdes?”, perguntam-me. “Não.”
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O SANGUE
JOHANNES BERINGER

Um filme que encerra em si o segredo da infância, como a concha encerra a pérola (será que
podemos abri-la?).
O Sangue revela um sobressalto, uma perda que, geralmente, permanece bem escondida: o que
acontece durante a entrada para o mundo adulto? De que coisas se torna capaz a criança, o que
precisa ela de aprender, o que é necessário esquecer? A rede de personagens em O Sangue –
dois irmãos de dez e dezassete anos de idade, uma rapariga que gosta do mais velho – abrange
não só a infância mas também o limiar da idade adulta. Ao unir à criança esse par que se vai
formando e crescendo em frente aos nossos olhos – um primeiro amor –, Costa estabelece
uma relação que nos aparece como que desligada da realidade social (cujo funcionamento
depende do facto de não pensarmos muito na criança em si – de esquecermos, de não sonhar-
mos, imersos na racionalidade que habita o mundo). O laço que une os três – os dois mais
velhos partilham o segredo da morte e do desaparecimento do pai – é de um tipo bem diferente
do consenso social que os rodeia. Nele, há qualquer coisa de quase primordial, uma espécie
de direito natural. Algo de muito forte e interior, como se a ausência de mãe e pai tornasse
necessária, ou possibilitasse, um outro tipo de união. No entanto, este isolamento social, este
pequeno mundo dentro do mundo, está sempre em risco – a “normalidade” desrespeitada da
sociedade transforma-se quase imediatamente em violência e evidencia a coacção subjacente
à criança e à qual, de outro modo, também os jovens se submetem.
Céu coberto, noite iminente, paisagem sombria: Costa situou o seu filme a preto e branco
no Inverno português, antes do Natal e até ao Ano Novo. Durante a apresentação do filme,
ouve-se o rugido de trovões. A bofetada na estrada rural com que o filme começa dá-nos
imediatamente a saber (uma vez que não há qualquer motivo concreto) que o pai se limita a
“transmitir” a situação em que se encontra. A dureza do golpe mostra o seu desespero. O
receptor da estalada, o seu filho Vicente, de dezassete anos, começa assim a sentir o que o
espera. “Faz de mim o que quiseres”, diz ele ao pai, durante o caminho pela estrada fora, na
sua pequena furgoneta de três rodas. O pai encosta à berma, pega na mala e desaparece na
escuridão da paisagem. Em casa, a criança está sozinha, esperando que o ruído agudo do
motor de um veículo rompa o silêncio da noite e anuncie o regresso do irmão.
O pai, doente de cancro, conta morrer. Os tratamentos não resultam. Através das maqui-
nações criminosas em que está enredado, tenta assegurar a vida dos dois filhos. O facto de
ele não conseguir fazê-lo, ou de só o conseguir por esta forma arriscada (o desfalque de fundos
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74 - JOHANNES BERINGER

do sindicato), associa-o à vida “no limiar” – a estalada é a ligação corpórea ainda possível.
(No entanto, ele dispõe também de outras formas mais carinhosas de dedicação.) Daí o dever
de amor que, após a sua morte, não é cumprido pela sociedade e seus cerimoniais, mas sim
pelo jovem casal, que o leva à noite para o cemitério e o enterra, assim partilhando com ele
o segredo da sua existência incerta e ameaçada.
“Salva-me!”, diz Vicente a Clara, quando esta, surpreendida, lhe agarra a mão ligada, com
que ele acabou de lhe agarrar o braço, num cruzamento da estrada. A rápida troca de olhares
que se dá aqui é o início da sua estreita relação. Clara que, enquanto professora, está na rua com
meia dúzia de alunos, deixara cair no chão os livros que trazia consigo, ligeiramente assustada
– o toque e o contacto visual ocorrem enquanto ambos estão de cócoras. Cinematograficamente,
Costa desencadeia a situação com bravura, fundindo o rosto de Clara com um plano nocturno
(luzes distantes de casas e os faróis da furgoneta), introduzindo simultaneamente música. Isso
acrescenta a esta vulnerável troca de olhares o olhar dele, o seu amor ao cinema, e também con-
fere à ligação que agora se desenvolve uma impressão de imensurabilidade.
Sobre esta ligação não paira esse grande conceito, o “Amor”. Em vez disso, tudo acontece
como que à toa, num espanto juvenil. Os acontecimentos externos têm nisso a sua influência:
o “salva-me!” de Vicente pode também ter que ver com o facto de ele precisar de alguém em
quem confie (eles têm de se desembaraçar do cadáver do pai às escondidas) e Clara já travara
conhecimento com Nino, o seu irmão mais novo, porque ele tinha aulas na turma dela.
Trata-se de uma dedicação e uma pertença que nasce da vida, do quotidiano, do momento –
nada existe para além disso. Como se o início e o fim existissem simultaneamente. Após uma
fase evasiva – a vergonha de Vicente perante o facto de ter envolvido Clara naquela situação,
a noite assustadora no cemitério, o penoso transporte do cadáver – os dois encontram-se um
ao outro, deixam tudo atrás de si e descobrem, fisicamente próximos, o seu afecto mútuo.
À intimidade deste espaço livre pertence também, naturalmente, a criança, que é preciso
proteger. Aquilo que ela conhece e desconhece, o seu mundo, ainda ligado ao das brincadeiras,
mas que já começa a roçar os limites do mundo da juventude, funciona como pano de fundo
para a pureza deste amor – a pequena comunidade está ancorada no facto de encerrar em si
o mundo da criança e as suas “revoltas inconscientes”.1
Uma vez que esta obra está intimamente ligada ao ambiente natural, entra em jogo uma
outra dimensão (porventura mística). Os pinheiros iluminados à luz do Inverno, a margem
do rio, o rio em si – é esta a paisagem dos dois namorados. E há ainda a árvore com ramos como
ossos, que se inclina sobre o rio, a árvore deles. No início do filme, já o espectador aprendeu a
conhecer esta região, porque Nino e Rosa foram arrancados da escola – as duas crianças,
como que atraídas pelo segredo do bosque, esconderam-se, e agora é necessário procurá-las.
Eles perderam-se a si próprios.
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Também é fora de portas que sucede o primeiro encontro com a infâmia do mundo
adulto: Vicente, de machado na mão para cortar uma árvore para o Natal, é surpreendido por
dois homens mais velhos, que o ameaçam, em busca do dinheiro que o pai lhes deve. E existe
também esse cadáver, que o rio movimenta e alberga, durante a festa à noite, ao ar livre, com
música e dança. Aqui, a unidade dos dois namorados é posta à prova pela primeira vez,
quando encontram Zeca, que Vicente conhece do trabalho e que, sempre com a sua alegria
suspeita, canta constantemente: de forma algo trocista e intrometendo-se entre os dois, canta,
virando-se para Clara, “perdi-te na rua, encontrei-te na rua…”. E Vicente reage com ciúme
quando Clara não nega que aquilo pode querer dizer alguma coisa. Depois de um momento
de estranheza e de desprendimento (da parte dela), dá-se um confronto, que degenera numa
correria, numa luta, num mergulho para dentro de uma parede de nevoeiro ou fumo.
Na segunda parte do filme, tudo se transforma: a normalidade social, até aí posta à parte,
intromete-se e faz explodir a unidade da pequena comunidade. Um tio de Lisboa aparece em
casa (é Natal), começa a criar suspeitas em relação à morte do pai e vê imediatamente como
“encenação” uma carta que Vicente escrevera. Vicente fere-o na orelha, quando ele tenta levar
Nino para junto de si, e desaparece com a mulher, regressando mais tarde para raptar a
criança adormecida. Por seu lado, Vicente é levado para Lisboa pelos dois cúmplices que o
haviam ameaçado, enquanto procura, na entrada de um prédio, o apartamento do tio. Eles
levam-no para longe e prendem-no. No intercomunicador (Vicente tocou ao acaso a meia dúzia
de campainhas e foi pressionado pelos dois homens contra o painel), acompanham-no as
vozes dos apartamentos, que exprimem uma espécie de destino social... Resistência, irritação,
isolamento, tristeza, saudade, expectativas goradas.
O tio, que se apoderou da criança para lhe proporcionar a educação correcta no ambiente
certo, age com ele de acordo com normas óbvias – nem pode proceder de outro modo. E, no
entanto, tudo é transparente; tudo o que ele faz parece artificial – um substituto para tudo o
que a criança já não tem. Nino ganha um quarto com televisão e jogos, recebe roupas novas
– tudo o que “normalmente” se dá às crianças. E há ainda essa outra criança doente, que se
mostra como que esmagada por este ambiente, pela solicitude do pai. O puré de batata que
o pai lhe dá à boca, colher a colher – “uma colher pelo papá, uma pela mamã, uma pelo Nino”
–, a sua boca limpa com o babete, enquanto Nino remexe a comida no prato sem apetite,
lembram situações da infância que toda a gente conhece e odiou. Aqui, a cena tem lugar
numa sala de restaurante grande e vazia, no Café Império. Para além desta refeição, e depois
de Nino recusar uma ida ao cinema (ele não se quer deixar aplacar por um filme), há a obri-
gatória visita ao Aquário Vasco da Gama – a ideia que ocorre invariavelmente a um adulto
sempre que tem de passar tempo (ou matar tempo) com crianças. A turma de alunos que
desfila perto deles em dupla fila indiana – crianças em bibes iguais, como uniformes –
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demonstra que, também aí, a disciplina não anda longe. É interessante ver as criaturas de
um mundo primordial, mas isso é simplesmente o reflexo de um mundo que, afinal de
contas, está separado do nosso e perdido. No deslizar lento dos peixes raros atrás do vidro, na
imobilidade das tartarugas gigantes no lago, a criança gosta de contemplar o seu próprio tédio
mortal. E quando Nino levanta a outra criança por cima de uma balaustrada para que ela
possa contemplar os animais lá em baixo, aparece de imediato o pai, que proíbe este gesto
como “insensato” e “perigoso”.
Cinematograficamente, uma tal narração de uma situação “congelada” tem de resultar
numa acção que é novamente reposta em movimento, de forma quase violenta: a criança não
consegue esperar pela sua libertação – as circunstâncias são tais que ele tem de se libertar
sozinho. Ele não sabe que também o irmão está preso e que o par está separado. Uma vez,
enquanto está sentado em silêncio no chão de uma cabine de provas de um armazém, escuta
nitidamente a voz de Clara, vinda de uma cabine ao lado da sua, e ela fala com ele. Mas
assim que se precipita para fora da cabine e olha em volta, repara que não está lá ninguém.
Ter-se-á tratado de uma “alucinação verbal”, causada pelo facto de a criança estar tão corrom-
pida, física e espiritualmente, e de desejar tão ardentemente a sua vida anterior? Ou terá
Clara estado realmente lá, mas sem se poder mostrar? O ajuste à nova situação de vida e de
prosperidade, ao consumo, à abundância de coisas inúteis falha: no Ano Novo, a criança
evade-se, salva-se… Esta é a sua primeira iniciativa realmente individual, ainda que tomada
de forma algo “cega”, uma cura contra o mundo adulto que ele administra a si próprio.
Também Vicente consegue libertar-se no Ano Novo – com a ajuda da mulher que pertence ao
grupo criminoso mas que ainda sente qualquer coisa pelo pai de Vicente e, por conseguinte,
pelo próprio Vincente, que estremece com febre atrás das grades. A cena na varanda, na noite
de Ano Novo, dá a Costa a oportunidade de ilustrar novamente o estado de “infelicidade
social”: lá estão as “mónadas” das varandas. Atrás deles, a sala de estar iluminada e, isolados,
podemos ainda ver os habitantes, que saíram lá para fora, sozinhos ou aos pares, para ver o
fogo-de-artifício.
Clara velou como que de longe pela criança – ela encontra Nino na noite em que ele foge,
num parque infantil: este encontro (que não pode ter sido combinado) transmite, de alguma
forma, uma impressão irreal, como que de um sonho, mas ocorre com outro tom, mais
sóbrio, porque a criança mudou entretanto. Em princípio, agora que Nino e Vicente estão livres,
a união original poderia ser reposta, mas isso já não é possível. A criança ficou mais sábia.
Através do seu acto individual de libertação, separou-se também do casal. Quando Vicente
volta a encontrar Clara, à noite, na margem do rio, ela está mergulhada num sono profundo,
como se quisesse continuar a sonhar com esse amor protegido pelo segredo da infância.
Vicente, que despiu a camisola que Nino lhe emprestou e que ele encharcou em suor durante
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o delírio febril, acorda Clara – e este acordar é como um empurrão violento para a vida adulta,
que a assusta e a faz encolher-se. Ao mesmo tempo, nesse despertar, há um reencontro com
eles próprios: o par amoroso é apenas um casal como todos os outros – o momento em sus-
penso em que os dois se olham antes de se abraçarem deixa isso bem claro. Parece existir
também um certo desespero neste abraço final e, agora, bastante diferente: o casal tomou
consciência de que foram atirados de volta um contra o outro (cumprida a norma social). Os
últimos planos, em que se inclui o casal – separado pela montagem – mostram a criança no
rio, ao leme de um barco a motor: sozinho, porque o barqueiro, que permanece invisível e
que, anteriormente lhe tinha feito algumas perguntas, foi dormir uma sesta. (Ele perguntara
a idade a Nino e também qual era “a maior invenção da humanidade” – uma pergunta que
a própria criança fizera por brincadeira e à qual já não sabe dar resposta.) Esta criança, agora
mais madura, é de facto o homem do leme: há qualquer coisa quase bem-disposta no modo
como ele se ergue, de rosto ao vento, dirigindo o barco em direcção ao horizonte longínquo,
sulcando a água. E, nesse momento, permanece a sensação “confusa”, como sempre em
Costa: existe uma salvação momentânea, mas o desconhecido, a ameaça latente, continua
presente como pano de fundo do ambiente sensível. Podíamos chamar-lhe uma “iluminação
do escurecimento”, para utilizar a expressão de Marina Zwetajewa.2
O filme de Costa é imaculado, porque o conceito que o guia (e que tentei traçar aqui,
aproximadamente) é verdadeiro, e é exposto com uma segurança como que sonâmbula.
Nele é expresso não só um propósito e uma atitude estilísticos, mas também uma premente
necessidade de viver. O filme é o produto de um cuidado trabalho de pensamento que foi
empreendido antes, durante e depois da rodagem, mas a beleza do produto final é que, aqui, a
cabeça e o sentimento estão envolvidos em igual medida. Ou, para ser mais exacto: o reali-
zador, que estava no limiar dos trinta anos de idade, só podia ter feito o filme nesta altura – em
que os assuntos de que trata o filme ainda o tocam de tal modo que lhe permitem abordá-los
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desta forma. Ou seja, há uma proximidade com os assuntos tratados que, justamente, com
o decorrer da vida se perderiam na distância. Mais tarde, já não seria possível tratar estes
assuntos do mesmo modo. Mas precisamente porque o filme foi feito neste momento, aquilo
que se processou racionalmente e que foi dito no filme perdura e permanece para sempre.
Assim, a forma como o filme é narrado, a forma como a história se apresenta (e que eu
tentei resumir) tem muito a ver com este trabalho pensado: com a forma como o pensamento
destas emoções primárias é incluído e reflectido no filme. Este filme é reflectido, antes de mais,
a um nível cinematográfico. A narrativa elíptica que Costa já aqui desenvolveu é um resultado
directo desta reflexão: a forma como é montada uma cena, como um bloco da acção conduz
ao seguinte, a forma como um espaço é filmado, como as pessoas aparecem ou desaparecem
– esses são os “saltos” que o espectador tem que processar, racional e emocionalmente. Assim
sendo, o filme mantém uma sequência cronológica linear, mas a palavra “ligação” é aqui
definida de forma diferente – mediante a consciência do que é fragmentário. Ou seja, os
pequenos e grandes saltos no tempo são, em Costa (como em Bresson ou em Huillet/ Straub)
todos tratados da mesma forma – nem sempre conseguimos perceber de imediato quanto tempo
passou depois de uma determinada elipse. Essa técnica é uma forma de deixar elementos
em aberto: por um lado, o espectador é instado a mover-se ao longo da linha predefinida
racionalmente (os planos sucedem-se uns atrás dos outros como um rol), mas, ao mesmo
tempo, existe também uma multiplicidade de sentidos; por vezes, gera-se uma afluência de
significados – é disponibilizado um mundo de possibilidades. Dentro de uma tal constelação
– a irradiação do vertical na horizontal –, as personagens do filme podem ficar encerradas em
si mesmas; o seu segredo é mantido. Assim, no que toca aos planos, o mais importante são
os espaços, as personagens, as situações, os momentos – rostos, corpos, gestos, vozes.
Poderíamos chamar-lhe a mística do olhar – epifania do quotidiano.
“Adoramos o que nos eleva as emoções que vivemos...”, escreve Paul Valéry nos seus
Cahiers (no ensaio intitulado “Eros”). O que se trata em O Sangue – em oposição à fatalidade
social – é precisamente isto: sentir directamente a vida – sentir a forma como o sangue flui e o
coração bate. A relação da criança é estabelecida por este impulso: quando está contente, a criança
está verdadeiramente contente, quando triste, muito triste. O que eleva em nós as sensações
da vida é o outro ser – aquele com quem estamos em harmonia, aquele que amamos. Esta
é uma ideia que também o velho cinema de Hollywood valorizou, romantizou e explorou
comercialmente. Não é por acaso que uma crítica do filme nos Cahiers du cinéma (Janeiro de
2000) tem o título “Les amants de la nuit.”3 Esta “dimensão mística” existe, sem dúvida, no
cinema de Costa, mas virada para outra direcção: ou seja, o potencial de resistência desta
ideia foi incluído no filme. A nociva comunidade – o mundo construído pelo progresso (a
racionalidade técnica e comercial), esse mundo ermo e despovoado – intromete-se como uma
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ameaça em cada plano, tentando tirar-lhes o que eles têm de mais vivo e desperto, tentando
nivelá-los e suprimi-los. O especial, a diferença – uma outra vida – bem como o sentimento
físico, corpóreo, resistem a esta intromissão e criam o seu próprio tempo, o seu pequeno
espaço, que, no entanto é obrigado a contemplar-se sempre como ameaçado. É nesta vontade
de se afirmar, que tem de ser forte e vir do interior, que este e os outros filmes de Costa
encontram a sua importância e a justificação da sua existência.

1. Maurice Blanchot dedica toda a segunda parte do seu pequeno livro La Communauté inavouable (Paris, 1983) à
“comunidade dos vivos”, começando com as secções “Maio de 68”, “Presença do povo”, “O mundo dos vivos”.
2. Consultar o seu texto em prosa Lichtregen (Chuva de Luz, Berlim, 1922) – uma discussão da primeira colectânea de
poemas de Boris Pasternak, com o título Meine Schwester, das Leben (Minha Irmã, a Vida, redigido em 1917).
3. Les Amants de la nuit é o título comercial francês de They Live by Night de Nicholas Ray (1949). Há outros filmes que
espreitam aqui à distância – os de Jacques Tourneur, The Night of the Hunter de Charles Laughton (1955), mas estas
perspectivas devem ser vistas mais como pano de fundo pressentido (e não como citações), como se o fazedor do
filme e a reflexão sobre o filme se tivessem transformado numa entidade de carne e osso.
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ÓRFÃOS
PHILIPPE AZOURY

O Sangue começa como começam os romances de Faulkner: com uma paisagem e com uma
guerra. Com uma noite expressionista, semeada de grandes árvores aterradoras, alinhadas de
modo a formar uma fronteira que rodeia uma planície ventosa. Por todo o lado há uma lama,
dada como último terreno possível. Nem sempre sabemos em que é que nos enterramos –
se no princípio do mundo ou no seu fim… A guerra d’O Sangue parece ainda mais ancestral
do que a terra maldita que a sustenta. É uma tragédia clássica, que nos vem da mitologia, dos
gregos: um pai dá uma bofetada ao filho. Antes de rodar nos calcanhares e o abandonar para
sempre. Uma bofetada que é dada para saldar todas as contas.

Mas, ao partir, este pai castigador deixa aos seus dois filhos (Vicente, o mais velho, e Nino,
o mais novo, com dez anos ou pouco mais) qualquer coisa infinitamente mais preciosa: uma
vida de romance. Esta riqueza não é material, este legado não pagará as dívidas (o homem
terá partido porque estava encurralado), não cicatrizará as feridas, não penetrará o mistério. Mas,
de uma só bofetada, deixa dois órfãos na natureza, enraivecidos como pessoas, amedrontados
como cães, inadaptados ao mundo exterior, niilistas pela familiaridade com a noite. Perante
a deserção do pai, os rapazes ficam entregues a si próprios e são chamados a tornarem-se heróis.
Quer queiram quer não queiram, são apanhados numa história – já não pode ser de outro
modo. A contabilidade de ferro d’O Sangue é a primeira marca da sua inquietude: Vicente e
Nino não possuem mais nada – mas resta-lhes uma palavra. É uma palavra que podem brandir
com orgulho, uma palavra que os define e protege: órfãos. Uma palavra que diz uma vida
fantástica e violenta de que serão os únicos proprietários.
E para que esta vida de romance se escreva, serão precisos inimigos (procuremos na
família: o tio; escolheram um inimigo fraco, quase terno, e mais algumas sombras que se
assemelham a gangsters dos filmes de Melville, mas já fora de moda, gangsters que já não
se usam, naquele carro esquisito). É preciso sobretudo procurar agora alguém com quem
partilhar esta nova selvajaria que os designa. Alguém com quem possam prolongar a noite,
e o medo.
Esse alguém será uma rapariga, e ela trará o amor. Será uma rapariga e também ela não
terá pais (mesmo se, trabalhando numa escola, tenha crianças às mãos-cheias). Será uma
rapariga, bela e moldada em branco: Clara. O Sangue será o filme de todas as primeiras vezes.
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O fluxo d’O Sangue é impulsivo (é o de uma criança despenteada). O seu curso é inver-
tido: filme de uma primeira vez, vai regressar em direcção às coisas primitivas, tomou para
si a tarefa de traçar a genealogia do medo, dos instintos. Não é em vão que se começa um filme
com uma bofetada e com uma fuga. O Sangue é um filme que marca encontro com o medo de
alguém. O medo, que o filme enfrenta sequência após sequência, esconde-se no interior de
cada um dos dois irmãos. É também o medo que rodeia Clara, cúmplice deles. E é, por
contágio, o medo de um cineasta, Pedro Costa, que assina então o seu primeiro filme dando
uma importância fenomenal, um peso, a cada uma das suas imagens, para que nunca passem
despercebidas: aqui, filmou-se correndo o risco de acordar os mortos.
É que em O Sangue joga-se todo um drama cinéfilo. Existe um ziguezague Costa: o solo
dos seus planos está juncado de mortos, de referências de um outro tempo, de todas as
galáxias possíveis do cinema (a Hollywood de Lang, de Tourneur, de Nicholas Ray, de Charles
Laughton, o Japão de Mizoguchi, o ilhéu Straub). E Costa calca este terreno. Sabe precisamente
aquilo com que choca, qual a imagem das origens que ressuscita no espaço de um instante.
A ideia segundo a qual Costa seria um cineasta absolutamente realista, um observador
inquieto, próximo do documentário é também uma ilusão: é sem dúvida o cineasta mais
xamânico que há, o último feiticeiro a convocar a magia invisível dos mortos, a sua bruma.
Mas ao realizar O Sangue, Costa sabe também que terá de romper com as homenagens, parar
de invocar os seus mortos de eleição, largar as amarras das referências para poder encontrar
noutro sítio o seu próprio oxigénio, inventar a sua própria magia branca. Há um Pedro Costa
que exuma (os fantasmas do cinema lendário) e um Pedro Costa que enterra, que queima (por
todos os meios: O Sangue é um filme em fogo; a febre em O Sangue), que liquida, que queria
ser de uma vez por todas órfão, e já não herdeiro.
E, se virmos bem, O Sangue começa na lama chuvosa de um baldio e acaba num oceano,
numa barca livre, os olhos bem fixos no horizonte. Para Costa, como para as suas personagens
órfãs (por vezes os seus destinos confundem-se: Vicente, Nino, Clara, Pedro são dominados
pela mesma vontade), o único destino possível é a terra virgem. Um território onde tudo
estaria por reinventar, onde seria permitido reescrever a sua própria história, começá-la do
zero.
O Sangue tem, aliás, um estatuto à parte na filmografia de Pedro Costa: é simultanea-
mente o primeiro filme – e até um filme que assenta totalmente nesta ideia aterrorizadora
da primeira vez – e um filme à parte, solitário por relação às obras que se seguirão. O mais
abertamente lírico, o menos atonal.
O único dos seus filmes que não aposta num efeito de conjunto. Ossos, No Quarto da
Vanda, Juventude em Marcha partem de uma convicção imediata, uma experiência do mundo
dada desde o primeiro plano, e que já nada fará desviar. A experiência será muitas vezes
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dolorosa, mas não nos podemos queixar: a nossa participação (passiva) no mundo deles dura
três horas. A vida de Vanda não pára com a claquete de fim.
O Sangue é mais lunático, tem a versatilidade dos jogos das crianças. Os órfãos brincam a
Hollywood tal como, na mesma altura, outros brincam à Rússia. O Sangue não se assemelha
em nada ao cinema que Costa fez depois, e que segue uma só linha e não se desvia. Pelo
contrário, constrói-se na vontade de voltar a jogar com todo o cinema, em todas as suas
gradações (até ao filme de género). Mas é também um filme que sabe que invoca o fantasma
do cinema uma última vez antes de partir para outras paragens, para uma outra relação com
a imagem.
É assombroso apercebermo-nos hoje até que ponto O Sangue foi pensado como uma
derradeira homenagem ao cinema e, em certa medida, como o modo do seu adeus. Um
primeiro filme quer dizer aqui um prólogo ao cinema de Costa. Que só começará a revelar-se
verdadeiramente a partir de Ossos (Casa de Lava é ainda um filme intermediário, uma etapa
– a da viagem para um país distante).
Como rever agora a sequência do pai esbofeteando o filho de dezassete anos em plena
noite expressionista? Sendo a primeira cena do filme, é sobretudo a primeira de uma filmo-
grafia cuja direcção só agora começamos a adivinhar. Partindo deste território de tragédia
grega representada ao ar livre, essa filmografia viajará, libertar-se-á, desterritorializar-se-á.
Irá ao encontro do seu único tema: o exílio. O dos cabo-verdianos de Lisboa em quartos
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deteriorados de um bairro em ruínas de onde os querem expulsar (a trilogia da derrocada


constituída por Ossos, No Quarto da Vanda e Juventude em Marcha). De certo modo, o cinema
de Costa obstina-se a fazer uma única e mesma pergunta: onde ganhar raízes, quando já não
se tem nada?
Só que, com o passar dos anos, a pergunta não se constituiu da mesma forma. As crianças
d’O Sangue sonhavam com absolutos e fugas. Já só estavam ligados a esta terra por uma casa,
sonhavam partir para o mar, tornarem-se contrabandistas. Vanda ou Ventura, pelo contrário,
são os contrabandistas de uma cidade onde a única porção que lhes pertence, quatro paredes
degradadas de chapa num bairro de lata cabo-verdiano de Lisboa, as Fontainhas, já não
constituirá um esconderijo por muito mais tempo. São confinados e muito em breve des-
carregados (em prédios de habitação social, vazios e funcionais, que povoam o horror de
Juventude em Marcha). Em O Sangue, a casa estorva os órfãos, prende-os, lembra-lhes a cada
dia que ainda não reuniram a coragem para se irem embora. É a antítese de um esconderijo
porque o tio sabe onde os encontrar para lhes tirar a última coisa que lhes resta, a sua condição
de órfãos. N’O Sangue é preciso cortar o laço-casa. Para Vanda e Ventura já só a casa constitui
um laço.

No momento da estreia francesa de Ossos (Fevereiro de 1998), Pedro Costa descrevia a


Dominique Marchais – em Les Inrockuptibles – a bizarra trajectória que a sua terceira longa-
-metragem desenhava: “o filme é como uma elipse: avança sempre para um centro que se
esquiva.”
Será que podemos dizer o mesmo d’O Sangue, filme ainda construído tal como Lang ou
Tourneur podiam sonhar os seus filmes, por patamares, seguindo maquiavélicos progressos
(cada sequência como um passo na direcção do terror, cada sessão como uma lição ou um
desafio)? O centro do filme não existe. O Sangue não pode no final de contas assemelhar-se
a um caracol enrolado sobre a sua casca: desenha, bem pelo contrário, uma linha de fuga. Mas
assenta já em torno de um centro que se esquivou e que as crianças temem que regresse
para as perseguir. Este centro fantasma é aquele pai, que nunca sabemos exactamente se se
foi embora ou se os filhos o liquidaram (fica-se órfão de uma vez por todas, é uma condição
que não volta atrás: se houve parricídio é para recordar isto, que a condição de órfão não é um
ioió com que se possa brincar).
Para além do exílio, O Sangue procura sobretudo encontrar o seu próprio medo. Que
constitui a essência da sua aventura. Este medo tem uma forma: a da ausência. Medo das coisas
que não conhecemos e que nos esperam. Medo sobretudo de que o corpo ausente regresse
para perturbar, de uma forma ou de outra, um romance de aventuras construído em torno
de um corpo evacuado (sem remorsos). A sua linha de fuga liga-se a um sonho que só pertence
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à infância: todas as crianças sonham ser órfãs. E todas as crianças desejam viver num livro.
A ausência (ou a eliminação, dito de outra maneira) é a própria condição da aventura.
De onde vem a estranheza da cena mais bela do filme, a da ronda amorosa entre Vicente
e Clara em plena festa de Natal? Chegam conquistadores, precipitam-se por um terreno,
tropeçam numa fauna de dançarinos, atravessam uma fogueira de alegria, mas detêm-se
estupefactos perante uma barca fantasma (dir-se-ia a de Aurora, que Costa reencontrou no
sítio onde Murnau a deixara 60 anos antes). O marinheiro iça qualquer coisa que parece um
corpo, um corpo que não diz o seu nome (serão os restos do pai, inchados pela água?), uma
massa morta e ensopada, uma inutilidade. Clara e Vicente olham-na com os olhos do horror
e da revelação. Vicente bem tenta abraçar a sua noiva, mas ela repele-o. O silêncio entre eles
é ainda mais forte do que se se lançassem mutuamente à cara a monstruosidade um do outro.
Mergulhados neste estado de animalidade frenética, jogarão à distância, ela afasta-se, ele
perde-a, reencontra-a, ela põe-no louco de ciúmes, retoma um antigo amante, Vicente empurra
o rival, e Clara e ele correm pelos campos.
Joga-se então uma caçada que acabará num abraço à beira-mar, com ondas revoltas, um
oceano tempestuoso só para eles e sublinhado por três notas de Stravinsky, estelares: demasiado
belo para ser verdade? Não, demasiado belo apenas para esconder o que é indizível, para
mascarar a sensação tardia de que houve um crime e que eles já não poderão voltar atrás. O
Sangue atravessa a loucura. A sua qualidade é o seu silêncio. Eis um filme que sabe guardar
um segredo. Nunca diz as coisas que o trabalham, em vez de as dar a entender prefere fazer-nos
vê-las como num delírio: Costa defende que nunca soube filmar um sonho. Poderíamos
dizer-lhe que é o contrário: todo este filme tem simplesmente um ar alucinado – existe
mesmo ou sonhaste-o apenas?

Estes fantasmas sobre os quais caminhamos, dançamos, amamos, cuspimos, lembram-nos


que não nascemos já de pais vivos, somos antes a camada viva, a superfície de uma terra
cravada de cadáveres. É sabida a admiração sem limites de Costa pelos Straub. Ela começa
exactamente aqui: na ideia muito precisa de que o plano é um corte geológico, onde pensamos
ver apenas a superfície mas sob a qual se sedimenta a História, ao ponto de governar os actos
dos vivos. Ao quererem partir para o mar, a que esperam os órfãos escapar senão ao fantasma
da sua própria história, a este pai que não conseguem evacuar do plano (ele foi-se embora,
foi evacuado, mas o medo ficou)?
Mais tarde, os desalojados das Fontainhas chorarão a sua incapacidade de retomar os
laços com os espectros cabo-verdianos, a perda de uma certa magia (que o pó não compensa).
Não há nada a esperar n’O Sangue. Há que navegar entre as diferentes topologias da
lenda. Por um lado, um filme que começa por um crime (parricídio), por outro duas crianças
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(três, se contarmos com Clara) que se lançam para a vida com o pressentimento íntimo de
que correm para uma catástrofe escrita à partida.
Qual é a cor d’O Sangue? Duplamente negro. Obscuro, tenebroso e sombrio. Assemelha-se
a um oceano à noite, quer dizer, à imagem mais paralisante do grande vazio.
O mundo que aguarda Vicente e Nino no outro lado é sem aliança. Mesmo assim será
preciso ir procurá-lo, atravessar. Será preciso transpor a margem, para quem se quer tornar
adulto. Este caminho não o contará o filme, por assim dizer. Permanece por agora no orfanato
da infância, esse lugar onde tudo é maior, mais ameaçador, desmesurado. Aqui a esperança
é o desaparecimento: onde vemos regressar a velha cena primitiva rimbaudiana.
O desaparecimento como última sobrevivência perante um mundo condenado à partida e
cujos únicos heróis serão os contrabandistas, navegando em contra-corrente. “Não te perdes?”,
pergunta um homem a Nino quando ele embarca sozinho para a aventura-mar, mais órfão
e mais determinado do que nunca. “Não”, responde Nino. É portanto este o modo de usar:
virar as costas ao mundo – e trata-se de orgulho. Apercebemo-nos então de que, desde o início,
desde o primeiro plano de Vicente, Costa filmou os seus irredutíveis de frente. Está do lado
daqueles que viram as costas ao mundo, mas deu-no-los a ver. Ofereceu-nos o olhar deles.
Deu-nos a ler o medo e a ousadia nos seus rostos. Acompanhou-os e nós, por nosso turno,
acompanhámo-los. Nino está agora ao leme, ainda não sabe que será por muito tempo.
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A VIDA INTERIOR DE UM FILME


ADRIAN MARTIN

Ver os filmes de Pedro Costa convoca naturalmente a “experiência cinéfila” por excelência:
comparamos, cruzamos referências, recordamos um momento em John Ford ou um dado
efeito de estilo em Jacques Tourneur, um corte em Jean-Luc Godard ou uma sobreimpressão
em Jean Epstein, uma atmosfera em Moonfleet (Fritz Lang, 1955) ou o olhar ansioso no rosto
de um actor secundário num filme de Nicholas Ray… filmes antigos e contemporâneos,
clássicos e malditos.
Mas isto não é apenas um hábito preguiçoso ou um reflexo habitual quando se trata de
Costa: é uma necessidade premente e uma questão de cinema.
Recordar deste modo lapidar nada tem a ver com as citações à Tarantino ou com os jogos
pós-modernos de alusão, paródia ou revisão de muito do cinema narrativo contemporâneo.
Nos filmes de Costa, atinge-se outro nível mais profundo que associamos ao cinema de Carax,
Godard, Schroeter ou Ossang, por vezes com Kusturica, Scorsese ou Kaurismaki: a poética
de certos realizadores foi de tal modo interiorizada, poder-se-ia até dizer tão profundamente
vivida por Costa (na esfera do imaginário), que se formou um palimpsesto único na inter-
secção de todas estas visões, de todos estes mundos e de todas estas memórias: a sua assinatura
é esse nó górdio, demasiado emaranhado, aglutinado e transformado para algum dia voltar
a ser desfeito, separado nos seus vários elementos de origem.
Logo desde os primeiros momentos da primeira longa-metragem, O Sangue, Pedro Costa
obriga-nos a ver algo de novo e singular no cinema, em vez de algo genérico e familiar.
A fotografia a preto e branco do compatriota de Wenders, Martin Schäfer, em O Sangue, é bem
mais do que um mero efeito de moda, do grande contraste, transformando-se em algo de
visionário: brancos que queimam, pretos que devoram. Imediatamente, os rostos são
desfigurados e os corpos deformados por este trabalho onírico sobre a luz, a escuridão,
sombra e encenação.
Carl Dreyer em Gertrud (1964) deu ao cinema algo que Jacques Rivette (entre outros)
aplaudiram: corpos que “desaparecem no corte”, que vivem e morrem de plano para plano,
prosseguindo uma estranha semi-vida nos interstícios das bobines, das sequências, dos
planos, e até dos fotogramas. Costa pega nesta poética da luz e da sombra, da aparição e do
desaparecimento – a poética de Dreyer, Murnau e Tourneur – e radicaliza-a ainda mais.
Na sua obra, vemos aquilo a que Raymond Bellour chamou, em relação a Jacques Tourneur,
“a representação calculada por parte dos actores, filmada como se eles fossem figuras”, sujeitas
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a “elipses e durações” estranhas e insondáveis: o silêncio pregnante de uma cena de Stars in My


Crown (1950) com as costas impassíveis de Joel McCrea voltadas para a câmara; ou a tensão sub-
til em Out of the Past (1947), quando alguém se afasta da câmara, desaparecendo na escuridão…
Em O Sangue há uma tensão constante e vacilante: quando uma sequência termina,
quando uma porta se fecha, quando alguém vira as costas à câmara, será que a personagem que
vemos vai alguma vez regressar? As pessoas desaparecem entre cortes, um pai doente morre
entre cenas, passando, num instante, de corpo que fala e (mal) respira a cadáver pesado.
E se algumas pessoas de facto regressam ao filme, sob que forma é que o fazem? Como
fantasmas, zombies, projecções da memória, realidades virtuais? O estatuto ambíguo dos
mortos-vivos assombra tranquilamente todo o trabalho de Costa, até aos mais recentes
Juventude em Marcha e Tarrafal. É a melancolia crepuscular da semi-vida, mas sem o angelismo
sentimental de baixo contraste da vida depois da morte de Wenders; o retrato de Costa da
semi-vida vai beber na experiência dos pobres, dos desalojados, dos drogados e dos espoliados.
Tal como na obra de Philippe Garrel, há algo de duro, de irreconciliado, de “alheado”
neste minimalismo, como uma mente que se esforçasse por se concentrar ou tornar clara
uma vinheta quotidiana e sem fim de um horror social indizível. Como um ponto cego que
cresce devagar, como uma mancha no coração da visão: ainda assim, o olhar continua fixo, firme
como um rochedo, sem querer ou sem conseguir desviar-se, como em No Quarto da Vanda.
O Sangue é uma primeira longa-metragem especial – de um género cinematográfico
particular formado pelos primeiros filmes dos que ainda não são autores, sobretudo quando
vistos retrospectivamente. Talvez tenha sido em Klassenverhältnisse (Relações de Classes,
1984) de Straub e Huillet que Costa aprendeu a inestimável lição da ficção no ecrã, digna de
Sam Fuller: começar o filme de imediato, com um olhar, um movimento, alguma deslocação de
ar e de energia, alguma coisa que se deixa cair como um pedregulho para estilhaçar a calma do
equilíbrio pré-ficcional. Fazer arrancar assim o motor da intriga – mesmo que essa intriga acabe
por ser muito nebulosa, envolta em questões que vão ao fundo do seu estatuto enquanto
representação do real. O Sangue começa abruptamente, depois do som (ainda com o ecrã a
preto) de um carro a parar, uma porta a bater, passos: um rapaz leva uma bofetada. Corte
(para um contracampo desolado, ao longo de uma estrada interminável no meio do campo)
para um homem mais velho, o pai. Depois, de volta ao rapaz: “Faça de mim o que quiser.” O
pai pega na mala de viagem (plano de pormenor) e começa a afastar-se… O início de Juventude
em Marcha também anuncia a sua história imortal desta mesma maneira: malas atiradas por
uma janela, imagem perfeita da expropriação, de seres que andam de um lado para o outro sem
descanso, desde o momento em que começam a existir na imagem (reminiscente, num plano
surrealista, das malas atiradas para dentro de quartos através de janelas ausentes, sinal das
mudanças incessantes no filme de Raoul Ruiz La Ville des pirates (1984).
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A VIDA INTERIOR DE UM FILME - 93

É algo muito diferente do que Wenders tentou nos seus melhores filmes – Alice in den
Städten (Alice nas Cidades) ou Im Lauf der Zeit (A Correr do Tempo), nos anos 70 – em que a
fotografia a preto e branco de Schäfer e de Robby Müller leva a cabo as mesmas desfigu-
rações duras que vemos em O Sangue: em Wenders, o truque era suspender o filme antes
sequer de começar o problema da ficção, deixando-o flutuar na deambulação que existe para
lá das famílias, das identidades ou do sexo… Nos filmes de Costa, pelo contrário, a ficção
parece que se dá, que se entrega instantaneamente e de uma vez só, logo no início: o resto
do filme serão as reverberações, os ecos ou as repercussões desse primeiro golpe ou deslo-
cação…
Costa usa a ficção, dá-lhe um corpo, mas ao mesmo tempo torna-o abstracto, esvazia-o,
transformando esse corpo em algo fantasmagórico e incorpóreo: é um paradoxo vibrante e uma
combinação rara no cinema. O que isto significa é que Costa consegue momentos que são cinema
puro, ficção pura, intriga pura, ao mesmo tempo que lhes conserva o mistério, o “lado secreto”
(“não se mostrem todos os lados de uma coisa”, avisou Bresson, conselho citado por Godard).
Veja-se, por exemplo, essa passagem breve e sublime aos vinte e dois minutos de O Sangue, que
acontece em apenas oito planos, e que dura apenas cerca de cinquenta segundos.
A acção da cena, como poderia ter aparecido no guião, é a seguinte: um homem segue à
distância uma mulher, pela rua. Primeiro vemo-la a ela, a acompanhar três crianças que a ro-
deiam, o som natural da rua, disperso, a ocupar a banda sonora; a câmara vai atrás dela,
segue-a à mesma distância que o homem. Depois há um corte e a câmara está voltada para
ele, ainda em travelling, mostrando-o num plano mais aproximado. É muito clássico, muito
Hitchcock – com a surpresa, quase efeito de choque, de o vermos depois e não antes dela,
tornando assim a estrutura do ponto de vista muito ambígua –, mas ao mesmo tempo muito
económico e bressoniano, já que toda a situação nos é transmitida através destes dois planos
(mais uma vez a ficção é a primeira a surgir, de uma só vez, e o que interessa realmente é o
que vem depois…). A seguir, uma elipse inquietante: a câmara continua apontada para o
homem, continua em movimento, mas mais tarde, talvez horas mais tarde (quem sabe?).
Vemos novamente a mulher, a entrar no enquadramento pela esquerda, a caminhar num
ritmo diferente do de há pouco, e agora sem as crianças brincalhonas; alguém numa bicicleta
bloqueia-lhe a passagem e a sua campainha fornece aquele que é um dos primeiros sons da
cena que se distinguem verdadeiramente, acima do murmúrio da rua e do vestígio audível
dos passos.
A câmara aproxima-se dela (Inês Medeiros, no papel de Clara) enquanto se prepara,
imóvel por um instante, para atravessar a estrada; agora é quase um plano de De Palma ou
Paul Thomas Anderson, sobretudo quando a mão do homem (Pedro Hestnes, no papel de
Vicente) entra bruscamente no enquadramento pelo lado oposto, à direita. Ela vira a cabeça,
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sorri; mas a força do gesto do homem faz com


que os livros dela caiam ao chão, e ela olha para
baixo: uma pequena mas poderosa catástrofe,
que ressoa na cena. Ela baixa-se, e a câmara in-
clina-se discretamente com ela (é um reenqua-
dramento à Lang); depois há outro plano, mais
emotivo, dele a olhar para ela e a baixar-se len-
tamente para a ajudar – nesta altura do filme, ele
surge sempre mais próximo de nós, da câmara,
do que a mulher. Um plano de mãos bresso-
niano: a mão dela agarra a dele, vira-a para cima
e revela a ferida que (mesmo a preto e branco!)
embebe a ligadura. De regresso ao grande plano
dele, a dizer, num tom melancólico mas dramá-
tico: “Salva-me… Só confio em ti”. Depois um
novo plano da mulher, agora em grande plano,
com o cabelo sobre o rosto e as feições embran-
quecidas pela luz, um outro nível de intensidade
na sequência, enquanto ergue bruscamente a
cabeça para responder ao olhar dele, para en-
contrar a força da sua pergunta-pedido.
Mas não surge qualquer fala; em vez disso há
uma explosão de música orquestral e melodra-
mática, como um acorde de cordas samplado, um
único vibrato subitamente concluído por uma
subida em staccato, como nas montagens de
música de Godard. A fechar o plano, a cena
suspende-se de uma maneira mágica, com um
fundido encadeado do rosto dela – em câmara-
lenta, a olhar de novo para baixo para terminar
o que estava a fazer; um plano que, em termos
técnicos, podia ter acontecido inadvertidamente
num qualquer filme de série B antigo, de Holly-
wood –, para as luzes que pontuam uma rua à
noite e uma mota em movimento. É uma ima-
gem que realmente parece conduzir-nos a
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algum lado, anunciar uma mudança na acção e nas relações entre as personagens: mas o
mistério e a ambiguidade presidem a todos os seus níveis e momentos.
Este momento de O Sangue conduz-nos a outro aspecto notável do trabalho de Costa e da
sua aproximação à narrativa. Todos os seus filmes têm uma relação intrigante com a grande
figura cinematográfica do encontro. Muito do cinema clássico e moderno depende do encontro:
da intensidade do primeiro encontro entre duas pessoas. O surrealismo bretoniano dependia
disso; a comédia romântica de Hollywood também. A Nouvelle Vague francesa encontrou, a
todo o custo, o seu código de espontaneidade no encontro. E tantos filmes excelentes – de
The Barefoot Contessa (Joseph L. Mankiewicz, 1954) a Crash (1996) de Cronenberg – vão bus-
car a sua força vital ao poder transformador e místico dos encontros. Mas, na obra de Costa,
algo de estranho aconteceu ao encontro; também ele se escapou por entre as sequências, entre
os planos, entre os acontecimentos. Mesmo quando as personagens parecem encontrar-se
pela primeira vez, suspeitamos – mas não de forma racional ou lógica, quer dizer, sentimos –
que já se devem ter encontrado antes, que já partilham alguma coisa – é algo que também en-
contramos em Garrel, por exemplo em Le Vent de la nuit (1999). Não é um romance, nem
uma explosão, mas qualquer coisa mais carregada: que obriga, que constrange, uma ligação
ética ou moral. Ossos é sobre isso: o laço que existe entre médico ou assistente social e pa-
ciente e, em última instância, entre pai e filho. Casa de Lava também é sobre o mistério do en-
contro, o mistério das relações humanas: para lá da classe, da raça, da cor da pele, da história
pessoal e cultural, algo ligou duas pessoas, algo pesado e difícil de suportar…
Desde O Sangue até Tarrafal, Costa desenvolveu um reportório notável de enquadra-
mentos pictóricos. Diagonais marcadas, linhas de perspectiva acentuadas, conjuntos de
formas que definem fortemente cada imagem. As suas composições têm uma geometria
dinâmica e uma solidez angular. Mas, de modo a evitar a armadilha mortal de um mero
pictorialismo estático de cartaz, Costa concebe os enquadramentos como sequências de
montagem, campo e contracampo: o efeito é verdadeiramente eisensteiniano. Não chega a
ser um efeito barroco (do género que vemos em Ruiz ou em Welles), mas a geometria não é
menos alucinatória pelo seu rigor straubiano/ eisensteiniano – um choque permanente de
perspectivas, sempre móveis, como na descrição feita por Raymond Durgnat do choque entre
“pedaços” de um rosto, músculo contra osso, lado esquerdo contra direito, olho contra a face,
boca contra testa… e haverá alguém no cinema hoje que seja melhor retratista da complexidade
do rosto humano do que Costa? E haverá alguém que esteja mais interessado nestes
extraordinários rostos, hipnoticamente assimétricos, em que uma imperfeição revela toda uma
paisagem de personalidade, experiência e desejo?
O Sangue, sendo o primeiro, é mais barroco do que os restantes: como todos os primeiros
filmes, tenta incluir um pouco de tudo. Chega a incorporar imagens e sons de outros filmes,
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como num sonho – à distância, através do nevoeiro –, e até alguns compassos alegres de rock
New Wave dos anos 80 (acordeão com baixo sintetizado, é “Perfect” dos The The) nesse
momento maravilhoso de alegria em que os amantes correm pela estrada em direcção à feira…
O Sangue também preparou o terreno que Costa exploraria em trabalhos posteriores. Para
falar em termos puramente cinéfilos, Costa junta a tradição artística elevada de Murnau e
Dreyer com a parte mais estranha e intensa da produção dita “popular” da velha Hollywood: é
They Live by Night (1948) de Nicholas Ray, com aquilo que Jonathan Rosenbaum e outros aplau-
diram enquanto poesia da solidão, do isolamento e da noite (bem como dos seus ameaçadores
criminosos, os maus da fita), que paira sobre O Sangue. Incorporando na cadeia de alusões
conscientes e inconscientes a ligação crucial entre a alta-cultura e os géneros populares: filmes
que estão a meio-caminho, como The Night of the Hunter (Charles Laughton, 1955) e Moonfleet,
sempre sobre a confusão de uma criança que enfrenta o mundo assustador dos adultos…
Tal como os retratos febris que Assayas faz da juventude, ou as parábolas mais ligeiras que
Akerman fez da identidade sexual, os filmes de Costa (especialmente o primeiro) contam-nos
a história de sujeitos que não estão preparados para entrar na Ordem Simbólica, passando
por um intenso ritual de passagem. E não poderiam todas as personagens de Costa ostentar
o intertítulo introdutório que Ray deu aos seus jovens inadaptados, “Este rapaz e esta rapariga
nunca foram convenientemente iniciados ao mundo em que vivemos…”?
É fácil gostar dos filmes de Pedro Costa, e difícil interpretá-los. Talvez seja fácil gostar
deles porque são tão difíceis de interpretar. Não se oferecem de um modo simples ou rápido.
O seu mistério e segredo não são algo de estudado, ou algo que seja acrescentado ao filme, como
um estilo ou um maneirismo (como acontece tantas vezes). O que vemos a desenvolver-se em
cada um dos seus filmes, e também através deles, é uma estranha vida interior. É raro um
filme exibir uma vida interior – coisa que não tem nada (ou tem pouco) a ver com a psicologia
interior das personagens, ou com as voltas enigmáticas de um enredo.
Os filmes que possuem esta qualidade reorganizam incessantemente as suas partes,
redistribuem os seus elementos na mente do espectador ao longo do tempo – e se forem
vistos mais vezes, isso só prolonga e realça esse movimento. É como se cada unidade cinema-
tográfica – cada plano, cada bloco de som, cada gesto, cada paisagem – se ramificasse para
um qualquer espaço do texto, invisível e com grande profundidade de campo, um espaço ao
mesmo tempo completamente imaginado e fantasticamente concreto; essas ramificações
encontram-se, tocam-se, entrelaçam-se, criando novas lógicas, novas ligações e novos nichos
de mundos. As dinâmicas visuais de Costa criam sem dúvida a peça arquitectónica mais
visível deste filme vivo, interior: as linhas de fuga do filme explodem em cada imagem, ao
mesmo tempo que escavam mais fundo, para levar a cabo um outro tipo de trabalho, diligente,
como o de uma térmita.
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Rivette (mais uma vez) intuiu este tipo de construção, como que em células, em Kazan,
e Jean-André Fieschi identificou-o em Murnau; hoje temos os exemplos ricos de Víctor Erice,
Claire Denis, Hou Hsiao-Hsien, Tsai Ming-Liang… Mas Pedro Costa, mais do que qualquer
um destes notáveis cineastas, concentra a sua poética da “lógica dos mundos” (Alain Badiou)
na zona mais pequena, local e intratável do mundo real que habita: não é para ele – pelo
menos por agora – o cosmopolitismo global de sucesso (estilo Wong Kar-Wai) de muito do
cinema contemporâneo de ponta. Costa move-se num ciclo lento no lugar onde se encon-
tra em Portugal (ou fechado numa sala em França, para o seu filme com Straub/ Huillet) e
pára para pensar; mas não é um realista como outros “localistas” orgulhosos como os Dar-
denne (e o filme destes, L’Enfant, 2005), não existirá numa relação de diálogo tardio com
Ossos?). Costa escava bem fundo no espaço psíquico-imaginário que se abre à sua frente
naquela pequena porção de terreno familiar, naquela rua ou lugar, como fazem Abel Ferrara,
Monte Hellman ou Garrel; transporta-nos (como diria Nicole Brenez) através de uma
anamorfose profunda – um movimento de transformação que não deixa nada nem ninguém
intacto, mantendo ao mesmo tempo o lusco-fusco sombrio da penumbra do mundo.
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“TERRA A TERRA”
O PORTUGAL E O CABO VERDE DE PEDRO COSTA
JACQUES LEMIÈRE

Um percurso entre Portugal e Cabo Verde,


uma “discussão” dura com Portugal

A obra do realizador Pedro Costa, entre outras originalidades e particularidades, apresenta,


no cinema português contemporâneo, a absoluta singularidade de operar um percurso entre
Portugal e o seu ex-Império, neste caso entre Portugal e Cabo Verde: um percurso circulante,
à vez, de Portugal para Cabo Verde, e depois de Cabo Verde para Portugal.1
Pedro Costa surgiu na cena do cinema português em 1990 com O Sangue, filme sombrio
e trágico, elíptico e romântico, situado numa noite de Natal no Vale do Tejo; Costa diz hoje
em dia, numa espécie de elucidação a posteriori, que esse filme, “que fala do medo quotidiano
em Lisboa, e porque não o medo da polícia política” é, a seu ver, “o único filme português que
existe sobre a PIDE”.2
“Quanto a O Sangue, resisti muito a falar sobre ele em Portugal. Agora, já posso falar
mais, dizer o que penso: o único filme português que existe sobre a PIDE é O Sangue. O que
é que um jovem de 25-30 anos pode fazer se for cineasta, se quiser contar alguma coisa de
interessante com imagens e sons em Portugal? É um filme sobre o medo de um puto de 14
anos de Lisboa, que vivia com o medo. O Sangue é um filme muito mais pessoal que os outros
– é o primeiro filme – respondia a uma angústia, a um medo […]: o medo quotidiano em
Lisboa, e porque não o medo da polícia política?”
É em 1993, a partir da escrita e depois da rodagem de Casa de Lava, um filme que devia
inicialmente chamar-se “Terra a Terra”, que Pedro Costa inicia esse percurso singular que se
prolongará num terceiro filme (Ossos) e depois num quarto (No Quarto da Vanda).
Esse percurso revela-se como uma discussão bem severa do artista com Portugal. Nisso,
Pedro Costa inscreve-se, por dispositivos que lhe são próprios, no movimento que caracteriza
desde há trinta anos a arte do cinema em Portugal, e é aí que esse cinema vai buscar a sua ener-
gia criativa: a interrogação sobre o país. É esse olhar singular sobre o encontro de Portugal com
Cabo Verde, e essa dura “discussão” com Portugal, que gostaria aqui de ajudar a reconstruir.
Uma palavra de introdução ainda: essa “discussão” de Pedro Costa é severa para com
Portugal e, devo dizer, que, sendo francês, não sigo esta via com a arrogância de quem, do
alto do seu cavalo, viria dar lições e, a partir de pretensas certezas exteriores, administrar
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reprimendas. Se me interesso por esta implacável discussão de Pedro Costa com o seu país
(e, de um modo mais geral, dos cineastas portugueses para com Portugal, porque é um traço
constitutivo do cinema português dos trinta últimos anos), é porque me sinto também eu
solicitado por uma (igualmente) implacável discussão com o meu próprio país, que foi, nunca
o esqueçamos, o único país da Europa a oferecer de bandeja ao governo nazi de Berlim, e sem
que este o tenha exigido, a proposta de uma colaboração de Estado, incluindo a deportação
dos judeus de França para os campos de extermínio;3 ou ainda o país onde, desde o dia do
armistício da Segunda Guerra Mundial, a 8 de Maio de 1945, o governo provisório, quer dizer,
o governo da Libertação, reprimiu à custa de dezenas e depois de milhares de mortos a
aspiração das populações das suas colónias à independência, as mesmas que tinham
acabado de contribuir – através de numerosos contingentes sempre enviados para a linha da
frente – para a libertação de França, nos combates europeus contra a Alemanha nazi.4

Morrer no Tarrafal, morrer em Sacavém (Casa de Lava)

No percurso cabo-verdiano de Pedro Costa, o antigo lugar colonial não é apenas uma referência
ou quadro para um trabalho cinematográfico sobre a memória, como acontece com as
imagens reconstruídas das patrulhas portuguesas da guerra colonial, sejam elas filtradas pelo
preto e branco do passado e encenadas na floresta da região de Lisboa, em Um Adeus Português
(1986), de João Botelho, ou coloridas pela luz africana de Casamansa, no Non ou a Vã Glória de
Mandar (1990) de Manoel de Oliveira, dois filmes magníficos e aliás essenciais no que diz
respeito ao balanço português, em termos de pensamento, da guerra colonial e do Império.
Casa de Lava, realizado em 1994, é uma completa imersão na terra e no povo do arquipélago
de Cabo Verde, nos lugares e na sua memória, na música, nos seres de carne e osso, já que
o filme de Pedro Costa recorre apenas em parte a actores profissionais, que só desempenham
os papéis principais e, sobretudo, papéis de personagens portuguesas: “Cabo Verde mudou
aquilo que eu tinha pensado originalmente. O projecto de Casa de Lava adaptou-se constan-
temente à terra, às pessoas, que contribuíram com as suas próprias histórias, indicaram
caminhos que o filme podia seguir.”5
Casa de Lava não aparece por acaso na trajectória do cineasta, tal como não aparece por
acaso na trajectória de Portugal, onde o cineasta vive e trabalha.
“Este filme é filho do desencanto. Guarda disso traços profundos. Desencanto com o país,
com a sua miserável humilhação política, social, artística, com esse povo passivo e mau.
Desencanto comigo próprio […]. Para nós, cineastas portugueses, foi o momento de começar
a sofrer a violência de um poder inculto e arrogante. E tomei a decisão de me afastar de casa […].
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TERRA A TERRA - 101

Afastarmo-nos de tudo para nos aproximarmos de nós mesmos, de casa. Acho que Casa da Lava
se faz deste duplo movimento: é um filme que me abriu ao mundo e, ao mesmo tempo, é um
filme que me esconde.”6
Aquilo a que Pedro Costa chama a maldade do povo português (e multiplicou declarações
radicais sobre este tema) é a ideia de que “os portugueses têm gozo na infelicidade. Na sua
própria infelicidade, na dos outros, em todo o lado e com proveito.”7 Ler-se-á aí uma reacção ao
discurso, tão difundido em Portugal, que o apresenta e ao povo português como país e como povo
de “brandos costumes”: são conhecidas as diferentes declinações desse discurso, desde aquelas
que definem os portugueses como povo tolerante à importação e à imitação dos modos de fazer
dos outros, como um povo que inventou a mestiçagem (no sentido habitual e não conceptual do
termo), àquelas que procuram fazer crer que teriam sido o povo do encontro com os outros
povos, em relações que não teriam conhecido o racismo, ou que teriam mesmo, ousam alguns
afirmar, ignorado a escravatura! Desse discurso também é conhecida a versão salazarista,
daquilo que teria sido uma ditadura suave, como teriam sido suaves esses “brandos costumes”.
A exumação das provas da brutalidade colonial pelo trabalho dos historiadores, ou a sua
incontestável restituição pelo trabalho literário – na medida em que esse trabalho seja permitido
pelo efeito prolongado do aparecimento de novidades políticas – são perigosas, sabemo-lo,
para a perenidade de tais mitologias. Recentemente, um jornal diário de Lisboa fazia eco da
apresentação à comunicação social do trabalho de Dalila Mateus sobre o papel da polícia
política salazarista, a PIDE/ DGS, na guerra colonial de 1961 a 1974, apresentação no
decurso da qual Fernando Rosas declarava que “esse livro [ia] provocar uma forte polémica
porque acusa a PIDE de assassínios em massa em África” e que “[ia] contra essa história
asséptica que o Estado-Maior do Exército reivindica hoje como sendo a da guerra colonial”.
A França é igualmente uma grande produtora de mitologias sobre si mesma, por exemplo,
a de uma França precoce e fortemente resistente à ocupação nazi, tendo esta representação
encantada sido útil para tentar ultrapassar a catástrofe, objectiva e subjectiva, da decadência
pétainista, colaboradora de Estado, criminosa e racista.
É uma subjectividade de grande exigência em relação a Portugal que leva Pedro Costa,
neste filme entre Portugal e o ex-Império, Casa de Lava, a ser o primeiro a pôr em cena uma
figura e um local até então ausentes do cinema português de ficção:
- a figura do operário cabo-verdiano sem papéis, explorado e submetido ao trabalho perigoso
da construção civil e de obras públicas em Lisboa, precisamente os estaleiros da reconstrução
do Chiado ardido8 (em Casa de Lava chama-se Leão, e cai num coma depois de uma queda
no trabalho);
- um lugar sinistramente conhecido, o campo de concentração do Tarrafal, na ilha de
Santiago, onde o poder salazarista exilou, aprisionou e fez morrer os opositores mais resolutos
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104 - JACQUES LEMIÈRE

à sua ditadura, esse campo, sublinha Pedro Costa, “onde jovens prisioneiros políticos tinham
cavado as suas próprias sepulturas”.9
O filme inclui a memória de uma personagem desaparecida nesse campo, cujo drama é assim
situado no tempo: “Nos arquivos da PIDE, pode confirmar-se que Vicente Bento Águas foi preso
a 17 de Agosto de 1958 e transferido para o campo do Tarrafal. Morreu a 15 de Agosto de 1962”.
E duma outra personagem, uma mulher cabo-verdiana, diz-se no filme: “A Amália era cozinheira
do Tarrafal. Fazia almoço e jantar para 150 desgraçados. Há coisas que não se esquecem.”
Nos dois casos, morte de prisioneiros políticos no campo do Tarrafal, morte de operários
caídos das alturas de um estaleiro de construção, Pedro Costa aplica a tarefa que atribui ao
cinema: “O cinema que julgo útil e possível passa toda a sua vida a confrontar-se com a morte.
Mas é um combate onde é preciso manter a distância. A elipse é o lugar (enegrecido pelo
tempo) onde se vai expulsar a morte (protegida pelo amor). É esse o trabalho do cineasta. É
no presente. Em Casa de Lava, a elipse começa nas cruzes do cemitério do Tarrafal, e acaba na
cama de hospital dum operário cabo-verdiano em Lisboa. É este o trabalho da realização: saber
situar-se entre dois lugares onde a morte mostrou (e continua a mostrar) o rosto. A elipse,
nos meus filmes, é o rosto da morte que nos olha.”10
Este filme, Casa de Lava, procede então de uma partida de Portugal, antes de ser um
encontro com Cabo Verde.
“Deixar tudo, deixar o país, para encontrar o sentimento de um país perdido”, diz Pedro
Costa, identificando-se (um pouco) com Wenceslau de Moraes, a personagem central (e, ao
mesmo tempo, escritor real do fim do século XIX português) da grande obra cinematográfica
de Paulo Rocha, A Ilha dos Amores(1982). Aqui não é a humilhação da nação portuguesa pelo
Ultimato britânico que provoca essa fuga, mas a atmosfera que envolve Portugal no início da
sua integração na Europa comunitária, que também é o início, sublinha Costa, duma enorme
transformação mental, fundada no enriquecimento como novo valor social, mas também
como ilusão, ilusão cuja cortina parece hoje rasgada: “Casa de Lava fala das coisas que
perdemos ou que podemos perder em Portugal.” Acrescentarei, por experiência própria, que
se trata da época em que se podia encontrar na caixa de um engraxador das ruas de Lisboa
um autocolante onde estivesse escrito: “Europa, o meu futuro!”
Nesse afastamento para se aproximar de si mesmo, o que é que sucede?
Como o próprio Costa, a sua personagem Mariana, a jovem enfermeira que acompanha
um operário em coma a Cabo Verde, foge a um Portugal visto como demasiado estreito física
e metafisicamente, um país onde não encontra espaço para toda a sua energia.
Tal como Costa, nesta fuga de um país que extenua as vontades para um país imaginado
como regenerador, há quem recolha a personagem do operário cabo-verdiano comatoso,
cuidando dele. Cito Costa: “Entretanto, houve esse arquipélago de Cabo Verde que me salvou
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TERRA A TERRA - 105

do naufrágio e me voltou a dar alento para continuar. Caio justamente no meio de mulheres
perdidas e abandonadas – e ainda não sei então que se trata de uma raça antiga de princesas.
Chego esgotado e muito doente. Recolhem-me e cuidam de mim. Durante a minha conva-
lescença agitada, tenho visões, ouço vozes. Vejo a ilha como um imenso cemitério, ou prisão.
Não é claro. Às vezes, há uma melodia triste, ora requiem, ora dança feérica.”11
Se o encontro com Cabo Verde, enquanto encontro com um alhures, é regenerador e
enfeitiçante (“A sensação nova, sim… enfeitiçados por Cabo Verde”), ele é ao mesmo tempo
o encontro “com um país trágico e maldito”, e vai produzir um filme “duro, como é dura a
espera das mulheres cabo-verdianas”: “É a terra delas, seria o filme delas. Ambos (a terra e
o filme) colocam a si próprios a mesma pergunta muda: porque é que esta morte regressa
incessantemente? […] Era preciso ir para muito longe, para Cabo Verde, para começar a
olhar nos olhos o escândalo da morte. E ali, nem pensar em ser enganado pelo cinema.
Os cabo-verdianos já o eram pela terra e seus fantasmas. Então isso teria sido imperdoável.
Era só preciso respeitar os nossos sangues misturados.”12
Esse mundo que a jovem lisboeta Mariana descobre, e que o operário Leão finalmente
reencontrará (“Essa terra que enganou-me”, diz ele ao sair do coma), apesar de iluminado pela
luz e pelo sol de Cabo Verde, é um mundo opaco de não-ditos, marcado além disso, durante
todo o desenrolar do filme, numa escansão impressionante, pela existência de uma dupla
barreira entre o crioulo e o português. Os portugueses, em Casa de Lava, reduzem-se a três
personagens, duas das quais encalharam ali como sinistra consequência dos crimes do
Tarrafal. Edite – uma mãe, viúva de um prisioneiro morto no campo e nunca regressada a
Portugal – e o seu filho, que diz dela: “Ela só fala crioulo; esqueceu-se do português.” Edite,
uma figura de sofrimento absoluto, e oriunda do campo dos “justos”, dos que foram presos
por resistência ao salazarismo, e cujo sofrimento continuado constitui prova da violência de
um regime que praticava o crime no silêncio interno e na respeitabilidade internacional.
E Mariana, de passagem, que não pára de implorar que lhe falem em português, cercada
pelos enunciados recorrentes dos cabo-verdianos que lhe recordam que, “se a menina não me
compreende, como posso eu compreendê-la?”. Mariana, a quem revolta a partida constante
dos homens para Portugal (mais precisamente para Sacavém, na periferia de Lisboa, para
contratos de trabalho com ou sem visto de residência), e que se dirige desesperadamente a
esses candidatos resolvidos a partir: “Ninguém quer saber de vocês em Sacavém!”
O filme termina de forma patética com a súplica de uma velha cabo-verdiana, rogando a
Edite, a única portuguesa dessa comunidade, que lhe facilite a imigração para Portugal (a
pensão de viuvez de Edite permite-lhe ajudar nessas partidas): “Então quando é que chega a
minha vez? Tu prometeste. Eu quero morrer em Sacavém!”
Morrer em Sacavém: o último legado de Portugal a Cabo Verde?
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106 - JACQUES LEMIÈRE

Remeter-se à sabedoria de Vanda (Ossos, No Quarto da Vanda)

O regresso de Cabo Verde a Lisboa, “com senhas, cartas, presentes e laços”,13 leva Pedro Costa
ao bairro de Ossos e, mais tarde, de No Quarto da Vanda:
“O bairro onde filmei, no limite de Lisboa, nos subúrbios, chama-se Estrela de África; é
o nome crioulo de um bairro que existe há trinta anos e que foi construído por portugueses
pobres. Depois da ‘revolução’, os africanos que vinham de Cabo Verde, de Angola, de
Moçambique, reconstruíram-no pedra por pedra, em cimento, à imagem dos bairros africanos
ou marroquinos, como um labirinto. Há mesmo um pequeno mercado no interior. Mas, no
meu filme, esse bairro é mais ‘sentido’ que mostrado; mais do que um bairro crioulo, africano,
cabo-verdiano é uma ideia abstracta de um bairro de Lisboa.”14
Estes dois filmes vão portanto encontrar as suas personagens nesse bairro muito pobre,
apresentado pela imprensa escrita e pela televisão como lugar da nova perigosidade social,
mas onde Pedro Costa procura construir, no paradoxo de uma exposição da miséria e da
morte em acção, a imagem de “pessoas que se mantêm de pé, que resistem”.15
Ossos, dizia Pedro Costa na preparação do filme, “vem um pouco depois do que eu fiz em
Cabo Verde, porque quero continuar a trabalhar com um certo universo de pessoas e de
sensibilidade. Mas isto não tem nada a ver com questões de racismo ou mestiçagem”.16
“Tenho sempre tendência a escolher os locais onde é a terra que mais sofre. Cabo Verde é um
lugar de sofrimento, de beleza, de alegria também; uma espécie de danação: não há nada
para fazer, não há trabalho, as pessoas estão condenadas a viver ali, é uma espécie de prisão.
Eu queria rodar Casa da Lava ali porque há um sofrimento de origem. No bairro de Ossos também.
Esses lugares são habitados por pessoas que estão muito desarmadas. Muito resistentes, mas
muito desarmadas.”17
Estes dois filmes rodados ali, “no bairro” (como diz simplesmente Pedro Costa), repre-
sentam, à excepção dos filmes sobre artistas (o casal de cineastas Danièle Huillet e Jean-Marie
Straub, depois uma colaboração com um bailarino e coreógrafo português [João Fiadeiro] e
ainda um escultor português [Rui Chafes], as imagens e sons que o trabalho de Pedro Costa
nos trouxe, desde Casa da Lava e do seu regresso de Cabo Verde. Quero dizer que, desde
então, tudo o que Pedro Costa nos diz de Portugal está contido nesses dois filmes enfeiti-
çantes e terríveis.
As personagens centrais que Pedro Costa põe em cena em Ossos e em No Quarto da Vanda
são de um mundo que reúne trabalhadores cabo-verdianos imigrados em Lisboa, ciganos e
portugueses que a migração dos campos para Lisboa não poupou às agruras da existência:
é significativo que sejam o produto do encontro (às vezes até na mestiçagem, no sentido
biológico) entre pobres vindos do Norte de Portugal e pobres vindos de Cabo Verde; que
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TERRA A TERRA - 107

continuaram ou que se tornaram pobres, e que não encontraram em Lisboa senão esse
mundo de pobreza.
Precisemos que essas personagens são ao mesmo tempo seres reais, se assim se pode
dizer, e não actores profissionais. Nesses filmes, o cinema de Pedro Costa leva a um limite
raramente atingido: a indistinção do limite entre ficção e documentário, criando aquilo a
que um crítico pôde chamar recentemente, falando de No Quarto da Vanda, “um filme mu-
tante”.18
Neste último filme, de onde desapareceram todos os actores profissionais, Pedro Costa
só põe em cena esse tipo de pessoas reais/ personagens, que filma com a maior dignidade,
sem no entanto dissimular a dureza dos constrangimentos que uma vida severa faz pesar
sobre elas. O pensamento desses filmes sobre Portugal passa então apenas por eles, seja
pelos seus próprios enunciados seja pela representação das suas próprias vidas.
São filmes em que se dá a ver o trabalho da morte e da destruição, ao mesmo tempo que
a dignidade e a entreajuda, e mesmo a resistência. É essa a intenção do cineasta, para quem:
“Vanda não é uma personagem solitária […], é uma pessoa muito lúcida, que tem um espaço,
que sabe que há classes sociais, que o dinheiro existe no meio das relações entre as pessoas,
e que está sempre a falar de nós. […] Vanda ‘transborda’: ela ‘transborda’ por palavras, pela
sua fotogenia, pela sua presença no bairro, e o bairro ‘transborda’. E, quando ‘transborda’, é
contra a morte.”19
Este combate contra a obra da morte e da destruição é dado a ver na ausência ou na raridade
da luz: a ausência de luz de Ossos, rodado numa Lisboa invernosa, precisamente o oposto da
“cidade branca” filmada pelos cineastas estrangeiros em Portugal, tal como pelos cineastas
portugueses que são cativados pela linha do “entretenimento”; rarefacção da luz, com for-
tes contrastes entre interiores sombrios e exteriores luminosos de No Quarto da Vanda.
Nesta rarefacção da luz, é um outro Portugal que se produz, como passagem possível para
outros portugais imaginados, que faz frente à violência económica e à violência simbólica a
que são sujeitos esses seres, e que conduz Pedro Costa a enaltecer as suas pobres personagens
e a reinscrevê-las na memória nacional, ao mesmo tempo que convoca o espectador a tê-las
em conta no presente do país.
Quanto aos enunciados e ao pensamento trazidos por essas pessoas reais/ personagens,
vou referir, para acabar, duas sequências que me parecem esclarecedoras do ponto de vista
do que chamei a dura “discussão” de Pedro Costa com Portugal. São de No Quarto da Vanda
e da própria Vanda.
A primeira. “É triste, realmente este, o nosso país, é o mais pobre e é mesmo, e o mais
triste”, diz Vanda, para quem o indício supremo da brutalidade do país está neste julgamento
lapidar: “Mas foda-se, ir presa por caldos Knorr ? Credo. Onde é que já se viu? Só aqui em
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110 - JACQUES LEMIÈRE

Lisboa. Foda-se, ir, ai, três anos, caldos Knorr.” E Costa comenta assim esta declaração de
Vanda: “É um compêndio de história económica, e vem da boca de Vanda.”20
A segunda. Trata-se de uma sequência em que Vanda tenta persuadir a mãe e outros
familiares do interesse e do valor de uma coisa que descobriu, e que traz para casa com paixão,
como se fosse um tesouro. É uma maqueta de barco, um barco à vela, antigo. Ela chama-lhe
“antiguidade”, insiste no facto de que está em bom estado, completo, à excepção de um fio
partido, e que isso tem arranjo. Gasta muita energia e tempo – e a câmara de Pedro Costa
dá-lhe todo esse tempo – para tentar convencer os que a rodeiam de que esse objecto (a que
dá não apenas um valor económico, mas também um valor histórico e estético) é “bonito” –
aliás sem conseguir a adesão dos familiares.
Essa maqueta é, na realidade, a maqueta de uma caravela portuguesa dos Descobrimentos:
não temos a certeza, mesmo que ela o saiba, de que pense verdadeiramente nisso. Pouco
importa. Porque o realizador, e com ele o espectador, vêem a caravela.
Então o espectador, como pretende o realizador, “remete-se à sabedoria de Vanda”.21
Vanda que ele vê, nessa cena que não é “representada”, chamar a uma metáfora de Portugal
“antiguidade” e, ao mesmo tempo, tentar salvar-lhe a beleza.
Vanda que acaba de dizer o que disse de Portugal (“É triste, realmente este, o nosso país,
é o mais pobre e é mesmo, e o mais triste”), Portugal cuja maqueta/ metáfora o espectador
a vê tentar preservar.

1. Este texto [com algumas alterações] é o de uma comunicação em Évora (Portugal), em 28 de Maio de 2004, no
colóquio “Culturas, Metáforas e Mestiçagens”, organizado pelo Centro Interdisciplinar de História, Culturas e
Sociedades da Universidade de Évora, no decurso de uma sessão (As imagens e o cinema) que reunia Manoel de
Oliveira, João Bénard da Costa, François Laplantine e eu próprio. A data desta comunicação explica que o filme
Juventude em Marcha não seja aqui referido.
2. Recolhi estas declarações de Pedro Costa a 26 de Outubro de 2002, em Paris, numa longa entrevista realizada a
propósito do ciclo “Cinéma portugais, des films qui permettent la pensée”, organizado em Lille por Cineluso – pour
la connaissance du cinéma portugais (com Cité-Philo e o cinema Le Méliès), em Novembro e Dezembro de 2002. Nas
notas seguintes será referenciado como: entrevista, 2002. Essa entrevista foi parcialmente publicada num número da
revista Images documentaires, consagrado ao cinema documental em Portugal, editado no Verão de 2007.
3. Sobre este assunto, a referência pioneira e incontornável é Vichy France, Old Guard and New Order, de Robert O.
Paxton (1972).
4. Em Sétif, em Guelma e em Bône, a 8 de Maio de 1945, a polícia francesa matou manifestantes argelinos que, mistu-
rando-se nas manifestações oficiais de comemoração da vitória dos Aliados contra o Eixo, desfilavam com faixas que
diziam “Argélia livre” ou “Argélia independente”, brandindo a bandeira argelina. A insurreição que, em Maio e Junho
de 1945, se seguiu a essa repressão e se estendeu a toda a Constantina, foi esmagada pelo exército francês à custa de 1500
mortos segundo a versão oficial do governo francês (Journal officiel, sessão da Assembleia consultiva provisória de 18 de
Julho de 1940), de 6000 a 8000 mortos segundo a imprensa de esquerda, e dezenas de milhar de mortos segundo os
nacionalistas argelinos (estes números são coligidos de Yves Benot em Massacres coloniaux, 1944-1950 : la IVe republique
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TERRA A TERRA - 111

et la mise au pas des colonies françaises, Éditions La Découverte, Paris, 1994). Poderíamos também citar os massacres do
Senegal (Thiaroye, 1944), do Vietname (1946), de Madagáscar (1947-1948), ou da Costa do Marfim (1949-1950).
5. Declarações de Pedro Costa recolhidas por Anabela Moutinho e Graça Lobo, Os Bons da Fita – depoimentos inéditos
de realizadores portugueses, Cine-Clube de Faro/ Inatel, 1996.
6. “6 questions à Pedro Costa”, depoimento recolhido por Jacques Lemière, Catalogue des 5èmes journées de cinema
portugais de Rouen, Cineluso, 1995.
7. “6 questions à Pedro Costa”, 1995, op. cit.
8. Essa zona ardida do Chiado, no coração histórico da cidade, cuja construção foi muito polémica e bastante lenta, é
uma figura recorrente nos filmes portugueses dos anos 1990-1995; Casa de Lava oferece uma vez mais ao cinema
português crítico a possibilidade de mostrar imagens da destruição da capital, como o haviam feito João César
Monteiro em Recordações da Casa Amarela (1989), ou João Botelho em Três Palmeiras (1994), o primeiro apresentando
um falso general de cavalaria, disfarce da sua personagem rebelde em relação a qualquer norma social, e o segundo
uma inepta jornalista de televisão, diante do desastre urbano do Chiado devastado.
9. Entrevista, 2002.
10. “6 questions à Pedro Costa”, 1995, op. cit.
11. Ibid.
12. Ibid.
13. Ibid.
14. Depoimento de Pedro Costa, recolhido por Eugène Andréansky e Patrice Robin, folheto sobre Ossos, do GNCR –
Groupement national des cinémas de recherche, Paris, Dezembro de 1997.
15. Entrevista, 2002.
16. Os Bons da Fita, 1996, op. cit.
17. Folheto do GNCR – Groupement national des cinémas de recherche, 1997, op. cit.
18. Jean-Louis Comolli, “Malaise dans le documentaire ? L’anti-spectateur, sur quatre films mutants”, no n.°44 da
revista Images documentaires, Paris, 2002.
19. Entrevista, 2002.
20. Ibid.
21. Ibid.
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O MISTÉRIO DAS ORIGENS


Chris Fujiwara

Casa de Lava é um filme de mistério cujo mistério reside no rosto das personagens, nos seus
gestos, objectos e histórias, entre os quais as ligações são obscuras e aparentemente inson-
dáveis. “Há muita coisa que a menina não sabe nem adivinha”, diz-se a Mariana; ou então:
“Tu não sabes nada!” Os diálogos negam constantemente o conhecimento, ou então aludem
à dificuldade em compreender, dando a entender que não é preciso resolver o mistério do
filme e que é melhor não o perceber demasiado depressa.
O mistério das origens ganha uma importância extrema. Casa de Lava torna as origens
num problema, levando-nos a perguntar, em relação às personagens, de onde virão e para onde
irão – e deixando-nos sem resposta clara. “- O Leão é seu filho? / - A Alina tem mais de vinte”;
“- Porque é que vieste? / - Não devias ter vindo”; “- Ela é tua mãe, não é? / - Esquece-a.” Mariana
assume, ou usurpa, a função de mãe, fazendo de Leão o seu filho adoptivo. Pergunta-lhe:
“De que é que se lembra?”, e ele responde, recompensando-a com as palavras de um filho
inspirado: “Do sangue, do Escuro, […] das tuas mãos, do teu cheiro.” Ela gostava de acreditar,
como lhe diz, que ele “agora vai começar uma vida nova”. Mas vai-se embora quando lhe
falam de uma outra vida nova, a do rapaz que Leão perfilhou. (Mariana passa grande parte
do filme a afastar-se de outras pessoas – um percurso estranho para uma enfermeira: está
sempre a partir, mas é difícil dizer para onde se dirige.)
Vemos os lugares de onde as pessoas saem (como que para sublinhar o mistério da sua
proveniência). Mariana pára na soleira da porta para calçar as sandálias antes de sair; Leão,
agarrado ao pulso de Tano, é arrastado para a entrada do hospital (onde fala pela primeira vez
no filme, ao aperceber-se de que regressou à sua terra). No final do filme, a rapariga que
vendeu a Mariana um par de sandálias no mercado, e que estava deitada de viés à entrada de
uma casa, limpa as lágrimas dos olhos, levanta-se, pega num balde e afasta-se, descalça: a
última imagem do filme é a da soleira da porta, vazia. O filme insiste na solidez dos limiares
e na sua violência (que rasga o enquadramento e o tempo do filme), mas também na audácia
das viagens, tanto na imobilidade precária como no movimento.
Tal como o enquadramento no cinema, uma casa divide entre interior e exterior, situando
um passado e um futuro em cada um dos lados dessa divisão. O exterior é um espaço de
circulação; o interior é onde as pessoas chegam e se deitam, onde se pode encontrar qualquer
coisa parecida com uma origem. Ao longo do filme, Mariana entra em várias casas. Quando
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118 - CHRIS FUJIWARA

a vemos pela última vez, está a atirar pedras à fachada de uma casa. A sua expressão é de
urgência e desespero, como se soubesse que está alguém lá dentro, e acessível, mas como se
já tivesse perdido a esperança.
Numa curta passagem do filme, ouvimos o choro de crianças sobre uma série de planos
de portas fechadas. Supostamente, estes planos vêm na sequência das visitas que Mariana faz
para vacinar as crianças locais, e representam, ao excluí-la, ao deixá-la do lado de fora, a sua
rejeição enquanto estrangeira, dando a entender que o papel de mãe não é seu por direito.
Por mais que o lado enviesado e distante do filme nos faça questionar, juntamente com as pró-
prias personagens, a presença e a realidade da vida, quando ouvimos o choro das crianças
somos obrigados a admitir que a vida é real. As crianças são as criaturas que choram quando
as magoam e para quem a casa é um sítio vivido, que as protege, é um lar. O choro aponta
para um centro misterioso, uma origem das origens, a que o filme não pretende aceder.
Casa de Lava começa várias vezes. Os planos de abertura de uma erupção vulcânica –
tomados de empréstimo a um filme chamado A Erupção do Vulcão da Ilha do Fogo (1951),
fornecidos a Costa pelo geógrafo Orlando Ribeiro – impõem uma sensação do pré-humano,
de inospitalidade pura. A sequência seguinte é composta por uma série de planos aproximados
de mulheres, de pé numa paisagem rochosa. As mulheres estão a olhar para qualquer coisa;
ou melhor, e já que Costa nunca estabelece que as mulheres estão no mesmo lugar e voltadas
na mesma direcção, digamos que estão a olhar para várias coisas: orientação sem orientação.
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O MISTÉRIO DAS ORIGENS - 119

Algumas destas mulheres serão (e talvez ainda não sejam) personagens do filme – da mesma
maneira que as pessoas em No Quarto da Vanda e Juventude em Marcha são personagens
nesses filmes: quase reais, quase ficcionais, sem se situarem firmemente num dos lados de
uma fronteira que não existe.
Na sequência seguinte estamos já na história, com o plano aproximado de Leão a olhar –
talvez no preciso momento que antecede a sua queda. Trata-se, claramente, de uma das
personagens no filme. As mulheres nos planos anteriores mostram, pelos seus olhares, que
possuem a crença simples de que existem e de que existem num sítio, enquanto que o olhar
de Leão dá a impressão de que ele tem uma consciência de si próprio como não pertencendo
a lugar algum, de quem está a habitar ou a sonhar a sua própria imagem num grande plano
de um filme.
Depois, por contraste, vem a interpretação “bressoniana” do colega de trabalho que vem
comunicar a queda de Leão aos patrões, que estão fora de campo. Mais tarde, ainda outro
contraste: quando chega a Cabo Verde, Mariana está visivelmente a interpretar o papel de
alguém que sabe para onde vai e o que está a fazer. Ao longo do filme, a direcção de actores
(alguns profissionais, outros não) dá provas de uma imaginação e paciência extraordinárias:
o olhar de Mariana, ao mesmo tempo intenso e ausente, a que a câmara dedica, plano após
plano, uma ternura plácida e perplexa; as posturas das pessoas (Tano, bêbado e ligeiramente
inclinado sobre Mariana quando se debruçam sobre a cama de uma criança doente); Tina
tentando em vão combater o sorriso que lhe desponta no rosto durante um plano. Do mesmo
modo que apresenta histórias diferentes ou hipóteses sobre as origens e as relações das
personagens, o filme oferece também diferentes modos de representação, de relação com o
espaço, e estes modos de representar e de estar dão-nos tanta informação sobre as origens e
os destinos das personagens como as palavras que trocam entre si, ou as histórias que
contam umas sobre as outras.
As personagens são todas exilados; qualquer posição que ocupem é provisória. (“Aqui nem
os mortos descansam.”) Edite escolheu Cabo Verde e renunciou não só a Portugal como até à
língua portuguesa; aqueles que, supostamente, nasceram em Cabo Verde só querem fugir
para Portugal. “Estão todos à espera…”, diz o filho de Edite. “Eles querem fugir daqui, cada vez
são mais.” O violinista Bassoé sabe que “nunca encontraste ninguém que tocasse como eu”,
mas a música não dá dinheiro, e ele e os seus filhos querem ir para Sacavém, em Portugal,
onde há trabalho – apesar de Mariana tentar ferozmente demovê-lo (a má consciência do
Norte). A última frase que se ouve no filme (tirando a canção que acompanha o genérico final)
é: “Eu quero morrer em Sacavém.” É um filme em perpétua transição e alternância.
No princípio de Casa de Lava, Mariana, depositada na ilha pelos soldados, está de pé com
as mãos na cintura num plano picado que nos mostra que está agora no espaço misterioso e
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O MISTÉRIO DAS ORIGENS - 121

fragmentado das mulheres que vimos antes. Na ausência, até aí, de um princípio “narrativo”
forte e operativo, e tendo como único princípio a insistência do ângulo da câmara, pondo em
relevo a direcção arbitrária do olhar dela, a relação entre a pessoa e a terra torna-se o tema
principal deste plano. O ângulo da câmara responde – como um contracampo – a outro plano
que vimos momentos antes, aquele que olha para o céu através de uma árvore, quando os bra-
ços de Mariana se esticam vindos de fora de campo para prender um frasco de soro no ramo
da árvore. Entre o plano contrapicado da árvore e o plano picado de Mariana, ela fica sus-
pensa entre o céu e a terra. É essa a dimensão vertical do filme.
A dimensão horizontal é outra coisa. É uma dança de fragmentos, um círculo misterioso
de corpos mutilados e sonâmbulos e de textos ilegíveis e sem autor. A escrita atribui às
pessoas os seus lugares e exerce poder sobre o corpo, que pode erguer e transportar. Leão,
sem papéis, vive num limbo até que uma carta anónima com letra feminina o envia de volta
para o Fogo. Apesar de estar cheia de erros, como comenta o médico de Santa Maria, a carta
revela-se eficaz – em parte por causa do cheque que a acompanha. (Tirando o dinheiro que
Mariana dá pelas sandálias à rapariga do mercado, a única fonte visível de rendimento no
Fogo é a pensão mensal que Edite recebe do falecido marido, e que distribui pelos habitantes
locais.) Tina tira Leão do hospital e recebe de Edite um molho de velhas cartas, à laia de
pagamento. Estas cartas são também, portanto, papéis que podem transportar, convocar ou
dar acesso – como as cartas que permitem a Bassoé e aos seus filhos trabalhar em Portugal.
Os actos de comunicação do filme passam por Tina que, ao contrário de Mariana, se
transforma em heroína do ritual de passagem do filme. O texto central de Casa de Lava é a carta
de amor em crioulo que Mariana rouba da gaveta de Edite (um repositório de sinais de amor e
de morte, de separações e laços quebrados: a fotografia rasgada de Edith Scob em frente à Torre
Eiffel). Mariana acredita que a carta é de Leão e pede a Tina que a traduza. Mais tarde, o pequeno
molho de cartas que Edite dá a Tina marca a passagem da rapariga à maturidade. Talvez seja a
Tina que a história do filme acontece, e talvez seja ela quem, armada destes textos, pode
conduzir a história a um novo lugar e tempo: no final, não é claro se ela deixa a ilha, contra-
riando os planos do pai – tal como acaba por não ser mostrado se Mariana vai ou não partir.
Em Casa de Lava as coisas funcionam por substituição, por troca, por equivalência. O filme
é um jogo de duplos, de pessoas que trocam de papéis: logo na sequência em Portugal,
Mariana e outra mulher a conversar lado a lado, olhando para um espelho. A rapariga no mercado
confronta Mariana como sendo a sua dupla; e juntamente com as sandálias oferece-lhe uma
mensagem sobretudo gestual de solidariedade e identidade. Mariana aproxima-se de Edite, e
as duas mulheres fazem de Tina a sua mandatária num mundo de desejo. As dualidades
atravessam e voltam a atravessar o filme, complicando a procura das origens e minando a
certeza dos destinos.
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122 - CHRIS FUJIWARA

Por cada vida nova que começa, há outra que acaba; alguém parte, alguém chega. Mesmo
antes da viagem de Mariana, há um plano misterioso de um lençol a cobrir o rosto de uma
mulher. Em troca da morte desta mulher, é concedida uma nova vida: a Leão (de quem, mais
tarde, o cão que salvou Mariana na praia se torna um outro substituto, ao dar a vida por ele),
mas também a Mariana, que renasce no Fogo, como ela própria indica ao trocar o uniforme
branco de enfermeira pelo curto vestido vermelho, um sinal da sua disponibilidade para o
desejo. Tina põe igualmente um vestido vermelho para libertar Leão do hospital e, mais tarde,
também a rapariga do mercado aparece com um vestido vermelho. Circulação do desejo,
circulação da cor vermelha pelo corpo das mulheres.
O desejo ofusca as personagens. A luz e a escuridão cintilam repetidamente sobre os rostos,
nomeadamente no de Mariana quando, já próximo do fim do filme, caminha sozinha à noite
do centro da povoação para o hospital ou, mais atrás, quando regressa a casa de noite, vinda
da festa de Bassoé, com uma lanterna na mão cuja luz lhe incide nas pernas nuas e, no seu
balançar, ora lhe ilumina parte do rosto, ora o deixa numa escuridão quase total. “J’ai tellement
marché, tellement parlé”, diz Robert Desnos no poema que dá letra à bela canção que se ouve
durante o filme e durante o genérico final. Mariana podia ser a pessoa de que fala a canção:
“Il me reste d’être l’ombre parmi les ombres / D’être cent fois plus ombre que l’ombre /
D’être l’ombre qui viendra et reviendra dans ta vie ensoleillée.” Mostrada repetidas vezes à
sombra, Mariana, a visitante que vem da terra dos antigos colonizadores, torna-se na mais
misteriosa e abandonada de todos, “cem vezes mais sombra que a sombra”, enquanto vai e
vem pela ilha ensolarada.
Os seres do filme acabam por se assemelhar aos sonhadores a sonhar-se a si mesmos,
assombrados pela ausência, os seus movimentos e gestos automáticos, inexplicáveis – puros
sinais exteriores de movimento, obscuros, fantasmagóricos, mais do que movimentos plenos
habitados pela vontade. Pela janela do hospital por trás de Leão, em coma, vemos, desfocado
e sobre-exposto, à luz forte do sol, um pequeno grupo a conduzir cabras. Por baixo da va-
randa em cujo peitoril Mariana se senta, as pessoas correm ou caminham em segundo plano.
Por detrás de Bassoé, enquanto toca violino à noite, as pessoas atravessam o plano com
lanternas nas mãos.
Enquanto Bassoé toca, ouve-se o grito: “Até os mortos dançam!” – uma exclamação
paradoxal que deve ser ouvida, mentalmente, lado a lado com a de Amália, que dança com
outra mulher de meia-idade, Edite: “Juventude em Marcha!” Não há alegria, mas uma
ebulição equilibrada e sóbria: uma combinação de ironia e êxtase a que a elegância da
mise-en-scène proporciona um apoio sem falhas.
Ao longo de Casa de Lava, a mise-en-scène de Pedro Costa traça caminhos em diferentes
direcções, em diferentes níveis de profundidade da imagem. O médico em Cabo Verde está
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O MISTÉRIO DAS ORIGENS - 123

normalmente em movimento, e sempre numa trajectória diferente ou numa profundidade


diferente da de Mariana. Num belo plano, Mariana e Bassoé, que toca o seu violino, des-
tacam-se da imagem não totalmente focada de um grupo de pessoas que estão em frente a
uma casa, ao anoitecer. Mais tarde, Edite está de frente para a câmara, a beber a uma mesa,
enquanto Tina, em segundo plano, sai pela porta em direcção à luz forte do sol. O filme
avança sempre tangencial à vida das personagens, repudiando um conhecimento das suas
origens e destinos. Uma sequência breve, que rima com a sequência inicial dos planos fixos
das mulheres, consiste em breves travellings de mulheres a caminhar em várias direcções: não
há maneira de saber para onde vão nem porquê. Esta sequência também prolonga e multiplica
o longo travelling que segue o passeio de Mariana pelo centro – uma viagem a que se podiam
colocar as mesmas perguntas.
Apesar dos trânsitos obsessivos das personagens, e por detrás das reviravoltas do enredo,
a situação fundamental do filme permanece fixa num padrão que é determinado pela geo-
grafia e pela história. Quando a ilha era uma colónia de leprosos, explica o médico, quem lá
fosse não voltava a sair; agora, as pessoas só partem, e nunca ninguém regressa. A dupla
impossibilidade a que o médico se refere é encarnada por Leão, ele próprio uma figura
impossível: dado como morto, ele reconhece: “Eu devia estar morto”; talvez tenha morrido,
como consequência inevitável de ter penetrado demasiado fundo nas contradições vertiginosas
da sua vida. A dualidade de Cabo Verde e Portugal, o reflexo petrificado que dão um do outro,
constitui um impasse e uma suspensão, um circuito de morte, que Casa de Lava desenvolve,
com um lirismo desolado, numa cadeia de sinais através dos quais, no final de contas, “nada
terá tido lugar a não ser o lugar”.
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ALGUMAS ERUPÇÕES
NA CASA DE LAVA
Jonathan Rosenbaum

I know I'd go from rags to riches


If you would only say you care
And though my pocket may be empty
I'd be a millionaire.

My clothes may still be torn and tattered


But in my heart I'd be a king
Your love is all that ever mattered
It's everything.

[…] Must I forever be a beggar


Whose golden dreams will not come true?
Or will I go from rags to riches?
My fate is up to you.
“Rags to Riches” (de Richard Adler e Jerry Ross; cantado por Tony Bennett)

No meu entender, há menos diferença entre documentário e ficção do que entre um bom filme e um mau filme.
Abbas Kiarostami, numa entrevista

Se tens medo dos mortos, tens medo dos vivos.


Tina, em Casa de Lava

1.

Permitam-me que prefacie os meus comentários com uma confissão pessoal e embaraçosa,
que também pode ser interpretada como um longuíssimo pedido de desculpas. Depois de me
ter cruzado pela primeira vez com Pedro Costa e com o seu trabalho em Roterdão, no princípio
de 2002, quando vi pela primeira vez o espantoso Onde Jaz o Teu Sorriso?, tive oportunidade
de passar algum tempo com ele no Festival de Cinema Independente de Buenos Aires, três
meses depois. Pouco depois do meu regresso a Chicago, o Pedro teve a amabilidade de me
enviar cassetes VHS desse e de outros três filmes: Casa de Lava, Ossos e No Quarto da Vanda.
Em vez de sucumbir à tentação imediata de os ver logo de seguida, decidi esperar, por
razões que então me pareciam razões profissionais de peso. Uma das piores coisas quando
se faz regularmente crítica de cinema é que, independentemente dos filmes que tenhamos
visto – e às vezes isto estende-se aos que mais nos afectam – temos tendência a esquecermo-nos
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126 - JONATHAN ROSENBAUM

deles, porque depois temos de ver dezenas ou centenas de outros filmes, a maior parte deles
terríveis. E como eu sabia que era apenas uma questão de tempo até todos os filmes do Pedro
chegarem a Chicago, e que eu ia querer escrever sobre todos eles quando chegassem, decidi que
era melhor esperar e vê-los então todos ao mesmo tempo, ou pelo menos a maior parte deles.
Mas surgiram alguns problemas que complicaram este magnífico plano. Não me passou
pela cabeça que uma retrospectiva de Pedro Costa demorasse mais de cinco anos a chegar a
Chicago. Pior: tendo gozado durante pelo menos quinze anos do luxo incomparável de ter
à minha disposição um espaço ilimitado para os textos mais longos que escrevia para o
Chicago Reader, não previ que um decréscimo na publicidade dos jornais em papel, devido
ao crescimento da Internet, pudesse levar a uma limitação dessa liberdade; mas foi precisamente isso
que aconteceu quando tive finalmente condições para escrever o meu artigo, em Novembro
de 2007. Durante os cinco longos anos em que esperei, o espaço que me era concedido
passou de ilimitado a 1 200 palavras – um espaço absurdamente curto para examinar todas
as seis longas-metragens de Pedro Costa. E para tornar as coisas ainda piores, o Ricardo
Matos Cabo, editor desta compilação de textos, tinha-me entretanto contactado (meio ano
antes), convidando-me a contribuir com um texto com o dobro do tamanho; mas, não tendo
visto a maior parte dos filmes, senti que não podia aceitar.
Finalmente, quando ficou agendada uma retrospectiva de Costa para Chicago, já eu tinha
visto Juventude em Marcha em Toronto, mas ainda não O Sangue nem as longas-metragens
que se seguiram. Por isso acabei por descobrir a maior parte da sua obra de trás para a frente
e à pressa, bem depois de muitos amigos e colegas terem escrito eloquentemente sobre ela.
E, ao fazê-lo, descobri que dos filmes de Costa – apesar de gostar de todos eles e de, simul-
taneamente, ter lutado com cada um de várias maneiras – Casa de Lava, o seu único filme de
paisagem, foi o que mais me deixou pasmado. Portanto, quando o Ricardo me enviou um
novo e-mail no princípio de Janeiro de 2008, convidando-me a escrever especificamente
sobre esse filme, uma contribuição de última hora para esta compilação – mesmo não
dispondo, nem eu nem ele, de muito tempo –, tive de dizer que sim. Em todo o caso, espero
que me perdoem por imitar um pouco o filme ao deixar que a improvisação, a fragmentação
e, de certo modo, as notas desconexas se sobreponham a qualquer posição firme, argumento
sólido ou conclusão.

2.

Não sei se a canção de Tony Bennett citada acima é a fonte não-creditada (ou talvez não-
reconhecida) da bela melodia tocada repetidamente por Bassoé (Raul Andrade) no seu violino
em Casa de Lava, ou se essa semelhança é só coincidência. Seja como for, e seja qual tenha
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ALGUMAS ERUPÇÕES NA CASA DE LAVA - 127

sido a intencionalidade da parte de Andrade, de Costa, ou de outra pessoa, a ligação entre elas
recorda-me a relação de Casa de Lava com I Walked with a Zombie (Jacques Tourneur, 1943)
e com outros filmes, sejam ou não de Hollywood. Ao contrário de mim, algumas pessoas
acham que, como ponto de referência, I Walked with a Zombie constitui mais um obstáculo ou
uma distracção do que uma chave útil para desvendar os tesouros de Casa de Lava. Outros
acham que Stromboli, terra di Dio (1950) é mais proveitoso como ponto de referência, enquanto
que, para mim, é o filme de Rossellini, com uma forma de misticismo muito diferente e menos
politizado, que constitui uma distracção e um obstáculo, independentemente dos seus méritos.
Há pelo menos mais quatro Andrades no elenco de Casa de Lava, e todos fazem o papel
de filhos de Bassoé – um dos muitos factores que sugerem que o filme, tal como todos os
outros filmes de Costa, é uma mistura intrincada de realidade e ficção. Costa disse a Mark
Peranson, na revista Cinema Scope (n.°27) que o filme tinha originalmente um guião, mas
“a certa altura abandonei o guião e pronto, porque pensei que se ia tentar filmar esta rapariga
num novo lugar que é estranho e perigoso, então tinha de filmar do ponto de vista dela”, e
“havia muita improvisação todos os dias” – uma indicação, entre muitas outras, de que Mariana
(Inês Medeiros), a personagem principal, funciona em grande medida como representante
de Costa no filme. Quase todas as questões éticas e ambiguidades suscitadas pelo seu envol-
vimento com os habitantes da ilha são as mesmas levantadas também pelo envolvimento de
Costa (quer dizer, o seu modo de filmar). E a improvisação talvez seja a maneira mais óbvia
de subir a parada em termos existenciais, no que diz respeito a estas questões. Como refere
Costa, ele e Isaach de Bankolé chegaram mesmo a discutir violentamente por causa das
objecções deste último, enquanto actor profissional, ao facto de a sua personagem, Leão, ter
de permanecer em coma durante quase todo ou durante todo o filme. (Também tenho a
impressão – depreendida do que me contou um amigo que assistiu à conversa de Costa sobre
o filme em Los Angeles – de que Leão, tal como o seu equivalente aproximado em I Walked
with a Zombie, nunca teria saído do coma se não fossem as objecções de Bankolé.)
Na mesma entrevista, falando sobre O Sangue, Costa admite que há um elemento pessoal
nessa sua concentração nos “três rapazes, a família” do filme, “porque eu nunca tive uma
família a sério. A minha mãe morreu cedo, e eu fui viver com o meu pai, que depois se foi embora.
A partir dos 14 anos fiquei sozinho…”. E já vi confirmada por outros a minha impressão de
que todos os filmes de Costa parecem ser sobre pessoas de fora e famílias improvisadas.
Parece-me que a luta apaixonada dessas pessoas para encontrar e manter famílias provisórias
constitui grande parte do significado e da metodologia do seu trabalho. Dum ponto de vista
existencial, se combinarmos esta luta com o seu talento perturbador e em evolução constante
para a composição e para a cor, a aspiração geral assemelha-se àquilo a que Godard chamou
“o definitivo por acaso” e, ao mesmo tempo, à fusão da ficção com o documentário procurada
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128 - JONATHAN ROSENBAUM

e encontrada por Kiarostami, sobretudo em Zendegi va digar hich (E a Vida Continua, 1991), Zire
darakhatan zeyton (Através das Oliveiras, 1994) e Bad ma ra khahad bord (O Vento Levar-nos-á,
1999), cujos enredos também apresentam interacções tensas entre os protagonistas vindos
da grande cidade e os aldeões pobres mas exóticos que eles visitam.
Também indica que Casa de Lava talvez seja o filme de Costa que apresenta o braço-de-ferro
mais constante e furioso entre a narrativa de Hollywood e o retrato não-narrativo de lugares
e pessoas, encenando uma batalha quase épica entre os dois. Estes modos em conflito
fundem-se quase por magia sempre que há um plano de paisagem filmado com uma ou
mais figuras humanas; de cada vez que isto acontece o filme acelera.
O filme começa com retratos desolados da ilha, que fazem lembrar os filmes de Straub/
Huillet (o seu Etna em fogo e os seus actores, por vezes vislumbrados de costas ou em
fragmentos) e de Dovjenko (naturezas-mortas meditativas e heróicas), mas passamos logo
depois aos estilhaços de uma narrativa lisboeta. Normalmente, nestas partes narrativas,
dizem-nos ou muito pouco sobre o que está a acontecer, e não conseguimos seguir a história,
ou então tudo o que alguma vez poderíamos querer saber – nos dois casos de um modo
bastante maneirista. Primeiro temos fragmentos confusos e uma narrativa muito oblíqua,
que é apresentada quase tão directamente como os retratos da ilha: os sons e as imagens de
um estaleiro de obras em Lisboa, antecipando filmes posteriores de Costa, e depois Leão e outros
operários da construção civil antes do acidente de Leão – incluindo uma luta, aparentemente
coreografada, entre dois deles que, na brincadeira, se empurram à entrada, ao voltarem ao
trabalho – e também logo após o sucedido. (O acidente em si é elidido; mas entrevemos um
colega de trabalho que o vem comunicar.) A seguir, pouco depois de sermos apresentados a
Mariana, uma enfermeira, com uma colega no hospital, atiram-nos sem aviso nem agravo
com grandes tiradas explicativas. Um médico, em conversa com Mariana, junto ao corpo de
Leão, conclui: “Parece que andava triste. Chama-se Leão, dois meses de coma profundo! Por
absurdo que pareça, a alta foi pedida e a direcção autorizou. O transporte está pago. O Leão
volta para casa. Um cheque e uma carta cheia de erros assinada pela aldeia dele, tudo anónimo...
Letra feminina. É pena.”
Muito mais à frente no filme, o filho (Pedro Hestnes) de Edite (Edith Scob), uma habitante
branca da ilha, faz, também dirigindo-se a Mariana e junto à sepultura do seu pai, uma
descrição igualmente telegráfica da mãe, de si próprio e da distribuição dos dinheiros:
“Ela veio atrás dele. Tinha vinte anos. Ele tinha o dobro. Eu nunca o conheci. Estava na
política; veio preso. Depois disso, ela nunca mais quis voltar para casa. Andou por aí… muitos
anos… comigo. Viveu com a ajuda das pessoas. Ela gosta de toda a gente, toda a gente gosta
dela. Vivemos aqui. Agora vem um cheque todos os meses, lá de Portugal, a pensão dele,
para pagar a toda a gente. Eles sabem; estão todos à espera. Todos querem fugir daqui.”
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ALGUMAS ERUPÇÕES NA CASA DE LAVA - 129

3.

Apesar de não conseguir ouvir a canção de Bassoé sem pensar em Tony Bennett, tal como não
consigo ver Casa de Lava sem pensar em I Walked with a Zombie, cada transposição – se é
disso que se trata em ambos os casos – é tão radical que constitui já uma reformulação de
elementos e pressuposições básicas. A desconjuntada e despojada falta de definição de Bassoé,
o velho violinista (à excepção talvez do seu melancólico “A música é uma cadela. É má
patroa”), parodia a letra nostálgica de Tony Bennett. E o que quer que seja o homem que está
em coma, não é um zombie, e muito menos Carrefour, o zombie de Tourneur, mais mítico
e escultórico. Tanto quanto sabemos, Leão é um cabo-verdiano iletrado, um operário da
construção civil em Lisboa que teve um acidente e ficou em coma e que, depois de ser trazido
de volta a Cabo Verde, demora muito tempo a sair desse estado, porque mesmo tendo uma
casa à qual regressar, todos os outros se estão a ir embora e ninguém quer ficar – excepto
talvez Mariana (ainda que por omissão), Edite e o seu filho. E pelo menos estes dois últimos
falam crioulo.
Sempre que Mariana repete a frase “Fala português!” a alguém na ilha, lembro-me de
Arthur Hunnicutt em The Big Sky de Hawks (1952) a tentar relacionar-se com os seus
companheiros franceses enquanto atravessam a selva: “Fala inglês, pá!” Mas Mariana não tem
companheiros e, conscientemente ou não, continua a ser uma colonialista, talvez ainda mais
do que Edite e o seu filho, porque quase não dá nada às pessoas da ilha. E Costa não pode in-
terrogar os motivos dela para permanecer na ilha sem interrogar os seus próprios motivos.
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130 - JONATHAN ROSENBAUM

Será o próprio filme o seu doente? E se assim for, o que pode fazer Costa quando o filme acor-
dar sozinho, sem a sua ajuda ou contribuição? Resposta: a mesma coisa que nós. Pode assistir.

4.

O filme é uma sucessão de negações, umas a seguir às outras. Bassoé recusa-se a reconhe-
cer directamente que é o pai de Leão, e outros habitantes recusam-se a responder quando
Mariana lhes pergunta se Leão é parente deles. Mas Mariana não está menos em negação
quando as pessoas lhe perguntam directa ou indirectamente porque é que ela não fica em Lis-
boa. É o filho de Edite que tem a formulação mais clara: “Porque é que vieste?” E, tal como Bas-
soé, ela nunca dá uma resposta em relação a quem pertence e a quem é que lhe pertence a ela.
Pior ainda, não consegue adoptar os costumes locais como fez Edite, a sua Doppelgänger,
talvez porque a sua função na ilha, aquela que atribuiu a si mesma, seja apenas cuidar de
Leão, que não tem um lugar claro na ilha e que, mesmo depois de acordar, nem sequer con-
segue perceber qual é exactamente a função dela ali. Talvez ela goste de rapazes, como diz ao
filho de Edite, mas ao contrário desta, que tanto gosta de raparigas como de rapazes, está em
negação em relação à sua sexualidade, sempre que vem associada a qualquer tipo de envolvi-
mento emocional. O único envolvimento emocional que ela parece ter é para com Leão, e isto
nada tem a ver com o profissionalismo hawksiano. De facto, não há profissionais neste filme
– tirando os soldados, que nunca regressam seja lá de que guerra for, ou o médico no complexo
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ALGUMAS ERUPÇÕES NA CASA DE LAVA - 131

hospitalar, que parece evaporar-se a meio do filme, ou Edite, a menos que a consideremos
uma colonialista profissional. As outras personagens, tanto quanto sabemos, são todas
crianças perdidas.

5.

Leão recupera a consciência quase exactamente a meio do filme, embora Mariana leve muito
mais tempo a aperceber-se disso. Até algumas das crianças perdidas, como Tina, descobrem
mais cedo. Seria interessante saber como seria o guião original de Costa, se Leão tivesse
permanecido em coma durante o resto do filme. Mas sendo assim, e certamente por causa da
improvisação, o filme decompõe-se e atrofia-se gradualmente em fragmentos e mini-enredos,
um pouco como Muriel ou le temps d’un retour (Alain Resnais, 1963) ou Petulia (Richard Les-
ter, 1968). Mas, pensando bem, I Walked with a Zombie também acaba por subverter a própria
noção de enredo sequencial e coerente. Aqui poder-se-ia quase dizer que cada bela composição
(quer dizer, cada plano) conta uma história isolada. Se as juntarmos todas, talvez se assemelhem
ao longo travelling que segue a caminhada de Mariana pela povoação, ao mesmo tempo resoluta
e sem rumo, enquanto obstáculos vários se vão interpondo e tapando periodicamente a nossa
visão. Ora a vemos, ora não a vemos – e parece que nem nós nem ela sabemos para onde se
dirige.
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AVENTURA:
UM ENSAIO SOBRE PEDRO COSTA
Shiguéhiko Hasumi

Um travelling

Um jovem caminha a passos largos pelo passeio de uma rua. Numa das mãos tem pendurado
um saco de plástico preto com qualquer coisa lá dentro. A alguma distância, ao lado dele, a
câmara acompanha-lhe a caminhada solitária. Enquanto o homem permanece no centro do
enquadramento, o som que reverbera por trás das imagens, que fluem sem parar para a
direita, não é o dos seus passos, mas o do roncar dos motores dos automóveis que atravessam
o ecrã de tempos a tempos na direcção oposta. Como é evidente pelo som baixo mas animado,
a câmara está agora no exterior. O passeio está quase vazio, com formas humanas visíveis
apenas aqui e ali. Talvez seja ainda de manhã muito cedo.
Os raios de luz que iluminam a rua são de facto ainda baços, e a figura do homem não
se destaca muito do fundo, à medida que caminha ao longo de paredes de casas sombrias, à
sua esquerda. Nitidamente, este território não lhe é desconhecido; ele vai sempre em frente,
atravessando uma paisagem familiar. Não olha para a direita nem para a esquerda, e ninguém
se mostra surpreendido com a sua forma intensa de andar. As portas das casas pintadas de
vermelho e azul, as persianas das janelas e os graffiti nas paredes pontuam visualmente este
travelling longo, sem palavras.
Qualquer pessoa que tenha visto Ossos, o terceiro filme de Pedro Costa, sabe bem quem
é este homem de rabo-de-cavalo. É um jovem pobre e desempregado que foi pai há pouco
tempo, inesperadamente, e ainda tem ar de criança. O espectador não percebe imediatamente
porque é que ele caminha assim, já que, como em muitos outros casos, a montagem de Pedro
Costa consegue evitar a explicação do contexto anterior e subsequente. O espectador é
transportado sem intermediações para o longo travelling que lhe corre à frente dos olhos e
tenta não perder nenhum momento. De facto, todos os planos de Pedro Costa têm uma força
vertical que liberta o espectador da causalidade linear da história. O prazer de sermos expostos
a essa libertação tem sido, já desde F. W. Murnau, um privilégio apenas permitido ao cinema.
Com a câmara em movimento ainda alinhada com o homem que caminha, cria-se um
suspense de cortar a respiração, mas que não antecipa uma situação desconhecida que possa
vir a surgir; concentra-se antes na expectativa de saber durante quanto tempo se pode manter
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134 - SHIGUÉHIKO HASUMI

a certeza de que não vai acontecer nada. O espectador interroga-se sobre quanto tempo a
cena vai durar, mas não tem outra escolha senão continuar a olhar para o ecrã, de modo a não
ser alienado pelo desenrolar do filme.
Na sua caminhada solitária, o homem parece ao mesmo tempo fugir de qualquer coisa e
ter pressa de chegar a algum lado. A dada altura, o ritmo parece vacilar ligeiramente. Mas as
pernas, de calças de ganga, continuam os seus movimentos largos e decididos. Só os movi-
mentos dos braços mostram alguma mudança: sem parar, levanta o saco preto que vinha a
balançar numa das mãos e aperta-o de repente contra o peito, com os dois braços.
Nessa altura, percebemos subitamente aquilo que está embrulhado no saco de plástico.
O que o homem traz nos braços é um pequeno ser. O modo como segura o saco mostra que o
conteúdo do saco não é inanimado, mas vivo. Deve ser um bebé. O homem de cabelo com-
prido que acabou de ser pai raptou o recém-nascido à mãe e está agora a fugir com ele. Apesar
de não conseguirmos aceitar para já as razões que o levaram a isso, somos obrigados a
compreender que, do mesmo modo que À bout de souffle (1960), de Jean-Luc Godard, é um filme
sobre um ladrão de automóveis, Ossos, de Pedro Costa, é um filme sobre o ladrão de um bebé.

Aventura

Não vou entrar em detalhes sobre o desenvolvimento da história depois disso. É já suficiente
termos sido transportados por esse longo travelling, que começa tão de repente, e termos sido
abalados pela sua grande força de realização. Qualquer um dos filmes de Pedro Costa se
apodera do nosso olhar e obriga-nos a viver pessoalmente o movimento do filme. Às vezes
as imagens ferem-nos o olhar com a sua dor pungente, outras vezes envolvem-nos os olhos
com uma inefável ternura. O que é espantoso para o espectador do travelling de Ossos é o modo
como o movimento que inicialmente interpretamos como dor se transforma como por
milagre em ternura, no instante em que o jovem abraça o saco de plástico.
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AVENTURA: UM ENSAIO SOBRE PEDRO COSTA - 135

O espectador confronta-se então com duas questões. A primeira sobre a função e significado
dos travellings nas obras deste realizador, a segunda sobre o papel do travelling neste filme em
particular. No princípio de Ossos há uma série de grandes planos fixos de rostos de homens
e mulheres cuja identidade e inter-relações são difíceis de perceber à partida. Mas, com o
travelling, o espectador é ao mesmo tempo atraído e perturbado pelo movimento horizontal
da câmara. A história que até aqui se desenrolara em ruelas estreitas e quartos exíguos é
subitamente levada para o ar livre e exposta à luz natural. Qual é o significado da mudança
de textura introduzida por este travelling?
O que é claro é que, desde o seu primeiro filme, O Sangue, a câmara de Pedro Costa se
vai movendo cada vez menos de filme para filme, até chegar a No Quarto da Vanda, que é
composto quase inteiramente por planos fixos. Apesar de o único travelling longo de Ossos ser
o do jovem a caminhar, lembramo-nos, obviamente, que um travelling igualmente longo tinha
aparecido no filme anterior de Costa, Casa de Lava. A jovem enfermeira Mariana acaba de che-
gar à vulcânica Ilha do Fogo, em Cabo Verde, com um trabalhador negro que ficou inconsciente
na sequência de um acidente. Quando ela sai do hospital pela primeira vez e se dirige sozinha para
o centro da ilha, o longo travelling da sua caminhada antecipa a cena semelhante em Ossos.
Usando apenas um curto vestido vermelho, a jovem de Casa de Lava começa de súbito a
caminhar com leveza pela estrada desconhecida. O longo travelling do seu passeio inesperado,
filmado de lado, faz-nos agradavelmente esquecer o que tinha acontecido no plano anterior.
Enquanto continua silenciosamente, olhando para as paredes sujas das casas dos ilhéus à
sua esquerda, a câmara move-se para a direita, mantendo a enfermeira no centro do enqua-
dramento, sem nunca mudar a sua posição relativa. Ao contrário do jovem de Ossos, ela não
leva nada nos braços, que ondulam livres à volta do seu pequeno corpo, e os seus olhares
ocasionais para a esquerda e para a direita harmonizam-se bem com os seus movimentos, ao
tentar criar uma nova relação com esta terra desconhecida.
Não é preciso fazer notar que este longo travelling é espantosamente parecido com o de
Ossos. Com o seu passo ligeiro, ela atravessa os cruzamentos e continua sem dar sinais de parar,
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136 - SHIGUÉHIKO HASUMI

a sua passada mostra o prazer de absorver este mundo desconhecido com o corpo todo,
levando a cena muito para além da ferramenta cinematográfica fácil do exotismo.
Em contraste com o plano do jovem que caminha com os braços à volta do saco de plás-
tico preto, o longo travelling de Casa de Lava é terno desde o início. A jovem nem sequer en-
cara o seu encontro inesperadamente íntimo com uma terra estranha como sendo uma
aventura. A câmara acompanha-a, registando o modo como o seu movimento sempre em
frente, sem parar, se funde naturalmente com a atmosfera e a luz que a rodeiam; e aquilo que
merece o epíteto de aventura é a tensão puríssima que preenche o filme. É este o poder dos
travellings de Pedro Costa. Como Stromboli, terra di Dio (1950), de Roberto Rossellini, Casa de
Lava é um filme de aventuras, no melhor sentido da palavra.

Ficção e documentário

Casa de Lava também começa com grandes planos: dos rostos inexpressivos das mulheres que
vivem na ilha. Não é evidente o que os seus olhos vêem ou o que os seus rostos vazios tentam
dizer, porque Pedro Costa raramente usa planos que relacionem os olhos, que estão na origem
da visão, com os objectos capturados por esse olhar. Estes planos fixos de rostos, imagens que
são gratuitas no sentido da progressão narrativa, são subitamente interrompidos por um plano
com a câmara em movimento, desta vez uma vista aérea sobre as rochas vulcânicas, lá em
baixo. A este plano segue-se um travelling, de longe, com dois pilotos de helicóptero que trans-
portam um passageiro inconsciente numa maca, e uma jovem enfermeira que segura bem alto
um frasco transparente de soro. A poeira castanha levantada pelas pás invisíveis do helicóptero
e a paisagem vulcânica desolada que se estende ao fundo sublinham a estranheza do local. Os
pilotos dizem à enfermeira que é responsabilidade dela levar a maca para o hospital, e a câmara
vira-se na direcção contrária, para outro travelling da enfermeira, que corre atrás deles. Depois
de discutirem com a enfermeira, os pilotos vão-se embora, deixando a maca onde estava.
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AVENTURA: UM ENSAIO SOBRE PEDRO COSTA - 137

A jovem é deixada nesta terra desconhecida com o paciente negro inconsciente deitado
na maca, e o seu perfil mostra uma inocência que não se adequa a uma pessoa que tem de
cuidar de um homem claramente mais corpulento do que ela. Comparada com a calma
enfermeira de branco interpretada por Isabel Ruth em Ossos, Inês Medeiros está visivelmente
desamparada, ali ao lado do paciente. Em todo o caso, tem de ser ela a levá-lo para a clínica
da ilha. É este aparente desequilíbrio que conduz os seus actos a uma aventura arriscada
naquela ilha vulcânica de Cabo Verde.
O plano seguinte de Casa de Lava, lembrar-se-á o espectador, mostra a jovem enfermeira
a abraçar um ser vivo, tal como o jovem de Ossos. Depois dos planos vibrantes das montanhas
vulcânicas, a partir de um veículo em movimento, é inserido o plano de um cão a correr ao
longo de uma estrada de gravilha, lembrando-nos uma vez mais que a jovem enfermeira
iniciou uma aventura arriscada.
Na parte de trás da carrinha de caixa aberta, às sacudidelas, ela mantém o paciente incons-
ciente pousado contra o peito e levanta o mais alto que pode o líquido intravenoso; a sua
expressão neutra não sugere nem espanto nem um forte sentido do dever. Os seus gestos
revelam apenas uma intensa entrega ao momento presente; apesar do seu desespero, não ma-
nifesta qualquer irritação, e a sua figura iluminada pelo Sol poente, suportando os desconfortáveis
solavancos da carrinha, é incrivelmente bela. O modo de filmar não se rege aqui sobretudo
por considerações estéticas, mas neste plano silencioso nasce a beleza solitária e taciturna de
alguém que tenta sabiamente suportar uma situação, não tendo alternativa. Enquanto segura
na cabeça daquele desconhecido inconsciente, vai-se estendendo atrás dela uma paisagem
árida que lhe deve ser estranha. Mas ela nunca deixa que o seu olhar mude de direcção.
Na parte de trás da carrinha, indefesa e exposta ao ar exterior, a única coisa que se ouve
é o monótono som do motor. É fim de tarde e a luz do Sol poente reflecte-se no frasco de soro
que a enfermeira tenta não baixar. Não tem tempo para olhar para esses raios do sol baço da
tarde, que brilham através do frasco de soro, durante o transporte sem palavras até à clínica
da ilha. Apesar deste plano fixo tremido, na parte de trás da carrinha, não ser tão longo quanto
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138 - SHIGUÉHIKO HASUMI

o travelling ao longo do passeio em Ossos, é suficientemente forte para libertar o espectador


da causalidade narrativa. Apesar de não compreendermos a origem deste poder que se insere
verticalmente no filme, conseguimos no entanto murmurar “magnífico” perante a doce dor
infligida pelo alinhamento do filme com o momento presente, que vai correndo no ecrã.

O momento presente tornado absoluto

A sequência de planos de Pedro Costa não tenta contar quando ou como é que a jovem en-
fermeira passou daquela paisagem desolada e estranha, ao lado do homem doente na maca e
com o frasco de soro pendurado no ramo de uma árvore próxima, à parte de trás da carrinha
de caixa aberta. Mas o espectador reconhece a enfermeira aos solavancos na carrinha que
segue pela estrada coberta de gravilha vulcânica e, sem hesitar, aceita como única realidade
possível a imagem dela embalando o paciente inconsciente contra o peito.
O que está a acontecer é diferente da estética clássica da omissão praticada com mestria nos
filmes de Fritz Lang e Alfred Hitchcock. Aqui, o momento presente é tornado visualmente
absoluto. Apesar de não abandonar o curso temporal do filme, esta “absolutização” do
momento presente é uma técnica de realização seca e despojada, que fornece uma continuidade
fílmica crua à ficção, que, de outro modo, estaria submetida ao fluxo narrativo e à psicologia
humana. É raro no cinema que o estado puro da ficção e o estado puro do documentário
sejam combinados de uma maneira tão simples.
Esta absolutização do presente liberta o plano da causalidade narrativa. Em No Quarto da
Vanda, esse viria a ser o âmago dos filmes de Pedro Costa. Mas mesmo nas primeiras obras,
nomeadamente na cena na carrinha em movimento, no passeio até ao centro da povoação em
Casa de Lava e no longo travelling de Ossos, já havia uma tentativa parcial de o fazer.
Na montagem de Pedro Costa, o contexto da história raramente é explicado através de
sequências de planos; por isso, o momento em que o bebé é levado pelo pai nunca é mostrado
no ecrã. O que acabamos por ver é apenas o reencontro desconfortável, algum tempo depois,
entre o pai e a mãe, a figura miserável da mulher que olha em silêncio para o homem
profundamente adormecido ao lado do bebé.
Claro que vemos os planos da mãe adolescente de regresso a casa com o seu bebé recém-
nascido nos braços, fechando cuidadosamente as janelas e arrastando a botija de gás da co-
zinha até ao sofá onde o bebé está a dormir. Mas Pedro Costa projecta no futuro estes gestos
da mulher, e evita criar uma sequência de suspense – será que a mãe decidiu usar o gás para
se matar e ao bebé? É então que o travelling começa, subitamente, um plano longo e poderoso,
completamente auto-suficiente, e que liberta o espectador do que vem antes e depois.
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Como já disse acima, este longo travelling está imbuído de uma tensão maravilhosa. Ao
suportar essa tensão, o espectador ganha uma compreensão do plano, ao reparar num pequeno
gesto. Quando o homem subitamente envolve com os dois braços o saco de plástico preto que
balançava despreocupadamente numa das mãos, o acto de ter raptado o bebé explode silen-
ciosamente no ecrã. Perturbados pelo rapto em si, afligimo-nos também ao recordar que, no
início do plano, o rapaz quase roçava com o saco no chão, ao caminhar.
Seria realmente possível alguém enfiar um recém-nascido num saco de plástico como se
fosse um molho de hortaliça e ir depois pelo passeio fora com o saco a baloiçar numa das
mãos? É esta a pergunta que todos nós faremos quando nos apercebermos tardiamente da
gravidade da situação. Ao mesmo tempo, ficamos aliviados por o jovem pai ter sentido a
necessidade de apertar a frágil criatura contra o peito. Contudo, como que ignorando esta
mudança, o longo travelling continua.
Mais uma vez ficamos profundamente emocionados com a incrível força que este jovem
realizador – Pedro Costa tinha apenas trinta e oito anos quando filmou Ossos – conseguiu pôr
no ecrã. Não é possível evitar uma reacção de admiração face à ousadia cinematográfica que
é introduzir, naquele plano longo e contínuo, uma leve e momentânea mudança – passa de
baloiçar o saco de plástico a abraçá-lo – que é tão reveladora, e face à precisão visual que esta
ousadia exige.
Não sei se Pedro Costa pretendia que, neste longo travelling, o espectador se apercebesse
de que o saco de plástico tinha lá dentro um recém-nascido. Mas podemos dizer com
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AVENTURA: UM ENSAIO SOBRE PEDRO COSTA - 141

segurança que Costa instruiu cuidadosamente o actor que faz o papel de pai para fazer aquele
movimento. Também me interrogo em vão sobre os bastidores dessa acção dirigida; por
exemplo, será que o saco de plástico preto tinha realmente um bebé lá dentro?
A resposta a esta pergunta não é obviamente necessária para compreender Ossos. Mas
quando, no decorrer deste longo travelling, experimentamos indirectamente o palpável e
desgraçado sentimento de estreitar aquela vida não-identificada e frágil contra o peito, essa
sensação virtual encoraja a visão do filme na fronteira incerta entre a ficção e o documentário.

Abraçar

Um elemento ambicioso da realização de Pedro Costa em Ossos é, sem dúvida, a maneira


como ele levou o jovem, que não parece nada um pai, a abraçar o bebé, e depois filmou esse
gesto desamparado. A ambição de Costa aqui é, obviamente, completamente independente
das nossas memórias de comédias banais em que homens solteiros se esforçam desajeita-
damente por tomar conta de bebés. Este elemento sublinha antes a tentação de apontar a
câmara para um homem que toma hesitantemente nos braços uma criança, como John
Wayne faz em Three Godfathers (1948), de John Ford.
O único realizador que, depois de Ford, pôs um homem que parece tudo menos um pai
a percorrer um longo caminho com um recém-nascido nos braços foi Pedro Costa. Apesar de
evidenciar este facto, não tenho qualquer intenção de declarar triunfalmente que o western de
John Ford é evocado em Ossos. Mas tal como atravessar o deserto com um bebé nos braços
foi uma aventura rara para a estrela de westerns John Wayne, são igualmente aventuras cinemato-
gráficas raras os momentos em que o jovem pai abraça um saco de plástico preto no bairro
pobre de Ossos, em que a jovem enfermeira abraça a cabeça do seu paciente, nitidamente
mais corpulento que ela, enquanto segue aos solavancos na parte de trás de uma carrinha de
caixa aberta pela estrada de gravilha vulcânica em Casa de Lava. A aventura aqui, é claro,
não reside em retratar uma situação que já supomos ser aventurosa, mas em registar uma
experiência desconhecida que ocorre durante o próprio momento da filmagem.
Talvez para Pedro Costa o acto de estreitar algo contra o peito seja em si uma aventura.
Para evocar uma imagem familiar, quando o saco de plástico preto que contém o bebé é
subitamente abraçado em Ossos, lembramo-nos da escalavrada caixa de madeira com
hortaliça que Vanda transporta consigo de vez em quando em No Quarto da Vanda.
Os momentos em que Vanda carrega essa caixa pelas ruelas sombrias até às portas de
casas tão escuras que é difícil ver os seus habitantes são aqueles em que ela sai do quarto. Para
Pedro Costa, o acto de transportar alguma coisa nos braços pode constituir um pretexto para
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expor uma pessoa ao ar livre. Tal como Vanda, quando tenta vender alfaces e verduras que
transporta na caixa pelas ruelas, o jovem pai em Ossos está a tentar conseguir dinheiro pelo
bebé que traz consigo, sob os olhares dos transeuntes. Vanda, cansada, poisa a caixa de horta-
liças por vender, encosta-se à parede e fuma um cigarro; de forma semelhante, o pai em Ossos
senta-se no chão da rua, encosta-se à parede e dá uma passa no seu cigarro, enquanto dá
desajeitadamente leite à criança.
Não quero com isto dizer que a vendedora de hortaliças em No Quarto da Vanda esteja a
repetir o gesto do jovem pai em Ossos. A semelhança entre estes dois gestos é inegável, mas
seria difícil dizer que o mero facto de a apontar dite a nossa compreensão das duas obras. Mas
não deixa de ser verdade que a incrível vitalidade da realização de Pedro Costa se revela
quando um homem ou uma mulher trazem alguma coisa nos braços.
Será que esse gesto sugere uma família invisível? Ou mostra antes o abraçar de um amor
que transcende a carnalidade?

Como um fantasma

Quase como se quisesse tornar estas duas perguntas irrelevantes, o Pedro Costa de Juventude
em Marcha vai filmar coisas bastante diferentes. Ventura, o cabo-verdiano que é protagonista
deste novo filme, é muito mais velho do que o homem e a mulher retratados nas primeiras
obras de Costa, e nunca o vemos a transportar nada debaixo do braço ou a estreitar alguém
contra o peito. De facto, além dos poucos objectos que lhe são passados para as mãos nos
planos em que surge acompanhado – uma carta de jogar, uma maçã, uma garrafa de vinho
– ele próprio parece resistir a tocar noutras coisas. Ao contrário de Vanda em No Quarto da
Vanda, Ventura raramente aperta sequer a mão aos seus amigos mais chegados.
Tal como em No Quarto da Vanda, que foi o primeiro trabalho em vídeo de Costa, tudo
aquilo que poderia suscitar um travelling está fora do nosso campo de visão. Embora haja
planos de Ventura a caminhar rente às paredes em ruínas do bairro pobre de imigrantes que
está em demolição, os momentos em que ele aparece com mais intensidade não são aqueles
em que se move, mas aqueles em que está parado sem nada nas mãos. À semelhança dos pla-
nos fixos de Yasujiro Ozu, o formato clássico 1:1,33 escolhido para este filme isola e sublinha
a altura de Ventura. Como John Wayne no plano final de The Searchers (John Ford, 1956),
deixado na rua sem a sobrinha para abraçar ou a espingarda para segurar, este idoso imigrante
africano só pode ficar ali de pé, de mãos desajeitadamente vazias.
Invariavelmente filmada de mãos vazias, a figura de Ventura assemelha-se de algum
modo a um fantasma. Tal como os habitantes locais em I Walked With a Zombie (1943) de
Jacques Tourneur, ele é uma entidade intemporal que dá ideia de ter aparecido neste mundo
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AVENTURA: UM ENSAIO SOBRE PEDRO COSTA - 143

vindo de outra época. Mesmo o perfil do seu rosto, numa silhueta bem definida contra as
paredes brancas e o céu azul, dá mais a sensação de ausência do que de presença. Apesar da
sua altura e dos seus traços profundamente marcados, não parece viver plenamente no
momento presente.
De facto, em Juventude em Marcha Ventura é separado do momento presente por duas ou
mesmo três camadas. Este distanciamento vai-se tornando gradualmente mais claro ao longo
dos 154 minutos de duração do filme. Quando o filme começa, ele acabou de ser abandonado
por Clotilde, a mulher com quem esteve envolvido durante mais de trinta anos. Depois de ela
ter deitado todo o recheio da casa pela janela e de ter desaparecido do bairro de imigrantes,
o tempo marcadamente denso que enchera o bairro à volta do solitário Ventura – os gestos
anónimos e as vozes das pessoas que passam pelas ruelas apertadas – evapora-se sem deixar
rasto. O desenvolvimento local apagou o mundo de No Quarto da Vanda. Ventura vai visitar
jovens que conhece há muito tempo – alguns cujas casas foram demolidas e que agora vivem
em apartamentos no bairro social, outros ainda mantendo-se em casas onde até a electricidade
falta – e diz-lhes, bruscamente, que “a vossa mãe” o abandonou. Embora esses “filhos” tratem
Ventura por “papá”, não pode haver quaisquer laços de sangue entre eles; ele é apenas
um “pai” fantasma, que não partilha tempo nenhum com esses “filhos” omnipresentes,
limitando-se a ouvir em silêncio as suas palavras, com uma expressão que nunca muda.
Porque será Ventura tão inexpressivo? Porque as paredes vazias e brancas do apartamento
do bairro social que deveria ser seu parecem negar completamente o seu passado como
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144 - SHIGUÉHIKO HASUMI

trabalhador imigrado de Cabo Verde para Lisboa em 1972. E também porque a revolução de
25 de Abril de 1974, que deveria ter significado a libertação para toda a gente em Portugal, não
foi para ele mais do que um acontecimento aterrorizador em que a presença dos imigrantes
africanos foi ignorada. Para o Pedro Costa de Juventude em Marcha, o imigrante Ventura é um
fantasma da história, incapaz de viver no presente porque carrega aos ombros um fardo com
várias camadas do passado que desapareceu.
Porque é que Costa dirigiu a sua câmara para este fantasma? Porque o passado invisível
que ele carrega aos ombros perturba forçosamente o presente, através das palavras intem-
porais que só podem ser ditas por um fantasma cujos pensamentos são insondáveis. E a nova
aventura de Costa é registar tudo isto num filme.
Na sua solidão, Ventura canta para nós uma melodia simples e apropriada a este filme,
uma melodia que é a carta de amor, que ele, por não saber escrever, não pode mandar à mulher
ausente, uma carta de amor que não terá qualquer resposta. Essa melodia compõe-se das
palavras “Gostava de te oferecer cem mil cigarros […] / uma casinha de lava que tu tanto querias”,
murmuradas uma e outra vez. Através deste monólogo, que lhe assenta como uma luva, o
filme inteiro adquire um ritmo delicado, sendo que nele não há mais música nenhuma além
da que acompanha o genérico final. Quando reparamos que estas palavras são música
cantada por uma voz que não é melodiosa, começamos a ouvir a melodia simples que sai da
boca de Ventura com a mesma tensão com que até aí os nossos olhos tinham seguido a
sequência das cenas.
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AVENTURA: UM ENSAIO SOBRE PEDRO COSTA - 145

Neste sentido, o Ventura de Juventude em Marcha faz lembrar Jean-Marie Straub em Onde
Jaz o Teu Sorriso?, de Pedro Costa. Nesse documentário, é Danièle Huillet quem mexe na
mesa de montagem e nos rolos de película, enquanto Straub, desajeitadamente de pé à
entrada da porta aberta da sala de montagem, parece evitar tocar no que quer que seja.
Muitos dos planos que têm Huillet em primeiro plano debruçada sobre a mesa de montagem
incluem também Straub lá atrás, uma sombra que hesita em entrar na sala. Em todo o caso,
a música que se adequa a esse filme é emprestada pela sua voz distante, enquanto aparece e
desaparece junto à porta.
Às vezes com um cigarro nos lábios, sempre de mãos vazias, Straub diz: “É preciso
tempo e paciência. Depois, até um suspiro se pode transformar num romance.” Estas pa-
lavras não devem ser vistas como uma lição sobre a criatividade, baseada na experiência do
realizador. São antes palavras de amor dirigidas a Danièle Huillet, que se concentra no pro-
cesso de montagem, e a voz dele evoca uma família invisível, um amor que transcende o
sexo.
Em Juventude em Marcha, essas palavras de amor sobre “tempo e paciência”, ditas por um
realizador veterano de renome em França, parecem ser retomadas por Pedro Costa pela voz de
um trabalhador imigrante de Cabo Verde. É através desta aventura de Costa que o fantasma
se envolve miraculosamente no esplendor ficcional do momento presente.
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SEVEN WOMEN
Dominique Marchais

Não aconselharíamos Ossos aos asmáticos: este filme é como chumbo vertido nos pulmões.
Um filme ardente e, porém, sem sol – ou então um sol negro. Pedaços de ossos calcinados,
dispostos de modo a fazer fronteira, delimitar o espaço de uma comunidade, ou então
conservados pela mesma razão: ligar as pessoas entre si. Vemos, portanto, claramente um lar
e rostos dos totens que giram à sua volta. Há o pai, o bebé e sete mulheres: Tina (a mãe),
Clotilde (amiga, mulher e amante que pensa que deveria ter sido ela a mãe), duas fadas, duas
enfermeiras e uma prostituta que acaba por levar o bebé consigo. O bairro e a sua pobreza
são concretos. Mas não aparece como um lugar real, antes como uma projecção do espírito.
As pessoas são filmadas com aquela distorção particular que permite aos contornos, às
formas, destacarem-se da sua matéria. Aparecem como sombras chinesas ou como se
estivessem em contra-luz, opacas, pesadas, indecifráveis. Quando falam, não é a sua voz que
ouvimos, mas um eco mais longínquo, que se lhes escapa pela boca. Não há naturalmente
um único contra-luz neste filme quase perfeito. O pai é imolado numa sombria maquinação
por não ter querido deixar a mãe do seu filho matar o bebé, por o ter roubado e dado a uma
prostituta depois de esperar vendê-lo.
Talvez seja preciso tentar esquecer a cena obsessiva em que Tina arrasta o jovem pai à
força, completamente drogado, diante do recém-nascido, obrigando-o assim a partilhar o
mausoléu deles. E é preciso estar muito atento para compreender esta narrativa, precisa no
seu centro e completamente vaga nas margens. Ossos esquiva-se constantemente ao centro
da sua história, faz desvios para não ter de mostrar o que o obceca e, desse modo, não dá a
ver senão o vago, a ambivalência, traços a partir dos quais tentamos reconstruir, um pouco
inquietos, o acontecimento trágico.
As palavras pouco nos ajudarão a compreender o que se passa, o que se passou: para
além de serem raras, são sibilinas, sem falar das mentiras e outras vilanias. Mais vale acreditar
nas mãos, nas posturas, nos olhares, e ler o filme como um quadro, sendo os gestos e
preparos a determinar a função da personagem e a criar um esboço de narrativa – o que
prova que Ossos procura a hiper-lucidez mais do que a extra-lucidez. Como quase nunca há
contracampos, não sabemos bem se se trata de planos objectivos ou subjectivos. O que acaba
por constituir um plano de um terceiro género, que decorre simultaneamente do olhar impudico
e da imagem privada, do sonho. Filme cego – os planos sucedem-se, mas não se reconhecem
uns aos outros – e filme mudo, Ossos é muito ruidoso, deixa o alarido do exterior corroer,
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SEVEN WOMEN - 149

sujar-lhe as imagens, como uma chuva ácida que caísse sobre este arquipélago de solidões.
Demasiado espartilhado ao início, demasiado fixo, o filme torna-se hipnótico assim que a
imagem se aprofunda e, abandonando o seu dogma, a câmara segue os movimentos dos
modelos – e é com uma genial economia de gestos que Costa deixa emergir afectos que um
aparato mais pesado abafaria.
Se Ossos nos faz pensar em John Ford, não é apenas pelos pesadelos desfiados sem
pestanejar (o bebé no saco do lixo não desmerece, no registo traumático, a criança que se
atira para cima da caixa de música em Two Rode Together (1961), nem pela sua sensibilidade
feminina, a angústia maternal pela criança morta.
Nem porque se pinta de negro – no sentido literal. Nem, por último, porque coloca as
origens da política num obscuro forno de sentimentos. Mas porque, muito simplesmente, ao
avançar pelo corredor mergulhado nas trevas, o pai nos faz pensar na bela Anne Bancroft de
Seven Women (1966), que avançava a passo ligeiro para o seu destino de vítima sacrificial.
A diferença é que a criança já está lá, a violação foi já perpetrada, o sacrifício é inútil e a morte não
espera ao fundo do corredor. Existe apenas recondução sempiterna de uma vida de ectoplasmas,
de anjos danados. O bairro aparece então como uma prisão que tivesse as dimensões do
mundo.
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A PROPÓSITO DE OSSOS
Jeff Wall

Vi Ossos por acaso no Marais, em Paris, e impressionou-me imediatamente. Não sabia nada
acerca do filme ou do cineasta – para além de uma curta crítica que tinha lido no New York
Herald Tribune. O que me impressionou antes de mais foi o estilo da fotografia, a qualidade
fotográfica do filme. As imagens pareciam todas como que monumentais, profundamente
imersas num espaço que, apesar de real, dava a entrever uma sensibilidade muito particular.
O sentido do tempo era palpável e invulgar. Os planos do filme mantinham-se durante muito
tempo. Algumas das imagens mais intrigantes do filme são as que mostram uma ou duas
personagens em silêncio, sem fazer nada, a não ser talvez fumar um cigarro, a olhar para a
câmara ou para perto dela, embrenhadas nos seus próprios pensamentos. Claro que este tipo
de lentidão já foi muitas vezes visto em filmes, e corresponde mesmo a uma espécie de
tradição, mas não me lembrava de ter visto isso a ser usado de uma maneira tão intensa e
artística como me aconteceu da primeira vez que vi Ossos.
A combinação entre uma visão muito pessoal e poética das coisas e um estilo de fotografia
muito próximo da reportagem ou do documentário parece-me ser uma das abordagens artís-
ticas centrais do cinema. Quando vi Ossos pela primeira vez, pensei imediatamente nos últimos
filmes de Robert Bresson, filmados a cores. Tive a sensação de que Pedro Costa foi um aluno
atento e próximo de Bresson. A combinação do realismo com uma espécie de poesia muito
distanciada, metafísica até, que encontramos no que há de melhor nos filmes de Bresson
parece ter sido absolutamente central no tipo de imagens e sons que Pedro Costa quis registar
no seu filme. É uma poesia discreta, mas intensa, que olha para cada objecto no mundo, cada
rosto, cada animal de maneira quase igual ou, pelo menos, de uma maneira que encontra o
mesmo interesse numa cafeteira, nos azulejos por cima de um fogão, no cabelo de alguém,
naquilo que está pendurado numa porta, no casaco que uma criança usa, seja no que for,
numa árvore do outro lado da rua; todas estas coisas juntas criam uma espécie de visão que
corresponde muito à forma como julgamos ver o mundo – que normalmente nos é transmitida
de uma maneira intensificada e que de algum modo nos mostra o que é viver uma experiência.
Às vezes penso nas obras de arte, nos filmes e nas fotografias, como coisas que nos per-
mitem experimentar a sensação de ter uma experiência.
Nos últimos filmes de Bresson, que, creio eu, se assemelham a Ossos, muitas das personagens
são atormentadas, muitas delas são jovens, e estão envolvidas em relações complicadas.
Também vemos isso nos filmes de Costa. Tenho, contudo, a sensação de que Bresson, em
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152 - JEFF WALL

filmes como L’Argent (1983), por exemplo, criou já não tanto pessoas vivas mas sim abstracções,
ou tipos, concretizados e imaginados com muita intensidade. Às vezes penso neles como
criaturas celestiais que representam um drama de modo a criarem o sentido e a transmitirem
a sensação que Bresson desejava, mas que são ao mesmo tempo exangues, às vezes, como
anjos ou abstracções. Apesar de esse tipo de cinema e os filmes que origina serem admiráveis,
este aspecto sempre me incomodou, ou deixou-me pelo menos insatisfeito, ou fez-me
sentir que, apesar de toda a sua grandeza como artista, a direcção que o trabalho de Bresson
seguiu não é aquela que eu próprio teria tomado. Os filmes de Costa parecem corrigir isso,
se é que é possível dizê-lo assim, acrescentando à intensidade que encontramos nas obras do
cineasta mais velho coisas como a sujidade, o ruído desordenado e a falta de direcção do
mundo real, coisas que Bresson estaria interessado em eliminar com vista a fins importantes,
mas que, apesar de tudo, me parecem verdadeiramente tão significativas quanto a sua au-
sência. Acho que um bocado de merda de cão num passeio, algum lixo a um canto, uma
nódoa num casaco ou um penteado desgrenhado podem ser tão profundamente significativos
como uma visão abstracta mais limpa, organizada, mais clarificada. E tenho a sensação de que
Costa também pensa assim.
Não tenho jeito para argumentos, sou fotógrafo, mas o argumento de Ossos é interessante
porque não é demasiado claro, nem demasiado organizado. Em muitos filmes convencionais,
qualquer objecto que apareça, qualquer coisa que aconteça serve para clarificar e resolver
algum tipo de enredo. Uma história qualquer, com um propósito qualquer. Em Ossos, o que
é admirável, isso muitas vezes não acontece. Há personagens no filme que não fazem nada,
que quase não participam sequer na história, que aparecem em planos sucessivos mas não
fazem nada. Às vezes ouvem a conversa dos outros, observam as acções e desaparecem. Não
são figuras em pano de fundo, não são figurantes, parecem ser muito importantes e, no
entanto, não têm qualquer efeito concreto no decorrer da acção. Isso também me parece
notável, a sensação de que a vida era demasiado complexa para ser incluída como um todo
no filme, e de que o filme permite que a energia, a consciência, o interesse, etc. lhe escapem.
E acho que Costa encontrou maneira de tornar isso claro, ou pelo menos expressou o facto
de existirem aspectos da história, da vida dessas pessoas e do bairro, daquele grupo de pessoas
conflituosas e em conflito, que nunca poderiam ser encerrados, abarcados ou traduzidos
neste filme, mas que estariam presentes no modo como lhe escapam.
Há uma personagem, uma jovem, não sei quem ela é, só a identifico como “a observadora”,
julgo que aparece no primeiro plano do filme, e que não faz nada senão olhar para a câmara;
aparece repetidamente a olhar para as coisas, a ouvir uma conversa de bastante perto. Parece
nunca ter qualquer efeito ou participação e, no entanto, traz do exterior da história uma energia
que vem em direcção à história, mas não necessariamente para dentro da história. Vejo isso
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154 - JEFF WALL

como uma interrupção da aura da história, uma maneira de fazer uma pausa no movimento
da narrativa, que vai sempre em frente, de modo a permitir-nos a nós, espectadores, vivê-la
de um modo diferente, como se de repente nos pudéssemos retirar, desviarmo-nos para o
exterior da narrativa e estar noutra rua, noutro quarto, ouvindo apenas rumores dela, sem
nunca ter uma experiência directa, mas sabendo alguma coisa sobre ela.
Figuras enigmáticas como a da “observadora” parecem marcar todo o filme, no sentido
em que todas as personagens são enigmáticas. Na realidade, não ficamos a saber muito sobre
elas. Acho que se mantêm estranhas, desconhecidas para nós. Em muitos filmes parece que
os realizadores estão a tentar que fiquemos a saber qualquer coisa sobre as pessoas, de maneira
a nos aproximarmos delas, para lhes conseguirmos espreitar as almas. E alguns desses filmes
são muito bons, como os de Bergman, por exemplo: nalguns deles temos a sensação de que
conseguimos realmente adivinhar a vida interior, o íntimo dessas pessoas.
No filme de Costa o que acontece é outra coisa. Não é nem melhor nem pior do que o
género de filme que acabei de referir; é apenas diferente, e também muito bom. É uma
situação em que, apesar de estarmos muito próximos das pessoas, de as observarmos du-
rante um tempo considerável, e de as vermos atravessar uma experiência importante, não
sentimos realmente que penetrámos na sua consciência ou personalidade, seja de que
maneira for. Não as conhecemos realmente. Continuam a ser-nos tão estranhas no final do
filme como eram quando as vimos pela primeira vez.
Clotilde, que é a figura principal, a figura central de Ossos, é um exemplo típico das que
me continuam a ser estranhas. Habituei-me a coisas como o seu andar invulgar, ligeiramente
rígido, tenso, quando vai de um lado para o outro. Os movimentos do seu corpo são impres-
sionantes e muito originais. Não faço ideia de como é que ela os criou, se lhe são naturais ou
se são uma espécie de actuação. Mas tornaram-se-me muito familiares. Algumas das suas
atitudes, ideias e sentimentos foram retratados, mas continuaram para mim a ser um verdadeiro
mistério – uma pessoa que não acho que pudesse conhecer pelo modo como está retratada. Mas
há algo de grandioso nessa estranheza, de importante, que penso que toca profundamente
naquilo que os retratos são de facto, ou pelo menos no que é realmente interessante num
retrato em filme, desenho, pintura, fotografia, ou suponho que também na literatura; ou seja,
que não podemos, de facto, possuir as pessoas que são retratadas. Não podemos manter
qualquer controlo ou compreensão consciente em relação a elas. Continuam a ser outras,
um pouco distantes de nós, um pouco remotas. Isso interessa-me enquanto qualidade artís-
tica, muito marcada em Ossos, não sendo uma coisa de que eu estivesse à procura no filme.
Impressionou-me muito reconhecer a consistência com que essa qualidade enigmática, e
cinematográfica, se mantinha ao longo do filme. Penso que todas as personagens são retratadas
dessa forma; a nossa relação com todas elas, em diferentes graus de intensidade, é assim.
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A PROPÓSITO DE OSSOS - 155

A enfermeira Eduarda, que, mais um vez, é uma personagem importante e cativante no filme,
talvez constitua uma ligeira excepção, no sentido em que, na parte final do filme, quando visita
o bairro onde Clotilde, Tina e os outros vivem e se envolve com o marido de Clotilde, acaba por
trair aspectos da sua personalidade através de gestos e expressões faciais. Que são, de algum
modo, surpreendentes, face ao seu comportamento anterior. Nesse momento senti que estava
a ter uma percepção da personalidade interior de alguém, coisa que não tinha acontecido com
nenhuma das outras personagens. Poderá ser uma excepção nos retratos do filme, não tenho
a certeza, mas era impressionante e, nesse sentido, bastante perturbador.

Transcrito a partir de uma gravação com o autor.


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OSSOS
João Miguel Fernandes Jorge

Ossos é um filme de Pedro Costa, de 1997. Passa-se em Lisboa, num bairro suburbano de
Lisboa. Mas não é suburbana, hoje em dia, toda a cidade?
Creio que Portugal é particularmente este filme: fome, negros e brancos, não se distin-
guindo no seu comum horizonte de miséria. (Por mais que o neguem o apregoado “bem-estar”
e o visionário, utópico “oásis” sempre anunciado pelos políticos.) Mais fome. (Há uma
sanduíche que parece ser ininterruptamente comida pelas personagens.) Bairros onde o
tempo não vai nunca além de uma humidade peganhenta. Casas entre o tijolo, o tabopan e
a folha de cartão. Música cabo-verdiana. A latitude rácica está a tal ponto diluída que não se
distingue bem onde tem início a epiderme do português do continente e a do falante da língua
portuguesa do ultramar. Isso não é coisa que aflija. É o que resta do Império. O que poderá
mesmo afligir é que nem a morte quer, por mais que estas personagens a procurem e de-
sejem, alguém neste filme.
Ossos é um filme de grandes rupturas. Parece que nos fala de um post-humano português,
se acaso as nacionalidades permanecerem na linguagem cifrada do replicante. Neste filme
mostra-se como se ultrapassou um tempo histórico e social. Como a comunidade na qual
nos inserimos já é outra. Como já não se situa no ponto exacto onde cada um de nós ainda
a concebe. A ficção fílmica alastrou a toda a geografia portuguesa e, nisso, o filme tem também
força documental. Um filme em que as personagens abandonam todas as coisas que não
podem ser esquecidas. Os valores são outros, situam-se já além do padronizado. Assim é a
figura do pai, que guarda a força anímica de uma maternidade protectora. Ou a mãe, que
tem com ela a exacta e cruel imagem do mundo em que (se) vive. Figura de personagem de
romance de Dostoiévski ou desse japonês das Cem Vistas do Monte Fuji, Osamu Dazai, ou
do próprio Kenzaburô Ôé, mas com menos tranquilidade, para não dizer sem nenhuma
tranquilidade.
A mãe esconde a sua feminilidade sob um ambíguo acento masculino; de resto, todas as
personagens femininas se confundem não só fisicamente, como na própria sonoridade dos
nomes que têm. (Vi no genérico que havia dois nomes russos; um pertence à figura da mãe.
Talvez que esse nome ultrapasse a presença do rosto e seja suficiente para justificar a ligação
que faça a Dostoiévski. À partida nunca presto atenção aos actores enquanto actores. Inte-
ressa-me sim o filme, enquanto obra, enquanto entrecruzar de personagens e texto, de
imagem e de luz e de sombras.)
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158 - JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE

Aqui as personagens não são amadas, ou melhor, todas elas supõem que não há lugar para
serem amadas. Nem amor nem ódio: indiferença, coisa onde o desejo não se ressente de
uma separação radical, porque entre qualquer figura e a seguinte há sempre um corte. Como
se acerada lanceta lhes cortasse os corpos e desses golpes não saísse sangue. Como já disse,
nem a morte quer saber destes mais do que heróis, destes anti-heróis.
Não estão no filme nem para vencer nem para perder. Eles têm fome: de comer, mas
sobretudo de olhar. Estão divididos por uma melancolia de instantes. (A própria melancolia
ou qualquer sombra de nostalgia serão termos que não cabem no filme. São coisas de um
tempo anterior, talvez de um tempo posterior, mas não do tempo (exacto) do filme – e não se
chama o filme Ossos?)
Dos filmes portugueses que tenho visto, este é um filme que já começa a não ser sequer
português. Por muito que ele tenha ainda dessa natureza – e a “realidade” próxima é a da
cidade de Lisboa –, a sua fala é somente a da secura da imagem, a de uma fome que está para
além da tradicional concepção de fronteiras. Respira-se e vive-se um generalizado suburbano,
qualquer coisa que assola vastas regiões, como tem lugar com as grandes epidemias, com a
peste na Idade Média. Ossos refere-se à ideia de restos, de restos de civilização.
Mas dos filmes portugueses que tenho visto – e confesso que tenho visto ultimamente
poucos – parece-me ser o único que fecha violentamente a porta a revelações últimas. São
imagens em que a força da solidão separa aqueles que alguma vez intentaram a existência do
amor – nem a morte os quer. E, no entanto, o filme tem os lados do humano – caridade, fé,
amor; mas o que vence é a constante necessidade de renúncia ao menor desejo. É um filme
sobre a ausência de luz que, por ironia, se desenrola numa cidade – dizem – de tanta lumino-
sidade. Por isso, quando a luz esplende, tudo se torna mais doloroso. Como a própria noite,
no que sempre encerrou de luz, de mistério, de descanso e de enredo, é uma ausência.
Filme de miscigenação cultural, em que todos os valores se confundem e servem de moeda
de troca. E tudo serve mesmo para troca: uma sanduíche, o trabalho, o corpo, a hipotética venda
de uma criança. Renúncia é o termo mais recorrente por entre um destino perdido entre
emanações de um céu e de uma terra envenenados.
Escrito contra os pequenos triunfos. Filmado contra os pequenos comprazimentos. Coisas
que cada vez mais tendem a acabar e a serem privilégio de muito poucos. Tudo se passa em
estradas de muito trânsito que são simultaneamente corredores de hospital, becos onde a me-
lancolia se perde numa imensidade de poço. Tudo se passa no banco traseiro de um autocarro
da Carris, sob um infernal barulho de motor. Em breve, muito em breve, tudo poderá terminar,
de novo, numa câmara de gás. As tentativas de morte por gás não serão já um sinal?
A música, desde o começo que a confundi com a Partita n.°4 de Bach, com a plangência
do movimento intermédio, a “ária”; uma frase niilista nos nossos ouvidos, qualquer coisa
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OSSOS - 159

como “morrer de vida”, “destruir a vida” – mas aqui, a vida, é uma espécie de canto último da
primeira à derradeira imagem. E, depois, o português falado é mínimo. Nisso talvez resulte
um dos grandes conseguimentos de Ossos. Pedro Costa percebeu como o português falado é
tão incompatível com a imagem fílmica. Mas também no filme a fala traz consigo uma
representação antiga, o quase sem valor de troca. A fala para estas criaturas do filme não
passa de um mundo de prejuízo. Quer dizer, um mundo de agravo e de malogro.
Mas que tem este filme para que fale dele e para que guarde para a próxima semana uma
crónica sobre Sean Scully, sobre a sua pintura que tanto prezo? Porque o entendo como um
filme de uma pré-compreensão do mundo. De um mundo que ainda julgamos português,
mas que já é qualquer outra coisa. Coisa que já é somente “mundo” – coisa nenhuma. Dele
dimana o imperativo: “Faz a gente”, “faz”. É um filme de verdadeira ditadura da imagem em
plena (e indiscutível) democracia. Não há origem social nem mundos interiores, mas sem
construções ideais, nem fantasias voluntárias conscientes, colectivas ou individuais. Guarda
o filme um campo (autêntico) da filosofia e da política não técnica. E isso tem lugar num
território geográfico em que uma e outra coisa não existem, o que é pena. Mas será mesmo
de ter pena? Se existissem talvez não tivéssemos Ossos para ver.
“O salto não é vertiginoso, mas dá, pelo menos, para ver; já que pensar, já ninguém
pensa.” Lembrei-me, na íntegra, de uma frase recorrente de um aluno meu da Escola de
Cinema. Ele sim um cinéfilo, coisa que não sou.
Também um dia me disseram que quando se diz bem da fotografia de um filme, é
porque o filme não é bom; e a fotografia é a última coisa que lhe resta. Neste caso, isso que
tomei por verdadeiro durante tanto tempo, afinal era falso. E, nos Ossos, todos trazem às
costas todos os últimos julgamentos.
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HISTÓRIAS DE FANTASMAS
Thom Andersen

Descobri No Quarto da Vanda quase por acaso, no Festival Internacional Nouveau Cinéma
Nouveaux Médias de Montreal, em Outubro de 2001. Estava a beber um café no átrio do
cinema Ex-Centris e reparei que o filme iria ser exibido numa sala a poucos metros dali. Não
tinha dado por ele no programa. Fazia parte de uma programação especial sobre cinema
português, e eu desconfio sempre das secções de cinematografias nacionais nos festivais.
Não se limitarão a proporcionar uma montra para filmes que não são suficientemente bons
para a secção principal? Mas não havia mais nada para ver àquela hora, e eu não tinha mais nada
para fazer. O filme já tinha começado, mas eu podia ver alguns minutos e a seguir apanhar o
filme que tinha planeado ver mais tarde. Perdi o outro filme, fosse lá qual fosse (já não me
consigo lembrar). Fiquei quase imediatamente fascinado por No Quarto da Vanda. Tive a
sensação de estar a ver o futuro do cinema. Foi o primeiro filme rodado em vídeo digital que
não me fez desejar que tivesse sido filmado em película. Na altura, não sabia que Costa tinha
acumulado 140 horas de imagens e sons, das quais pôs de lado estas três horas, mas era bas-
tante evidente que tinha passado muito tempo com as pessoas do filme.
No Quarto da Vanda é uma obra paciente. Antigamente, este género de paciência era
possível para os realizadores de documentários que trabalhavam com câmaras de 16mm, e
deu origem a grandes obras. Penso imediatamente em An American Family (1973), de Alan e
Susan Raymond, em Seventeen (1983) de Jeff Kreines e Joel DeMott e nos filmes de Sanrizuka
de Ogawa Shinsuke, que documentam a resistência camponesa à construção do aeroporto de
Narita, nos arrabaldes de Tóquio. Mas nessa altura a película era mais barata. Agora esta
paciência só é possível para quem trabalhe com câmaras de vídeo.
No Quarto da Vanda é também uma obra íntima, um drama de câmara, como o título
anuncia. Tomei-o como um documentário, mas um documentário de uma franqueza sem
precedentes, o género de filme que Kieslowski afirmou ser impossível porque “há esferas da
intimidade humana onde não se pode entrar com uma câmara”. Costa tinha conseguido
entrar nessas esferas, entre imigrantes pobres que só conseguem arranjar trabalho tempo-
rário e irregular e que têm de lutar para criar um espaço próprio num bairro (as Fontainhas,
em Lisboa) que vemos a ser demolido à volta deles. Pertencem àquilo que alguns tecnocratas
privilegiados e os seus peões nos E.U.A. chamam “o sub-proletariado”.
É assim que vemos Vanda Duarte e os amigos a fumarem heroína, a injectarem-se e a
dizerem parvoíces. Mas também há momentos de uma ternura espantosa em que eles parecem
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166 - THOM ANDERSEN

ainda mais indefesos, momentos que fazem lembrar os encontros mais misteriosos dos
melhores filmes de ficção. Por exemplo (um exemplo privilegiado na minha memória), num
dos planos-sequência mais simples e brilhantes do filme, Vanda e o seu amigo Pedro estão
sentados à beira da cama dela, a falar da morte de Geny, uma amiga. Ela dá-lhe um medi-
camento qualquer, ele dá-lhe flores. Há ali solidariedade e até amor, palpáveis. Supõe-se que
Costa só poderia ter registado estes momentos com câmaras leves e discretas. Mas, é claro,
a intimidade do filme não é simplesmente uma questão de técnica. Houve de certeza um
respeito e uma amizade mútuos e próximos entre Costa e as pessoas que filmou.
Jean-Louis Comolli e Gilles Deleuze afirmaram que muitos dos documentários mais
significativos dos últimos quarenta anos têm sido colaborações entre o realizador e as pessoas
que filma, em que cada um passa para o lado do outro. As pessoas que aparecem no filme
descobrem-se a si próprias ao criar histórias, diálogos, narrativas, e o realizador ou realizadora
reinventa-se através deste encontro. O lema deste cinema é o slogan de Rimbaud “Je est un
autre” (“Eu é um outro”), uma frase que Costa também citou, para descrever Chaplin. É um
argumento sedutor, mas eu nunca achei os exemplos deles completamente convincentes.
Sempre me pareceu que havia mais poder ou, pelo menos, mais mestria do lado do realizador.
Mas aqui estava, finalmente, um filme que de facto se enquadrava neste conceito teórico,
uma colaboração onde havia uma verdadeira fraternidade e igualdade, porque nenhum dos
lados abdicava da sua responsabilidade. Em todos os encontros registados por Costa há uma
dignidade e formalidade que dá ideia que Vanda e os seus amigos estão a fazer o papel de si
mesmos e não a serem, simplesmente, eles mesmos. Costa enobrece-os com o grande
cuidado que tem com as imagens, aplicando o mesmo esmero que um operador de câmara
de Hollywood concederia a Gwyneth Paltrow ou Uma Thurman. Não é bem assim. Ao longo de
No Quarto da Vanda há inserts de grandes planos tão belos como quaisquer outros no cinema.
Com este trabalho sobre a imagem, Costa reinventou o vídeo digital, descobri eu ao ver
este filme. Fiquei a pensar que já não existe uma estética de cinema e uma estética de vídeo.
Ainda pode haver filmes que acentuem essa especificidade das suas imagens, sobretudo na
franja experimental das produções em 16mm, e vídeos que reivindiquem as qualidades especiais
desse suporte, mas já não é preciso insistir nas diferenças. Só existem imagens em movimento;
e podemos chamar “cinema” a tudo, se quisermos.
Costa fala em utilizar a câmara de vídeo de um modo que resiste às intenções dos seus
fabricantes: “Querem que a mexa de um lado para o outro, e eu não a quero mexer… As coisas
usam-se para trabalhar. As câmaras, as câmaras pequenas, são muito úteis. São práticas, e não
são caras, mas cuidado. É preciso trabalhá-las muito, e o trabalho é o contrário da facilidade.
A facilidade é a primeira ideia. É a falta de resistência.” Portanto ele não mexe de todo a
câmara e ilumina cada enquadramento como John Alton o poderia ter feito nos anos 40.
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Pintar com a luz, chamou-lhe Alton, e tive a tentação de chamar às imagens de Costa pictó-
ricas. O problema dessa formulação é que a semelhança com a pintura me parece mais uma
coincidência do que intencional. As imagens parecem pictóricas porque a luz só existe para
criar espaço.
Talvez seja mais pertinente invocar um filme de John Ford. Em No Quarto da Vanda,
como em muitos dos filmes de Ford, há muitas vezes uma porta ao fundo do enquadramento.
As portas (e, mais frequentemente, as janelas) abrem-se e fecham-se às vezes, mas estão
geralmente abertas. Os espaços são pequenos e estão a abarrotar, cheios de objectos que são
alvo de um cuidado extremoso e incessante (a limpeza é um motivo recorrente), mas talvez
por o enquadramento ser tão rígido e estreito (muitas vezes com alguém que fala ou escuta,
fora de campo), estão sempre abertos para um exterior que é ilimitado. As paredes estão
“envelhecidas”, mas os quartos estão arrumados e são suficientemente bonitos para termos
motivos para partilhar o pesar dos residentes por terem de sair dali (a demolição em curso
do bairro nunca é explicada, mas já todos nós assistimos às perversidades da “limpeza dos
bairros de lata” ou da “renovação urbana”).
A maior parte de No Quarto da Vanda passa-se em interiores, mas senti-me grato pelas
frequentes cenas de exteriores, em geral breves, que dão outra impressão do bairro e da sua
vida. As imagens isoladamente não nos mostram muito, mas em conjunto descrevem um
pequeno mundo, uma comunidade feita de passagens estreitas e de pequenas praças, cada
uma delas com um fogo aceso dia e noite. É um bairro que Jane Jacobs teria adorado. Na
parte final do filme, começamos a reparar nos inquietantes X amarelos que marcam as casas
para demolição imediata. Poucos minutos mais tarde, algumas delas são arrasadas por um
bulldozer.
Há até quatro planos do mundo da natureza que mostram um campo de erva, mais alta
do que os homens que o atravessam, um campo florido sob um céu enevoado e cinzento, e
o vento a agitar as folhas num arvoredo denso.
Será que No Quarto da Vanda esteticiza a pobreza? Eu diria que sim, e sustentaria que é
essa a sua maior virtude. O mundo é belo, e uma imagem útil do mundo deve registar essa
beleza. Os ricos e os pobres vivem debaixo do mesmo céu, e o céu (só muito raramente
entrevisto em No Quarto da Vanda) é mais belo do que a mais bela das paisagens naturais ou
urbanas.
Agora há uma sequela, Juventude em Marcha. Deste filme já eu fui à procura. Antes de
o ver, tinha já visto as três longas-metragens anteriores de Costa, tive um breve encontro
com ele em Lisboa, vi No Quarto da Vanda outra vez em DVD e li descrições da estreia no
Festival de Cinema de Cannes, em Maio de 2006. Consegui que Juventude em Marcha fosse
projectado no Instituto das Artes da Califórnia, onde dou aulas, em Setembro de 2006,
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HISTÓRIAS DE FANTASMAS - 169

com Costa a apresentá-lo. Vi-o duas vezes numa cópia promocional em DVD, antes da
projecção em 35mm.
Podemos chamar-lhe uma sequela porque foi feito com as mesmas pessoas e o mesmo
método. Costa acumulou 320 horas de filmagens em vídeo, com uma pequena câmara digital,
ao longo de um período de quinze meses. Mais uma vez, as imagens são estáticas e majestosas,
apesar de Costa apontar a sua câmara para cima e não para baixo, e de incluir algumas
panorâmicas. Vanda, Nhurro e Paulo voltam a aparecer com destaque, apesar de Ventura,
o protagonista, não ter aparecido em No Quarto da Vanda. Vanda está mais saudável e robusta
– tem um marido recente e uma filha – mas a sua irmã Zita morreu. A morte de Zita inspira
uma das passagens mais comoventes do filme. Ventura e o seu amigo Xana estão a assistir
uma espécie de cortejo fúnebre que passa fora de campo. Ventura comenta: “Mais um que
se foi. […] O veneno do costume.” Xana responde: “Não foi o veneno que ela tomou. Foi todo
o veneno que tomaram por ela antes dela nascer.”
A destruição do Bairro das Fontainhas, documentada em No Quarto da Vanda, está agora
quase terminada, e praticamente todos os seus habitantes, incluindo Vanda, foram realojados
em prédios novos mas de má qualidade, com corredores amarelo-alaranjados e salas brancas
que são cubos perfeitos. Os contrapicados de Costa fazem com que as molduras das portas
pareçam os caixões verticais das famosas fotografias de Nadar do massacre dos membros da
Comuna de Paris. Estas torres são versões despidas e puristas do Estilo Internacional, sem
decoração nem imaginação, o género de coisa que Corbusier poderia ter concebido se não
tivesse ido mais longe na prática do que na própria teoria.
Juventude em Marcha não pode ser confundido com um documentário. Começa num registo
altamente dramático, melodramático, até. Vemos peças de mobília a serem atiradas pela janela
de um segundo andar, para um pátio, sob um céu nocturno inquietantemente negro. Ventura
depressa explicará esta imagem: a sua mulher Clotilde deixou-o, cortando-o num braço e des-
truindo a maior parte do recheio do lar comum. Ao longo do resto do filme, os episódios ficcio-
nais alternam com sequências mais documentais, todas unificadas pela presença imponente de
Ventura, que vagueia de encontro em encontro com os seus camaradas, chamando a muitos
deles seus “filhos”, e de uma temporalidade para outra. Isto é, representa-se um período do pas-
sado de Ventura, mas estas sequências não são assinaladas como flashbacks. O facto de decor-
rerem no passado é apenas indicado por uma mudança no guarda-roupa e pelo aparecimento
de uma ligadura enrolada à volta da cabeça de Ventura. Ao evocarem os primeiros tempos de um
imigrante de Cabo Verde em Lisboa, afirmam insistentemente o carácter ficcional de Juventude
em Marcha e permitem que Ventura dê corpo às aspirações e lutas da sua comunidade imigrante,
as pessoas do Bairro das Fontainhas, tal como o Sargento Braxton Rutledge dá corpo às aspira-
ções dos “buffalo soldiers” negros no filme de John Ford, de 1960, Sergeant Rutledge.
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A ligação com os filmes de Ford não me ocorreu espontaneamente. Foi proposta por Costa,
que disse sobre Juventude em Marcha: “Eu só fiz um remake de Sergeant Rutledge.” Para Costa,
No Quarto da Vanda e Juventude em Marcha são ambos continuações do seu esforço para
recriar o cinema clássico de Hollywood por outros meios. O que, explicado por Costa, não
é tão paradoxal ou perverso quanto parece, e depressa dei por mim a reparar em ecos de
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HISTÓRIAS DE FANTASMAS - 171

Tourneur e de Lang no seu segundo filme, Casa de Lava. Felizmente, a influência mais
benéfica de Hawks e de Ford veio ao de cima em No Quarto da Vanda e Juventude em Marcha.
Há uma generosidade no trabalho deles, um desejo de solidariedade e de comunidade que
transcende a dramaturgia muitas vezes insípida e preguiçosa, e Costa conseguiu recriar esse
impulso.
Depois de Costa o ter referido, fui rever Sergeant Rutledge, para perceber o que ele poderia
ter ido lá buscar. Não é um filme típico de Ford. É um dos seus últimos westerns de “pequena
forma”, para adoptar a expressão de Deleuze. A história é contada do avesso. É um filme de
tribunal e, portanto, tudo é relatado em flashbacks. E não é um dos melhores filmes de Ford.
Ford parece tão envergonhado com o drama de um soldado negro injustamente acusado
de violar uma rapariga branca e de assassinar o seu pai que não consegue propriamente
resolver-se a contá-lo. Há um excesso de momentos cómicos e uma longa exposição da fuga
de Rutledge da cena do crime, mas a violação e o assassinato nunca são mostrados. No fim,
o advogado de defesa tem de fazer um truque à Perry Mason para ilibar Rutledge. Porém, Ford
deu a Woody Strode, que faz de Rutledge, o melhor papel da sua carreira, o de um “soldado
de topo” cujas capacidades e coragem o tornam maior do que a vida, um modelo e uma lenda
para os seus camaradas negros, e Strode aproveitou-o ao máximo. Ford fotografa-o de um
modo especial, visto de baixo, num ângulo contrapicado, para reforçar o seu estatuto mítico.
Nenhuma das outras personagens recebe este tratamento. Costa fotografa Ventura da mesma
forma, e creio que considera este homem humilde e despretensioso com o mesmo género
de admiração que Ford sentiu por Rutledge. Os esforços que faz para preservar as suas raízes
e a sua família, também apontados indirectamente, servem para encarnar os esforços da sua
comunidade espoliada e marginalizada, e a sua nobreza discreta nega qualquer vestígio de
miserabilismo que, para alguns espectadores, tinha manchado No Quarto da Vanda. Tal como
Sergeant Rutledge, Juventude em Marcha é uma tentativa de tornar a “pequena forma” num épico.
A caracterização perspicaz que Joseph McBride faz de Rutledge em Searching for John Ford
torna mais clara a ligação entre Ventura e Rutledge (bem como a convicção de Costa de que
Juventude em Marcha, num certo sentido, repete Sergeant Rutledge): “Os últimos filmes de
Ford lidam com personagens que, em grande medida, são capazes de ficar de fora da História
ao mesmo tempo que a vivem. Rutledge é uma dessas personagens, um homem que se
apercebe de que o sentido último da sua luta pessoal só se pode cumprir integralmente
quando ele se tornar História.” Ainda mais do que Rutledge, Ventura exprime em cada
gesto esta sensação de deslocamento e distância. Ele é um fantasma ou um anjo, que estende
a mão aos vivos, para os guiar pelo caminho.
Pedro Costa e eu acabámos por conversar muito sobre John Ford enquanto ele esteve na
Califórnia. Falámos acerca de The Searchers (1956), um filme que ele admira mais do que eu.
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Depois de ter visto projectada a cópia em 35mm de Juventude em Marcha, comecei a identificar
mais semelhanças com The Searchers do que com Sergeant Rutledge. Tal como Ethan Edwards,
Ventura é um vagabundo, um “peregrino”, à procura dos seus filhos perdidos. Quando o
agente imobiliário, no apartamento dos prédios novos, lhe pergunta quantos filhos tem,
Ventura responde: “Ainda não sei.” Tal como Monument Valley representa todo o Sudoeste
em The Searchers, as Fontainhas e os novos bairros de realojamento representam o mundo
inteiro de Ventura em Juventude em Marcha. Então, disse-lhe eu: “É como em The Searchers
– mas melhor. É The Searchers refeito a partir do ponto de vista de Mose.” Costa respondeu:
“Então acha que Ventura é louco?” E eu respondi: “Não, mas eu não acho que Mose seja
louco.” Só me ocorreu mais tarde que Mose é a única personagem sã em The Searchers e, por
isso, limitei-me a dizer: “É como num filme de John Ford com Francis Ford como protagonista.”
Ele acabou por aceitar este elogio. Afinal, o irmão mais velho de John Ford é o mais nobre e
amável dos actores com quem ele costumava trabalhar, e os melhores filmes de Ford são
sempre aqueles em que Francis tem os melhores papéis. Poderia referir como exemplos
My Darling Clementine (1946) ou The Sun Shines Bright (1953).
No entanto, na sua ficcionalidade pouco estruturada, Juventude em Marcha está mais perto
de Andy Warhol do que de Ford. Costa confirmou-me o seu interesse em Warhol, que também
defendia que estava a reinventar o cinema clássico de Hollywood por outros meios. Como
Warhol, Costa aproveita as invenções dos seus actores, que também são seus amigos, e cria
um esboço de ficção para os enquadrar, apesar de, ao contrário de Warhol, não confiar na
improvisação e na espontaneidade da primeira take. Pelo contrário, filma muitas vezes vinte
ou trinta takes da mesma cena, tal como as suas influências mais próximas, Danièle Huillet e
Jean-Marie Straub. Talvez tenha aprendido com eles que “o acidental só pode surgir no interior
de um enquadramento rigorosamente construído”, segundo a formulação de Frédéric Bonnaud.
É claro que Warhol e Costa têm gostos diferentes no que diz respeito aos filmes de
Hollywood. Tanto quanto eu saiba, nunca ninguém acusou Andy Warhol de ser um admirador
de John Ford. Ventura e Vanda Duarte são portanto “super-estrelas” num outro género de
filme. Se Edie Sedgwick era Lupe Velez, Mary Woronov era Maria Montez e Viva era Katharine
Hepburn, então Ventura é Woody Strode (ou Hank Worden) e Vanda é Jane Darwell (pelo
menos em Juventude em Marcha). Por outras palavras, não são realmente estrelas, são actores
de composição. Assim, Juventude em Marcha é o filme de Hollywood com que todos sonhámos:
o filme em que os actores de composição têm os papéis principais.
Para mim, Juventude em Marcha está para lá do elogio. Existe e pronto. É um filme com
que todos os realizadores que vierem depois terão de se confrontar. Exige uma sequela, mas
que não tem de vir de Pedro Costa. É interessante o que Scott Foundas escreveu no LA Weekly:
“O filme, depois de o ter visto, assombrou-me os sonhos durante uma semana, e ainda lá
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HISTÓRIAS DE FANTASMAS - 173

estava ao acordar.” Juventude em Marcha não me assombrou os sonhos mas interrompeu-me


o sono. Depois de o ver, pensei nele obsessivamente durante dias, e ainda o tenho na cabeça.
Não quero com isto dar a entender que seja um filme perfeito, ou sequer um clássico, como
alguns filmes de John Ford. Na realidade, é um filme intencionalmente imperfeito: Costa
inclui uma take em que Ventura se engana numa fala. Não posso dizer isto com muita
segurança, porque já o tinha visto duas vezes em casa antes da projecção, mas parece-me
que o filme tem uma estrutura ténue e quase de certeza obscura, o que infelizmente cria
dificuldades a alguns espectadores. Provavelmente, é preciso vê-lo pelo menos duas vezes
para o conseguir perceber, e isso para mim não é uma virtude. Costa confidenciou-me que
ele próprio ainda estava a descobrir o filme. Lento, um dos actores principais, teve de lhe
explicar um aspecto importante do enredo depois da estreia em Cannes. Talvez possa ser um
filme em construção também para nós, uma vez que o vemos e pensamos nele mais tarde.
A sua estrutura permite-nos mudar a ordem das cenas e refazê-la mentalmente.
Por isso fico ansiosamente à espera da versão em DVD, apesar do muito que se perde.
Vai-me permitir recordar alguns dos momentos mágicos que ainda não referi: Ventura a
recitar, quase como um mantra, a carta inspirada em Robert Desnos, o hino da independência
tocado num gira-discos portátil e mais tarde cantado por Ventura, a aparição das duas canetas
na barraca ocupada por Ventura e Lento, os dois longos monólogos de Paulo. Não acho que
constitua uma traição ao espírito do filme vê-lo fora do seu contexto original.

Pela conversa e pelo encorajamento, os meus agradecimentos a Christine Chang, Pedro Costa,
Valérie Massadian, Ricardo Matos Cabo e Mark Peranson
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RETRATO DE FAMÍLIA
Richard Dumas
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NO QUARTO DA VANDA
João Bénard Da Costa

Perto do final de No Quarto da Vanda, há um dos planos de que eu mais gosto. É o plano de
uma velha cabo-verdiana, com uma miúda também de Cabo Verde.
A velha está sentada num quarto e a câmara “está sentada” atrás dela, deixando-nos apenas
ver o que está no campo de visão da velha. E surge uma criança que, depois de entrar e sair,
se detém na soleira da porta, junto a uma bicicleta. A criança vira-se então para nós (para a
câmara e para a velha) e, apoiando-se ora num pé ora no outro, faz balouçar a bicicleta que,
assim balouçada, buzina. Descobrindo o efeito sonoro do seu movimento, a criança repete-o
um sem número de vezes, sempre de costas voltadas para a rua e sempre a olhar para a velha.
Esta não esboça a mais pequena reacção ao jogo da miúda, mas, embora não lhe vejamos o
olhar, sabemos que está com toda a atenção a ela. Atenção que, de certo modo, é devolvida,
pois que a brincadeira da criança, sendo também uma brincadeira solitária, é uma brincadeira
para a velha, ou uma brincadeira com a velha. Nem uma nem outra dizem uma só palavra,
a velha sempre imóvel e a miúda repetindo sempre o mesmo movimento. Neste filme de
longuíssimos planos, esse é um dos planos que mais dura. Neste filme de rituais, esse é um dos
planos mais ritualísticos. Neste filme de mistérios, este é um dos planos mais misteriosos.
Nunca até esse momento – pelo menos ao que julgo, só com duas visões do filme – essas
personagens nos foram mostradas. Nunca mais as voltaremos a ver. Pode ser que sejam avó e
neta, pode ser que sejam, como todos são, vizinhas nesse esventrado Bairro das Fontainhas.
A velha – já o disse – não tem reacções. A criança está manifestamente divertida com a sua
brincadeira. Mas, a partir de certa altura, um estranhíssimo mal-estar começa a dominar a
situação e há um crescente peso letal no que vemos e nunca varia.
Abruptamente (quase todos os cortes deste filme são abruptos) Pedro Costa corta e vemos,
numa bandeja, rodeada por uma moedas, uma folha da funerária da Venda Nova com alguns
dizeres, como que uma factura. Esse, pelo contrário, é um plano brevíssimo, que nem nos
dá tempo de ler o que está na folha. Mas, sem nenhuma pista para isso, nem nenhuma
indicação em que me apoie, dei por mim a “inventar” uma história, que não está no filme.
Alguém morreu naquela casa, talvez o marido da velha, talvez o avô da criança. Atrás da pri-
meira, pode bem estar um cadáver ou um caixão, que a criança vê mas nós não vemos. A
concentração da velha vem da sua súbita solidão, apenas com aquela criança, de quem, a partir
desse momento, é a única protecção e a única guardiã (um pouco como a avó de Vanda e de Zita,
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essa avó por alma de quem Zita jura e de quem as duas tanto se lembram). A brincadeira da
criança é a sua resposta à morte, o seu modo de chamar a avó à vida. O som da bicicleta é um
dobre de finados e um toque de alvorada. Um modo de esconjurar fantasmas numa casa
povoada por eles. Pouco depois (creio que é o terceiro plano depois desse) Pango dirá (após
um dos mais sublimes grandes planos de Vanda) de “morar em casas fantasmas que outras
pessoas deixaram. Estive em casas que nem uma bruxa queria lá morar. Mas também estive
em casas que valiam a pena [...]. Foram casas que as pessoas abandonaram, mas se estivesse
lá uma pessoa de bem eles até nem mandavam abaixo. E olha, foi assim... casa atrás de casa”.
E, depois de um longo silêncio, em que, no escuro da imagem, os contornos se lhe tornam
mais nítidos, o “Nhurro” (como Vanda também lhe chama), de quem vimos, muito antes, a
única lágrima do filme, acrescenta: “Já paguei mais pelas coisas que não fiz do que pelas coi-
sas que fiz.” Segue-se o plano do gato, o plano mais desmedidamente surreal de um filme que
também habita nessa dimensão, ou sobretudo habita nessa dimensão. No sentido em que
nada é o que parece e nada aparece que seja só o que é.
Lembrei-me então (volto ao plano da bicicleta) da Casa de Lava, segunda longa-metragem de
Pedro Costa, quase toda passada, se bem se lembram, em Cabo Verde e entre cabo-verdianos.
Este filme também é o exterior do interior que Casa de Lava é, ou o interior do exterior que
Casa de Lava é. Pessoalmente, para alguém mais conhecedor da cultura cabo-verdiana, o
balançar ritmado da miúda poderá ser, mais expressamente, o que obscuramente entrevi nele.
Ou não. As visões mudam, conforme se está dentro ou se está fora, e No Quarto da Vanda
(a não ser no quarto de Vanda, propriamente dito, no quarto das meninas e nalguns declarados
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exteriores) nunca sabemos ao certo se é dentro ou fora que estamos. Podem ser casas, ruínas
de casas, caminhos entre casas, relento ou abrigo. Fora ou dentro, quase nunca se está certo,
quase nunca é certo. O espaço, bem como o tempo, perderam fronteiras no bairro e para as
pessoas dele. Antigamente, sabemo-lo por Vanda e por Zita, não era assim nem foi assim.
Nem ninguém sabia que Geny vendia droga ou onde a vendia. Mas agora lembro-me que
também me lembrei de Geny ao ver a velha cabo-verdiana, essa Geny, máscara impressio-
nantíssima, que só vemos no princípio do filme e bem pode ser – ou não ser – a que morrera
na ambulância, quando o filho lhe negou o dinheiro para a droga. A Geny que um dia estava
e no outro dia já não estava. Como quase tudo, ou quase todos – ali.
E lembrei-me também – estou ainda no plano da bicicleta – de um texto admirável que
Pedro Costa escreveu, há muitos anos, para um catálogo da Gulbenkian-Cinemateca, sobre
o último plano da sequência em que, em Land of the Pharaohs (1955) de Howard Hawks, a
rainha Nailla morre para salvar do veneno de uma cobra o seu filho, o príncipe Zanin. Pedro
Costa escreveu então: “Tudo o que se passa neste extraordinário plano não pode ser dito. Ele
não é a imagem do filme A Terra dos Faraós, mas todo o filme está contido nele. A pressão do
Tempo, a Morte no plano, no filme, explode-nos na cara [...]. Não há remédio; não podemos
deixar de ver. Deve haver um limite para além do qual a imagem estática, frontal, ascética, se
torna insuportável e esse traço invisível, essa ferida, jamais poderemos deixar de a ver.”
Mutatis mutandis, estas palavras são premonitórias para o plano da miudinha com a bicicleta
em No Quarto da Vanda. Esse plano é por igual insuportável, num filme que também é
um “longo pesadelo”, como Land of the Pharaohs foi para Pedro Costa, num filme que
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também é “um filme negro, sufocante e perdido desde o princípio. Só lá poderemos entrar
perdidos também”.
Porque não é só esse plano, a que por obscuras razões fiquei tão preso, que é insuportável.
Todo o filme o é, desde que as sombras de Vanda e Zita formam o ecrã logo no primeiro
plano do filme, quando se ouvem as primeiras tosses e se vêem as primeiras moscas, e se
atinge o primeiro clímax, “que nome tão feio”. E houve a chavala que queria vender o filho
por um conto e quinhentos, certinho.
Quando digo insuportável, não o digo no sentido que dará consolo aos aflitos, às almas sen-
síveis que não são capazes de matar uma galinha, mas são capazes de comer uma galinha, a
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que se refere Sophia num poema. Digo-o no sentido em que é um filme que está para além do
limite do que se pode ver, mas que jamais podemos deixar de ver. E “a imagem só tem uma
salvação: tornar-se criadora ou destruidora”. Quando a imagem se arremessa como se arremessa
neste filme, falar de criação ou destruição deixou de ser dilemático ou muito menos antinómico.
Porque é que – por exemplo – os planos regressam tantas vezes, muito depois de come-
çados? Penso no plano da primeira transacção (ou devia chamar-lhe transfusão?) entre o
negro e o Russo, que começa, quase logo no início do filme, em torno de falsos pretextos de
ajudas domésticas (ninguém fala com ninguém, ninguém ouve ninguém, ambos sabem ao
que vieram e ao que foram, “Deus Nosso Senhor nos ajude”) e termina, lá bastante para o
meio, quando o Russo já se “orientou”, que nome tão bonito. E o Russo sai, sem saber já de
que terra é, desorientado nessa desorientação.
Porque é que, por exemplo, entramos e saímos tantas vezes do quarto de Vanda (estamos
lá muito tempo, mas não todo o tempo) nesse quarto onde ela ou está só, ou com a irmã, ou
com o desamparado rapaz das flores, ou com Pango? Há um limite? Há, mas não sabemos
qual é e nunca me pareceu que fosse quando ele se atinge que Pedro Costa sai de lá para
percorrer outros espaços e outros tempos do bairro. A Pango, Vanda dirá que ele devia ter
batido à porta, que ela podia estar “descomposta”. Alguma vez a vemos ou vimos “composta”,
qualquer que seja o sentido que a palavra possa ter?
Já o disse num outro texto. Não fiquei a amar Vanda. Com duas visões, o meu amor vai
mais para Zita, mulher às vezes quase botticelliana, sempre de negro vestida. Ou para o
Muletas, tão triste, tão triste, com aquela história da D. Rosa do 7° andar, que lhe espetou
com dois iogurtes, em vez do dinheiro que ele queria. “Foda-se. Dois iogurtes. Fiquei fodido
[...]. Desço por aí abaixo e só pedia era a Deus que os iogurtes fossem de morango.” Já antes
tínhamos ouvido histórias horríveis, como a da menina “assim bonitinha, que queria vender
o filho” ou como a história dos caldos Knorr, ou como a da Nossa Senhora de Fátima. Mas
nenhuma mais bonita (bonita e horrível, não são adjectivos que aqui se oponham) como essa
dos iogurtes, que depois vai desembocar no melro dourado. Até à história de Pango, o mais
doce de todos, o que afinal bateu mesmo à porta, com “a pouca educação que o meu pai me
deu”. E aquele que era “teimoso mas asseadinho?”, esse Russo, sempre sem eira nem beira,
perdido por lá, como que vindo de um filme de Nicholas Ray? Vanda, vai-me demorar mais
tempo a amar, mas como dizer não a quem a todos diz sim, àquela que tem os mais belos
planos do filme e, sempre ou quase sempre, a lista das páginas amarelas ao colo, tão incan-
descente quanto a da luz das “chinesas” no escuro, quanto a da prata que há por todas as
gavetas, pontuação luminosíssima do filme.
E aqui obrigo-me a repetir-me. É nessa lista – único livro do filme – que Vanda guarda
a droga. É uma lista sórdida, com uma presença obscena, na sua imensa fealdade. Mas é
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simultaneamente (e não me perguntem porquê) o livro de horas, o texto sagrado, Antigo e


Novo Testamento de uma revelação por haver. É nela que os extremos se tocam, ou são tangíveis
os extremos, se, como os limites, os houver.
Porque Vanda, que quase nunca sai do quarto (mas sai para aquele plano com os arbustos,
o que mais ecoa O Sangue de outrora), que quase nunca sai da cama, não é uma personagem
extrema.
Prestem toda a atenção ao diálogo dela com Pango. Para o doce Pango, aquela vida “é a
vida que a gente é obrigada a ter. Parece que é já um destino, é um traço...”. Mas Vanda
pergunta-lhe “Achas?”, e repete o que começara por afirmar: “É a vida que a gente quer, acho
eu.” No plano seguinte, o mandarim está nas mãos do Russo. E Vanda já saiu, porque depois
de ouvir a confissão de Pango, que saiu de casa para não fazer mais mal à mãe, “não aguentou
ouvir mais nada”. Nesse momento, e apenas nesse momento, foi ela quem marcou o limite,
o extremo. E se nos cemitérios ecológicos se proíbem flores que não sejam artificiais (e o
plano do cemitério de Carnide é o único plano não filmado nas Fontainhas), no túmulo que
o quarto de Vanda também é ficam as flores que os cemitérios não recebem, as flores que se
levam aos vivos e se levam dos mortos. E essas flores fundem-se com as páginas amarelas (ou
com a outra lista, azul, e que jamais é aberta) na mesma liturgia fantomática e sensual.
Perdi-me no tempo, como o filme também se perde, ao vagar da sua alucinante montagem.
Mas não me queria perder no espaço e prometi que falaria dos interiores e exteriores, do dentro
e do fora.
Reparem naqueles planos da venda das couves. Quem é que está dentro, quem é que está
fora? “Dona, quer alface ou couve?” Estamos na casa, ou fora da casa, como em tantas outras
situações? Nunca se sabe bem. Porque todas as casas tombam e já são ou resto delas ou não
elas, porque as ruas do bairro casas são também, porque as pessoas já não se abrigam e num
canto qualquer se injectam ou se procuram as veias do pescoço, como quando nenhuma
outra veia existe já furável, nesse plano que tem a sacralidade de um ecce homo. Há casas que
se tapam com tabiques de várias cores, outras que são comidas por uma escavadora amarela, que
parece um bicho pré-histórico e, quando acaba, fica “de olho vidrado” a olhar o que já consumiu.
Casas há que se fecham todas para o ritual da droga, mas lá dentro bruxuleiam as luzes mais
exteriores. E quem se abriga sai do abrigo como nele entrou, enquanto a própria ideia do
“dentro” deixa de fazer sentido, a não ser, sempre, sempre, no quarto de Vanda, ilha cercada
de fora por todos os lados, esburacada pelas “bombas”.
Do exterior, só temos a certeza no plano final, em que um resto de casa parece um capitel
perdido de coluna grega, ou num plano – de todos o mais inadjectivável – em que, escurecida
toda a imagem, um vulto ascende ao alto de um montículo, como se um plano de Murnau
viesse anoutar (isto diz-se?) o precedente grande plano “esfumado” de Vanda e o plano
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seguinte, em que lhe começamos por ver a orelha e em que o rosto dela tem o rigor dos
Cristos de Mantegna ou a dissolução dos Cristos de Holbein.
Mas é dentro ou fora que está o n.° 181, do espaço junto ao qual se compram colheres de
prata por 150 escudos? Mas foi dentro ou fora que Vanda e Zita tiveram uma “infância fixe”?
Mas é dentro ou fora que há aquele plano das florzinhas amarelas e do jornal velho, perdido
de azul? Mas é dentro ou fora que os espaços se marcam com cruzes amarelas, como as casas
dos pestíferos, noutras idades médias, ou como as casas dos judeus, noutras idades novas?
Qual é o espaço das lontras no ecrã da televisão ou qual é o espaço da mãe, no outro canto do
plano?
Volto ao texto antigo de Pedro Costa: “O Tempo e o Espaço, tão saturados, tão cheios de
vazio e de tudo, entram em guerra.” E a salvação ou perdição da imagem visual avolumam-se a
uma dimensão ainda mais insuportável na imagem sonora e no ruído mais cavo da escavadora
final. Até o ecrã ficar todo negro e se ouvir, como do além, a música de György Kurtág.
Do Quarto da Vanda não se sai mais. Como já disse: o século XXI abriu com No Quarto
da Vanda. “Não há remédio: não podemos deixar de ver.” “Jamais poderemos deixar de ver.”
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A ALEGRIA TERMINAL
UMA ESTRANHA PROJECÇÃO DE NO QUARTO DA VANDA
Paolo Spaziani

Porém se é força que a vida


Fique igualmente arriscada:
Antes que de desprezada
Quero morrer de esquecida.
Sóror Violante do Céu, Décimas

“De quoi parle ton film, Pedro?” E assim, vagamente atordoado com o vinho das escarpas
circunvizinhas, estou bem ciente de lhe entregar o gag na chamada bandeja de prata. Pedro
Costa vira-se, subitamente afectado por uma seriedade keatoniana, com uma dinâmica facial
que finge uma outra muito oficial e, voltando-se para Lounas, o também atordoado redactor
dos Cahiers: “Thierry, de quoi parle Dans la chambre de Vanda?” Acorda, finge uma reflexão
a uma resposta antes da resposta. Clareia a garganta. Provavelmente, rimos.
Só um pequeno laivo de veneração quando aludo a O Marinheiro.
Legitimamente, parece-lhe que uma prova da não excelsa qualidade dos diários italianos
é o uso excessivo do dilema dark lady.

Pedro Costa roda sozinho, filma sozinho com uma câmara digital de valor irrisório o
Bairro das Fontainhas, espécie de subúrbio numa encosta de Lisboa. Os cabo-verdianos que
lá vivem, no meio dos escombros e do ruído das máquinas que irão esventrá-lo no espaço de
um ano, são geralmente dealers e consumidores. De pó. De uma excêntrica vida estética.
Não há qualquer miserabilismo, qualquer jornalismo do homem que transmita a tragédia
em directo. Cinema que não preenche a ausência de troupe com as variações cromáticas e
perspectivas que a electrónica permite, mas que, em vez disso, se declara fotograficamente
através das descolorações, dos empastamentos acêntricos e das explosões de réstias dos sóis
fingidos que entram pelas janelas de Vanda, de Nhurro, dos outros.
Vê-se bem que Pedro Costa foi às Fontainhas filmar o Nada. Filme e não documentário.
Las Hurdes (1933) era um filme ou um documentário? Todavia, em Buñuel, havia ainda o
álibi naturalista de mostrar, se não a denúncia, pelo menos o lugar último do humano, em im-
pulsos também últimos: a violência que se segue ao esquecimento. No entanto, Vanda ou os
habitantes das Fontainhas nada têm a ver com os olvidados.
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O que importa não é mostrar alguém que a sociedade teria esquecido. Uma opção precisa:
esquecemo-nos de nós para sermos esquecidos. Não há qualquer violência por parte de quem
filma, não há qualquer violência nessas sombras fantásticas que vagueiam por interiores que
são naturezas mortas. Haveria ainda um desejo residual, o desejo de se distinguir, esse sim,
miserável. Qualquer ressentimento poderia trair, iria perturbar essa indiferença perfeita de
rituais que, lentamente, vai irrompendo em deflagração líquida. Embriaguez do espectador,
alegria estranha. Exala um ar de emancipação intelectual.
Dostoiévski via uma forma de irreflexão aristocrática nos jogos irracionais dos forçados
de Recordações da Casa dos Mortos. Pedro Costa evidencia algo de semelhante; no limiar da
morte, em espaços fechados, algo se dissolve. Completa-se, torna-se calmamente absoluto.
A belíssima parede amarela que se gostaria de olhar indefinidamente sabendo que nada
acontecerá a não ser essa brandura atmosférica, em que a tosse de Vanda, o seu perfil sorridente
e pouco perceptível, sensual, se inserem.
Vem-nos à memória o pequeno troço de parede amarela que o Bergotte proustiano
contemplava até que a morte chegasse, na Vista de Deft de Vermeer. Sim, Costa é mais prous-
tiano do que Ruiz, mas igualmente perdido na contemplação. A intermitência do coração é
um momento aberrante num oceano de instantes presentes e infinitos. Costa também o sabe.
Mas pode acontecer depois de tudo ter cumprido a sua função.

A garrafa de plástico no centro de uma mesa redonda, arranhada na penumbra, aten-


tamente inconsciente de o estar a ser, para que as raras luminescências do beco, oportu-
namente invisível, façam vibrar deliciosamente a água, passando de través por uma enorme
e inútil janela aberta.
Uma bola de futebol vazia que é bibelô de um quarto a esboroar-se durante uma sessão
de chuto: uma personagem olha fixamente para um cartaz na parede, enquanto acusa, relaxada,
os outros de serem apenas preguiçosos, a outra promete ir, a agulha na veia brincando com
o vaivém do sangue e das drogas no êmbolo.
Tudo é.
Pedro Costa filma uma condição interior, um tónus muscular que não é apenas dor ou
doença, mas talvez uma narcose no fim das lutas do corpo. Emerge assim um pensamento
que é a ausência total de pensamentos e permite a emersão dos objectos que por sua vez não
falam, não revelam nada a não ser a sua vontade de não servirem para mais nada, a sua vontade
de serem apenas enquadramento, despreocupado materialismo cinematográfico. A sombra
de Vanda no chão do bar onde pede um Martini é a própria Vanda, a Vanda real daquele
instante em que tudo é Vanda, desde que ela própria abdicou da visibilidade imediata para
passar a ser uma certa presença, como que um langor.
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A ALEGRIA TERMINAL - 189

Estar out of order. Tudo está fora de serviço, fora de uso: vidas, instantes, casas, paredes,
isqueiros, camas, pulmões, diálogos. Tudo é sem futuro e sem passado.
Mas também a droga é apenas um álibi: parece resistir a essa clivagem, parece ser o seu
agente, depois é aquilo que é: um brinquedo-gesto, como a tosse de Vanda, a televisão que
se transforma em candeeiro intermitente, o veleiro que uma familiar de Vanda recusa com
meticulosa precisão que seja colocado ali, num ponto qualquer do espaço exposto tenebro-
samente ao não-sei-quê inundado de luzes oblíquas.
Vanda faz aquilo que um filósofo em acção poderia ter o prazer de fazer, se tivesse coragem:
fazer voltar a linguagem à estaca zero, reduzi-la a simulacro e a pretexto, organística, grito,
percussão para acompanhar o ritmo do rebuliço do bairro (com os muros também na estaca
zero); desactivar nos objectos essa valência de convertibilidade do signo que os faz serem
armas da linguagem-conspiração da lepra societária. Levar ao grau zero as ilusões que seduzem,
arrastá-las em remoinho para um lugar onde abdiquem da sua função. Fazer da própria
experiência um imenso material de diversão.
É um luxo que não custa a alienação e a morte mas que só a alienação e a morte tornam
possível.
Vanda e a sua cúmplice gesticulam na cama, Vanda folheia a lista telefónica, as páginas
amarelas, para ver se descobre restos de heroína, fuma através do papel de alumínio, gesticulam,
as mãos chegam quase até à estação onde Costa se posiciona, rompendo a imobilidade de
pintura nigra na penumbra, Vanda tosse, fuma, histórias absurdas de detenções, Clímax é o
nome de um duro, continuam a fumar.
Mais longe, um rádio em ondas curtas emite em estilhas de som (em perfeita sintonia
com a ondulação dos corpos, das trevas, das mantas, dos cliques às seringas de plástico) o
“Glória” da Missa em Si menor, parte nona: o coro severo e pungente de flautas do “Qui tollis
peccata mundi” que, aqui, nos saltos espaciais de som, nos assobios de Vanda adquire uma
doçura rara. Não há melodrama, como no coral “Wir setzen uns mit Tränen nieder” que
Pasolini introduzia num passeio de Accattone (1961).
Não há o mínimo melodrama e é também difícil descrevê-lo, tudo acontece como deve
acontecer. Não há qualquer lirismo a elevar a estatura dos actantes, há simplesmente o estado
de ânimo de Vanda e da amiga, que as converte em ouvintes ideais desse coro de Bach que
se vai insinuando até elas.
Os prazeres de Vanda, exíguos e infinitesimais, calculados e casuais (o balde dos isqueiros
sem gás) têm o tom do arremesso de faca sobre a borda da cama de Artaud, em Rodez: uma
paciência de corrosão que completa a natureza e, por fim, se metamorfoseia em mapa. Uma
despreocupação radical, uma ausência de projecto que devolve, dialecticamente, a vida a uma
mera imanência estética.
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Em confronto com esses prazeres, os prazeres dos privilegiados, os seus luxos que são teia
de uma complexa textura de mediações sociais extenuantes, surgem verdadeiramente como
aquilo que são: a válvula de escape do escravo.
E quem nas sociedades de capitalismo avançado pode dizer que o não é?
Visto que cada imagem, cada instante deve garantir uma identidade social global, que
não pode nunca vacilar.
Costa raramente retoma o exterior, o trabalho incessante de demolição (que nunca deixa
de ser auscultado, como se fosse o próprio pulsar do corpo daqueles adormecidos): a cara de
Marley, estampada nas costas de alguém que observa, enruga-se, parece sorrir, entra em
colisão estética com o rodopio da pá, com o fumo que dela sai, com o admirável céu cor de
cobalto pálido que pode surgir apenas sobre o fim das Fontainhas e dos seus habitantes.
É um salto filosófico de uma colectividade inteira, unida por um estranho e terno senti-
mento solidário. Basta-me saber que estás aí para saber que não estou sozinho. Um afecto
sem qualquer sentimentalismo que já De Quincey procurava, nas névoas londrinas de há mais
de cem anos, para abrir caminho rumo àquilo a que chamava o noroeste da verdadeira vida.
A sua procura da menina loira.
São os marginalizados das Fontainhas que, sem a mínima intenção, denunciam a con-
dição desesperada dos privilegiados, a sua luta para viverem, justificada ideologicamente
como eterna. Vanda relembra a insensatez fundamental da vida, perante a qual todas as
histórias são comédia.
Só a arte e a morte, um erotismo imanente e sem saída, parecem indicá-lo.
É este o humorismo de Costa, a estranha e emancipadora alegria que dele provém.
Só a nudez do pobre reconcilia a razão e a natureza, “partindo-as como a um mealheiro”,
como teria dito Jean-Paul Sartre falando do anti-dicotómico Rimbaud.
Só a impossibilidade de Deus, entendido como sentido oculto à vida, perante uma total
impossibilidade de o alcançar, reconcilia o homem como instante, como Deus extra machinam,
com o mistério absurdo e patético do deslizar da vida e, portanto, com Deus como mera
ausência de significação.
São momentos de radical não-violência, no fim de uma enorme violência social, sofrida.
Mas que o filme não poderia evocar senão à custa da retórica proibida, da comercialização
da dor, e de facto evita cuidadosamente tal evocação.
Destruiria essa presença-ausência já alcançada. Como se indicasse e contrario uma possível
agonia alegre do capitalismo dos sinais, um êxito caótico.
Para explorar, em amplitude, a sua dimensão, Pedro Costa teve de se habituar (visitando
diariamente o bairro, dezenas de horas de fita magnética) a não filmar nada que pudesse ter
pontos culminantes, nada que pudesse comover o voyeur sentimental, mas apenas fragmentos
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192 - PAOLO SPAZIANI

do acaso daquele quotidiano abstracto, exacto e suspenso, em suma, sem qualquer “conteúdo”
(o genial furto de uma cancela por parte de duas figuras sob um sol lácteo e transcolor) que
retira admiravelmente alma ao bairro, que o congela num não-lugar.
Não filmou eventos significativos mas ausências povoadas, como a barra de luz rectilínea
que desliza na vertical sobre um sofá usado e distante onde nunca ninguém se sentará, por
respeito.
No fim do uso, no desuso, a conclusão de um destino de unicidade.
Imagens saturadas de escuridão onde até um rosto possa emancipar-se de si mesmo: por
um instante, o rosto de Vanda, de perfil sobre a almofada é, perceptivamente, as suas costas
arqueadas de mulher.
Um caos-céu vazio de uma consciência recolhida é o único tesouro gratuito e invisível, tal
como qualquer evidência é a única presa dos grandes cineastas.
Um olhar mais próximo, apaixonado, impassível.
Na arena estival onde vejo o filme fluir levanta-se um vento fortíssimo. A primeira coisa
a cair é o operador das legendas, com um ruído abafado. O pessoal corre desajeitadamente.
Relâmpagos. Vanda conversa na beira da cama com um carregador de anémonas.
Vanda move-se languidamente, flecte o rosto. Feições muito sensuais para aquele relaxa-
mento total da consciência. Uma sombra agita-se vagamente com ramificações para os canos
de esgoto, sobre um fundo de nuvens que passam.
O som do bairro é abafado pelo nosso temporal, deixa de se ouvir a sua musicalidade
percussiva de variação unificadora desses instantes desligados. Cessam os planos que não
indicam nem um verdadeiro fluir nem uma morte trabalhadora, mas, isso sim, o naufrágio
absoluto numa espécie de eternidade. Chove sem parar, as faixas de projecção encontram os
bissectores cortantes de um dilúvio que nos empurra para o espaço exíguo, sob alguns
centímetros de cimalha, do edifício ao lado, que nos obriga a um olhar semi-lacrimoso e oblíquo.
A imagem permanece: Vanda e a amiga, como antes do genérico de abertura, acocoradas
na cama, enquanto mais um papel de alumínio vai escurecendo, como duas horas antes.
Temporal. Lonas sobre os lugares sentados. Acendem-se as luzes, enquanto cerca de uma
dezena de nós continua a olhar, acrobaticamente. Era um prazer unir aquelas luzes frias e
descascadas sobre estes clarões. Indistinguíveis, após um certo limite.
Uma torrente de água interrompe a projecção e mostra ser a sua exegese síncrona mais
pontual e verosímil.
A granulação imperfeita da câmara digital, visionariamente deslustrada pela transposição
para outro suporte, forma cunículos que rasgam o compacto e manchas que alastram: uma
espécie de submersão homeostática de uma coisa noutra coisa, o domínio de uma sobre a
outra em conflito fluido.
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A ALEGRIA TERMINAL - 193

Vanda é a veladora desse estado em que o sono, a vigília, acabam por ser apenas abstracções.
A auréola converte-se em norma paradoxal, o limite, se e quando existe, é de natureza exclusi-
vamente paródica.
Não há nada a esperar, esta é a verdade.
(Volta-se a pensar apenas em algumas observações de Antonioni sobre o futuro da fita
magnética, em alguns dos seus colapsos em muros britânicos, para alcançar a luz.)
Enquanto a alegria, a revolução, não desacreditam as extenuantes permutas sociais, a
morte consegue fazê-lo, uma morte tão prolongada e ininterrupta que aniquila o próprio
conceito de morte.
Como diz um dos protagonistas do filme: “Nós os beras nunca morremos, quem morre
são os inocentes.”
Os habitantes das Fontainhas são maus porque matam a vida. Para se defenderem da
morte que está contida nessa vida. E assim chegam a essa sempiternidade, que era um dos
sonhos de Artaud. Uma dupla inquietante mas um pesadelo tranquilo, de olhos abertos, no
escuro. Lá fora, talvez, fogueiras, para que os olhos possam, tenuemente, ser vistos, fogueiras
deixadas acesas entre os detritos nos becos, à guisa de lampiões, para iluminarem o caminho
a quem nunca passará.
A morte é apenas uma mercadoria, um fingimento ideológico. Os maus sabem brincar
com ela, sem a levarem demasiado a sério.
Corremos sob bátegas de chuva.
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AMOUR CRÉPUSCULE
PENSAMENTOS DESORDENADOS SOBRE ALGUNS FILMES DE PEDRO COSTA
John Gianvito

Como falar sobre os filmes de Pedro Costa, quando o seu efeito primeiro em mim é o de me
deixar sem palavras.
Até agora vi quatro filmes de Pedro Costa, O Sangue, No Quarto da Vanda, Onde Jaz o Teu
Sorriso? e Juventude em Marcha. Vi cada filme uma única vez. Não sou, portanto, nem um
especialista nem um erudito na obra de Costa – mas sou decididamente um apreciador.
A relevância do trabalho de Pedro Costa é inegável. Logo nos primeiros minutos de
qualquer dos quatro filmes, e apesar da sua obscuridade (literal e metafórica), reconhecemos
claramente a passada de um artista. “Aqueles que, vivendo com os pés assentes na terra,
afectam um ar sonhador não servem para a poesia. A poesia caminha com um pé na vida e
outro na morte. É por isso que digo que coxeia, e é pelo seu coxear que a reconheço.” (Jean
Cocteau)
Ao longo das nossas vidas, temos uma família onde nascemos e outra que escolhemos.
Os laços são mantidos em cada um dos filmes de Pedro Costa, alguns através do sangue, outros
da amizade, e aqueles que os traem são excluídos. Face a toda a adversidade, as comunidades
conservam-se, por mais frágeis que sejam. A morte e a destruição não parecem constituir
obstáculo; a sua existência mal é reconhecida, apesar de serem omnipresentes. Resiste-se-lhes.
As famílias, como a própria luz nas telas de Pedro Costa, são estilhaçadas e espalhadas, mas
por todo o lado fios dourados e invisíveis fazem a ligação. “O cabo submarino do amor
levava-lhes as suas correntes aos nervos” (Edvard Munch). Em O Sangue, Clara tem uma liga-
ção tão forte com o jovem Nino como com o irmão dele, Vicente, e o laço entre estes dois
últimos é indissolúvel. Nos filmes das Fontainhas, Ventura é ao mesmo tempo pai, tio e
confidente de Vanda; a sua família é alargada e em certa medida flutuante. No caso do retrato
Straub/ Huillet, apesar dos disparos ocasionais e dos apartes cortantes (e muitas vezes
cómicos), o que irradia é uma imagem límpida e profundamente comovente de um amor
feroz e dedicado. E a afinidade evidente de Costa prolonga o sentimento familiar.
O meu amigo Amos Vogel escreveu uma vez que “a essência do cinema não é a luz, mas
sim um pacto secreto entre a luz e a escuridão”. É difícil pensar num objecto a que estas
palavras se apliquem com mais propriedade do que a mise en scène e a planificação de Pedro
Costa. Dificilmente encontraremos um jogo de luz e sombra mais inebriante. Aqui está um
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196 - JOHN GIANVITO

realizador que não tem verdadeiramente medo do escuro. E não há apenas o escuro, mas
vários graus de escuridão, cambiantes de sombra, penumbra. Em certos planos de um filme
de Pedro Costa, o próprio ar parece palpável, tem volume e peso. Dada a intensidade da ex-
periência (e de tudo o resto que chega até mim), fico contente por estar sentado. (E isto é tão
verdade para a fotografia sumptuosa, carregada, de um preto e branco fantasmagórico
d’O Sangue como para a sala de montagem cavernosa em Onde Jaz o Teu Sorriso?.)
Vanda, que quase nada tem de seu, dá a Pedro, vendedor de flores, o remédio para a asma
de que ele precisa; explicando-lhe a dosagem e prometendo continuar a ajudá-lo desde que
ele também faça por si. Pedro, que não consegue vender as suas flores a Vanda, oferece-lhas
de qualquer modo. Para Nhurro, amigo de infância de Vanda, a porta de casa dela está in-
condicionalmente “aberta”, mesmo se a culpa ou orgulho acabam por o impedir de ficar.
Numa reportagem recente, o correspondente da ABC John Stossel relatou aquilo que muita
gente já sabe há muito tempo, que os pobres são mais caridosos do que os ricos (já para não
falar da classe média): “Embora os ricos dêem mais em total de dólares, as pessoas com ren-
dimentos mais baixos dão, em relação àquilo que ganham, cerca de 30% mais.” É óbvio –
aqueles que conhecem a realidade sabem a diferença que cada gesto faz.
Qualquer coisa que tem a ver com a resistência e o exílio. Dignidade perante a agressão
do mundo.
Menti quando disse que tinha visto os filmes acima referidos só uma vez. Na verdade,
tentei rever Juventude em Marcha em DVD, mas não consegui. Como o título em inglês
(Colossal Youth) indica, o filme precisa de uma escala maior. Curiosamente, tendo em conta
que são em grande parte filmados em formato digital, os filmes têm um poder menos visceral
no pequeno ecrã. É à grandeza que eles convidam, uma grandeza à altura das emoções. A
questão de terem sido filmados em cassete ou película acaba por ter tanta (ou tão pouca)
relevância como a de saber o que é “real” ou “encenado” nos filmes. Em Juventude em Marcha
e No Quarto da Vanda, tanto os exteriores de Lisboa como o bairro podem dar a sensação de
terem sido construídos em estúdio, as banalidades dão lugar a devaneios poéticos, para depois
se desviarem para um silêncio fecundo. Não se trata de oscilar entre a ficção e o documentário,
duas palavras batidas que não trazem nada a estes filmes. Pedro Costa conseguiu conceber
outra coisa. Uma forma que abarca e ao mesmo tempo transcende as distinções fáceis entre
estas duas escolas, distinções a que nos agarrámos durante muito tempo.
Não é que eu não tenha feito as perguntas. Perante estes filmes, quando os estou a ver,
há uma centena de perguntas que surgem, sobre como é que isto foi feito, sobre aquilo que
foi ensaiado, aquilo que foi descoberto, como foi possível construir todo este edifício. E
apesar de ter lido uma ou outra declaração de Pedro Costa – não é surpresa que o tempo e a
paixão, o trabalho e a camaradagem sejam nutrientes essenciais – continuo às escuras em
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AMOUR CREPUSCULE - 197

relação ao processo que possibilitou estas visões, tal como em relação a decidir que cenas são
antes ou depois, ou que personagens poderão estar vivas ou mortas. Mas eu dou-me por
satisfeito. Como já disse, nem sou especialista na obra de Costa nem a vou dissecar e, além
disso, a arte tem de conter sempre qualquer coisa que resista à compreensão. Disso tenho a
certeza.
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CABO-VERDIANOS DE LISBOA:
QUE FUTURO?
Luce Vigo

Numa intersecção de ruelas mergulhadas no nevoeiro nocturno do bairro cabo-verdiano de


Lisboa, ao que o cineasta português Pedro Costa regressa pela terceira vez com a sua pequena
câmara digital – mas são estes os mesmos lugares onde filmou Ossos e depois No Quarto da
Vanda? –, uma mulher atira ruidosamente objectos pela janela de uma casa recuada. O plano
seguinte enquadra o seu rosto de perto: “Eu era uma menina…”, recorda-se ela, com uma faca
vingadora na mão. Tal como uma personagem de tragédia, exprime-se, com os olhos fixos
num ponto distante, num curto monólogo que a reconduz a lembranças de juventude,
quando era alvo da troça dos rapazes da sua idade, apesar de nadar mais depressa do que
eles. Ergue a cabeça, baixa-a e retira-se às arrecuas, só a lâmina da faca brilha no enquadra-
mento da janela antes de desaparecer. Este prelúdio vai esclarecer as deambulações, físicas e
mentais, de um grande homem negro que chora a sua solidão. Assim começa Juventude em
Marcha, nova epopeia de exilados arrancados ao seu país, alguns dos quais não nos são
desconhecidos. Envelheceram, exprimem-se com menos fluidez – terá Pedro Costa regressado
ao que poderíamos chamar uma ficção, com texto a decorar palavra por palavra, gesto por
gesto, e ensaios, sem que o lado documental dos filmes precedentes perca a sua autenticidade?
Não é tanto a escrita de Juventude em Marcha que cria uma ruptura na história das personagens,
mas o tempo que passou, fazendo deles outros sem deixarem de permanecer os mesmos, tal
como os conhecemos e amámos, graças à abordagem de Pedro Costa. Assim avança ele no
seu trabalho cinematográfico sem nada abandonar das suas primeiras escolhas, afirmadas
desde O Sangue, sombria história familiar descobri no festival de Bastia em 1990.
Um homem alto, inquieto, aparece à esquerda do ecrã. Chama-se Ventura, é interpretado
por Mário Ventura Medina. Precipita-se por uma ruela sombria para se deter diante de uma
janela. Não pára de repetir para o espectador, para si próprio ou para alguém próximo: “A tua
mãe deixou-me. Deu-me com uma faca. O sangue já secou. A mulher rebentou com tudo.
Partiu a cama, o guarda-fatos… Não ficou nada inteiro dentro de casa.” Assim vai Ventura, de
um quarto para outro, do velho bairro que se esvazia para os novos prédios de habitação
social, desumanizados, num incessante vaivém escandido pelo recitar, com algumas variantes,
de uma carta destinada à mulher volúvel, carta com que embala a dor do seu amor perdido.
Surge então uma vaga recordação que dá vontade de rever Casa de Lava, filmado em Cabo Verde,
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200 - LUCE VIGO

e onde ressoavam algumas destas palavras que Ventura salmodia. Os filmes de Pedro Costa
seriam talvez desesperantes se não existisse – desde o primeiro filme, O Sangue, tal como em
Ossos, filmado no regresso da rodagem em Cabo Verde de Casa de Lava, e como No Quarto
da Vanda – este trabalho de escrita rigoroso e sensível e a distância certa para filmar as
suas personagens documentais e ficcionais. Favorece assim a luz natural dos lugares que
deixam zonas de sombra, a importância conferida ao fora de campo, presente através de sons
de vozes misturadas, chilrear de pássaros, riso de crianças, barulho de passos, tantos sinais de
uma vida circundante que falta radicalmente no ambiente do novo apartamento atribuído a
Ventura. Mas se em Juventude em Marcha se sente profundamente esta perda dos laços sociais
e afectivos – que bulldozers, martelos pneumáticos e outros instrumentos destruíram junta-
mente com o bairro de lata – Pedro Costa, pela magia de uma expressão e de uma mise-en-scène
ligeiramente diferentes, exprime novos sentimentos, sobretudo no que diz respeito a Ventura,
um dos últimos a abandonar o Bairro das Fontainhas, com o seu companheiro de casa e de
escuta, o seu adversário nas cartas, Lento. Filma-o por vezes em contrapicado, coisa que nunca
fazia antes, sinal de respeito por este homem enigmático de quem se sente manifestamente
próximo.
Sobra a única habitante à espera de realojamento, Bete, que Ventura também considera
como sua filha. Visita-a regularmente, senta-se lá fora num sofá vermelho já gasto, estranha
mancha de cores num mundo de cinzento poeirento, partilha uma refeição ou recordações
quando a jovem está de humor sociável. Do mesmo modo vai a casa de Vanda, a Vanda que
Pedro Costa nos fez conhecer num primeiro papel, o de Clotilde, em Ossos, e depois no
papel de si própria em No Quarto da Vanda. Vive num destes prédios brancos quase cúbicos
que descobrimos em contrapicados esmagadores, novo modo de filmar de Pedro Costa –
normalmente faz planos frontais, a câmara fixa captando a imobilidade de uma personagem
perdida nos seus pensamentos ou à espera de alguém, da sua entrada no enquadramento.
Deixa assim ao espectador tempo para se imbuir dos lugares, da sua forma, do estarem
vazios ou atafulhados. Em casa de Vanda, uma grande cama ocupa o espaço como em No Quarto
da Vanda, mas já não a vemos drogar-se o dia todo. Confessa-se de bom grado ao seu “pai”
numa narrativa entrecortada de acessos de tosse que lhe sacodem o corpo, mais pesado.
Revive, com uma vitalidade tal que as palavras formam imagens, as agonias do parto, a in-
dispensável metadona, a importância da filha, que se revela fresca e viva. Ventura ouve,
quando não olha para a televisão que, embora invisível, tomou posse do espaço sonoro do
quarto. Assim vive ele, ignorando de quantos filhos é pai. Ficou com um apartamento grande
para os alojar a todos, como diz a um dos seus “filhos” em mau estado.
Quando se fala dos filmes de Pedro Costa, faz-se muitas vezes referência ao trabalho des-
pojado de Robert Bresson, de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. Certamente com razão.
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CABO-VERDIANOS DE LISBOA: QUE FUTURO? - 201

Não é por acaso que o cineasta realizou para a televisão Cinéma, de notre temps e, para o
cinema, Onde Jaz o Teu Sorriso?, retrato magnífico do casal a trabalhar, que se tornou também
obra de memória desde o desaparecimento recente de Danièle Huillet. Mas, pelo seu modo
de filmar as personagens e de reconstruir a sua realidade, imbui-nos do amor e do respeito
que nutre por eles, quer se trate de Straub ou de Ventura, dando tempo a que se instalem
tanto os seus silêncios como o irromper das suas palavras. Discreto e atento com Danièle
Huillet e Jean-Marie Straub, Costa faz com que Ventura o domine em toda a sua altura, como
se lhe desse finalmente a sua própria existência, cheia do seu passado doloroso: aquele dia
de 1972 em que o puseram num avião com outros imigrantes, ou o seu duro ofício de pedreiro
até ao dia em que caiu de um andaime e perdeu o trabalho. Ele recorda-se, e fala disso com
um compatriota que encontra no museu da Gulbenkian, à sombra de árvores que se mantêm
indiferentes às narrativas dos dois homens, o pedreiro e o antigo empregado de supermercado.
É uma parte das suas vidas anteriores que Pedro Costa lhes devolve graças à sua pequena
câmara, que impede que o passado, mas também o presente, se diluam no esquecimento,
dores e prazeres misturados.
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A SUSPENSÃO E A RESISTÊNCIA
António Guerreiro

Num pequeno texto de 1913, intitulado A Juventude cala, escreveu Walter Benjamin: “Só muito
poucos compreendem o sentido da palavra ‘juventude’, e só dela pode irradiar um espírito
novo, ou seja o espírito.” Benjamin era, na altura, um elemento destacado do movimento
dos estudantes. A essa mobilização no plano político correspondeu, no plano teórico e filo-
sófico, a tentativa de definir uma “metafísica da juventude”, a juventude como uma categoria
do espírito e não como uma representação sociológica e cultural.
É para este campo de significação – o da juventude como ideia e como figura política – que
se dirige decididamente o filme de Pedro Costa, Juventude em Marcha. Entendendo-o assim,
deixando que nele entre a força colossal de uma ideia, o título não se deixa cristalizar numa
palavra de ordem, nada tem de gratuito e não lhe falta a referência. Mas importa acrescentar:
essa “ideia” não é um pensamento sem forma, não é um objecto da especulação, é uma forma
cinematográfica com o mais vasto alcance. Uma ideia especificamente cinematográfica, como
dizia Deleuze a propósito do cinema de Straub/ Huillet.
Ventura é a figura dessa força imensa que Benjamin quis mobilizar contra o inferno do
presente – uma força que não está na experiência, nem na maturidade, nem na autoridade,
nem na razão. Está num olhar sobre o curso do tempo que o interrompe para fazer emergir
uma outra temporalidade que recompõe os detritos do presente. Ventura traz consigo um
poder: o de não estar possuído pelo presente e abrir abismos por onde passa e para onde
olha. Mas não é uma figura mítica, não emergiu do caos e do terror sem história. Pelo
contrário, ele é uma figura que restabelece um espaço político, um espaço criador de comu-
nidade. É ele que redistribui as palavras e o silêncio. É certo que o faz segundo as leis muito
antigas da escuta e do diálogo (com ele, o diálogo tende sempre para o silêncio), mas dificil-
mente encontramos na história do cinema uma personagem que traga consigo, de maneira
quase imanente, um poder de resistência. O que significa “de maneira quase imanente”?
Significa que ele não pertence a uma cena da representação, que se eximiu às manhas de
actor, que a sua verdade é a própria matéria de que é feito o filme. Um e outro coincidem,
estão numa relação de imanência. Estamos aqui perante a mais acabada ética da forma.
Por isso, Ventura não é o herói de uma narrativa. A narrativa consistiria em contar, em
encadear numa sequência lógica os nós de uma história. Ora, o que temos neste filme é
muito mais uma recitação, uma repetição expressiva de palavras e imagens, de elementos
que sobrevivem e polarizam novos significados. Também aqui, Ventura é a figura máxima do
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204 - A NTÓNIO G UERREIRO

recitante. A carta que ele recita ao companheiro para este decorar torna-se uma espécie de
ritornello que quebra a linearidade. Esta repetição suspende a narrativa e mostra claramente
que a este filme preside uma lógica e uma “ideia” que não são as da narrativa, mas as da
poesia. A tentação de ver em Ventura uma personagem épica deve ser contrariada pelo facto
de ele se subtrair ao poder narrativo, a uma acção, e ficar suspenso, exposto como um puro
meio sem fim. De resto, a carta que ele recita, dirigida à mulher que ficou em Cabo Verde, é, em
si, um poema que se vai construindo. Não se trata de algo que faça parte de um património
tradicional. Ventura pode ser visto aqui como um poeta, mas não como um aedo. O seu
mundo não é o do mito, mas o da história, não é o de uma palavra que vem do fundo dos
tempos, mas o da palavra actual. Ele não é apenas uma emanação do que existe, de uma
contingência histórica, social e política pesada e injusta. Isso seria colocar o filme do lado da
representação e da denúncia. Ora, Juventude em Marcha está para além disso: faz apelo a algo
que ainda não existe, a “um povo que falta”, diria Deleuze citando Klee. E é aí que reside a força
da sua afirmação política. Este filme, tão alheio a datas e acontecimentos da história, sabe
muito bem que há uma cumplicidade criminosa entre a narrativa convencional (por onde não
passa, aliás, nada de especificamente cinematográfico) e as representações historiográficas,
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A SUSPENSÃO E A RESISTÊNCIA - 205

recheadas de heróis e momentos triunfais. Por isso, faz uso da elipse, da suspensão, da inter-
rupção, da cesura. E este é o seu gesto político mais radical, à altura das personagens que pa-
recem também suspender o curso do mundo, principalmente Ventura, que atravessa a história
mais recente do país para fazer coincidir o passado e o presente, para os amalgamar num
único tempo com o qual, de resto, ele não coincide. Ventura é ao mesmo tempo uma figura
histórica e trans-histórica.
Ele percorre, numa espécie de errância, os detritos da história, mas mantém uma soberania
que aponta para um outro tempo. Não se trata de uma figura utópica e acrónica, mas de
alguém que não se deixa fixar numa identidade. Por isso, ele não é nomeável, mas o que
nomeia (pelo olhar ou até mesmo pelo silêncio). E, neste sentido, ele dá forma a uma ideia
cinematográfica que não procede pela invenção de personagens, isto é, de “criaturas”. Estamos
nos antípodas do cineasta demiurgo, e o filme é uma criação das figuras que o percorrem.
Criadores de mundo, sujeitos e não objectos manipuláveis, são elas que delimitam a existência.
Não são função de outra coisa, não representam papéis, não são símbolos; são presenças
expostas, corpos dotados de uma imanência política. E, por isso, por não serem apropriáveis,
por sentirmos que elas nos nomeiam a nós muito mais do que nós as conseguimos nomear,
todas estas figuras são escandalosas. Pairam num espaço de soberania a que não podemos
aceder. Inomeável e soberano no mais alto grau é Ventura. Dir-se-ia que ele se move como
um sismógrafo que regista todos os abalos da terra, mas sem se deixar abalar por nenhum.
O seu poder é o da inexpressividade, aquilo que quebra toda a aparência estética e o remete
para uma outra dimensão.
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PAPPY: A REMEMORAÇÃO DOS FILHOS


Andy Rector

Esconde aquilo que o espectador mais quer ver.


Yasujiro Ozu

Um vulgar banco de jardim

Em 1926 Aleksandr Dovjenko realizou um filme curto chamado Iagodka Liubvi (Os Frutos do
Amor, 1926) sobre um jovem que está a tentar livrar-se de um bebé indesejado. Uma co-
média soviética a transbordar de Mack Sennet e Charlie Chaplin que vai de banco de jardim
em banco de jardim com variações sobre o gag de “passar” o bebé a outra pessoa. Numa re-
partição dos serviços sociais, a mãe encontra maneira de tomar conta da criança, um bu-
rocrata municipal estala os dedos e o jovem, que é o pai, desaparece literal e subitamente.
É num banco de jardim em Lisboa que Ventura – avô, imigrante cabo-verdiano e trabalhador
reformado que noutros tempos construiu parques, esgotos e um museu – subitamente aparece
na história portuguesa, 25 de Abril de 1974, uma Revolução fora de campo, em Juventude em
Marcha. O seu amigo Lento senta-se com ele neste banco de “1974”, curvado sobre si próprio,
a cabeça no colo. A comemoração do golpe de Estado tem de estar fora de campo porque
Ventura e Lento não estavam a comemorar. Pedro Costa: “Ventura contou-me que estavam
todos juntos, aterrados de medo, escondidos no Jardim da Estrela, a temer pelo futuro.”1
Lento entaipa a barraca deles nos subúrbios, para se protegerem da polícia militar em
festa, que espancou e amarrou um amigo deles a uma árvore. Lento brande um machete.
Ventura leva as mãos à cabeça, envolvida em ligaduras: “Fui à igreja, confessei-me. O padre
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PAPPY: A REMEMORAÇÃO DOS FILHOS - 207

perguntou-me se eu não andava a comer carne humana. Vem estudar a carta, Lento.” Nessa
carta de amor, que Lento vai aprender de cor na barraca, verbalmente intercalada por Ventura
neste filme “fora de ordem”, há um tempo que é prometido a uma amada desconhecida:
“O nosso encontro torna a nossa vida mais bonita, pelo menos há mais de trinta anos…”
A carta (amor e angústia, paraíso e inferno), a ligadura (um acidente de trabalho), os anos
(pelo menos trinta), Ventura e os seus encontros no presente – todas estas coisas são postas
“ao lado” umas das outras, em grandes blocos de espaço e tempo, pessoas e objectos. Por outras
palavras, um filme; uma daquelas coisas para todos os públicos, como se diz do cinema nos
seus primeiros trinta anos. A barraca onde Lento e Ventura viviam nos anos 70 fica “ao lado”
da casa de Bete nas Fontainhas actuais (o bairro arrasado em No Quarto da Vanda); as
Fontainhas são postas “ao lado” do Casal da Boba (o novo bairro onde foram realojados os
antigos habitantes das Fontainhas – se entretanto não estiverem mortos, a morrer ou a fugir
dali); até o trabalho de mulher-a-dias de Vanda é literalmente ali “ao lado”, no apartamento
da vizinha do lado, no novo bairro. Cada lugar é como um mundo à parte com os mesmos
habitantes, sendo que o enorme Ventura os atravessa a todos, transportando a sua história e
as histórias de outros com a montagem do filme.
Pode falar-se deste ficar “ao lado” no que diz respeito à forma interna do filme, mas o
efeito que tem no espectador e o modo como aparece no mundo são bastante diferentes.
Serge Daney, pronunciando-se contra o naturalismo em 1977: “O cinema mostra-nos geral-
mente pessoas, acontecimentos, lugares que não conhecemos; não há razão para isso nos
dar a impressão de que são aqui, mesmo ao nosso lado.”2 Não devia ser desconcertante, mas
é-o sempre em Juventude em Marcha: conta-se uma história. A confusão acerca de coisas
como revolução, democracia, parentesco, memória e casa está presente e é apresentada. Se o
sólido suporte narrativo do filme torna esta confusão concreta, e se Juventude em Marcha “mi-
lita enquanto cinema” (Daney), fá-lo apenas através de uma “alucinação que é verdadeira”
(Bazin). No cinema, como na História.
A carta de amor de Ventura, a sua função, o modo como se revela, o seu tom, as pro-
priedades ambíguas do seu endereço (aqui toda a gente partilha), o seu “destinatário” aparen-
temente desconhecido: para clarificar este assunto podemos “recordar o futuro”, o de Tarrafal,
de Pedro Costa – como é possível e desejável nos filmes de um cineasta que acumula resso-
nâncias sociais e formais de filme para filme, o que constitui um aspecto crucial da sua prática
num território sitiado. Em Tarrafal há outra carta, uma carta oficial de expulsão de Portugal
que “é passada” para as mãos do jovem Zé Alberto – uma carta que não será dita em voz alta,
mas sim lida em silêncio. No último plano do filme está espetada num poste para que o espec-
tador a leia, como se fosse um cartaz de “Procura-se” num western, mas está pregada, não
com a faca “do Xerife” que procura o “Fora-da-lei”, apresentando um aviso ao “Cidadão
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Cumpridor da Lei”, mas sim com a faca do fora-da-lei Zé Alberto, que trespassa a direito a
insígnia do Estado. Zé Alberto apresenta com Costa a sua carta ao público.

Liaisons

Uma certa inequivocidade obsessiva entre assunto e forma em Juventude em Marcha faz
pensar num filme de Huillet e Straub, por quem Costa passou em Onde Jaz o Teu Sorriso?:
Nicht Versöhnt oder Es hilft nur Gewalt wo Gewalt Herrscht (Não Reconciliados ou Só a Violência
ajuda onde Reina a Violência, 1965). Será que as pessoas viam Nicht Versöhnt uma única vez
e depois iam a correr ler o romance de Böll, no qual o filme se baseia acronologicamente, para
melhor o compreender? Será que viam Nicht Versöhnt várias vezes e ignoravam o texto de
Böll? As questões levantadas por Jacques Rivette em relação a Nicht Versöhnt também se
podiam aplicar a Juventude em Marcha:
“Aliás Straub impõe ao espectador (pelo menos ao espectador virgem do primeiro visiona-
mento, mas também, em parte, ao dos seguintes) uma linguagem obscura, como que obstina-
damente desviada, que o ignora aparentemente como destinatário (apesar de preencher, ainda
que tacitamente, as suas funções) e que o impede de atingir directamente o ‘saber’ que
pareceria estar encarregado de lhe transmitir; o filme funciona diante do espectador, como
um sonho, dir-se-ia, como produto de um inconsciente (mas inconsciente de quem? Do
texto literário? De cinquenta anos da história da Alemanha? Dos Straub? Das próprias
‘personagens’ do filme?) […].”3
O filme de Straub/ Huillet é uma operação complexa sobre um texto literário e a sua
materialização e, apesar de um conhecimento prévio da história de Böll estar longe de dis-
solver todo o mistério em Nicht Versöhnt (na verdade, o filme e o seu assunto são inesgotáveis,
a responsabilidade da sua resolução cabe à História e à Alemanha), Böll constitui uma fonte
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conhecida que ajuda a não perder o pé. Straub e Huillet estão a trabalhar com um material
preexistente por via da excisão e de liaisons, a tomar uma posição face ao material e a desenvolver
uma enorme quantidade de trabalho com um texto aberto à frente; misturando e enfatizando
aqui, elidindo completamente ali.
Juventude em Marcha é comparável em densidade a Nicht Versöhnt e, tal como acontece
com outros filmes de Huillet/ Straub, engloba em si múltiplas posições (o tempo presente de
Juventude em Marcha poderia ser comparado às “deambulações” de Geschichtsunterricht (Lições
de História, 1972), isto é, um presente puro que se mescla com um passado reconstruído. Mas
há outro desafio, o da fonte de Juventude em Marcha. Não é um texto literário como nos Straub,
mas as histórias e memórias reais da classe operária, desempregada e excluída nos subúrbios
de Lisboa. Costa diz que os seus filmes não são criações mas encontros. A cada encontro de
Juventude em Marcha ouvimos lutas recolhidas oralmente; a restituição da cultura oral em
Huillet/ Straub foi levada a peito por Costa. A imagem retumbante de Ventura, dos seus fi-
lhos e camaradas em Juventude em Marcha resulta em nada mais nada menos do que numa
restituição da monumentalidade da humanidade. Esta restituição constrói-se precisamente
com todos os meios cinematográficos de que um filme é capaz. É como se se tivesse gasto
um ano em cada elemento do filme: luz, composição, repérage, som, discurso, escansão, mo-
vimento, duração, construção narrativa, gesto épico, etc. Não é Costa que cria a dignidade, ela
sempre ali esteve. Contrariamente à crença de muitos cineastas bem-intencionados, o cinema
deve concentrar-se nos elementos acima referidos, e talvez usar alguns inéditos, para se
aproximar sequer destas lutas.
Juventude em Marcha é um filme que se mantém: mantém-se na cabeça depois de o vermos
(e isto durante semanas) e mantém-se por si mesmo, como se poderia dizer da música ou da
soberania. Exactamente quando pensamos que estamos perdidos, seja na companhia do filme
ou fora dela, a inescrutabilidade inicial do filme consolida-se em estrofes e a sua poesia
reaparece. O tempo do filme, imagens e sons, as muitas passagens dos seus indivíduos e as
consequências disso – quais de entre estas coisas irão algum dia estabelecer-se com o tempo?
O que irá acontecer? A liaison social Fontainhas/ Casal da Boba não é resolvida, a luta
mantém-se. Contudo, Costa e os habitantes fizeram um filme inabalável de uma transição.
Muitas bocas para esta liaison específica: através dos filmes de Costa, entrevistas e ocasionais
publicações interessadas, continuamos a receber relatos da vida no bairro, durante e depois
da rodagem de Juventude em Marcha: Cila Cardoso (“Bete”) e Zita Duarte morreram; Gustavo
foi preso duas vezes por andar com duas facas, uma para o pão e outra para o queijo, quando
ia a caminho da rodagem; em desespero, o vizinho de Vanda pegou fogo ao seu novo quarto
no Casal da Boba e atirou-se da janela abaixo; António Semedo (“Nhurro”) é agora cozinheiro
numa escola e presidente da Associação Unidos de Cabo Verde; o Casal da Boba abre fendas
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210 - ANDY RECTOR

com a chuva e está sempre húmido; há pessoas a morrer de causas desconhecidas; as pessoas
ali bebem mais; Zé Alberto está a ser repatriado para Cabo Verde, onde nunca esteve na vida;
a violência está a crescer – Isabel Cardoso (Clotilde), que viveu nas Fontainhas durante 28 anos
sem ser assaltada, já foi assaltada duas vezes no novo bairro, mas mesmo assim prefere-o,
porque há menos crianças por quarto.4
Juventude em Marcha é uma longa viagem (de regresso a casa?) – um filme de viagem –
e poderia ser comparado a Liliom (Fritz Lang,1934), Germania anno zero (Alemanha Ano
Zero, Roberto Rossellini, 1948), Ugetsu monogatari (Contos da Lua Vaga, Kenji Mizoguchi,
1953), Appointment in Honduras (Jacques Tourneur, 1953), Les Maîtres fous (Jean Rouch, 1955),
Murder is My Beat (Edgar G. Ulmer, 1955), Céline et Julie vont en bateau (Jacques Rivette, 1974),
Allemagne 90 neuf zéro (Jean-Luc Godard, 1991), ou As Bodas de Deus (João César Monteiro,
1999). As pessoas destes filmes têm um caminho, ou são colocadas num caminho, e estão a
tentar não ser apagadas. Estes filmes escrevem, e ousam escrever epicamente e para lá dos Limites
sobre a vida, a morte, verdadeiras ruínas, a guerra, o amor, o suicídio, a diplomacia, o colo-
nialismo, a ficção, o imperialismo, o falhanço histórico, a velhice e a juventude. Às vezes
as pessoas regressam – fantasmas, espectros narrativos, recalcamento histórico –, os ex-
propriados reapropriam-se através do cinema, mesmo que por pouco tempo ou de forma am-
bivalente (por exemplo, as personagens do filme – com os realizadores – podem regressar da
sua viagem, de volta ao normal, de volta aos Limites, ao Poste, à Vedação). Em resumo, Ju-
ventude em Marcha é único neste momento na história do cinema por pôr em cena a reapro-
priação do cinema pelos expropriados.
Como é que é posta em cena esta reapropriação? À “antiga”: “o conjunto dos mecanismos
do cinema não é exterior ao seu objecto – e ao colocar o cinema do lado do seu objecto, deixa
de ser um instrumento de lei e ordem.”5 Há qualquer coisa de destino, sofrimento e, acima
de tudo, de necessidade no modo como Costa faz filmes. Talvez fosse natural – para alguém
armado do cinema, mas que se recusa a ocupar – regressar aos guetos, às pessoas que
construíram o cinema (como Jean-André Fieschi chamou ao espectador ideal operário/
camponês de Straub/ Huillet), e que caíram dos seus andaimes. Os “desaparecidos” por sua
vez estavam destinados a regressar.
Se Costa é um respeitoso filho do cinema, e de todos os que o construíram (do esforço
deles), é justo que se esclareça que não o é no sentido de uma criação cine-frankensteiniana
– já não faz filmes cosidos com bocados de cinefilia. Mas se o facto de olharmos para Ford,
Ulmer ou Tourneur faz hoje sentido, Costa prova que eles também têm utilidade. Se for tão
simples como “tornar conhecidas outras pessoas, outros problemas” (Rossellini), Juventude
em Marcha prova que hoje em dia essa tarefa não é nada simples. Os anos 20 e 30 (surrea-
lismo, expressionismo, os soviéticos, Flaherty, Walsh, Chaplin) e os anos 70 (Godard, Duras,
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Eustache, Reis) são necessariamente evocados. E, no entanto, é um filme que se aguenta de


pé sozinho. É um filme em que um Guarda de Museu é um Guarda de Museu, um Rubens
é um Rubens, um Agente Imobiliário é um Agente Imobiliário, uma Mãe é uma Mãe. Os
filmes de Costa são uma intrincada interdependência de dádivas atrás e à frente da câmara;
filmes mutualistas (Mutual films) – tanto quanto é concebível hoje em dia.

Surrealismo em directo
Vejo belezas inúteis
Extinguindo-se na noite da dúvida
E as flores não são verdadeiras
E a terra faz-se estéril
Em breve terei de me calar
Mas se ando sobre a terra
É porque também outros cá andam
Que tal como eu balbuciaram
Antes de terem emudecido.
Ailleurs ici partout, Paul Eluard, 1953

Vamos andar para trás e para a frente, e de duas maneiras: com Dovjenko de novo, mas agora
com o seu filme Zvenigora, de 1928, e com Ventura, a sua consciência e o seu estar presente com
todos os “seus filhos” na Barraca/ Fontainhas/ Casal da Boba de 2003 a 2006 (o tempo que
Costa passou no bairro a fazer Juventude em Marcha).
Zvenigora, como Juventude em Marcha, salta desinibidamente de época em época, ocupa-se
de fantasmas, raízes, filhos, pais, populações inteiras, teimosia, destruição, e dos desígnios do
Estado por oposição às pessoas – e fá-lo com urgência e descaramento. É um filme que “de-
sencade[ou] a verdadeira história do cinema ucraniano”.6 Eisenstein teve de parar para pensar
e dar conta do choque que lhe provocou Zvenigora: “de repente, mostrava-se o ‘avô’ - o símbolo
do antigo - num compartimento de terceira classe, um velho como qualquer outro, mais nada,
a beber chá com o filho por uma chávena vulgar…”7 Em Juventude em Marcha, Ventura bebe cer-
veja, e não chá, com Vanda, que lhe chama “Papá”. A urgência esgotou-se, mas a genealogia é
desejada e comum. É discutível se Ventura chega a ser um símbolo ou se é sequer “velho” neste
filme. Mas “[os avós] são como um prisma do tempo”.8 Costa descobriu um homem, Ventura,
“homem bastante para rebentar com o continuum da História”.9
“Cantigas de despedida... A separação é nossa madrasta. Há muito que vive na nossa casa
e parece que ninguém a pode mandar embora, nem adormecê-la, nem roubá-la. O motivo
principal das nossas canções é a mágoa. É este o motivo da separação […].”10
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“A tua mãe foi-se embora. Já não gosta de mim. Já não quer acabar a sua vida comigo. Não
quer ir para a casa nova. […] É aquele pesadelo que eu sinto há mais de trinta anos, na vida
jovem, na caserna do Fundo de Fomento de Habitação, no banco do Rossio, nas construções
Amadeu Gaudêncio. Uma aflição debaixo dos cobertores que me matava todas as noites.”
Ventura diz isto à sua filha Bete no terceiro plano de Juventude em Marcha. Estas frases,
surpreendentemente directas, podiam ser uma découpage das interrupções surrealistas do
filme, que incluem uma Revolução que ataca os negros e uma Democracia que os exclui ou
explora. Bete responde que Ventura se enganou na porta e na filha, mas aceitará mais tarde
relacionar-se com ele. Ventura diz que Clotilde, a mulher e mãe que foi embora, tinha “a cara
da Clotilde, mas não era a Clotilde” quando partiu a mobília toda e o deixou. Isto também é
bastante directo, no relato de Ventura como na montagem de Costa: Clotilde fala e empunha
uma faca com hostilidade, mas as palavras dela são recordações agradáveis sobre nadar no
mar e rapazes em São Filipe, Cabo Verde.
Nas longas rememorações das pessoas do filme, o passado e o presente – e até as relações
familiares – parecem mudar a meio da frase ou nas longas pausas que preenchem pedaços
inteiros dos encontros. As coisas simultaneamente “são” e “não são” (“não sendo capazes senão
de forçar desesperadamente em direcção a esse limite”11). Anacondas, crocodilos, leões, hordas
de filhos, polícias e diabos, todos entram nos quartos de Juventude em Marcha; os seus sons
reflectem-se na garrafa de cerveja de Ventura, as suas formas povoam as paredes. Cada cena
começa e às vezes chega a terminar com um “tinido de ‘fora-de-serviço’ na slot machine do
significado.”12 Ventura pode confundir as memórias dos filhos, que parecem assim aplicar-se
a todos os habitantes – ele anda com o bairro inteiro “às cavalitas”. Há uma cena em que funde
numa só Vanda e Zita, a irmã que também partilhava a cama com Vanda em No Quarto da
Vanda. Avalia as situações, como Chaplin em The Immigrant (1917), só que não pensa em “como
conseguir a próxima refeição” – isso os filhos garantem-lhe – mas sim, no caso de Vanda e
Gustavo, em como pode ser possível os filhos estarem casados um com o outro! Esta perturbação
não é exclusiva da consciência de Ventura, apesar da sua singularidade (depois da morte de
Zita, Vanda diz-lhe: “Papá, eu sei que a Zita era sua filha, mas primeiro era minha irmã”). O
efeito cumulativo de todas as pessoas que se encontram é muito mais generoso, agudo e
volátil. “Na estrutura deste mundo, o sonho faz abanar a individualidade como um dente podre.”13
Esta “outra coisa”, esta população debaixo da luz, na língua, numa ligadura, num banco,
juntamente com a “velha” e solitária carta de amor – uma frase de Robert Desnos, outra de
Ventura – subjaz a todos os encontros de Ventura com a vizinhança. É algo que transporta
consigo onde quer que vá. É algo que paredes brancas e novas monstruosidades não conse-
guem apagar. Poderá haver alguma indicação sobre aquilo de que Ventura é portador, um
certo parentesco, em The Grapes of Wrath (1940) de John Ford.
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Aqueles seus encontros

Quando Tom Joad (Henry Fonda) se vai embora no fim de The Grapes of Wrath, é como se
encerrasse em si o destino da família humana de ser uma comunidade, como se se estivesse
a ir embora simultaneamente como testemunha e como concretização desse sonho. Ele
aspira simplesmente a estar presente, sem sequer agir. Estar “em todo o lado, na sombra”
como diz no seu famoso diálogo com Ma Joad (Jane Darwell). “Estarei lá, no modo como os
homens gritam quando ficam furiosos. No modo como os miúdos riem quando têm fome e
sabem que o jantar está pronto.”
Tom Joad sabe por Casy (John Carradine) porque é que ele deixou de ser pregador: “um
pregador tem de saber. Eu não sei. Eu tenho de perguntar”. Ventura, no registo autêntico de
um proprietário, muitas vezes nem sequer pergunta – está presente, ouve e diz aquilo que
sabe. (“Enquanto os criamos passamos por maus bocados, mas vale a pena”, para Vanda;
“está cheia de aranhas”, para o Agente sobre o apartamento novo; “Nas casas dos mortos há
sempre muitas figuras”, para Bete...)
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PAPPY: A REMEMORAÇÃO DOS FILHOS - 215

Tom Joad relembra as palavras de Casy: “Um tipo não tem uma alma que seja sua, mas
bocadinhos de uma grande alma. A grande alma que pertence a todos…” Quando Tom Joad
transmite oralmente estas palavras, as palavras de um amigo espancado até à morte por um
sistema, já sofreu perdas materiais (casa, trabalho, família) e a tragédia material e espiritual de
“pessoas que vivem como porcos e terra boa e rica a estragar-se”. The Grapes of Wrath mostra
os Joad a serem tenazmente enganados e explorados sempre que tentam arranjar trabalho e
conseguir casa. Em cada campo da periferia e em cada trabalho deparam-se com a impos-
sibilidade de “comer as coisas que cultivam, e viver nas casas que constroem”.
Esta laceração constante e o sentimento de que é a humanidade inteira que está a ser
estigmatizada também os transmite Ventura, e são confirmados pelas pessoas que lhe contam
as suas histórias. Este desejo de um trabalho que tenha sentido, beneficiando quem o fez, por
oposição à proletarização, é repetido várias vezes por diferentes pessoas em Juventude em
Marcha. Uma delas, Paulo, pede de porta em porta e anda temporariamente a vender brin-
quedos, que traz num enorme saco de plástico. É numa cama de hospital que conta a sua vida
e trabalho a Ventura. Uma cena de prostrada confissão, como em tantos dos filmes de Ford
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216 - ANDY RECTOR

(uma doença ou ferimento que são cuidados a par


de uma exposição de sentimentos em The Long
Gray Line, 1955, The Horse Soldiers, 1959, My Dar-
ling Clementine,1946, Prisoner of Shark Island,
1936, Doctor Bull, 1933).

“Paulo: Tiraram-me carne desta perna para


meter nesta…
E tapar os buracos deixados pelo Lizaroff.
Um aparelho género de andaime.
Faz esticar os ossos, e no meu caso até me alon-
gou os tendões.
Os médicos andam aí… malucos… tiram foto-
grafias, filmam.
Mandaram para os Estados Unidos da América
para os colegas aprenderem como se faz.
Isto mais dois ou três dias, dão-me alta.
E se não derem, saio pelo meu próprio pé.
Tenho muitas despesas.
Uma diária de doze euros e meio na pensão.
A minha companheira, não pode, a Paula, é
doente.
Têm que ser aquelas minhas amigas dos prédios
da Pontinha, da Colina do Sol e de Benfica.
Mas já estão saturadas.
‘Ó Paulo, estas operações são para o resto da vida?’
‘Não, se me puderem arranjar um trabalhito…
nas obras, servente, pedreiro, ladrilhador, car-
pinteiro tosco. O ideal seria ourives. Foi a profis-
são que aprendi desde miúdo. Sei fazer tudo.
Soldar fios, pulseiras, meter anéis à medida. Até
alianças fazia. Entrava na Casa da Moeda como
se fosse a minha casa.’
Queria que viesse comigo à minha mãe.
Ventura: À sua mãe?
Paulo: Eu sei que ela faz crochet, todas as tardes,
numa esplanada na Trafaria.
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Está lá sozinha.
De maneira que tenho a certeza que se formos lá
os dois, que ela não foge.
Há uns sete ou oito anos, foi uma desgraça.
Ela assustou-se. É natural
Fui com um colega meu, o Nhurro.
Ventura: O meu Nhurro?
Paulo: Sim. Espetou-me com cinco contos.
‘O que é que eu faço com cinco contos, sua
bruxa? Vá mas é lá acima buscar mais guito.’
Mas se fossemos lá os dois e falasse com ela…
Ventura: O que é que eu digo, ó Paulo?
Paulo: ‘Dona Lurdes, boa tarde.
Ainda se lembra deste rapaz?
Esta cara, diz-lhe alguma coisa?
O cabelo todo porco, as mãos negras do frio, as
pernas cheias de balas.
Não está lembrada, pois não?
Eu estou.
Não foi a senhora que o lavou, nem lhe deu um
prato de sopa quente à noite, nem o foi buscar
ao bidon onde ele dormia.
Venho trazer-lhe o seu filho, tal qual ele é.
Eu já fiz o que podia.’
Só queria que me desse a morada da minha filha.
Há quinze anos que não a vejo.
Disseram-me há uns dias que fui avô.”
Como Tag Gallagher assinala num capítulo
muito lúcido sobre The Grapes of Wrath,14 Ford
centra-se neste filme mais nos efeitos do que nas
causas da perda de direitos dos Joad. Mas as
causas tornam-se, pelo menos, tangíveis durante
a apresentação, passo a passo, da exploração. Isto
está apenas presente em parte em Juventude em
Marcha, onde os efeitos dos efeitos já foram lon-
gamente contemplados. Está mais perto do
trauma – e de uma extrema sensibilidade.
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Em The Grapes of Wrath (quando há


tempo!) esta traumática sabedoria mostra-se
em vinhetas entre Tom Joad e as pessoas que
encontra, muitas vezes fugidas à polícia,
pessoas que acabaram de ser escorraçadas de
algum lado ou que estão prestes a sê-lo.
Estas pessoas relatam o que lhes aconteceu
em ricorsi, um termo usado por Gallagher
para descrever instâncias de um “reviver” em
Ford e em Straub/ Huillet.15 As vinhetas de
Juventude em Marcha são enormes e consti-
tuem grande parte do filme (há tempo); os
ricorsi de ambos os filmes reverberam, sobre-
pondo-se uns aos outros quando se aproxi-
mam ou se afastam (como as garrafas que
vibram no quarto de Ventura quando ele ca-
minha, como a carta de amor durante todo o
filme, como as mãos de Ventura quando
agarram um saco de plástico). Ricorsi momen-
tâneos em The Grapes of Wrath, ricorsi pro-
longados em Juventude em Marcha: ambos
muitas vezes agachados num sítio qualquer
mal iluminado (no caso de Paulo, ricorso pro-
nunciado do canto mais escuro da cama de
hospital), ambos transitórios.
Foi Daryl Zanuck quem acrescentou o final
de The Grapes of Wrath tal como o conhecemos,
pondo em epílogo o discurso de Ma Joad, belo
mas apaziguado, sobre a perseverança do
povo. Tenta conciliar o não-conciliado. Ford
tencionava acabar o filme com Tom Joad a
ir-se embora…
Para Gallagher, o final de Zanuck “basi-
camente destrói a trajectória do filme em
direcção à inevitável desintegração/ revolução,
em favor da perseverança/ sujeição.”16
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Sobre Nhurro, Vanda, Bete e a Destruição


Este rapaz e esta rapariga nunca foram convenientemente iniciados ao mundo em que vivemos…
Nicholas Ray, They Live by Night

Em Juventude em Marcha, Bete vive na “última casa” das Fontainhas, tendo todas as outras
sido demolidas. A sua casa, o que é um facto verídico, faz lembrar qualquer coisa dos Irmãos
Grimm (uma ameaça às crianças) ou um qualquer posto avançado espacial/ histórico nas
ficções de Borzage (Moonrise, 1948), Ford (The Fugitive, 1947; The Horse Soldiers, 1959), Mur-
nau (Sunrise, 1927; Der Brennende Acker, 1922), ou Fuller (Run of the Arrow, 1957).
Costa filma o exterior da casa de Bete a uma certa hora do dia em que as sombras rasgam
o edifício em dois. Uma casa, que resiste à beira do vazio e dá imagem do desenraizamento
em “duas luzes”: antecipando a destruição da sua casa e a expulsão forçada de Bete – e – um
santuário precário do passado cabo-verdiano: não seria difícil ver nessa enorme sombra na
casa de Bete a forma das montanhas vulcânicas da Ilha de Santiago, onde Ventura nasceu e
passou a sua juventude, de cabeça para baixo e projectado pelo sol.
Depois de ele bater várias vezes à porta, Bete deixa Ventura entrar. “Sabias que tens um filho
morto?”, pergunta a Ventura. Num café, ela ouviu uns trabalhadores “a falar duma obra no Porto,
e às tantas disseram ‘Nhurro, Nhurro!’ […] Mas eu não acredito que o meu irmão esteja vivo”.
Nhurro (António Semedo) faz parte dos actores habituais de Costa. Aparece pela primeira
vez em No Quarto da Vanda (a sua primeira fala é “A Arca de Noé?”), depois em Juventude em
Marcha e, mais recentemente, em A Caça ao Coelho com Pau. Até já se disse que o Jean-Marie
Straub de Onde Jaz o Teu Sorriso? é parecido com Nhurro nas pausas e tiques corporais – e
poder-se-ia acrescentar a atitude teimosa de ambos perante o decrépito estado do mundo.
Foi muito pouco notado o quão crucial é Nhurro em No Quarto da Vanda. Em termos de
tempo de ecrã e peso, o filme poderia chamar-se igualmente “No Quarto do Nhurro”. Talvez
Costa lhe tenha dado o título que deu porque foi Vanda a instigadora de No Quarto da Vanda,
e acima de tudo porque é uma Mãe pelo seu virtuosismo, magnetismo e pelos braços que
alcançam o bairro todo.
Vanda e a sua família estabeleceram-se nas Fontainhas há cerca de 30 anos; em No Quarto
da Vanda tentam ignorar a demolição das suas casas, que se avizinha, e nunca assistimos ao
realojamento final. Mas Nhurro descreve todo um ciclo nas Fontainhas: Nhurro começa o
filme já expulso de qualquer lado, Nhurro constrói um lar e Nhurro perde esse lar. Ao longo
dos primeiros dois terços de No Quarto da Vanda vemos Nhurro nos seus afazeres domésticos,
em conversas de café e a tomar droga com os amigos. Estas acções, e o som da demolição
em redor deles, ligam Nhurros e Vanda, mas eles são diferentes e vistos separadamente.
Vanda fuma a heroína, Nhurro injecta-a; ela discursa vigorosamente, até se ri, do seu palco
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220 - ANDY RECTOR

amarelo-esverdeado, enquanto que ele é dado a aforismos e poemas sobre os que sentem o
frio e a traição. Ficamos muito tempo a ver Nhurro dispor meticulosamente a mobília da
casa que ocupou recentemente e, à medida que o filme avança, aparecem novos móveis.
Como tudo neste filme (através da montagem polifónica de Costa, baseada na circulação), as
coisas pertenciam a outras pessoas (tendo atravessado o bairro), sustentam-se umas às outras
neste presente cercado, e são partilhadas (um nome, um sentimento, um colchão, um inalador).
No último terço do filme, quando se torna claro que os bulldozers visam a casa de Nhurro, ele
“abandona o barco”. Torna-se, como Bete lhe chama em Juventude em Marcha, “aquele que
andava aí pelo bairro, de casa em casa”. Passa a ser como Ventura: circulando, questionando-se
sobre as casas, levantando a questão “onde é que ele vai dormir à noite?”. Nhurro vai parar
ao quarto esverdeado de Vanda no final de No Quarto da Vanda. Ver os dois num mesmo
espaço, finalmente juntos, tem o sabor de um espaço partilhado, até num filme inteiramente
composto de espaços partilhados. Tínhamos visto tantas visitas nos quartos tanto de Vanda
como de Nhurro; agora o propósito deste espaço partilhado é específico e mútuo: abrigo para
Nhurro. É aqui, num breve diminuendo dos bulldozers, que eles partilham (connosco: ambos
olham para a câmara) o diálogo que se tornou famoso, sobre a razão pela qual tomam drogas:
“Mas é a vida que a gente quer é essa, vida da droga” (Vanda), “Não, não é a vida que a gente
quer, parece que é a vida que a gente é obrigado a ter.”
Ventura fica em silêncio perante a notícia que lhe dá Bete, de que Nhurro talvez esteja a tra-
balhar no Porto, no presente de Juventude em Marcha. Ventura senta-se à mesa com Bete. Dá uma
snifadela e oferece-lhe. Ambos snifam a droga e espirram, consecutivamente. A luz é fraca, as
paredes amarelo-esverdeadas. Lentamente, um som familiar inunda a casa (familiar, se nos lem-
brarmos do primeiro filme de Nhurro) – o rosnar e o mastigar de um bulldozer, um monstro ao
longe. Estas cores, as drogas, os sons de demolição: efeitos (indícios narrativos no som e na ima-
gem) dos efeitos (a ameaça social às crianças) – tudo aquilo que Nhurro e Vanda suportaram e
que ameaça as crianças de hoje – é pensado por esta imagem, acumulando-se no quarto da Bete.
A força deste pensamento é transportada para o plano seguinte de Ventura, sozinho –
emerge uma causalidade heróica, produzindo uma imagem lendária: sentado num cadeirão
vermelho à porta da casa de Bete, Ventura levanta-se, snifa um pouco mais e, com uma ligeira
inclinação para a frente que o separa das sombras ameaçadoras da casa, põe as mãos nas
ancas – brilha-lhe nos olhos o mesmo sol que projecta as sombras. Parece estar a tirar as me-
didas a um horizonte infinito. Sons ténues de crianças a brincar. Ventura sai de campo; vai
descobrir se Nhurro ainda está vivo, se está “limpo” e se está a trabalhar.
A potência do som no cinema de Costa reside na sua capacidade construtiva e rememo-
rativa. A destruição/ demolição é vista em The Grapes of Wrath, enquanto que em No Quarto
da Vanda e em Juventude em Marcha é sobretudo ouvida através de um complexo edifício so-
noro fora de campo.
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PAPPY: A REMEMORAÇÃO DOS FILHOS - 221

No filme de Ford mostra-se a demolição levada a cabo por um “Caterpillar”. Ford monta
uma breve série de planos de tractores “Caterpillar” no meio do flashback de Muley (John Qua-
len) para mostrar o volume de destruição de casas pela Shawnee Land and Cattle Company:
“por cada um [dos tractores], houve 10, 15 famílias despejadas das suas casas.” Os planos são
de tractores – não de tractores a destruir casas. A montagem é a imagem de um tractor mais as
palavras de Muley. Num outro filme, estes planos de tractores poderiam ter sido um hino à
construção socialista ou, para sermos mais actuais, um grito contra a construção de qualquer
coisa horrível como um Centro Comercial, ou mal-concebida como um bairro habitacional
liberal-burocrático-reformista. O potencial de uma coisa para ser construtiva ou destrutiva.
No Quarto da Vanda construía uma imagem do que estava a ser destruído, Juventude em Mar-
cha contempla os estragos, aquilo que resta e aquilo que foi construído depois. Em todos
estes filmes, os volumes dilatam-se. Uma cadeira vazia, por exemplo.
Em Juventude em Marcha, os sons são mais baixos do que em No Quarto da Vanda, em
parte devido às diferenças entre os lugares que são hoje as Fontainhas e o Casal da Boba –
estes espaços estão agora mais segregados e com menos movimento. Há apenas uma estrondosa
excepção sónica no filme: a serra circular de Gustavo, o operário. A serra está num fora de
campo muito próximo e, apenas com base no som, só um trabalhador da construção civil é
que adivinharia o que ele está a cortar, e só alguém do bairro adivinharia para que servirá o
material depois de cortado. Suposições deste tipo não são invulgares nos filmes de Costa. Os
materiais de Gustavo inundarão sem dúvida filmes futuros.
Quando Nhurro falou em “abandonar o barco” em No Quarto da Vanda – e isso junta-
mente com os rangidos captados pelo dedicado operador de som de Costa, Olivier Blanc –,
ajudou a perceber todas as personagens dos filmes de Costa como estando em diferentes
compartimentos do mesmo barco. Aí, Nhurro e outros pronunciaram trémulos diários à luz
das velas (como no Captain Horatio Hornblower de Walsh, 1951). Quando Nhurro é por fim
redescoberto em Juventude em Marcha, parece estar na proa deste barco. Talvez durante uma
pausa do trabalho numa espécie de armazém de mobília em segunda-mão, está sentado, com
o sol na cara, enquanto passam por ele homens que carregam móveis pesados. É a única
personagem de Juventude em Marcha que tem um ar sereno: será que Nhurro encontrou um
lugar ao sol? Os homens com os móveis passam por Nhurro vindos de outro planeta: memó-
rias das Fontainhas e sonhos da antiga casa materializados – como se esta constelação de
mobília para a casa estivesse a emergir de um recanto da memória. Nhurro fala da Mãe, a
mesma de que falava já em No Quarto da Vanda. Foi agora realojada, deixou de beber, está na
fase na ressaca e diz que, se Nhurro prometer voltar para casa, tem cachupa quente no lume
para ele. Ele enumera todos os móveis que lhe poderia trazer do armazém. Fala de um pai
em Cabo Verde que diz que gostaria que Nhurro regressasse. “Eu… não sei…”, são as últimas
palavras de Nhurro neste filme…
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222 - ANDY RECTOR

Excluídos

Se o fotograma acima, que mostra Henry Fonda no papel de Joad a atravessar o esqueleto de
uma porta, parece um pouco um quadro surrealista, é só porque a imagem está parada e sem
som. No contexto é mais expressionista, tendo em conta que acabaram de dizer a Joad que o
campo na periferia onde a família tem estado viver vai ser queimado pelos empreiteiros. Os
empreiteiros tinham antes disso vindo ao campo à procura de trabalhadores, mas alguns
deles já não se deixaram enganar pelos seus truques. A única maneira de os empreiteiros
conseguirem mão-de-obra barata é através do desespero de refugiados desalojados pelo fogo.
Em filmes destes, não há vida imóvel [still life: também significa “natureza morta”]. Fonda
atravessa a porta; Ventura e Lento são forçados a deixar a barraca ou a entaipá-la e deixar-se
ficar à porta, não lhes restando senão a imobilidade. Há um “antes” e um “depois” nestas
composições. História:
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PAPPY: A REMEMORAÇÃO DOS FILHOS - 223

André Breton chamou Nadja ao seu romance, “um livro com uma porta que bate”. Costa fala
sempre de portas e fechaduras. Para ele são algo de temível e sagrado. É aí que a ficção/
realidade pode ser descoberta ou que a realidade/ ficção se pode excluir de nós. Isto já
acontecia nos filmes da Biograph de D. W. Griffith, onde uma personagem que abre uma
porta se vê de repente no meio do enquadramento/ da ficção. Ventura e Lento penduram os
chapéus junto a uma porta que bate com o vento e o frio. Entram juntos na barraca, penduram
os chapéus e saem de campo. Este plano e esta acção repetem-se uma série de vezes no filme
e assinalam um recuo a uma outra existência. Quando a porta a bater é finalmente mostrada
sem que Ventura/ Lento atravessem o enquadramento, é para anunciar o recuo ao 25 de Abril
de 1974. É o único plano do filme que não parece conter a presença de Ventura; a sua ausência
é uma corrente de ar assustadora.
As portas entre o terror dos anos 70 e o desespero do presente fundem-se a dado momento.
Depois de Zita morrer no presente, e de Ventura assistir ao luto de Vanda, ele deixa o
apartamento do Casal da Boba, a porta fecha-se atrás dele com um “clique”, e vai directo aos
anos 70 para recitar a sua carta de amor pela sétima vez, resolutamente, numa variação tão
feroz que parece querer vingar a morte de Zita (não foi “o veneno que ela tomou”, mas “todo
o veneno que tomaram por ela antes dela nascer”) e mesmo reclamar a terra e o pão que a
Revolução e subsequente democracia em Portugal não providenciaram aos seus filhos. Nesta
variação, Ventura é visto frontalmente, como num filme militante, mas enquadrado pela
moldura de uma porta, num estado intermédio, sem entrar nem sair. Seguramente que não
reclama reparação, está mais próximo de uma missiva dirigida aos actores de uma revolta
futura. Mas não há maneira de sabermos, ao sermos confrontados com esse grande plano
gigante do rosto de Ventura, se a raiva o corrói, o fortalece ou o aterroriza. A única coisa de
que podemos realmente ter a certeza é da cicatriz de Ventura, do acidente de trabalho – bem
visível neste plano, apanhando-lhe a cabeça toda – e a aplicação, feita por Costa e por Ventura,
de uma ligadura a esta cicatriz, como se fosse uma ferida aberta. Ao fazer o filme, Ventura
avisou Costa: “nós estamos aqui fazendo um filme sobre mim, sobre o meu passado, mas
você nunca saberá o que eu sofri.”17
No Casal da Boba do presente, as portas não funcionam segundo as leis habituais.
Fecham-se sozinhas ou então não abrem (“Realmente nós temos alguns problemas com as
chaves”, diz o Agente Imobiliário André Semedo, que em tempos foi serralheiro civil).
Ventura só ganha o direito de entrar em casa de Bete depois de lhe cantar à porta. E a porta
parece abrir-se sem intervenção de Bete, como que por obra de uma canção cabo-verdiana de
“abre-te sésamo”.
No Museu Gulbenkian, Ventura é escoltado por um Guarda ao longo de um corredor com
uma textura a imitar uma gruta. O corredor não é um espaço em ziguezague como as grutas
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224 - ANDY RECTOR

dos filmes indianos de Lang, ou os becos das Fontainhas em No Quarto da Vanda; é uma linha
a direito – lá para fora. A porta do corredor desta saída de serviço no Museu Gulbenkian é
ambígua enquanto porta. Quer ser uma porta secreta: quer ser como a porta silenciosa da
feira de exposições em Playtime (1967) de Tati – que não marca uma interrupção para aqueles
que a usam, camuflando a sua expressão de “dentro” e “fora”. Faz um som surdo: espuma
sobre espuma, cinzento sobre cinzento. O Guarda “levanta voo” deste local de um modo mais
barulhento, com a ajuda de uma elipse magnífica: no plano seguinte está do lado de fora do
Museu, a subir uma escada iluminada pelo sol, subitamente já sem o uniforme do Museu, à
paisana – agora acompanhando e já não escoltando Ventura – os dois a caminho de um
jardim, como pai e filho. Ligados como numa cena de Ozu, em marcha.
O ricorso do jovem guarda do Museu explicita as diferenças entre guardar o Feira Nova da
Damaia e guardar o Museu Gulbenkian. E conclui: “Tenho que fazer pela vida, sou pai há um
mês.” Este sentimento, no jardim que Ventura ajudou a construir, faz surgir outra memória:
Ventura aponta para fora de campo dizendo, “Ali é que tive o acidente. Escorregou-me o pé,
caí do andaime”. No plano seguinte está a abrir a porta que bate, a ligadura à volta da cabeça.
Mais tarde, quando a ligadura se desenrola e cai aos pés de Ventura, isso coincide com a
queda de Lento de um poste de electricidade. Lento, contudo, reaparecerá depois desta morte
num quarto que ardeu no bairro novo (e só é reconhecível como um dos do Casal da Boba
precisamente pelos puxadores das portas). É a primeira vez que Lento é visto no presente –
mesmo que enquanto fantasma, visão, ou portador de histórias que não são a sua, e num
corpo que talvez não seja o seu. Tem as mãos macias mas ele diz que estão “todas queimadas.
Ficaram coladas à parede, mil graus de temperatura que estavam aqui”. Consegue-se ver o
contorno de dedos pequenos e grandes nas paredes calcinadas. Não é a primeira vez que
o filme evoca os Campos de Concentração (a camisa às riscas de Ventura na barraca), ou
Hiroshima (a possível experimentação médica em Paulo: “Os médicos andam aí… malucos…
tiram fotografias, filmam…”).

“O lusco-fusco torna difícil de ler mesmo a mais clara caligrafia” (Goethe)

As cenas de Juventude em Marcha entre Ventura e Vanda, no quarto dela do Casal da Boba,
são a convergência entre o velho e o novo, em conteúdo e forma.
Vanda refere várias vezes uma marca de toalhetes que Ventura não percebe; está atento
e em silêncio enquanto uma televisão clama por atenção e domínio; assistimos à constante
tosse mortal de Vanda e ouvimos os seus mil cantos de experiência ao lado da juventude
serena da filha, do seu único canto de inocência.
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PAPPY: A REMEMORAÇÃO DOS FILHOS - 225

À medida que Juventude em Marcha avança e se torna evidente que Costa está a misturar
a postura e linguagem naturalistas de Vanda com o discurso lapidar de Ventura,18 Vanda e o
seu quarto começam a parecer uma mistura de Jon Qualen/ Monument Valley com um dos
documentários de Godard/ Miéville para a televisão. Ford usava muitas vezes uma mistura de
estilos de representação e de tons (Steamboat Round the Bend, 1935, My Darling Clementine,
1946, The Long Gray Line, 1955, 7 Women, 1966), fazendo contrastar o coloquial e o rústico
com as grandes responsabilidades e destinos de comunidades em novas/ velhas paisagens.
E Godard/ Miéville estão entre os poucos realizadores a abordar e a criticar o barulho da
presença doméstica da televisão por intermédio do cinema, para descobrir o labirinto das
relações sociais criadas por uma televisão omnipresente e estridente (Numéro deux, 1975,
France/tour/détour/deux/enfants, 1977-78). As relações no quarto de Vanda do Casal da Boba
oscilam violentamente: numa cena, Vanda sobrepõe-se facilmente a uma voz esganiçada vinda
da televisão com a história do parto, enquanto que noutra cena a transmissão de Franklin, um
desenho-animado para crianças, enforma a imagem e o tempo de Ventura, de Vanda e da filha.
Enquanto Vanda, em No Quarto da Vanda, tem alguns dos mais belos grandes planos de
todo o cinema (dormindo, fumando, falando, pensando), e até um contracampo (de um aviso
de “falta de crédito” que ela preenche a lápis na cama), em Juventude em Marcha é vista à
distância e exclusivamente nos indistintos quartos e corredores brancos do seu apartamento
no Casal da Boba. Num quase isolamento com a filha e o marido, o apartamento faz lembrar
uma casa-forte. O alcance dos seus braços é agora limitado, mas concentrado na filha, no
marido, num ou dois vizinhos. O lugar onde se senta à beira da cama coincide com o extremo
direito do enquadramento, e a televisão que vê com o extremo esquerdo – filmados do ponto
de vista da porta do quarto do Casal da Boba. Se Ventura, o marido ou a filha não preenchessem
o espaço que fica no meio, poderia ficar tristemente vazio.
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226 - ANDY RECTOR

À medida que as articulações formais acima referidas se vão misturando em Juventude em


Marcha, coloca-se a questão do moderno e do tradicional (simultaneamente sub e sobre-deter-
minada em Godard e em Ford). Se ambas as questões estão relacionadas com a “acessibilidade”
que as pessoas sentem em relação à obra de Costa, é provável que tenham menos importância
do que o envolvimento no assunto. Supostamente, o número de pessoas que saem da sala
aumenta sempre que o filme volta ao apartamento de Vanda no Casal da Boba. Será porque o
espectador percebe muito rapidamente que há poucas ou nenhumas hipóteses de que “entre”
outra sequência? A única maneira de “entrar” é darmo-nos ao trabalho de ouvir o que diz Vanda,
e ela vai a toda a velocidade. Passa por um sortido de temas da recuperação: da doença à
metadona, inaladores, falta de subsídio de desemprego, a enorme luta para dar à luz e criar a
filha, o santo do marido, a morte da mãe, Lena, e da irmã mais nova, Zita. Estranhamente, é por
causa de cenas como esta que Costa é acusado de “egoísmo”, “elitismo” ou de ter “tempos
mortos”. Mas será que há alguma coisa menos elitista do que levar o tempo que for preciso para
olhar e ouvir com precisão, usando meios que qualquer um poderia adoptar, e casar histórias tão
distantes umas das outras como a vida da morte? Será que há “tempo” menos “morto” do que
ter Vanda a deixar escapar, no meio do solilóquio do parto, um “Eu vou-me matar…” – depois
um gesto súbito para o ar (tão enorme quanto os gestos de Ventura) – “... aquela vizinha que se
atirou ali ontem!” Quando, no cinema, os mortos dão as mãos aos mortos, como Vanda,
Ventura e Lento no quarto que ardeu, temos de redefinir o que são “tempos mortos”.

Trompe-l’œil

Em The Grapes of Wrath, Ford mostra várias vezes os Joad a abordarem ou a serem abordados
por pessoas que aparentemente oferecem ajuda. Muitas vezes trata-se de lobos na pele de
lobos, mas falando com a humildade de cordeiros. Os seus métodos e truques são expostos
(a economia de efeitos). Mesmo o capataz do campo estatal da New Deal, em Ford, parece tão
desapaixonado que chega a ser suspeito, é um simples burocrata (Ford, de maneira enfática, põe
o capataz a reagir sem emoção à trapalhada que algumas das crianças dos Joad arranjaram
com uma casa de banho do campo).
Em duas secções sucintas, Juventude em Marcha revela algum cepticismo em relação a
um Agente Imobiliário que está a tratar do realojamento de Ventura num apartamento do
Casal da Boba. O homem que faz o papel de Agente Imobiliário é André Semedo, que é mesmo
um Agente Imobiliário do bairro. Note-se que, neste filme familiar, este homem partilha na
realidade um apelido com Nhurro (cujo verdadeiro nome é António Semedo). Contudo, este
Agente Imobiliário é a única pessoa no filme a quem Ventura nunca se dirige como sendo
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PAPPY: A REMEMORAÇÃO DOS FILHOS - 227

da família – e isto apesar de ambos se referirem às suas origens cabo-verdianas quando se


encontram. Não há nenhum laço sólido entre eles. Há uma casa vaga no bairro novo e o
Agente tem uma ficha a dizer que se destina a Ventura. Ventura vai vê-la; fica de pé num
quarto completamente vazio com paredes brancas – paredes que parecem tentar apagar o
passado que impregna todos os outros encontros.
Quando na revista Variety chamaram a Ventura um “guia vazio” [vacant guide]19, não só não
perceberam tudo aquilo que Costa e Ventura tornaram visível quando Ventura está de pé
naquele abstracto quarto branco, tudo o que traz consigo, mas também devem ter sucumbido à
noção estatal de “ocupação” (o bairro social – o deserto governamental a que chamam paz). As
paredes brancas estão “cheias de aranhas”, assinala Ventura. O apartamento não é suficiente-
mente grande para todos os filhos dele. A sala é tão branca como a do epílogo de 2001: A Space
Odyssey (Stanley Kubrick, 1968). Mas será que Ventura vai envelhecer e morrer aqui – em
minutos, segundos, anos? O Casal da Boba, por dentro e por fora, pode parecer um com-
partimento espacial, mas é visto como um local bem real na terra, onde estes dois homens,
Ventura e André Semedo, se movimentam um em torno do outro.
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228 - ANDY RECTOR

Num plano à altura dos olhos (como em The Grapes of Wrath, a câmara passa às vezes para
a altura dos olhos quando as “autoridades” estão por perto), o Agente Imobiliário mostra o
apartamento a Ventura. O Agente abre uma porta “de fecho automático” e entra num quarto
vazio. Ventura mal olha lá para dentro, não entra, e sai de campo, fechando na verdade a
porta ao Agente que ainda está lá dentro a enaltecer as vantagens do bairro e a enumerar as
contas que têm de ser pagas.
“‘O que é que limita a representação?’ – Brecht tinha mandado pôr roupas molhadas no
cesto de roupa suja da actriz, de modo a que a sua anca tivesse o movimento certo, o da lavadeira
alienada. Está muito bem, mas também é estúpido, não é? Porque o que pesa no cesto não é
a roupa molhada mas o tempo, a história; e como é que se representa um peso destes?” (Roland
Barthes, Roland Barthes par Roland Barthes).
André Semedo mostra um modo muito claro de representar essa alienação, esse peso: um
Agente Imobiliário é um Agente Imobiliário. Brecht – que não acreditava muito no natura-
lismo excepto como ocasional necessidade histórica, mas que acreditava que as relações entre
as pessoas não eram naturais em situações traiçoeiras como a de Ventura com o Agente Imo-
biliário – ficaria impressionado com a precisão de André Semedo. Semedo assume o papel
de forma inequívoca para nós, “cita-o” admiravelmente, faz a sua demonstração – como que
a dizer: “é assim que as coisas são, o que é que dizem disto?”
O Guarda do Museu – a única outra pessoa para além do Agente que aborda Ventura em
vez de ser abordado por ele – vê-se forçado a soltar Ventura do Museu Gulbenkian como parte
do seu trabalho, e faz então dois gestos épicos eminentemente brechtianos. Quando sente a
“necessidade” de limpar o chão depois de Ventura sair, esfrega-o três vezes com um lenço;
não para limpar de modo naturalista o chão de uma sujidade que não está lá, mas para
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PAPPY: A REMEMORAÇÃO DOS FILHOS - 229

apresentar a ideia de que o faz como parte do seu papel social enquanto Guarda. O Agente
Imobiliário descreve um gesto fantasma parecido, também de limpeza, no novo apartamento,
depois de Ventura encostar a cara a uma parede. O gesto automático do Guarda, em frente a
um Ventura sentado num canapé Luís XV, é tão bem definido que parece irreal.

Dois órfãos da tempestade


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230 - ANDY RECTOR

Dois últimos planos da história do cinema. Uma linha de Nagaya shinshi roku (Memórias de
um Inquilino, Yasujiro Ozu, 1947). Uma linha de Juventude em Marcha, de Costa. O mesmo
cruzar de pernas no ar, a mesma tensão de juventude e futuro incerto.
Como disse Mark Peranson,20 a juventude de Juventude em Marcha é representada em
parte no filme pela jovem filha de Vanda, Beatriz; ela quase nunca está em campo ao longo
do filme, e isso torna-a ainda mais importante. É uma ideia renoiriana que explode no plano
final. Vanda pede a Ventura para olhar pela menina enquanto vai fazer umas limpezas
domésticas. No plano seguinte, que fechará o filme, Ventura está deitado de costas na cama
de Vanda, uma perna cruzada por cima da outra no ar, a filha de Vanda, adormecida nos seus
pequenos e subtis movimentos no canto inferior direito do enquadramento, criando uma tensão.
“Deve-se transmitir a sensação de que o enquadramento é demasiado apertado” (Renoir).
A filha permanece quase silenciosa na presença de Ventura, tal como durante o longo solilóquio
da mãe sobre o seu próprio nascimento. Os dois, juntos sem palavras, tornam-se uma juventude
em marcha. Os destinos não-nomeados de ambos são acompanhados pelos sons de crianças
fora de campo. A imagem parece crescer, os murmúrios de Beatriz e Ventura como testemunhos
nascentes: palavras informes num filme de palavras extremamente precisas. Deixa-se um
espaço enorme aberto para conversas futuras. Poder-se-ia evocar o último plano de Wagon
Master (1950), de Ford, com inesperada descendência: um pónei sobe uma colina, fundido a
negro.

Este texto foi publicado com algumas diferenças em www.kinoslang.blogspot.com, em Novembro/Dezem-


bro de 2006. Não teria sido possível sem o trabalho e correspondência de Cristina Fernandes, Tag Gallagher,
Klaus Volkmer, André Dias, T. Leo French, Thom Andersen, Fred Patton, “The Sweet Exorcist” e R.M.C.

1. Pedro Costa, “Recordações das casas dos mortos”, entrevista de Óscar Faria, Público – Y, 24.11.2006.
2. Serge Daney, Entrevista com Bill Krohn, 1977: http://home.earthlink.net/~steevee/Daney_1977.html.
3. Jacques Rivette, “Montage”. In Jean Narboni, Sylvie Pierre e Jacques Rivette, Cahiers du cinéma, n.°210, Março 1969.
4. In “Recordações das casas dos mortos”. E várias entrevistas com Pedro Costa.
5. Quintín sobre No Quarto da Vanda: “Mr Costa goes to Vienna”, Cinema Scope, n.°25, Inverno de 2006.
6. Marco Carynnyk, “Introduction: The Mythopoeic Vision of Alexander Dovzhenko” in Alexander Dovzhenko:
The Poet as Filmmaker, Selected Writings, 1973, MIT Press.
7. Sergei Eisenstein, Notes of a Film Director, traduzido para inglês por X. Danko (Nova Iorque: Dover Publications,
1970), pp. 142-143.
8. Dovjenko, “Autobiography” in Alexander Dovzjenko: The Poet as Filmmaker, Selected Writings, 1973, MIT Press, p. 3.
9. Walter Benjamin, “Theses on the Philosophy of History” (1940) in Illuminations, ed. Hannah Arendt, tradução
para inglês de Harry Zohn, Schocken Books, 1969.
10. Dovjenko, “Notebooks, 1 January, 1946” in Alexander Dovzjenko: The Poet as Filmmaker, op.cit., p. 143.
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PAPPY: A REMEMORAÇÃO DOS FILHOS - 231

11. André Breton, Second Manifeste du Surréalisme, 1930 (em Manifestoes of Surralism, University of Michigan Press,
1969).
12. Walter Benjamin, “Surrealism”, 1929 (Selected Writings, Volume 2, part 1: 1927-1930, Belknap Press of Harvard
Press, 1999)
13. Ibid.
14. Tag Gallagher, John Ford: The Man and His Films, University of California Press, 1986.
15. Tag Gallagher, “Lacrimae Rerum Materialized”, http://www.sensesofcinema.com/contents/05/37/straubs.html.
O exemplo de Gallagher é Drums Along the Mohawk (1939), onde Ford “escolheu substituir uma sequência espectacular
de batalha pelo longo plano de um solilóquio em que temos a experiência da batalha através de um soldado que a
revive.”
16. Tag Gallagher, John Ford: The Man and His Films, op.cit.
17. Entrevista a Pedro Costa com Pedro Maciel Guimarães e Daniel Ribeiro, 29 de Outubro de 2007 (disponível em
linha http://www.filmesdequintal.com.br/2007/entrevista-pedro-costa).
18. Jacques Rancière, “La lettre de Ventura” , Trafic n.°61, Primavera de 2007.
19. Justin Chang, Variety, 30 de Maio de 2006.
20. Cinema Scope, n.°27, Verão de 2006.
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O QUE CONTA ESTE FILME(S)?


Bernard Eisenschitz

A (ya en plena mística): Francamente no recuerdo si esa noche nos suicidamos.


J.L. Borges, Diálogo sobre un diálogo

Tarrafal, dezasseis minutos, quinze planos, histórias e diálogos estendidos na calma da noite
ou do campo. O lugar é, antes do mais, um desses “quartos do cineasta” (Jacques Rancière),
onde há vozes que emergem da penumbra e remoem interminavelmente. Há deserdados
que falam para as dominarem com a sua vida, a sua sobrevivência: aqui uma mulher e o filho
mais velho de rastas, com uns trinta anos. Nada é mais quotidiano, mais concreto do que as
situações e as informações dadas. A primeira palavra é “mamã”, as relações de família são
omnipresentes, trata-se do regresso a Cabo Verde, onde viver, como construir uma casa, o
que comer. Os lugares são nomeados, enumerados: Mourão, Montinho, Achada, Ungueira,
Raçatchó, Montinho de Cima, Montinho de Baixo, Milho Branco, Santana perto de Assomado.
A mãe tem frio, tosse, aquece as mãos debaixo dos braços, morre de calor só de pensar no
seu país e tem vontade de descansar os ossos. E depois trata-se de enfeitiçamento e de morte,
como em todos os filmes de Pedro Costa. No mesmo tom, a mãe conta uma história da terra
dela, um vampiro que dá às suas vítimas um papel, sem que elas se apercebam, e as mata
quando o vem reclamar. Reconhecemos sem dificuldade uma narrativa arquetípica que, na
Inglaterra vitoriana e depois hollywoodizada, deu origem em 1911 a uma novela de Montague
Rhodes James (Casting the Runes) e em 1957 a um filme de Jacques Tourneur (Night of the
Demon). Um morto chegou mesmo a voltar para dizer que o tinham matado, conclui ela.
O filho, José Alberto, parece pertencer a um outro mundo. Faz perguntas, imagina maneiras
de enganar esta entidade a que não se escapa, habituado como está a frustrar a lei pelas leis
da sobrevivência. Ouve-se dizer que esteve preso e que um dos seus amigos foi mandado
“para lá”. Para lá: um espectador português fará a ligação com o título, destituído de sentido
para os outros. Trata-se de um território numa das ilhas de Cabo Verde onde, em 1936, o
Portugal de Salazar estabeleceu um campo de concentração para prisioneiros políticos, uma
colónia rapidamente conhecida como “o campo da morte lenta”.
Aparecem duas novas personagens numa paisagem verdejante de colinas: o errante
Ventura de Juventude em Marcha e um homem de boina que se esforça por matar coelhos com
um pau; esta paisagem revela-se próxima (pelo menos é o que diz uma operação de montagem)
de um casebre onde se encontram as personagens, sempre monologando ou dialogando, no
fim do filme. Zé Alberto conta como teve uma licença da prisão para enterrar o pai, o homem
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238 - BERNARD EISENSCHITZ

da boina conta a história triste de uma refeição não paga no seguimento da qual a polícia o
deteve e lhe bateu. Ventura pergunta-lhe se foi morto, ele responde que não sabe. Mas vejo-me
a agrupar, a unificar aquilo que talvez não o deva ser. O paralelo com Night of the Demon
confirma-se, porém, com o papel que Zé Alberto passeia consigo e consulta atentamente,
papel apunhalado num poste no último plano, onde se pode ler em que circunstâncias ele o
aceitou, e que fixa uma data ao seu fim anunciado: a morte em James e em Tourneur, aqui a
expulsão do território.
Ora, existe uma “versão longa” deste filme. Tarrafal dura 16 minutos para 15 planos,
A Caça ao Coelho com Pau 21 minutos para 29. Pedro Costa fê-los para filmes “em episódios”,
o primeiro (O Estado do Mundo) produzido pela Fundação Gulbenkian, o outro (Memories)
pelo festival de Jeonju na Coreia. E descobrimos que se trata de dois objectos diferentes,
que só têm em comum nove minutos onde são utilizadas outras takes e certos planos são
interrompidos ou prolongados.
A divergência começa no título. O título internacional Rabbit Hunters reenvia para duas
réplicas de Tarrafal: Zé Alberto olhando para o homem de boina que agita o pau: “Ele
nunca apanhará um coelho assim, nem mesmo morto”, e Ventura olhando para uns gatos:
“Oh, um coelho.” A Caça ao Coelho com Pau é La chasse au lapin au bâton, um cumprimento
ao leão com arco e flecha (La chasse au lion à l’arc, 1965) de Jean Rouch. Centro de gravidade
misterioso de Tarrafal, o plano da mãe, com mais de sete minutos (cortado ao meio pelo
cartão do título), e que constituía perto de metade do filme, desapareceu, e ao mesmo tempo
toda e qualquer alusão ao campo da morte lenta. A segunda parte, onde Ventura, o homem
da boina e Zé Alberto tratam dos seus assuntos e meditam no campo à frente ou no interior
da barraca de chapa ondulada, é agora precedida por dezassete planos. Exceptuando o primeiro,
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O QUE CONTA ESTE FILME(S)? - 239

simples transição, situam Ventura e o seu companheiro – cujo nome é Alfredo, sabemo-lo
agora – numa paisagem urbana, o bairro habitacional de Juventude em Marcha, mais decaído
e coberto de graffiti (um deles, em forma de cruz, mostra o nome do bairro destruído das
Fontainhas, donde vêm os habitantes aqui realojados, como contava Juventude em Marcha).
Os dois homens dormem no chão, acordam, fazem uma tentativa infrutífera junto da mu-
lher de Alfredo, que o pôs na rua, Ventura joga às cartas enquanto Alfredo se serve do seu
bolso e snifa, vão a uma cantina onde o cozinheiro lhes dá uma sopa e voltam ao campo,
onde os dois filmes se reúnem. Assim Ventura, no segundo plano de Tarrafal, torna-se o fio
condutor, como o era Vanda.
Sabemos que Danièle Huillet e Jean-Marie Straub montam dois ou mais negativos dos
seus filmes com takes diferentes. No caso deste filme, filmado em digital, não se coloca a
questão de conservar vários elementos originais, não duplicados. A dissemelhança entre as
“versões” é levada mais longe, trata-se antes de um filme duplo. Perguntamo-nos, então, o que
se passa no gesto do montador quando, a partir de uma simples extensão de um esboço, se
impõe uma outra linha narrativa. É sabido que o espectador associa mentalmente dois
fragmentos de película que sejam contíguos, dando razão ao comentário de (Belmondo do-
brado pela voz de) Godard em Charlotte et son Jules (1960): “Pelo simples facto de eu falar,
existe forçosamente uma ligação com o que vem antes.” Costa propõe-se desmentir este aforismo,
mas sem deixar necessariamente ao espectador a liberdade das suas próprias associações,
em filmes que falam de fascínio e domínio. Como se o que o movesse na montagem fosse
produzir um afastamento máximo entre as células narrativas. Imaginamos duas virtualidades
de um mesmo impulso original que, com o tempo e o labor – da rodagem, da montagem –
se afastaram nos seus finais, e com a estranheza suplementar de os filmes terem um movi-
mento contrário: em vez de se afastarem, como, digamos, Les Photos d’Alix (Jean Eustache,
1980) fazia com o som e a imagem, mas num único filme, convergem. Talvez a montagem
digital sugira este tipo de solução, realizável mas pouco concebível com a película. Fatias da rea-
lidade, os filmes poderiam assim mudar em função dessa realidade, ou dos seus destinatários.
Assim se esclarecem os últimos minutos do filme cruzado. Neste ponto sabemos que Alfredo
foi entre outras coisas pedreiro, como o fora o pai de Zé Alberto, que já não encontrava
trabalho, que foi rejeitado por todos, pela mulher e pela irmã, porque queria alimentar-se
de pombos ou de coelhos doentes. Quando comeu sem pagar, a polícia deteve-o, espancou-o e
matou-o, mesmo que ele não se lembre. Foi ele que Zé Alberto, seu filho, acabou de enterrar,
em licença da prisão. É um morto que se passeia com Ventura, porta-voz de todos os cabo-
verdianos transviados em Portugal, para quem, como para os sub-proletários das borgate de
Pasolini, “essere vivi o essere morti è la stessa cosa”.
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SETE CONDIÇÕES PARA NOS PORMOS EM


ESTADO DE FAZER UM TRABALHO
José Neves

É errado comparar um realizador a um autor. Ele é mais como um arquitecto, se for criativo.
Um arquitecto concebe os seus projectos a partir de premissas impostas - o programa do edifício,
a sua dimensão, o terreno. Se ele for esperto pode fazer qualquer coisa criativa
dentro destas limitações.
John Ford

Não é difícil fazermos coisas. O que é difícil é pôrmo-nos em estado de fazê-las.


Constantin Brancusi

“É isso!” São as primeiras palavras nítidas que se ouvem, ditas por um homem, invisível, sobre
um bocadinho de filme que vemos e ouvimos andar para trás e para a frente durante alguns
minutos. É essa pequena exclamação – tão reconhecível para quem faz coisas – e o curto diálogo
que se segue entre essa voz e uma outra, de mulher, que nos fazem perceber que o movimento
estranho de gestos e de sons, com que Onde Jaz o Teu Sorriso? começa bruscamente, cor-
responde afinal à acção de alguém, a um trabalho, a um processo de tentativa e erro.
Só depois de aparecerem os nomes de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, brancos sobre
o ecrã negro, vemos correr a sequência inicial de Sicilia! já inteira. E só então, passados seis
minutos em que vemos apenas a matéria sobre a qual se trabalha – o filme que está a ser
montado – nos é mostrado quem, invisível, falava e quem, invisível, trabalhava.
Deixamos a rua, o mar, os barcos e a cidade à luz do sol, a preto e branco, e passamos para
um pequeno quarto em penumbra, uma parede, uma porta, uma mesa e uma cadeira, nem
dia nem noite, a cores. Das caras perfeitamente iluminadas e dos corpos das personagens do
filme de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub passamos para as silhuetas escuras deles
próprios, personagens do filme de Pedro Costa. Do filme que se monta passamos para a sala
de montagem.
Nestes tempos de making of’s em que se mostram os bastidores do cinema a torto e a direito,
e ao contrário de inúmeros filmes que mostram o fazer como produto misterioso do génio e da
inspiração, como resultado de tormentos e aflições ou como um gesto fácil e heróico, em
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242 -JOSÉ NEVES

Onde Jaz o Teu Sorriso? mostra-se o fazer, neste caso do próprio cinema, como um trabalho.
Um trabalho regular, difícil, reflexivo, rigoroso, exigente, obstinado, amoroso. Como dizia
Le Corbusier do seu trabalho de arquitecto: como uma pesquisa paciente.
Ao mesmo tempo, não só por tudo o que no filme de Pedro Costa se dá a ver e a ouvir,
mas também, e muito por tudo o que nele se encontra sem se ver, por estar entre ou antes
dele, não me lembro de outro filme que torne tão claro que para fazermos um trabalho –
como cineastas, arquitectos ou outra coisa qualquer – temos que ser, antes, pessoas.
E, dito isto, não se fique a pensar que Onde Jaz o Teu Sorriso? é um filme de tese ou de
mensagem. Nele está o trabalho, como em The Big Sky (1952), de Howard Hawks está a
amizade, em Fury (1936), de Fritz Lang, está a justiça, ou em Ordet (1955), de Dreyer, está a
crença. Da mesma maneira que, enquanto montam o seu filme perante um grupo de estu-
dantes, Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, sem qualquer estratégia de convencimento ou
sedução, ensinam-fazendo – porque é disso que se trata –, o cinema de Pedro Costa, ao pôr esse
trabalho à frente de todos nós, não procura explicar nada.
É tudo isto que faz com que, sendo arquitecto, tantas vezes o veja, e, sendo professor,
tantas vezes o mostre. Para poder referir-me a coisas muito importantes, indispensáveis para
quem queira fazer um trabalho e que não podem ensinar-se, só podem aprender-se. Da mesma
maneira que Danièle Huillet, quando as palavras não chegam, diz para Straub: “Como quer
que lhe explique? Veja! Veja! Veja!”

1. “A liberdade é como a liberdade de um músico,


só é livre quando domina perfeitamente a sua mecânica.”

Vemos Danièle Huillet quase sempre de costas, cabelo longo apanhado, mangas arregaçadas
e luvas, sentada à frente da sua mesa e dos seus instrumentos de trabalho, arrumando fitas
de película, cortando-as, juntando-as.
Huillet é, em Onde Jaz o Teu Sorriso?, irmã de Bach na Chronik der Anna Magdalena Bach
(1968). Ela dá forma às imagens que fixa no pequeno ecrã como ele toca o seu instrumento,
dando forma à partitura que tem à sua frente. Ela é irmã também dos cowboys, dos pistoleiros,
dos caçadores, dos pilotos de carros e de aviões, de todos os profissionais dos filmes de Howard
Hawks. Como eles, Danièle Huillet sabe que, para fazer um trabalho, tem que ser “suficiente-
mente boa”, “tem que estar à altura”. Ela é o contrário de Zita tentando desfazer um novelo
emaranhado em No Quarto da Vanda.
O trabalho dela é evidentemente difícil, mas nenhuma hesitação se prende com a sua
“mecânica”. Ela é uma operária que aprendeu o seu ofício. Sabe que não pode improvisar, ou
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SETE CONDIÇÕES - 243

melhor, sabe que para poder improvisar, para trabalhar “a matéria que lhe resiste” e merecer
os acidentes que o seu ofício lhe oferece teve que o aprender e dominá-lo perfeitamente.

2. “Deixe-me trabalhar em paz!”

Há um único momento em todo o filme em que vemos, de facto, os olhos de Danièle Huillet.
E nesse momento em que vemos os seus olhos afastarem-se do pequeno ecrã, sua ferramenta,
apercebemo-nos violentamente de que ela esteve e estará, até ao fim e sempre, inteiramente
concentrada no seu trabalho. Sem nunca desviar o olhar. Em absoluta tensão, mais uma vez
como Bach no filme deles. E mesmo nessa circunstância, quando deixa pela única vez de
fixar o que está a fazer, é para olhar Straub, literalmente de lado, ameaçadora, e dizer-lhe:
“Straub, pode saber-se porque é que tenho a porta aberta e a luz na cara?”
Straub move-se, gesticula e fala quase ininterruptamente. É a forma da sua concentração.
Huillet, imóvel, é o alarme que dá sinal quando Straub se dispersa. “Já chega!”, diz ela quando
ele insiste em fugir atrás de uma história sobre um velho chapéu.
Do conjunto de pequenos filmes chamado 6 Bagatelas, que Pedro Costa montou a partir
do que filmou e não usou, há um deles, o último, em que Huillet e Straub surgem, não no
espaço interior onde trabalham, mas no exterior, no que poderá ser o pequeno jardim da sua
casa. Talvez seja um fim de tarde, depois de um dia de trabalho, talvez um feriado. Horas
vagas, ouvem-se trovões ao longe. Árvores, uma corda com roupa estendida a secar, um cão,
uma mesa, à volta da qual Huillet e Straub estão sentados. Ela cose roupa, silenciosa e concen-
trada, ele fala. Fala sobre o trabalho deles, a liberdade, o luxo, a renúncia, a revolução. Como
na sala de montagem.
Quando regressam a casa, depois de um dia de trabalho, Huillet e Straub não são como
Gustavo Sumpta, operário marido de Vanda no Juventude em Marcha, adormecendo exausto,
à mesa do almoço, junto de Ventura. O cansaço deles não os liquida – “neste mundo em que
90% das pessoas têm um trabalho que não lhes interessa nós conseguimos ter um trabalho que
nos interessa e fazemo-lo como nos interessa, não como alguns gostariam que o fizéssemos.”
A concentração de que aqui se trata é semelhante à das crianças para quem – como João
dos Santos nos explicou – “agir, fantasiar e pensar são inseparáveis” e nunca fazem férias.
Estão sempre, sempre concentradas, a brincar.
E sem a concentração que eles põem no trabalho que fazem não seria nunca possível
a concentração que existe em todos os seus filmes. Essa concentração que é também re-
dução, como diz Straub. E como Pedro Costa faz, à sua maneira, para responder às “premis-
sas que lhe são impostas” – porque é aí que tudo começa, numa encomenda para fazer um
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244 -JOSÉ NEVES

filme sobre o casal de cineastas. Ao escolher, entre todas as possibilidades, dar a ver apenas
a fase do trabalho de montagem, ao escolher filmar em um só espaço e nele três ou quatro
elementos, uma ou duas luzes, um ou dois pontos de vista. Ao tomar de Danièle Huillet e
de Jean-Marie Straub apenas os seus gestos e as suas vozes. Em vez dos rostos presentes
em quase toda a obra de Pedro Costa. Desde a primeira imagem do seu primeiro filme –
O Sangue – em que há uma cara que nos olha antes de ser esbofeteada, até à cara de Tina que
fecha os olhos atrás de uma porta entreaberta, na última imagem de Ossos. Das caras
pequenas que, olhando-nos também, se seguem às imagens iniciais do vulcão da Casa de
Lava, a todas as caras de Vanda, de Pango, de Ventura. Em Onde Jaz o Teu Sorriso? todos os
rostos são os emprestados de Sicilia!.
Pedro Costa não só trabalha com as condicionantes próprias do seu ofício (as que fazem
John Ford comparar o seu trabalho com o do arquitecto) como constrói, para além delas, os
seus próprios limites, concentrando tudo em três ou quatro elementos. Era Chaplin quem
dizia que para fazer um filme lhe bastava um parque, um polícia e uma rapariga bonita.

3. “Estamos a tentar. Vamos lá ver se resulta.”

Todo o trabalho que vemos ser feito por Huillet e Straub – e, sem dúvida, aquele do qual
só vemos o fruto, de Pedro Costa – corresponde a um processo de tentativa e erro, exacta-
mente como na prática do projecto de arquitectura em que nada se pode conseguir sem o que
Straub claramente diz e o filme, em todos os momentos, mostra: “voltando atrás, corri-
gindo, renunciando, acrescentando.” E eles sabem que não podem ficar a meio desse pro-
cesso. Têm que burilar até ao fim. “Caso contrário, faz-se o costume […] e toca a andar... Vai
mais uma pincelada?”, diz Straub enquanto a sua silhueta imita o gesto provocador do velho
pintor no fim do Mon Oncle (1958), de Tati. É tudo ou nada.
Quando Danièle Huillet, logo no início, mostra a Straub o “fotograma de diferença”
entre eles; quando procuram juntos – ou inventam – o sorriso na cara do Filho; quando
Straub aponta a “derrapagem” do mesmo Filho, que dá uma palmada sobre a mesa enquanto
diz uma palavra e não outra – “coisa de padres, e não coisa de padres”; quando sussurra
com o homem de Leonforte aquele texto com as mesmas, exactas acentuações – “daria
tudo o que tenho, até o cavalo, as terras, para me sentir mais em paz com os homens, como
uma pessoa que não tem nada de que se censurar”; mas também quando Straub compara
três versões de um verso da mesma canção – “les fusils, la mitraille, les grenades”; “vos fusils,
vos mitrailles, vos grenades”; “vos fusils, la mitraille, les grenades”; ou quando Huillet corrige
Straub por uma camisa sua ter sido roubada num supermercado e não encontrada no lixo
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SETE CONDIÇÕES - 245

– “A que você encontrou tinha uma queimadura de cigarro. Era aos quadradinhos, vermelhos
e verdes”; ou quando ela corrige a história que Straub conta – “3 semanas” em vez de “8 dias”
“Não se foi nada embora, disseram-lhe que era melhor sair” – sobre o princípio do amor deles...
A exigência, o rigor, a obstinação são totais.
“Aperte o cinto!”, diz Huillet muitas vezes para Straub, fazendo-nos ver de repente na
sua mesa de trabalho um painel de comandos, como quem parte para uma viagem que sabe
ser muito difícil e arriscada. Eles – os três cineastas – acreditam, como Hölderlin, que
“lá onde está o perigo, também cresce o que salva”.

4. “O génio não é mais do que uma longa paciência.”

Perante uma hesitação de Straub, Huillet pede-lhe que “não leve cem anos a pensar”. Ele
responde: “Não preciso de cem anos para pensar, preciso de setenta.” Porquê setenta?
Podia dizer dez ou mil que seria mais redondo. Refere-se Straub à sua idade (nasceu em
1933, o filme é rodado pouco antes de 2003)? Ele sabe que precisou da sua vida inteira para
poder ter cada pensamento como aquele que Huillet dele espera, para poder fazer cada escolha,
para construir cada dúvida e cada convicção.
E sabe que para cada trabalho, para trabalhar a “matéria que nos resiste”, é preciso tempo –
“Isso não surge de repente, de um dia para o outro, tem de se ter tempo e paciência.”
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246 -JOSÉ NEVES

Pedro Costa filmou, recolhido com eles durante todos os dias que o trabalho deles durou,
mais de 150 horas. A mais valiosa recompensa pelo seu trabalho paciente sobre a paciência
do trabalho dos outros está nas próprias palavras de Straub: “se houver uma longa paciência,
estará carregada do seu contrário, [...] estará carregada de ternura e violência.” É com essa
ternura e com essa violência que Onde Jaz o Teu Sorriso? está carregado.

5. “Desculpe, mas não quero...”

À cena, no Sicilia!, em que a Mãe fala para o Filho enquanto olha através de uma janela –
“havia uma capela que não se vê, naquela montanha, iluminada por dentro e por fora e que
parecia uma estrela...” –, Pedro Costa juntou as palavras de Straub, que conta como recusou
mostrar-nos a montanha que ela está a olhar e sobre a qual fala – “depois de filmarmos a mon-
tanha de Tebas, em Moses und Aron (1975), e o Etna e a montanha de Saint Victoire, porque
havemos de filmar mais uma montanha? E renunciamos, aos poucos. Depois, um belo dia...”
Quem domina uma mecânica, traz também sempre consigo uma “mala de truques” a que
pode facilmente recorrer, “como um ilusionista recorre à sua cartola”, dizia sempre Vítor
Figueiredo, o arquitecto. Trata-se aqui da ambição de nos libertarmos dela. Para tornar
possível “um suspiro passar a ser um romance”.

6. “Aguentar juntos”

O trabalho do cinema – aqui tanto também, como o da arquitectura – é sempre um trabalho


colectivo. É feito com muita gente que faz coisas muito diferentes para que, no fim, fique uma
só coisa. Ainda o é mais, no caso raro de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, em que o
trabalho é partilhado entre dois cineastas.
Há uma célebre fábula de Monteiro Lobato, “A Cigarra e a Formiga (A Formiga Boa)”, em
tudo semelhante à de Esopo recontada por La Fontaine, a não ser no seu final. Nesta, a formiga,
reconhecendo a cigarra que, no Verão, ouvia cantar maravilhada enquanto fazia um trabalho
duro, convida-a passar o Inverno em sua casa, solidária e agradecida.
À primeira vista, um deles é formiga e o outro cigarra. “Quer vir para aqui?”, pergunta ela,
ríspida. “Nem pensar”, responde ele. Ela suspira. Ele volta a tentar “É...” Ela, interrompe-o:
“Cale-se!” Na verdade, os dois fazem o mesmo trabalho, mas de maneiras – através de gestos
– diferentes. Um diz mata e o outro diz esfola. A “conversa fiada” e o “saber onde cortar” (a
teoria e a prática, nas palavras directas de Huillet) em nenhum momento podem desligar-se.
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SETE CONDIÇÕES - 247

Mas eles invocam outro colectivo, para com ele trabalhar. Formam a sua família, ao
referirem-se constantemente aos que amam (Hölderlin, Pavese, Vittorini, Fortini, Kafka,
Péguy, Benjamin, Chaplin, Tati, Buñuel, Ray, Ford, Renoir, Cocteau, Rivette, Godard, Bresson...)
com as adivinhas cinéfilas de Straub, ou a propósito de um corte, de uma escolha, de uma
decisão, tanto quanto se demarcam do que desprezam ou odeiam.
Eles sabem que para trabalhar juntos – para “aguentar juntos” – têm também que estar
muito sós. Não como Rilke, quando diz que é preciso caminhar em si próprio durante horas
e não encontrar ninguém. Mas como Novalis, que diz que “estamos sós com aquilo que
amamos”.
E, como Kafka, parecem dizer: “é do verdadeiro adversário que te chega uma coragem
infinita.”

7. “No combate entre ti e o mundo, escolhe o mundo.”

“Não tem frio?” “Não tem fome?” “Não sei.” São as palavras quase murmuradas de Danièle
e Jean-Marie que Pedro Costa sobrepõe à cena mais terna de Sicilia!: o encontro entre o Filho
e a sua Mãe. É um dos pouquíssimos momentos em que se torna explícita a intimidade entre
o casal de cineastas, que atravessa e sustenta todo o filme.
Onde Jaz o Teu Sorriso? é também um filme de amor, e não só deste amor. “No combate
entre ti e o mundo, escolhe o mundo”, resume Jean-Marie Straub, numa outra Bagatela, antes
de recontar com Danièle Huillet uma história de Kafka em que um hindu se sacrificou,
dando-se a comer a uns filhotes de tigre para que não morressem de fome. Tudo o que vemos
é, acima de tudo, um acto de amor pelos outros, pelas coisas e por este mundo. É um acto de
generosidade, de fraternidade, de fidelidade.
Eles – Huillet, Straub e Costa – sabem que o trabalho e o resultado dele, feito assim desta
maneira, é sempre uma dádiva. Na melhor das hipóteses, uma troca. É que sem isso não há
cinema, não há arquitectura, não há coisa nenhuma.
“E o resto é palha para burros...”
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NOVE NOTAS SOBRE


ONDE JAZ O TEU SORRISO ?
Jean-Pierre Gorin

1.

Uma coisa sumamente irritante. Todos os artigos que li sobre Onde Jaz o Teu Sorriso? con-
seguem, de uma maneira ou de outra, apagar o nome de Pedro Costa da equação. A simples
menção do género em que este filme supostamente se insere é quanto baste para conseguir
esse efeito, como se etiquetá-lo como “documentário” fosse suficiente para dispensar a
análise das escolhas feitas e da estratégia elaborada pelo realizador. É como se Danièle Huillet
e Jean-Marie Straub estivessem de algum modo miraculosamente presentes e não apresentados.
Resumindo, para se falar realmente de Onde Jaz o Teu Sorriso? é preciso falar de Costa (ou,
para sermos mais exactos, do seu trabalho), antes mesmo de se falar dos Straub (ou, para
sermos mais exactos, do trabalho dos Straub). O que é que ele fez para nos dar os Straub
com uma tal vitalidade?

2.

Durante uma das contendas épicas que pontuam este filme – aquela que de facto lhe dá o
título e que é suscitada pela dificuldade em extrair das imagens a emoção de um sorriso nos
olhos de um actor – Jean-Marie Straub, sotto voce, atira uma pergunta a Danièle Huillet: “Está
com medo, não?” Pôr isto por escrito trai a delicadeza e o amor que temperam a ironia. Não
posso deixar de sentir que o medo deve ter feito parte da equação para Costa, logo desde o
início. Como dar o peso justo a cineastas que apostam as suas vidas na escavação de minúcias
tão essenciais? Como lidar com o que é exigido pelo exercício (um retrato para a série Cinéma,
de notre temps) sem trair nem normalizar? E suspeito que, quando captou a resposta exasperada
e feroz que Danièle vocifera – “Não estou com medo, estou a ver!” –, deve ter percebido que
estava no bom caminho.

3.

Perfurações a passar pelo mecanismo da mesa de montagem; rebobinar dos movimentos e


dos sons; paragens fotograma a fotograma; sobreposições de planos e contraste de escalas na
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250 - JEAN-PIERRE GORIN

junção de dois planos; dança das marcas do lápis branco; explosão de luz branca no ecrã da
mesa de montagem ou, a contrastar, escuridão absoluta e absorvente; o som da fita a ser
esticada; o ruído surdo e insistente da coladeira; o ronronar da rebobinagem; a penumbra da
sala de montagem; os seus momentos de escuridão completa; explosões intermitentes de luz
vindas do candeeiro preso no bordo da mesa de montagem; os assistentes de montagem, ao
lado, a fazer silenciosamente cortes ou a limpar a cópia, os rostos enquadrados por uma luz
que parece saída de um Georges de la Tour, etc. Mesmo antes de começarmos a chegar do
lado dos Straub, como diria Proust, a descobrir a montagem tal como eles a praticam, o filme
ancora-se na materialidade do processo de montagem. Faz disso o seu drama. Costa insiste
em manter-nos aí durante a maior parte dos cento e quatro minutos da duração. O ritmo de
pára-arranca, o gaguejar que dá origem à forma a partir da atenção incansável dada ao
material, organizado de acordo com a ideia, a intenção que presidiu à sua recolha.

4.

Isto vem a par com uma mise-en-scène rigorosa do espaço. A altura da câmara é determinada
pela escala da montadora (Danièle Huillet), sentada à mesa de montagem; a distância é
sobretudo uma constante determinada pela necessidade de lhe dar espaço. A montagem como
um trabalho de paciência, de muitas horas sentadas, tornado palpável pelo modo como Costa
sustém discretamente o olhar e respeita o espaço mental que Danièle Huillet constantemente
exige ou tenta reclamar. Mas dizer isto ainda não chega para apreender a inteligência da
organização visual que Costa constrói para nós. Há a sua insistência no descentrar do espaço,
a monumentalidade da mesa de montagem, reconhecida e ainda assim atenuada pelo facto
de quase nunca ser apresentada frontalmente, de o espectador a ter na periferia da sua visão,
à esquerda de uma linha que divide o espaço e chama a nossa atenção para uma porta que
abre a sala de montagem para a monotonia de um corredor institucional. O espaço da sala
de montagem visto na diagonal com os olhos do realizador preferido dos Straub, John Ford.
Como devem ter ficado descansados os dois cineastas, irritantemente exigentes, quando se
depararam com esta articulação dramática entre interior e exterior: assim monta-se o palco
apropriado para o drama próximo, tudo a uma escala apropriada, a máquina a ancorar o
espaço, mas apresentada sem os habituais fetichismos, a cadeira da montadora, as latas de
película e a intimidade forçada da sala de montagem, elevada à potência N pelo simples facto
de existir aquele rectângulo aberto no lado direito da imagem.
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NOVE NOTAS - 251

5.

E, como consequência desta mise-en-scène rigorosa do espaço, os “actores”, perfeitos. Mas


ainda antes de falar dessa perfeição, deixem-me insistir no facto de o palco não ser apenas
ocupado por Danièle Huillet e Jean-Marie Straub e os assistentes ocasionais, no seu papel de
duendes estudiosos do processo de montagem. Deixem-me insistir no facto de haver uma
terceira (ou quarta, se contarmos os assistentes) instância cuja presença permite a articulação
do drama. É o próprio Costa, constantemente interpelado e obstinadamente silencioso. Ele
é o nosso duplo, aquele que consegue obter de Straub, e num grau menor de Huillet, estas
extraordinárias notas de rodapé ao vivo do seu trabalho. Ele é a presença silenciosa que dá as
deixas a Straub para um extraordinário número de comédia, expresso nas entoações e ritmos
de um Vigo ou de um actor dos primeiros filmes de Renoir. Ele é a presença silenciosa
contra a qual Jean-Marie Straub julga que tem de fazer manobras de diversão para dar a
Danièle Huillet tempo e espaço para pensar; esta presença silenciosa que dá origem às arengas
românticas contra as forças que se congregam contra um cinema que, pensam tanto Huillet
como Straub, só pode ser definido de uma maneira.

6.

Mas o que é que torna os “actores” perfeitos? Perfeitos antes de mais porque, tal como muitas
das coisas neste filme, Costa nos dá deles uma visão tangencial. Este é um retrato que evita
a postura frontal, abertamente pornográfica, que cineastas menores do que Costa reservam
para os objectos deste tipo de “retratos”. É uma tangencialidade conseguida tanto pela posição
da câmara como pelo artifício da luz (ou pela recusa em criá-lo, o que em última análise vai
dar ao mesmo). Vemos perfis, os olhos fixos, num olhar que vai para lá do enquadramento,
solicitado pelas entoações de um diálogo siciliano, pelo ronronar das perfurações ou pelo
rebobinar da banda sonora. E quando não vemos perfis, vemos nucas ou ombros. A fonte de
luz não os esculpe, torna-os abstractos. Este é um filme assombrado pelo poder da silhueta,
e os rostos apresentados, aqueles que nos é permitido entrever, tendem sempre a gravitar
para esse estado: uma bidimensionalidade abstracta que faz com que tanto Danièle Huillet
como Jean-Marie Straub existam na periferia do seu próprio trabalho, num qualquer modo
de reconhecer, ponderar e dar pacientemente forma à suas propriedades físicas. Há um rigor
nesta abstracção da forma humana, no dispor-se a estar numa tal proximidade com uma
figura sem nunca jogar abertamente o jogo que consiste em ir à procura do que é explícito e
revelador numa expressão. A retórica do retrato de Costa vai contra todas as convenções do
retrato cinematográfico. Não somos convidados a testemunhar o desabrochar num rosto de
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uma anedota memorizada; não somos convidados a decifrar sequer a força da convicção na
articulação de uma expressão: estamos só a ver corpos, ou partes de corpos, transformados
em silhueta pela luz potente, ainda que ténue, que vem do material fílmico a que eles tentam
sem descanso dar forma. Silhuetas pelo brilho do próprio trabalho.

7.

Pelo brilho do próprio trabalho. Permitam-me demorar-me ainda um pouco mais nestas
palavras. Este modo de pôr Danièle Huillet e Jean-Marie Straub em silhueta contra o brilho
da mesa de montagem provoca ainda mais estragos na retórica do retrato filmado, que
caracteriza uma série tão repleta de momentos magníficos como é Cinéma, de notre temps.
Estes momentos de Sicilia! (1999), incessantemente rebobinados para trás e para a frente
no ecrã da mesa de montagem, pontuando este filme e conferindo-lhe a sua gaguez criativa,
não são citações ou ilustrações de um discurso reificado que existiria a posteriori. Os mo-
mentos de Sicilia! que ocupam por completo o ecrã são revogáveis e apresentados como tal.
São a matéria que está a ser moldada e formada. É esse o milagre que o pôr em silhueta nos
dá: não é o discurso acerca do trabalho, mas o próprio trabalho ou, mais precisamente, o
drama de qualquer trabalho significativo, o seu ritmo, o seu inerente carácter obsessivo, a sua in-
completude cumulativa, o seu lento crescimento. Este é um filme que se interessa incansa-
velmente pelo suor, pelo combate que isso implica, e que se propõe a tarefa de os tornar
perceptíveis. Há nesse processo uma postura materialista que espelha a dos Straub, uma
atenção aos detalhes das circunstâncias que estão à mão (Huillet, Straub, uma sala que dá
para um corredor, os elementos desarticulados de uma ideia de filme no processo de pro-
cura da sua forma, palavras atiradas ao ecrã, e atiradas um ao outro) que dedica aos realiza-
dores de Sicilia! a mesma atenção que Danièle Huillet e Jean-Marie Straub dedicam ao seu
próprio material. Costa, a certa altura, escolhe demorar-se numa das personagens de Sici-
lia!. É um longo monólogo que tem lugar num comboio, quando uma das personagens
opõe às razões mundanas que tem para se sentir satisfeito com o vazio profundo da sua
alma. É, na sua construção, um monólogo Straub/ Huillet por excelência, pronunciado com a
atenção à métrica do texto, aos tempos e às respirações que eles transmitem aos não-profissio-
nais que conseguem convencer a trabalhar para eles. Mas é uma das poucas secções no filme
de Costa que não é moldada à frente dos nossos olhos. Perguntei-me porquê, até ouvir a voz
de Straub a dizer sem som as mesmas palavras que o actor entoa no ecrã e até, no fim da se-
quência, ouvir Danièle Huillet sublinhar a homenagem que Straub tinha prestado ao seu
actor no fim da take: “Giovanni, nunca te esquecerei!” Apercebi-me então que este era o tipo
de gratidão que Costa queria expressar para com a generosidade dos Straub, ao disporem-se
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a inclui-lo no trabalho do trabalho deles. Está presente ao longo de todo o Onde Jaz o Teu Sor-
riso? a emoção intensa de um “Danièle, Jean-Marie, nunca vos esquecerei!”. Mas a genero-
sidade que os Straub agradecem ao seu actor é o resultado da clareza da sua própria intenção,
e isto também se aplica a Costa: é a clara atenção que ele coloca na mise-en-scène do trabalho
do trabalho que nos dá esta exemplar destilação do ethos de Straub e Huillet, que está no
âmago de Onde Jaz o Teu Sorriso?.

8.

Falar deste ethos é, antes de mais, falar de um milagre que está suspenso de uma vírgula.
Danièle Huillet vírgula Jean-Marie Straub. Posso estar enganado, mas Costa é, tanto quanto
sei, o único que não usa “e” nem “/” para ligar estes dois nomes. Junta-os pela respiração de
uma vírgula. Não é um dos milagres menores deste filme o dar a quem o vê uma sensação
táctil de como esta colaboração exemplar se desenrola. Não é um milagre menor o arrancar-
nos de um modo tão eficaz e elegante à atribuição patética de uma autoria relativa, que con-
tinua a ser a regra para a maior parte daqueles que lidam com aquilo que insistem em ver
como um animal misterioso, a colaboração. Mais uma vez, Costa dá-nos algo de surpreendente:
na escuridão da sala de montagem, sob o brilho reflectido do material que é deles, desenrola-
se uma comédia. Há a passagem hilariante do “vous” formal ao “tu” informal que pontua
alguns dos momentos mais voláteis criados pela necessidade de explorar o material como
deve ser. Há o puxa-empurra, e o seu crescendo, a rispidez amansada do gracejar, uma rispidez
antiquada e engraçadíssima. Mais uma vez, o facto de tudo provir de silhuetas, de tudo fazer
ricochete na penumbra da sala de montagem, ou então deslizar brevemente pela superfície
de alguns fotogramas, tudo isso serve a comédia. Qualquer outra coisa, qualquer esforço para
captar a contenda nos rostos dos “actores” teria sido grosseiro; qualquer outra coisa teria
traído a sua inocência, a sua qualidade pueril. A mão firme de Costa está em todo o filme. Ele
usa a sua presença silenciosa para trazer ao de cima a “pequena música” de tudo aquilo. A porta
que abre o espaço da sala de montagem para o corredor do Fresnoy torna-se um adereço seu,
esta moldura à volta da silhueta de Jean-Marie Straub, que proporciona uma ilustração per-
feita duma frase que Straub atribui a um velho napolitano, e que ele usa a certa altura para
falar sobre os actores de Sicilia!: “A alma nasce da forma do corpo. Já disse isto 40 mil vezes.
Quem descobriu isto foi um tal Tomás de Aquino. E como ele era napolitano, sabia do que
estava a falar.” É uma prova de um princípio fundamental da estética de Straub, Huillet que,
numa reviravolta cómica, atinge o próprio Straub, denunciando a forma do seu corpo e a
natureza travessa da sua alma. Ele dança durante o filme; cantarola durante o filme; resmunga
ou então vocifera com a entoação de um conspirador de Zéro de Conduite (Jean Vigo, 1933)
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que tivesse conseguido manter, apesar dos anos, apesar dos filmes, a capacidade para a revolta
e para a alegria. Mas esta atenção prestada à volubilidade burlesca de Jean-Marie Straub é
também um modo de situar Danièle Huillet. A atenção ao corpo dela, e portanto à sua alma, é,
no fim de contas, igualmente intensa, mesmo se mais ancorada. É por Onde Jaz o Teu Sorriso?
ser tão perfeitamente o filme deles que é essencialmente o filme dela. Ela personifica todos
os gestos da montagem. É através dela que sentimos o peso da longa paciência da montagem.
Vemo-la sentada durante tanto tempo que, ao vê-la depois de pé, a levar latas de película dum
lado para o outro, temos mesmo a sensação de fim do dia. Ouvimos a tensão e o cansaço da
concentração. Ouvimos a impaciência que trespassa a irreprimível volubilidade de Jean-Marie
Straub e que reclama espaço e silêncio para ela, enquanto se confronta com o material. Há
qualquer coisa de sucessivamente severo, exasperado, divertido, afectuoso e terno que
transparece em tudo aquilo. Que flui no espaço confinado da sala de montagem de Danièle
para Jean-Marie; que dá sentido à vírgula com que Costa uniu os dois nomes. No fim de
contas, o que este filme nos dá é qualquer coisa de capital. A partir de Godard, as palavras
“amor e trabalho” foram muitas vezes pronunciadas. Na maioria dos casos acabam por parecer
slogans ocos de uma utopia do casal. A atenção de Costa aos gestos e aos enunciados faz destas
duas palavras uma realidade. No princípio do filme, no fim de uma batalha sobre a montagem,
ouvimos Jean-Marie Straub a perguntar em off qual é a diferença entre as escolhas que cada
um deles propôs. Ouvimos Danièle Huillet dizer “meio fotograma”. Uma vírgula, meio foto-
grama, amor e trabalho.

9.

Onde Jaz o Teu Sorriso? reinventa a ideia e a prática do retrato ou, em termos mais gerais, da
homenagem. Através da inteligência e da atenção, evita a hagiografia lamechas. Ninguém
tornou mais nítida, mais tangível a dedicação à clareza, a convicção de que a imagem é
aparência, e a convicção de que a forma é a mediação material de uma ideia, que estão no
centro da prática de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. Resumindo, ninguém nos deu uma
visão mais clara do classicismo que eles reivindicam para si próprios, e ninguém tornou mais
clara a legitimidade dessa reivindicação. Ninguém destacou tão bem a política de uma tal
afirmação: a insistência na preservação (da natureza e da cultura) como componente essencial
da revolução. O sorriso escondido que o título [em francês: Où gît votre sourire enfoui?] do filme
diz estar enterrado (uma tradução melhor para “enfoui”) e que precisa de ser desenterrado
é, anedoticamente, apenas um brilho no olho de um actor. É o sorriso do mundo que Danièle
Huillet e Jean-Marie Straub querem recuperar dos destroços. O último plano deste filme
magnífico dá a essa busca quixotesca toda a sua pungência. Os realizadores, de costas para nós,
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espreitam para o auditório escuro onde está a ser projectado Der Tod des Empedokles (A Morte
de Empédocles, 1987). Ouvem-se, abafados, os acordes do “Heiliger Dankgesang” do Opus
132 de Beethoven. Danièle sai pela esquerda, sobe as escadas para a cabine de projecção.
Jean-Marie Straub senta-se nas escadas, movendo delicadamente a mão ao som da música.
Sozinho.

***

Acabo de chegar de uma viagem de dois dias, San Diego a Paris, ida e volta, para o funeral de Danièle
Huillet. A alma cheia de tristeza. O primeiro filme que ela realizou com Jean-Marie Straub fez de mim
cineasta. Isto foi em 1965, tinha eu 22 anos. Entrei num cinema que passava Nicht Versöhnt oder Es hilft
nur Gewalt wo Gewalt Herrscht (1965). Como podia eu resistir a um título que abarcava tão perfeitamente
a minha música? Assisti ao filme inteiro sem perceber nada mas, quando chegou ao fim, tinha acontecido
qualquer coisa de estranho: eu, que não sabia uma palavra de alemão, fiquei convencido de que, sem
saber como, tinha percebido tudo com uma clareza absoluta. Saí do cinema com vontade de me envolver
num meio capaz de realizar uma magia tão íntima. E, até hoje, o que me aconteceu enquanto via
Nicht Versöhnt é a melhor definição que conheço do que é ou devia ser um filme político. Há algumas
pessoas na minha vida cuja mera existência de algum modo me protege. Danièle era uma delas.
Protegia-me, o facto de estar vivo um amor tão furioso pelo ofício, um amor tão furioso pela vida…
Ela formava um casal extraordinário com Jean-Marie, um casal com mau-feitio, obcecado pelo
trabalho, a cada dia mais disponível para as belezas mais simples do mundo, porque nunca conseguiam
deixar de se enraivecer contra aquilo que as conspurcava… Bastava olhar para a maneira como eles se
mexiam um em relação ao outro para perceber a coreografia; bastava ouvir-lhes uma troca de palavras
para apanhar a música: nunca outras duas pessoas soletraram a palavra amor com tanta clareza; nunca
outras duas pessoas me ensinaram tão bem que a exigência pode ser alegria…
E agora temo pela vida de Jean-Marie… Era capaz de imaginar que ela lhe sobrevivesse, mas não que
ele lhe sobrevivesse a ela…
Como em todos os funerais, claro, havia o mesmo sentimento proustiano e devastador de Le Temps
retrouvé. Estava ali uma centena de pessoas com “la gueule de circonstance”. JLG e Anne-Marie e outras
que vocês não conhecem e que pontuaram a vida de Danièle. Um punhado de rostos jovens arrastaram
o dia do desespero para a esperança. É o gracioso dever da juventude. Jean-Marie estava lá (dizia-se que
ele não ia aparecer) com o eterno charuto, vestido o mais não-funeral possível. O rosto dela estava visível,
a sua beleza severa e terna emoldurada por uma pequena abertura no caixão fechado. Um ícone bizantino.
O vento e o som do tráfego do lado de fora do cemitério comeram as palavras de uma citação que foi lida
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antes de ela ser levada para a campa. Ouvi um texto em alemão e as palavras “Não nomearei o nome
daquele cujo nome é mais forte do que o próprio amor…” Desfilámos à beira da campa, deitámos rosas
para dentro de um poço tão fundo e tão escuro que tivemos pela primeira vez a noção do quão irremedia-
velmente a tínhamos perdido. Jean-Marie, sentado sobre a pedra tumular do lado, observava. Um dos
presentes passou-lhe um ramo de rosas. Ele aproximou-se da campa e atirou-o lá para dentro. Saiu-lhe
um grito espantoso contra a morte e as suas obras, e depois fugiu a correr por entre as campas, a uivar
de dor, com os amigos no seu encalço. Trouxeram-no de volta. Assistiu ao fechamento da sepultura, o
corpo meio dobrado como se tivesse sido atingido no estômago pela força de um murro, e levantou o
punho esquerdo, na saudação orgulhosa e cheia de esperança dos grevistas da Frente Popular de França,
dos combatentes republicanos de Espanha e dos comunistas da Alemanha, quando a pedra finalmente
deslizou para a tapar.
JLG, Anne-Marie e eu caminhámos de braço dado pela álea ensombrada durante algum tempo.
Finalmente deixaram-me sozinho, e caminhei durante o resto da tarde e da noite que se seguiu
antes de apanhar um voo de volta para os Estados Unidos.

San Diego, Outubro de 2006

.
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MAS PORQUÊ?!
(OBSERVAÇÕES)
Philippe Lafosse

É meu propósito tornar manifesto que nenhum ponto desta composição


se pode atribuir ao acidente ou à intuição – que o trabalho se desenvolveu, passo a passo,
até se completar, com a precisão e a lógica rigorosa de um problema matemático.
Edgar Allan Poe, The Philosophy of Composition, 1846

No cais de um porto, está um homem, de costas. Fala italiano, irritado.


- Mas porquê?
É um filme a preto e branco. A imagem treme ligeiramente. O filme avança, recua, um
ruído de máquina, uma claquete no ecrã. É um filme sobre um trabalho que está a decorrer,
trabalho que se processa, a partir de takes seleccionadas, depois da rodagem de um filme.
Um trabalho de montagem, aliás já iniciado, a uma fase do qual assistimos: “É isso”, diz,
quarenta segundos depois do início, uma voz masculina grave, anunciando o fim de uma
procura.
Um trabalho feito por quem? Duas pessoas: um homem e uma mulher.
- É isso.
- Quer vir para aqui?
- Nem pensar.
Paragem sobre a imagem, recuo, nova paragem sobre a imagem, ralenti… Um casal pro-
cura; vemo-lo, ouvimo-lo. Sentimos passar os segundos. Deverá o homem no ecrã ter a boca
aberta? O que procura este casal? A precisão. Abertura de uma boca, pronúncia de uma letra.
- Cuidado com o “n”.
Uma precisão até à letra, quase.
- Assim.
- Tem a certeza?…
Como cortar, onde cortar? Porquê? Ele justifica o que faz o homem no ecrã: é a tensão ner-
vosa, porque se preparava para a sua grande tirada, ali, e a violência e tudo o resto, então, ele…
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MAS PORQUÊ?! - 259

- Sim, está bem, mas isso é conversa fiada…


Trata-se de estar inteiramente debruçado sobre o objecto: as imagens a trabalhar, a arti-
culação. Trata-se agora de fazer com o que se rodou o que o escultor faz com o bloco de mármore
que escolheu e que começou a malhar. Tem-se o que se tem, talvez pudesse ter sido de outro
modo, mas é com isto que se tem de ir em frente, é assim.
- Agora, é preciso é saber onde cortar.
Procuram. Ela faz uns ruídos com a boca, perplexa.
- Esta, esta seria a minha proposta; agora mostre-me a sua…
Procurar: remontar, propor, arranjar uma solução.
- Sim… desconfio do seu fanatismo nesta matéria.
As vozes estão sempre off. O que se mostra é o trabalho. Mal passaram dois minutos e
meio de filme e já se sabe que é esse trabalho minucioso, pertinaz e artesanal, que será o
centro do filme de Pedro Costa.
- Aperte o cinto.
A sala de montagem é uma cabina de pilotagem. Observamos o trabalho de marinheiros
que anseiam pela precisão de cada gesto, à direita, à esquerda, a condução mais rigorosa
possível, e não demonstram a mínima complacência.
- Está melhor, fica mais claro! No outro, há um…
Evitar escolhos, recifes, ressacas. Adivinhar as correntes, decidir em função do que se vê
e do que se não vê. Trabalho de questionamento permanente, de confrontação, de conflitos.
- Também, Straub!
Será que esta montagem não elimina alguns “harmónicos preparatórios do n”?
- O que é?
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260 - PHILIPPE LAFOSSE

- … Um fotograma de diferença…

Ela: Danièle Huillet. Ele: Jean-Marie Straub. Um casal. Que se trata por você, com uma
única excepção.
Um casal?
Imediatamente depois deste título, duas imagens em sobreimpressão do filme trabalhado,
dois fotogramas que “compõem” um corpo. Impressão, sobreimpressão.
- Mas porquê? É assim tão difícil vender as laranjas?
Quase seis minutos se escoaram. Grande plano dela, de perfil. Plano aproximado dele, de
perfil, que logo se levanta (não apertou o cinto) e desaparece, cantando em alemão. Dois planos
a cores e sombras, porque a cabina de pilotagem é escura. E, dado ser uma questão de forma,
esta elucidação: a tradução em palavras do que se passa diante dos nossos olhos:
- Não espera pela forma antes do pensamento…
- … a forma aparecerá ao mesmo tempo.
E o título, como uma pluma.
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MAS PORQUÊ?! - 261

É um filme a cores sobre o trabalho de montagem de um casal de cineastas: Danièle


Huillet e Jean-Marie Straub. Ela está de pé, só, com a mão esquerda enluvada, manipulando
a película com todo o cuidado; depois, pela única escotilha à direita, entra ele: o casal em
questão(ões), na sala de montagem.
Sem comentários de terceiros, sem conversa fiada que situe, que explique o que, de
qualquer modo, já compreendemos ou iremos compreender em breve. Tal como Danièle
Huillet e Jean-Marie Straub estão debruçados sobre o seu objecto (o trabalho que está ali, a
rota que têm de seguir e o seu destino: o seu centro), Pedro Costa está debruçado sobre o seu
objecto, a sua acção (o trabalho dos dois cineastas: os seus gestos, os seus corpos, as suas
reflexões, os seus sentimentos). Sem hesitar, podemos dizer desde já que, pela sua forma, que
surge ao mesmo tempo que o pensamento, o seu filme é inteiramente dedicado ao seu objecto:
vemo-lo, ouvimo-lo. Também já compreendemos que a composição dessa obra será presidida,
passo a passo, pela precisão e por uma lógica rigorosa.
Sente-se que se está perante um filme com uma estrutura forte – diante de um filme de…
cineasta. Será um filme de Pedro Costa o mais perto possível do seu objecto, ao seu serviço
– como sempre. E, desde esses primeiros minutos, pela sua vontade de estar com e por, este
filme diz – nomeadamente, e isso é importante, àqueles e àquelas que não conheçam o
trabalho de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub – o que foi o coração do cinema de ambos,
desde o seu primeiro filme, Machorka-Muff, em 1963.
O coração?
É o centro, é o que bate. Como Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, Pedro Costa inte-
ressa-se pelo local onde algo bate: pelo local de onde tudo parte e onde tudo regressa, para
voltar a partir, a circular. Cola-se à acção. (Dito de outro modo: e agora? O que é que isto
conta? Depois: e fica bem contado?)
- Porquê o coração?
É a partir desse centro ao qual se regressa irremediavelmente que se organiza Onde Jaz
o Teu Sorriso?. Um centro enquadrado, uma acção que se dá o caso de ser um outro filme
(o filme em questão(ões): Sicilia!, rodado em 1998) e fases de um trabalho sobre esse filme.
Por conseguinte, o coração talvez seja o primeiro ponto que torna realmente Onde Jaz o
Teu Sorriso? um filme de Pedro Costa, no sentido em que faz parte integrante da sua obra, no
sentido em que corresponde aos outros filmes, como estes correspondem entre si. Não existe
acaso. Pedro Costa não filmou Danièle Huillet e Jean-Marie Straub a trabalhar porque estava
por ali. Este filme pertence a um conjunto coerente em que é possível identificar forças e
labores recorrentes. Como Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, também há já vinte anos que
Pedro Costa anda num vaivém em terrenos bem reconhecíveis, que não pára de vasculhar,
medir, percorrer, revirar, semear.
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262 - PHILIPPE LAFOSSE

O coração, o centro, à volta do qual tudo se enrola e se desenvolve, tudo age?


É o bebé, a paternidade e a maternidade em Ossos. É o quarto de Vanda, onde se regressa
sempre: uma vintena de vezes, totalizando mais de uma hora de filme, ou seja, mais de 40%
da sua duração total… Em Juventude em Marcha, é Ventura vagueando entre filhos reais ou
imaginários e apartamentos vazios. Basta olhar. A atenção é matemática.
Que coração é esse, em Onde Jaz o Teu Sorriso?
É o filme trabalhado na totalidade do seu enquadramento – que Danièle Huillet faz avançar,
recuar ou pára sobre um fotograma (dito de outro modo: sobre um vinte e quatro avos de se-
gundo) – com os comentários em off de ambos. Regressamos, assim, dezassete vezes a esse eixo:
1: O homem “de regresso da América” e o vendedor de laranjas no cais do porto de
Messina (primeiros planos de Sicilia!, quase 6 minutos) / 2: O grande lombardo, o natural
de Catânia e o velho, no comboio Messina-Siracusa (planos 17, 18 e 19 de Sicilia!, quase 3
minutos) / 3: A estação de Catânia, depois o “empregado do cadastro” e o homem “de regresso
da América” no comboio Catânia-Siracusa (planos 20, 21 e 22, 2 minutos) / 4: O “empregado
do cadastro” e o homem “de regresso da América”, parte 1 com o “sorriso que cresce nos
seus olhos” (planos 22 e 23, cerca de 5 minutos e trinta segundos) / 5: O “empregado do
cadastro” o homem “de regresso da América”, parte 2, com as asneiras que se fazem e as que
não se fazem (planos 22 e 23, 40 segundos) / 6: A chegada a Siracusa 1 (planos 29 e 30, 3 mi-
nutos e 10 segundos) / 7: A chegada a Siracusa 2 (planos 28 a 33, 1 minuto e 45 segundos) /
8: A mãe e o homem “de regresso da América”, de quem ficamos a saber o primeiro nome:
Silvestro (planos 36 e 37, 1 minuto e 35 segundos) / 9: A evocação do avô 1, grande socialista,
grande caçador e grande cavaleiro na procissão de São José (planos 52 a 55, 3 minutos e 45
segundos) / 10: Ainda em casa da mãe, a evocação do avô 2 (planos 54 a 57, 2 minutos e 25
segundos) / 11: O melão de Inverno (plano 72, 1 minuto e 53 segundos) / 12: Que importa ver
a linha de caminho-de-ferro (planos 71 a 74, 3 minutos e 54 segundos) / 13: E corta o melão!,
diz a mãe a Silvestro (plano 73, 1 minuto e 42 segundos) / 14: Silvestro e o amolador 1 (plano
112, 1 minuto e 25 segundos) 15: Silvestro e o amolador 2 (planos 110 a 117, 4 minutos e 50
segundos) / 16: Silvestro e o amolador 3 (planos 116, 117 e 118, 4 minutos e 20 segundos) /
17: Silvestro e o amolador 4 (plano 118, 1 minuto e 13 segundos).1
Dezassete vezes que totalizam entre 49 e 50 minutos, ou seja, cerca de 45% do total do
filme de Pedro Costa: trata-se sem dúvida do coração. Dezassete vezes guiadas por uma direc-
ção: a ordem cronológica das cenas de Sicilia! (dito de outro modo: o seu movimento) é respeitada
– e, mesmo não conhecendo este filme, e não havendo a preocupação de ler as claquetes que pas-
sam velozmente, sentimo-lo, compreendemo-lo.
Portanto, em Onde Jaz o Teu Sorriso?, a partir desse coração e desse poderoso alinhamento
– trabalho de cineasta –, acontece o que acontece nos outros filmes: tudo se pode desenrolar,
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MAS PORQUÊ?! - 263

desenvolver, ir e vir; e mesmo escapar-se. Neste caso, o que se desenrola são momentos de
comentários de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, de comédia por vezes, são quatro extrac-
tos de debates em sala de cinema: uma quantidade de histórias, em suma. E é a estrutura
forte, concentrada na acção (o filme a ser montado), que autoriza que assim se fale de muitos
assuntos sem nunca se dispersarem. Uma súmula:
Não espere pela forma antes do pensamento, a forma aparecerá ao mesmo tempo / As
espingardas, a metralha, as granadas / Luis Buñuel, Nicholas Ray e a produção nos Estados
Unidos / A liberdade que surge quando se domina a sua mecânica e não no vago / As relações
entre a ideia, a matéria e a forma, essa forma que sai “da luta com a matéria” como a alma
nasce da forma do corpo / A sopa sonora que é o suporte de tantos filmes / A psicologia, o
cinema tipo televisão, Dallas e toda essa tralha, e mesmo Woody Allen, e também a abs-
tracção teatral para se ir mais fundo do que a verosimilhança / Os raccords entre os planos,
as script-girls e a script-girl de Hitchcock / Cézanne e o centro / Cesare Pavese, Elio Vittorini
e Charles Péguy, fazer a revolução / A história não escrita dos operários e dos camponeses
/ As reacções a contrapelo de Pavese / O trabalho do texto e a cultura popular / Uma ligeira
derrapagem de actor / Os clichés e as “descobertas” que “bloqueiam a imaginação do
espectador em vez de a abrir” / A indispensável limpeza, a renúncia necessária e lenta,
uma redução que não é “uma redução, mas uma concentração” / A retórica cinematográ-
fica no sentido positivo do termo e Charlie Chaplin, que via os pormenores / Os actores
profissionais que aprendem truques e manhas em vez de aprenderem a respirar, a res-
peitar os versos / Praticar como um músico e que estupidez não trabalhar para preservar a
espontaneidade / A utopia comunista de Hölderlin, o único comunismo que poderá salvar
“os filhos da terra” / A imaginação e a paciência / Os limites da imaginação e o génio que
“não é senão uma longa paciência”, essa longa paciência que “está necessariamente carre-
gada de ternura e de violência” / Na vida não se fazem planos / A montagem que nada tem
a ver com a vida, apesar de se trabalhar com elementos da vida / O grande plano que só
pode ter sentido se tiver a perspectiva do plano anterior / A recusa em aplanar o espaço e
transformá-lo em borracha ao multiplicar os ângulos sem referência, sem ter em conta o
ponto de vista / Devemos desconfiar do cinema / Cortar ou não um ruído de porta inopor-
tuno / O privilégio de ter um trabalho que nos interessa e de o fazer como queremos / A
fidelidade numa “época de traição” / Os quintais de laranjas que se deitam aos rios / Como
fazem um homem e uma mulher para se manterem juntos: “As laranjas também têm o seu
valor” / “Velha cópia, velho filme mas… sempre jovem” / “Um artista é sempre jovem”/ A
história do encontro de Danièle e Jean-Marie em 1954, no liceu Voltaire, em Paris / A hu-
manidade só poderá salvar-se pela violência; depois, virá a convalescença, o bálsamo sobre
a ferida.
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264 - PHILIPPE LAFOSSE

Assim se vai e se vem. Depois de uma tirada lapidar sobre a forma, começa-se com o
combate político e a produção, continua-se com a técnica e as convenções, depois, de novo a
política, que reaparecerá mais tarde, uma vez abordadas mais algumas questões de forma, e
bem mais tarde ainda, após mais uma incursão pela técnica e uma evocação da intimidade.
- É homérico, é quixotesco, comentou um dia uma espectadora, depois de uma projecção.
- Que Dom Quixote?
- Dom Quixote vê o que os outros não vêem, não se fia nas aparências, e luta por aquilo
em que acredita. É contra todos, ou quase todos. Danièle Huillet e Jean-Marie Straub também
são assim, e neste filme descobrimo-los de aventuras em aventuras, de capítulos em capítulos,
de certo modo… Nos seus filmes, e também neste, há imensas histórias, e ambos lutam pelo
que acham justo, contra a miséria: é também por isso que me fazem pensar nos livros de
Cervantes… ainda por cima ali está ele, a ir e a vir, a entrar e a sair.
- No fim, Dom Quixote arrepende-se.
- Não podia ser de outro modo. Está-se no início do século XVII. Mas é um único capítulo,
algumas páginas entre centenas e, também nesse caso, tem de se ir para lá das aparências.
Sente-se que Cervantes sentiu tal prazer em narrar antes tantos episódios que não devemos
interpretar à letra esse último capítulo: é preciso invertê-lo. Se não o invertermos, não fica
convincente. A forma expedita como Cervantes se desembaraça de Dom Quixote reforça o
resto, o que precede: não o contradiz, não o denuncia.
- E Homero?
Não há assunto que seja posto de parte em Onde Jaz o Teu Sorriso?. O tempo não é um
inimigo. É um aliado graças ao qual se vasculha, matiza, relembra, completa. Pouco a pouco,
passo a passo, vamos circulando a partir do centro – esse centro explicitamente evocado com
Cézanne –, a partir da acção. No entanto, como em No Quarto da Vanda e Juventude em Marcha,
esse movimento é uma sondagem, pelo que se regressa ao mesmo lugar mas com um conheci-
mento aprofundado, mais agudo – e eis o que é o coração, e o que o diferencia, por exemplo,
de um tema que corre e desaparece, procedimento banal, ou mesmo uma ideia que mal ou
bem se vai arrastando.
Neste caso, não há coração nem organização escrupulosa só pelo prazer do coração e da
estrutura, prazer da forma, mas por ser indispensável. Sem isso, tudo se desmorona; é a
debandada, a diluição, o tédio… Sem isso, não há conhecimento, há apenas uma apreensão
superficial.
Esse passo a passo: outra ocorrência do cinema de Pedro Costa. Os desenvolvimentos
cinematográficos, as ideias de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet vão-se descobrindo pouco
a pouco, por entre fissuras e saltos – saltos esses que estimulam o espectador, provocam o
pensamento – e saltando de um espaço paralelo para outro, como se descobrem a suposta
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MAS PORQUÊ?! - 265

família e as relações de Ventura, em Juventude em Marcha. Nada é exposto exaustivamente,


de uma só vez. É preciso esperar, confiar no filme, dar tempo ao tempo.
Maneirismo? Afirmação ostensiva de um estilo?
Certamente que não.
- Porquê, então?
Três sugestões de respostas, entre outras…
Porque não há conhecimento sem tempo.
Porque Pedro Costa se interessa verdadeiramente pelo humano e pelos seus meandros,
pelas suas falhas e lacunas, pelas dificuldades de ser e pelas alegrias – mesmo sendo estas mais
raras. Verdadeiramente, ou seja, respeitando-as, sem querer submetê-las, poli-las, falseá-las.
E também porque a forma provém de uma luta com a matéria, e porque, por exemplo, a
própria matéria Ventura, um tanto secreta e lapidar, tem muita dificuldade em apresentar a
família.
- Na realidade, quantos filhos tem?, pergunta-lhe o funcionário André Semedo, depois
de várias ofertas infrutuosas de apartamentos.
- Ainda não sei, admite o servente reformado.
De O Sangue até Juventude em Marcha, passando por Onde Jaz o Teu Sorriso?: tem de se
esperar e confiar no filme, dar tempo ao tempo, porque apresentar tudo de imediato seria des-
prezar e trair. Seria negar os movimentos íntimos e os espaços opacos ou invisíveis que, passo
a passo, constituem o ser humano.
Ele fala, ela cala-se, tratam-se com rudeza, ele começa, ela prossegue, ele trauteia, ela
corrige-o, ele brinca, há sopros, marulhos…: continua-se a avançar, a estar em acção (o
trabalho). Nada é perda. Uma ou duas réplicas bastam para no-lo lembrar:
- Parece-me que ganhou.
- Ah, os homens…
Por vezes, há um plano que dura, mas nunca se perde seja o que for. É um passo a passo
medido, um trabalho de agrimensor. E se o espectador depressa confia no filme, é também
porque existe (consciente ou não, formulada ou não) a percepção desse domínio do tempo por
parte do cineasta. Esse tempo que o seu filme nos pede é sempre justificado e oportuno.
Acontece em Onde Jaz o Teu Sorriso? como, assim parece, em todos os filmes de Pedro Costa.
Ele sabe exactamente até onde pode ir, até onde um plano se pode estender e o limite após o
qual haveria ruptura, facilidade, complacência, repetição, voyeurismo… e maneirismo, forma-
lismo. É uma constante: O Sangue…, No Quarto da Vanda, Juventude em Marcha… Todos os
planos parecem úteis (fenómeno raro naquilo que, hoje em dia, pretende ser cinema) e a
duração de cada um deles parece ser exactamente a que deve ser.
- Afirmação arbitrária?
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266 - PHILIPPE LAFOSSE

Ter-se-ia de analisar os filmes plano a plano, cientificamente, e observar, examinar. Ver-se-ia


então, sem dúvida, até que ponto encurtar tal plano o amputaria, até que ponto alongar um
outro o enfraqueceria. Ver-se-ia até que ponto o primeiro plano de quase cinco minutos de
No Quarto da Vanda seria anedótico, para não dizer desagradável ou mesmo insuportável,
para o espectador, se fosse mais curto ou mais longo, porque as duas mulheres teriam sido
instrumentalizadas. E há certos planos de Juventude em Marcha que não são complacentes
precisamente porque se prolongam e ultrapassam a duração da complacência para passarem
para o lado da proximidade, do respeito e da solidariedade. Em Pedro Costa, há uma didáctica
do tempo e da atenção que o faz conseguir registar com justeza – trabalho de arquivo e de
instrução – o que se passa e se dissipa, e se repete também, em suma, o quotidiano e, entre
outras coisas ainda, a solidão, o trabalho e o lazer, as destruições e as construções. Onde Jaz
o Teu Sorriso? é testemunha disso. É essa disciplina da atenção contínua que, em No Quarto
da Vanda, por exemplo, vai ao ponto de lhe permitir superar o insustentável.
Em Las versiones homéricas, a propósito das traduções sucessivas da Ilíada, Jorge Luis Borges
fala das “diferentes perspectivas de um facto móvel”.2 Pode ser tentador fazer deslizar esta
expressão para fora do seu contexto e do seu significado original e retomá-la – contentar-nos-
emos com esta citação e deixaremos Borges e os seus labirintos para outros debates. Afirmações,
silêncios, interpelações, discursos, pedagogia, arrebatamentos, provocações, desaparecimentos,
nomadismo…: durante o trabalho de montagem ou noutro qualquer contexto, Jean-Marie
Straub e Danièle Huillet são um facto móvel. Para se perceber o facto móvel straubiano e as
suas diferentes perspectivas, é preciso colar-se à acção, enquadrar o movimento e dar provas
de mestria: e agora? O que é que isto conta? E como é que conta?
É com esta única condição que pode, depois de cento e quarenta horas de rodagem, existir
um filme que não seja arrastado pelo turbilhão, como os dois irmãos de A Descent into the
Maelstrom de Edgar Poe. Mantendo-se aberto, em nenhum momento Onde Jaz o Teu Sorriso?
perde o norte. Melhor ainda: indica-nos um poço movediço, o trabalho dos dois cineastas, e
guia-nos até ao seu rebordo.
O domínio do facto móvel straubiano manifesta-se pelo que vemos, pelo filme tal como
ele é, e também – para aqueles e aquelas que sabem um pouco do assunto – pelo que não
vemos, pelo que o filme não aborda; e podemos então pensar nos mitos, nos deuses, como
no realismo e no naturalismo, no registo do som ou na tradução, tantos assuntos, entre
outros, igualmente recorrentes e importantes para Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, mas
que a necessidade de estruturar fez supostamente eliminar.
O domínio de um facto móvel: não há qualquer dúvida de que é também do que se trata
em No Quarto da Vanda – e as suas cerca de cento e cinquenta horas de rushes – ou em
Juventude em Marcha – e as suas trezentas e quarenta horas.
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MAS PORQUÊ?! - 267

No cais de um porto, está um homem de costas, maciço e negro. É um filme italiano a preto
e branco, um plano aproximado/ semi-aproximado. A imagem oscila como a água do porto.
- Mas porquê? É assim tão difícil vender as laranjas?
Avança-se, recua-se, um ruído de máquina em off, de bobinagem. Depois uma claquete
no ecrã. É outro plano, outro homem, de pé, encostado à parede de uma casa, camisa aos
quadrados com o colarinho aberto sobre uma t-shirt clara: o vendedor de laranjas. Um casal
monta e remonta. Os segundos escoam-se. Deverá o homem no ecrã ter a boca aberta? E por
onde se começará a mostrar essa boca? Ele fixa-se no “n”.
- Cuidado com o “n”.
- O “n” está cá…
Ela dirige quase até aos vinte e quatro avos de segundo. Conta. O cientista e a montadora
salvam os números.
- Está melhor.
- Tem a certeza?…
Propor: engatar, desengatar. As suas vozes estão sempre off, muito próximas. A máquina
faz uns ruídos de monstro dócil. O que é mostrado e ouvido é o trabalho, ou seja, aquilo por
que o cinema se interessa tão pouco, esteja ele presente ou ausente, apesar de ser o elemento
essencial da vida de cada um.
- O trabalho?
- Um trabalho manual e intelectual, com os sentidos alerta.
Um trabalho minucioso, pertinaz e artesanal, trabalho de operários em questionamento
permanente, em alerta.
- O que é?
- … Um fotograma de diferença…
- Entre nós?…
- Sim.
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- Então?…
Há harmónicos, ondas de que só os pilotos se apercebem. A cabina não é o último grito,
repleta de informática e de ecrãs de radar. É mais do género leme, bússola e escotilha sumária,
um barco que navega à vista.

- Mas porquê? É assim tão difícil vender as laranjas?


Mudança de plano.
- Não se vendem. Ninguém as quer. No estrangeiro não as querem. E o patrão paga-nos
assim, dá-nos laranjas. E não sabemos o que fazer. Ninguém as quer. Vimos a Messina a pé
e ninguém as quer…
Grande plano dela, de perfil. Plano aproximado dele, de perfil, charuto na boca, que logo
se levanta. Trauteia Moses und Aron, a ópera de Arnold Schoenberg: não espere pela forma
antes do pensamento… Ela continua, aveludada: … a forma aparecerá ao mesmo tempo.
Os seus olhares estavam voltados na mesma direcção: o Norte. Sabemos já que este filme a
cores se dedicará a revelar o que continuaria escondido do viajante embarcado que não sabe
grande coisa, ou mesmo nada, da técnica de pilotagem, mas que sente quando algo não está
a correr bem quando a barca fica à deriva, quando balança, encalha, se inunda a ponto de
sufocar e perder a consciência, quando não se lhe presta atenção ou não se domina a sua
mecânica.
Não precisamos de esperar mais para dizer que o filme de Pedro Costa tem por missão
fazer aparecer o que está por cima ou ao lado, atrás – atrás do que está à frente. Testemunhar
como se faz um filme quando não se participa na profusão de oferta reinante, quando não
se aplicam cegamente os códigos cinematográficos, quando não se obedece à ordem
de derramar sobre os ecrãs uma papa informe e aproximativa, e se recusa a ser pressionado
pelo comércio: noutros termos, quando se acredita nos sentidos do espectador, quando se
tem respeito por ele, e se tem a convicção de que o cinema é um local de conhecimentos
popular.
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MAS PORQUÊ?! - 269

Popular?
- Como Dom Quixote, que foi editado cinco vezes no primeiro ano da sua publicação e
que, dez anos mais tarde, estava traduzido em todas as línguas europeias.
E que, na época, “era lido em voz alta no adro da catedral de Sevilha, e mesmo nos campos
e nas quintas, à hora do repouso”.3
Sem conversa fiada, vemos Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. Vemo-los ver. E, então,
vemos que nós próprios vemos. Coisas que estavam lá, mas sem eu saber. Pedro Costa
mostra-nos a borboleta esquecida e, ainda melhor, uma boca formando uma letra e a luz nos
olhos de um homem. É testemunha dessas aparições, dá-nos essa revelação da luz pelos dois
cineastas. Onde Jaz o Teu Sorriso? mostra que um espectador pode ver.
Ver o quê?
O voo da luz, por exemplo.
- Mas não apenas ver: interrogar-se também. Este filme provoca debates no espectador,
perguntas muitas vezes inimagináveis alguns minutos antes e que ele faz aos outros ou a si
mesmo. Paralelamente ao filme. O trabalho não está apenas no ecrã.
- O trabalho?
- Um trabalho manual e intelectual, com os sentidos alerta, à espreita.
Actividade salutar, qualidade moral.
Mas qual espectador? Será necessário um consentimento prévio? Já agora, uma boa
vontade? Uma curiosidade pregada ao corpo?
- Nem isso. Um passo no convés e está-se a bordo: fica-se preso, ouve-se, vê-se – e
agora?…
A convicção de que qualquer espectador (seja ele cinéfilo ou não, com conhecimentos
numa dada matéria ou sem qualquer conhecimento, da cidade, dos campos ou das herda-
des…) que qualquer espectador, portanto, pode sentir, descobrir, captar talvez seja o primeiro
aspecto a confirmar que Onde Jaz o Teu Sorriso? faz parte integrante do conjunto do trabalho
de Pedro Costa Tem uma ligação com os outros filmes. Não existe acaso. Estejamos em
Portugal ou em Cabo Verde, num bairro da lata ou num bairro novo de Lisboa, o olhar de
Pedro Costa, o seu gesto cinematográfico, humilde e paciente, está indelevelmente marcado
por essa convicção, essa crença na riqueza do mundo sensível, partilhável por todos.
- Ele não é o único, mesmo assim…
- Pois não, mas não são, ou já não são, assim tão numerosos os cineastas que ousam ter
essa crença. E, pela sua forma, Onde Jaz o Teu Sorriso? confirma-a.
Pois, a quem se dirigem, de facto, os dois cineastas? A que espectadores?
Na altura da rodagem, eram estudantes do Studio National des Arts Contemporains Le
Fresnoy, no Norte de França.
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270 - PHILIPPE LAFOSSE

- (Jean-Marie Straub, num dado momento) Isso foi o que eu vos expliquei, antes de
entrarmos naquele cubículo.
Não está escondido. Mas não é exactamente o que interessa ao filme. Não há qualquer
plano que mostre a assistência. O contracampo de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub na sala
de montagem – e desde os dois primeiros planos d’O Sangue compreende-se que Pedro Costa
sabe o que é um verdadeiro campo-contracampo e que portanto sabe o que faz… ou não faz
– é o espectador de Onde Jaz o Teu Sorriso?. Não é um estudante, nem um cinéfilo, muito
menos um membro da “Internacional Straubiana”.4 São todos os espectadores, todas as
pessoas que embarcaram. Sou eu, somos nós. O filme de Pedro Costa dirige-se a todos, é
feito para todos, e é a nós que Danièle Huillet e Jean-Marie Straub se dirigem. A nós, que
podemos ver, que somos capazes de ver e de ouvir – convicção visivelmente partilhada por
Jean-Marie Straub, Danièle Huillet e Pedro Costa.
Embarcámos e agora vemos, nomeadamente porque o filme sabe despertar a nossa
curiosidade e ganhar a nossa confiança.
E se o espectador depressa confia no filme, é também porque sente, porque compreende
que esse filme acredita na paciência – essa paciência sem a qual nenhuma arte, nenhuma
revelação são possíveis – e confia nele: verei.
- A confiança circula.
A paciência?
É o pouco a pouco, o passo a passo constante dos três cineastas aqui reunidos. Um passo a
passo que acolhe as fissuras, as elipses e os impulsos que provocam os saltos, e que só se torna
visível porque cada instante – sentimo-lo – é habitado por um todo, está cosido num todo. O
espectador sente e compreende que alguns elementos de um instante lhe serão revelados mais
tarde e que o tempo desse conhecimento lhe trará o que continuaria enterrado, se mais lhe
tivesse sido dado imediatamente (dito
de outro modo: artificial, violenta e
parcialmente).
Porque compreende que é acolhido
por um filme aberto, o espectador
compreenderá, verá. Verá, um pouco
como acaba por ver, fora de campo, os
sinais que Bete e Ventura vêem quando
observam o muro decrépito e sujo à
sua frente, em Juventude em Marcha:
uma galinha com a sua crista, um leão
mostrando os dentes, um diabo…
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MAS PORQUÊ?! - 271

O cinema faz de nós videntes. Pela sua forma, que não precede o pensamento mas surge
ao mesmo tempo – trabalho de artesão, modesto, inquieto e audacioso, contra (por exemplo)
produto de criador, um misto de arrogância, fatuidade, concessões e estetismo emproado –,
Onde Jaz o Teu Sorriso? mostra que qualquer filme de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub se
dirige aos espectadores, é uma permuta com eles. Que qualquer um dos seus filmes é rodado
para os espectadores, preocupa-se com eles.
Se a estrutura deste filme é assim tão forte – trabalho de cineasta – deve-o também a essa
convicção, é-o também a partir dela. É ela que permite que a estrutura se desenvolva para a
inteligência do outro. Neste como em todos os outros filmes de Pedro Costa.
Não há qualquer facilidade que leve a demonstrar, a ilustrar. Neste filme, evitam-se também
as passagens obrigatórias, tão laboriosas quão inúteis, dos filmes sobre cineastas: os ex-
tractos dispersos, os fragmentos de cenas deslocados do contexto e tantas vezes instru-
mentalizados. Um número significativo de filmes de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub é
convocado em Onde Jaz o Teu Sorriso? – Moses und Aron (1975), Der Tod des Empedokles
(1987), Cézanne (1989), En rachâchant (1982), Chronik der Anna Magdalena Bach (1968),
Von heute auf morgen (1997)… – mas não há o embrião de um caleidoscópio cultural. A es-
trutura centrada em Sicilia! e no trabalho de montagem dos dois cineastas, pontuado
pela sua palavra, bastam para o essencial. Alguns extractos de filmes teriam sido aparato e
abdicação diante de uma regra imbecil. E também expressão duma séria dúvida quanto às
capacidades do espectador. Extractos de filmes… e porque não também, já agora, um con-
tracampo para enquadrar a parede decrépita e procurar a galinha, o leão, o diabo?… Ou um
zoom sobre o sorriso escondido [referência ao título francês do filme: Où gît votre sourire en-
foui ?] ?
- Está bem, mas isso não impede que, um pouco antes do fim…

É justamente a poderosa estrutura


do filme que permite o aparecimento
do primeiro plano de Chronik der
Anna Magdalena Bach. Quando se
sabe que um filme ou se educa ou se
cria – no sentido nobre do termo, não
no sentido de criação em estábulo –,
que não cresce ao calhas, que não se
engorda com tudo e com nada, mas
que se contém passo a passo, se cons-
trói com um coração que marca uma
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272 - PHILIPPE LAFOSSE

métrica implacável e necessita de um despertar de cada instante, cria-se uma organização tão
soberana, tão compacta, que pode ser contrariada e acolher a improvisação e a desobediência
às leis. Não há acolhimento verdadeiro sem uma estrutura forte. Após mais de uma hora e
meia, surge um plano de um filme que não é extraído de Sicilia!. Podia acontecer. Aconteceu.
(E vemos como, ainda por cima.)
Trabalho de questionamento permanente, de confrontação, de conflitos, de autoridade. De
articulação, de demolição e construção. Três ruídos da boca dela, dubitativa. Ele fez-lhe uma
proposta. Quando é que a procura da nitidez se torna fanatismo? Ele desconfia.
- Também, Straub!
- O que é?
- … É… um fotograma de diferença…
Dois velhos lobos-do-mar perscrutam o que se irá passar.
- Então?
- Então… Bem, não demore cem anos!
- Preciso de pensar, não cem anos, mas… setenta anos…

Ser cineasta?
É ter em conta o que se vê e o que não se vê, não se ouve, deixou de se ouvir – os harmó-
nicos preparatórios, por exemplo, mas não só. É estruturar, encontrando o ritmo e a tensão,
o regime, que levam a que baste pôr um pé no convés para se ficar preso, e já está: é Sicilia!
na totalidade do seu enquadramento, é a sala de montagem, é uma sala de cinema, são
tomadas de posição, historietas, silêncio, cheio de histórias extraordinárias – e muitas delas
infelizmente extraordinárias –, há sopros, há marulhos… Trata-se de um filme cujo coração
é a curiosidade como uma das primeiras virtudes intelectuais. O que nos é dado é cinema,
e não um objecto fechado e auto-suficiente, brutal e ignorante. Foi realizado um trabalho
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discreto e penetrante, inquieto, perturbante e generoso, um trabalho de cineasta (dito de


outro modo: de despertador de almas).
A destruição e a construção: outra ocorrência do cinema de Pedro Costa Casa de Lava:
servente sem-papéis numa obra, Leão cai no vazio. No Quarto da Vanda: enquanto ali ao lado
se martela e se procede a demolições, varre-se e limpa-se como se baldeia a água de um barco.
O primeiro plano de Juventude em Marcha: objectos, móveis são atirados pela janela de um
casebre e vão esmagar-se uns metros mais abaixo. O segundo? Nesse mesmo casebre invadido
pela noite, uma mulher ameaça com uma faca. Em Onde Jaz o Teu Sorriso?, o que interessa
a Pedro Costa é ainda a desconstrução e a construção, são as relações entre elas e o que daí
resulta; é a destruição e depois a construção que está em curso numa sala de montagem; são
a destruição e a construção como gestos fundamentais de Danièle Huillet e Jean-Marie
Straub.
Fundamentais?
Os únicos gestos que ainda podem salvar.
- Mas porquê? É assim tão difícil vender as laranjas?… vender as laranjas?… É assim tão
difícil vender as laranjas?…
- Já está.
- Quer vir para aqui?
- Não, não, nem pensar.
- Não se vendem.
- Ai, ai, ai, ai, ai…
- É, é…
- Sim, eu sei, cala-te!
- … Começar aqui. Já tem a boca aberta, mas deve resultar.
- É melhor que tenha a boca aberta, excepcionalmente.
- Vinte e seis…
- Não se vendem.
- Cuidado com o “n”.
- Sim, sim, o “n” está cá…
- Está melhor.
- Tem a certeza?…
- É a tensão nervosa porque ele estava a preparar-se para a sua grande tirada, ali, e a
violência e tudo, então…
- Sim, sim, está bem, mas isso é conversa fiada. Neste momento é preciso saber onde se corta.
- Assim, não está mal… esta seria a minha proposta; agora faça-me a sua…
- Não se vendem…
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- S-sim… desconfio do seu fanatismo nesta matéria.


- Bem, agora veja a minha solução.
- S-sim…
- Aperte o cinto.
- S-sim…
- Não se vendem.
- Está melhor. Está melhor porque está claro! No outro, há um…
- Pelo que se vê, sim, mas tenho medo que você me… me…
- Ah!… Também, Straub!
- … lime alguns… alguns harmónicos preparatórios do “n”.
- Você, é isso… é mesmo isso… E isto sou eu…
- O que é?
- Bem, é… um fotograma de diferença…
- Entre nós os dois?

Sem comentários de um terceiro, sem “sopa”. Tal como Huillet e Straub estão debruça-
dos sobre o seu objecto, Costa está debruçado sobre o seu: o discurso dos dois cineastas.
Passaram seis minutos e já se pode dizer que, pela forma, o seu filme é inteiramente dedi-
cado a esse discurso. Também já compreendemos que a precisão e uma lógica rigorosa e
delicada estarão até ao fim ao serviço desse mesmo discurso (acção do filme).
O discurso talvez seja o primeiro aspecto que estabelece uma ligação entre Onde Jaz o
Teu Sorriso? e os outros filmes de Costa, ligação que também existe entre estes – por vezes,
explícita e verbalmente, como entre Casa de Lava e Juventude em Marcha, ou como entre este
último e No Quarto da Vanda. Não existe acaso. Este filme pertence a um todo coerente.
Alimenta o mesmo rio.
Que todo?
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MAS PORQUÊ?! - 275

Um povo de pessoas a quem os patrões, como única paga, dão as laranjas de que não
sabem o que fazer e com as quais esses prisioneiros nem sequer podem comprar pão. Um
povo que alia sempre dureza e dignidade, que se interroga, testemunha, abre um caminho
para si, toma posição, com um discurso áspero e sem urbanidade, sem hipocrisia, discurso
popular. Desapossados que estão no mundo, querem estar no mundo e encontrar um sentido.
Um povo de pobres que não fica calado porque Costa o ouve, lhe dá a palavra.
Que povo?
“Não há escolha na infelicidade; oferecem-vos o que sobra.”5 Um povo que, na sua infeli-
cidade, quer continuar a acreditar na escolha. E que a câmara de Costa, que não pode decidir-se
a deixar sem apelo esta frase de Henri Michaux, regista.
Sim,

correspondem ao povo de Costa: Clara, Vicente, Nino, Mariana, Leão, Clotilde, Tina, Eduarda,
Vanda, Zita, Lena, Danièle, Jean-Marie, Ventura, Beatriz, Gustavo… Esse povo ainda mexe:
vemo-lo, ouvimo-lo.
Onde Jaz o Teu Sorriso? está ligado aos outros filmes, tal como estes estão ligados entre si.
E, como não existe acaso, talvez alguma coisa surja lá do fundo…
- Por um lado, há o filme sobre o cinema de Straub e Huillet, que trabalharam com acto-
res e não-actores para lhes arrancar as palavras de Elio Vittorini, Cesare Pavese, Friedrich
Hölderlin, Pierre Corneille, Franz Kafka etc., textos literários em verso ou em prosa assim
trazidos ao conhecimento dos espectadores. Por outro, há o trabalho com e em prol de um
povo de pobres que tenta (catalogado como ficção ou como pretenso documentário, pouco
importa: trata-se de verdade) encontrar palavras, as suas palavras, para testemunhar, debater,
descobrir-se. Ora…
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276 - PHILIPPE LAFOSSE

- Bem, não demore cem anos!


- Mas porquê? É assim tão difícil vender as laranjas?
- Não se vendem. Ninguém as quer. No estrangeiro não as querem. E o patrão paga-nos
assim, dá-nos laranjas. E não sabemos o que fazer. Ninguém as quer. Vimos a Messina a pé
e ninguém as quer…
- Ora, do ponto de vista da língua, parece que estes dois lados correspondem intimamente.
Examinando os reflexos, vê-se que se agregam aspectos que poderíamos considerar opostos.
Trata-se realmente de uma só e mesma língua, que fala da miséria. E por conseguinte… Pela
presença de Straub e Huillet, não será que Onde Jaz o Teu Sorriso? se repercute e ajuda a
compreender o sopro, o cinzelamento e a exactidão dos discursos dos outros filmes, a dignidade
da sua língua?
E mesmo…: Clara, Vicente, Nino, Rosa, Mariana, Leão, Clotilde, Tina, Eduarda, Vanda,
Zita, Lena, Danièle, Jean-Marie, Ventura, Beatriz, Gustavo… e Silvestro, o grande lombardo,
a mãe, o amolador… Porque, respeitando-as, pela sua opção de as incluir sempre em grande
plano e compor assim cerca de metade do seu filme, Costa apropria-se, de algum modo, das
imagens de Sicilia!. Ao fazê-lo, contribui com essa montagem para fazer corresponder e
agregar-se o que poderia parecer a priori longínquo, ou mesmo estranho.
- Como podem parecer longínquas a prosa e a poesia. Ora, quem ouve versificar desde o
início a prosa do vendedor de laranjas dá-se conta de que isso não é verdade.
Se se pode falar de uma só e mesma língua, seja ela literária, poética ou outra, prosaica e
usual, como se diz, talvez seja porque se pode reconhecer um só e mesmo povo.
- E, para aqueles que estão um pouco a par do assunto, a apropriação de Costa vai para
além dos planos de Sicilia!, já que o título, Onde Jaz o Teu Sorriso?, é a tradução de um graffito
escrito em alemão numa parede bastante branca, no início de Von heute auf morgen, o filme
que Straub e Huillet rodaram em 1996, imediatamente antes de Sicilia!.
- É o segundo plano do filme, depois do início do genérico e antes da sua continuação, o
único plano filmado no exterior, com os ruídos da rua, o vento numa árvore. Está escrito
“Wo liegt euer Lächeln begraben”, seguido de um ponto de interrogação e de um ponto de
exclamação, este com uma estrela a substituir o ponto. Para além de o seu sentido não ser
banal, vulgar, a sua tradução por Danièle Huillet para Où gît votre sourire enfoui ?, com “gît”
[jaz] auxiliar e sabendo que o “euer” alemão “designa inequivocamente a segunda pessoa do
plural e não um possível você de cortesia”, é um “típico huilletismo”6… A tradução mais
próxima do alemão seria dirigida a pelo menos duas pessoas: Onde está enterrado o vosso sor-
riso?. Em suma, Costa escolhe o radical, apropria-se do discurso especificamente straubiano, um
discurso que mais ninguém poderia pronunciar, e assim afirma os laços, as correspondências.
- Um só e mesmo povo corresponde.
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MAS PORQUÊ?! - 277

Costa segue esse povo – mais precisamente: entende-se com ele para o pôr em cena – e
desenha-lhe a geografia, traçando paralelas. Porque Costa é um cineasta dos espaços paralelos,
dos tempos simultâneos. É assim que chega às correspondências e aos encontros – situações
que, boas ou más, devidas ou não ao acaso, são o que constitui mais ou menos o cinema
desde os seus primórdios. E, efectivamente, podemos sugerir que o que interessa com Huillet
e Straub, e com outros, é o local onde, de fissuras em elipses e em saltos – essas figuras que
geram pensamento – esses espaços – no seio de uma família ou de um casal, por exemplo,
mas não só: mais geralmente, no seio de uma comunidade – se cruzam, se alcançam, se
conciliam. (Impressão, sobreimpressão.) E como isso se faz: com ou sem choques.

O Sangue. Clara caminha e Vicente, mais longe, caminha paralelamente a ela. Ela pára
antes de atravessar uma rua para deixar passar um ciclista. Ele chega e põe-se a lado dela.
Agarra-lhe o braço direito. Ela deixa cair o que leva na mão. Baixam-se e ele pede-lhe para ela
o salvar. Duas trajectórias paralelas, dois movimentos concomitantes e um encontro supremo.
O que interessa a Costa são as trajectórias e os olhares voltados numa mesma direcção e
as linhas do horizonte. É o curso de água onde tudo isso se junta. Onde se encontram Clara,
Vicente e Nino. E os outros.
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278 - PHILIPPE LAFOSSE

Poder-se-á pensar que o que interessa em Onde Jaz o Teu Sorriso? é o casal de cineastas
que, entre desacordos e acordos, se unem nesse horizonte que é o filme que estão a fazer. Que
os dois estão a criar – com deflagrações e ternura.
- Como conciliar paralelas e encontros?
- Nada prova que as paralelas não se encontram quando as perdemos de vista. Será que
Costa não está onde, habitualmente, algo se perdeu de vista? No seu caso, como no de alguns
outros, esses encontros traçam retrospectivamente paralelas que fazem surgir e descrevem
as trajectórias que as personagens seguiram para aí chegarem. A espessura dessas personagens,
a sua existência, a sua verdade, dependem muito dessas paralelas que se encontram nesse no
man’s land onde Costa e alguns outros teimam em se implantar, terra saída de uma geografia
da mestiçagem e que é tantas vezes ignorada, perdida de vista.

A paternidade e a maternidade, a filiação, talvez constituam o primeiro aspecto que faz


com que em Onde Jaz o Teu Sorriso? não haja acaso. Não, Pedro Costa não filmou Danièle
Huillet e Jean-Marie Straub a trabalhar porque estava por ali, ou para satisfazer uma encomenda.
Desde a sua primeira longa-metragem até Juventude em Marcha, este filme pertence a um
todo coerente. O coração que bate é o mesmo. O que é produzido, a forma como aparece e
porquê, e depois a forma como vive, como se desenvolve e desaparece, como se retém ou
não, se constrói, é um dos labores recorrentes de Pedro Costa – bem como o horizonte para
onde os olhares se voltam, o discurso, o povo das laranjas e dos restos, a escuta, a atenção, a
confiança que circula, a proximidade, a solidariedade, a curiosidade como qualidade moral…
e o centro, o coração.
O coração?
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MAS PORQUÊ?! - 279

É ele que leva Onde Jaz o Teu Sorriso? a acolher dois factos novos no cinema de Pedro
Costa, novas pedras no edifício. Um que parece sê-lo totalmente: o humor, uma certa comédia
– que, bem entendido, não impedem a gravidade. E um segundo que nunca foi tão abertamente
apresentado e que neste filme se manifesta claramente: a revolta.
Porquê o coração?
Três respostas, entre outras…
Para explicar simplesmente um trabalho justo e esquivar a glosa, evitar todas essas
palavras tão desperdiçadas que já nada significam, ou que, mal são escritas, parecem tão
grandes e imponentes, e mesmo solenes, todas essas palavras susceptíveis de se liquidificar
em conversa fiada, como: dignidade, respeito, confiança, solidariedade, moral, desprezo,
traição, abdicação… E ainda: trabalho de cineasta.
- A tristeza deste mundo avalia-se pelas banalidades que se é obrigado a relembrar
constantemente.
Para evitar a bofetada.
E talvez, também, para salvar. Como tenta salvar-nos esse cinema enterrado nas produções
indigentes despejadas nos ecrãs pelos profissionais da baixeza e do divertimento (por outras
palavras: da estupidificação).
- Como quer que eu lhe explique?! Veja, veja, veja!, vocifera Danièle Huillet.
O tempo era de tormenta, e assim continuará a ser. Onde Jaz o Teu Sorriso? regista as
vibrações e o estrondo: a vida – porque ela continua a bater(-se). E a participar dos gestos que
salvam.

1. A numeração dos planos retoma a da montagem publicada pelas Éditions Ombres (Toulouse, 1999): há um ligeiro
desajuste com o que se ouve nas claquetes. Quanto às durações aproximadas que são indicadas, provêm de um trabalho
sobre suporte DVD.
2. Jorge Luis Borges, em Discusión (Emecé, 1932), reeditado em 2001 em Obras Completas, volume 1.
3. Aline Schulman, prefácio à sua tradução francesa do texto de Miguel de Cervantes (Seuil, 1997).
4. Serge Daney, Libération de 3 de Outubro de 1984.
5. Henri Michaux, Un certain Plume (Gallimard, 1936).
6. Bernard Eisenschitz.
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“TODA A NOVA ARTE PODERIA SER


QUALIFICADA COMO MONTAGEM”1
ONDE JAZ O TEU SORRISO? OU DA NECESSIDADE ARTÍSTICA
EM CONTEXTO MATERIALISTA
Nicole Brenez

Para F.J. Ossang e Elvire

No meio de uma sequência de Bellissima de Luchino Visconti (1951), no extremo do seu calvário
na Cinecittà, Maddalena (Anna Magnani) atravessa uma sala de montagem apresentada como
arrecadação escura onde trabalham umas criaturas femininas, pobres e exploradas. Contra
esta visão industrial da montagem como tarefa subalterna executada por aprendizas, reage a
linha dos filmes que descrevem a sala de montagem como o centro da criação fílmica: O Homem
da Câmara de Filmar de Dziga Vertov (1929), o díptico The Fall (1969) e Fire in the Water
(1977) de Peter Whitehead, L’Automne de Marcel Hanoun (1971), Blow Out de Brian De
Palma (1981), Scénario du film “Passion” (1981) e JLG/JLG – autoportrait de décembre (1995) de
Jean-Luc Godard. Ensaio admirável sobre a criação, Onde Jaz o Teu Sorriso? de Pedro Costa
situa-se no cruzamento de três tradições: a dos filmes que cenografam e até heroificam a
sala de montagem transformada em objectivação de um espaço psíquico (L’Automne de
Marcel Hanoun, por exemplo, decorre inteiramente numa dessas salas); os filmes que
analisam directamente na película imagens, motivos, raccords e fotogramas, como o magis-
tral Tom, Tom, the Piper’s son de Ken Jacobs (1969); os filmes, ainda pouco numerosos, que
reflectem a história dos estilos de montagem, como o tão pedagógico Film sur le montage de
Jean Mitry (1964), recentemente reposto em circulação pela Cinemateca de Belgrado, ou a
série televisiva La lucarne du siècle realizada por Noël Burch (1985).
Onde Jaz o Teu Sorriso? associa várias formas de investigação sobre o raccord: formas dos
encadeamentos fílmicos (estudo sobre os raccords dos Straub); modos de descrição das
passagens entre planos (exposição das imagens por Pedro Costa); transferências entre
imagem e ideia (o imperativo de sentido); vias das relações humanas, circulações simulta-
neamente objectivas, afectivas e subterrâneas entre os seres. Há um laço que une o conjunto
desses estaleiros com ressonâncias infinitas; é a precisão, uma precisão cujas origens e
perspectivas é necessário reaver.
As sequências vão-se enrolando, uma a uma, à volta de um raccord acerca do qual importa
observar, não a emergência, uma vez que ele já existe (Jean-Marie Straub e Danièle Huillet
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282 - NICOLE BRENEZ

montam uma terceira versão de Sicilia!), mas o polimento, o sentido e os efeitos. Sucessiva-
mente, vão surgindo as figuras de uma passagem de uma sequência para a outra, de um
campo-contracampo (diálogo no comboio), de um raccord no ponto fulcral (diálogo no adro
da igreja)... E há sempre um parâmetro diferente que vem animar a decisão quanto ao fim
de um plano ou de um som e ao início do seguinte: a luz, um sorriso nos olhos de um actor,
o ruído intempestivo da porta de um carro... O corte e o encadeamento são sempre determi-
nados só com a diferença de um fotograma: é, portanto, ao nascimento da necessidade que
assistimos. Ora, essa necessidade não resulta apenas do próprio material: baseia-se num
conjunto de determinações, fontes, exigências, que afirmam cada raccord straubiano como
herança do pensamento crítico, desde o Século das Luzes até Franco Fortini.
Onde Jaz o Teu Sorriso? constitui um ensaio documental sobre o pensamento crítico tal
como é encarnado e vivido por dois trabalhadores da imagem, Jean-Marie Straub e Danièle
Huillet. Com efeito, no corpo-a-corpo com a película, as suas decisões também provêm de
uma paixão cinéfila, musical, filosófica e artística que fornece modelos, pontos de apoio,
referências úteis – Ugetsu monogatari (Contos da Lua Vaga, Kenji Mizoguchi, 1953) habitam as
paisagens sicilianas. São decisões que provêm igualmente de uma exigência dialéctica, ex-
posta de modo límpido e concreto a propósito do campo-contracampo no comboio: em pou-
cos fotogramas, ou é a personagem ou o é espectador que descobrirá uma mentira, e é claro
que a segunda opção se impõe, Brecht jaz escondido no fotograma. Para além disso, as de-
cisões criativas provêm dos ideais e exigências materialistas, ou seja, de uma teoria de com-
bate, guerra sem fim contra o mundo que instituiu a injustiça como estado natural e luta
sem tréguas contra todas as representações que se esmeram em tornar tal estado suportável,
ou melhor, desejável. Para um raccord, um conjunto de imagens, ou um filme, fazer sentido
pressupõe que em cada instância se execute um gesto crítico contra o poder dominante. Qual-
quer obra de arte é um laboratório do sentido, permite observar o funcionamento das re-
gras, do acaso, da necessidade, da decisão, da organização, de uma economia da significação
e do insignificante, do encargo que se assume com uma exterioridade... Para uma obra crí-
tica, o que importa é contestar os protocolos simbólicos que permitem que o mundo injusto
se perpetue, a começar pelo estatuto secundário e anexo da arte como reflexo. Por conse-
guinte, Onde Jaz o Teu Sorriso? vai centrar o seu esforço na criação como intervenção, como
acto, como trabalho, como praxis, à semelhança dos Straub, para quem o cinema e a arte, na
esteira de Pavese, Vittorini e até Charles Péguy, que Jean-Marie cita, devem participar na
emancipação, e, portanto, participar, nomeadamente, na elaboração da história daqueles que
não têm história, dos operários, dos camponeses, dos combatentes.
Assim, à escolha precisa do corte preside um conjunto de posições e de proposições não
negociáveis, de ordem polémica e prática, que faz de cada gesto artístico um acto de ruptura
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TODA A NOVA ARTE... - 283

contra o poder dominante, e de que os Straub encontraram correspondentes estéticos, por


exemplo, na concepção da cesura que Hölderlin expôs a propósito das traduções de Sófocles
ou nas teorias de Schoenberg sobre a composição musical.2 Acontece que Adorno chamou
“montagem” à estética segundo a qual fazer obra significava destruir os fundamentos do
mundo em que essa estética se inscreve nolens volens. “É por isso que o princípio de montagem
– com uma consequência cujos graus deveriam ser descritos por essa história da estética que
ainda não existe – se converteu em princípio de construção.”3 Mesmo se, em Adorno, a noção
de montagem não equivale à montagem do cinema (é mais semelhante à colagem, no sentido
em que privilegia o heterogéneo), a montagem adorniana, que cultiva dissonâncias e feridas,
equivale bem às escolhas dos Straub e de Pedro Costa.
Por conseguinte, o cineasta é aqui tratado como artesão, depositário de um saber-fazer
que, justamente por emergir de uma longa tradição filosófica e política respeitante à praxis,
exige daquele que tem a felicidade de a seguir a mesma intensidade e a mesma seriedade para
transmitir, por sua vez, alguma coisa. Aos raccords imperativos dos Straub corresponde a
forma como Pedro Costa organiza a exposição dos planos do casal. O que se organiza é uma
sintaxe plástica de uma diversidade didáctica, elegante e rigorosa: enquadramento total da
imagem, filmada como plano, filmada como motivo, filmada como clarão longínquo sobre o
ecrã da mesa de montagem; cacho de fotogramas vistos como sequência, como série de in-
tervalos, como possibilidade de paragens, regressos e antecipações; entrada e saída dos planos
de Sicilia! no filme de Pedro Costa, lembrando a forma como Robert Mitchum entra e sai
dos espaços de The Night of the Hunter (Charles Laughton, 1955) um acontecimento, uma
epifania negra. A sintaxe de exposição dos planos enriquece-se ainda mais com os modos de
refilmagem sobre o ecrã de Chronik der Anna Magdalena Bach (1968), projectado no anfiteatro
do Fresnoy: a imagem converte-se em presença remota que sempre existiu, que continuará
a existir depois de nós, que ultrapassa a existência actual do conjunto das suas virtualidades
simbólicas, elas mesmas saídas da invenção de uma necessidade estética profundamente
pensada. A partir daí, compreende-se que a famosa anedota que Straub conta acerca da
escolha de Gustav Leonhardt (contra a vontade do produtor, que queria especular com a fama
de um maestro célebre), pode aplicar-se à escolha de cada raccord e de cada fotograma, em
cada filme.
Para basearem os seus filmes na necessidade, há artistas que se apoiam em modelos
matemáticos, geométricos, orgânicos ou discursivos, que lhes fornecem esquemas arqui-
tectónicos e indicações de legitimação. Para os Straub, o modelo estruturante está sempre
diante de nós: é o do comunismo utópico, “aquele que poderia salvar a terra”, como explica
Jean-Marie a propósito de Der Tod des Empedokles (1987). A história não foi contada, o socia-
lismo ainda não existiu, o terror capitalista reina, os imperativos urgem. Ao conjunto das
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TODA A NOVA ARTE... - 285

determinações políticas prospectivas que preside ao conjunto dos gestos artísticos dos Straub,
corresponde em Pedro Costa o tratamento do tempo, do espaço e dos corpos. Apesar da sua
exiguidade, o espaço da sala de montagem não é mais totalizado do que o da cela de Un condamné
à mort s’est echappé de Robert Bresson (1956); embora circunscrito a alguns raccords, o tempo
da criação não é ditado pela feitura de um filme de que não conhecemos nem o princípio,
nem o fim. Quanto mais centrados, profundos e minimais, mais abertos se tornam os
elementos, não há unidade de tempo, de espaço, ou de acção, os princípios composicionais
revelam-se estritamente endógenos ao ensaio: só a questão do raccord serve de eixo, só a
cartografia da representação das imagens confere unidade.
Do mesmo modo, permanecem profundamente abertos os corpos, os seres, o casal. Sobre
as figuras desenrola-se um trabalho sistemático do intervalo. Através de planos fixos, perfis
esculturais, costas majestosas, mãos monumentais, Pedro Costa cria efeitos de retratos
imóveis, autónomos, contemplativos (até à melancolia de um Rembrandt tardio, no plano
final de Straub sentado nos degraus); mas, simultaneamente, por repetição (em particular do
perfil negro sobre negro de Jean-Marie Straub), decalca, em variações sobre o tema, o efeito de
uma falta (seria preciso esperar pelas 6 Bagatelas que virão em anexo a Onde Jaz o Teu Sorriso?
para descobrir Straub e Huillet sentados lado a lado, diante da mesa de montagem), afirma
a materialidade serial do documento visual: a cadência do negro e da luz afecta tanto os cor-
pos como os fotogramas. Straub e Huillet estão em flicker, consigo mesmos, entre si, não são
psicologias mas organismos cinematográficos que sabem que o são e se regozijam, como
quando Straub entra e sai constantemente da sala para inserir no documentário de Costa um
pequeno momento de Lubitsch. Como se esboçasse um sorriso, Pedro Costa responde-lhe
formalmente montando sobre o plano fixo do seu perfil o rugido leonino da película que é
rebobinada na mesa de montagem. Por outras palavras, a série ilimitada dos retratos autónomos
não se encerra numa identificação individual, o que importa não é de forma alguma retratar
personalidades, mesmo que nunca antes as tenhamos visto tão bem; o que importa é manifestar
uma necessidade em acção. A possibilidade de tais aberturas ontológicas nasce obviamente
do negro, cuja massa plástica reina em Onde Jaz o Teu Sorriso?. Um negro não do enigma,
do segredo insondável da demiurgia – pelo contrário, um negro materialista que se enraíza
concretamente no intervalo fotogramático, se prolonga na obscuridade material indispensável
ao visionamento dos planos, corresponde ao silêncio da reflexão (a cólera de Danièle Huillet,
que já não consegue concentrar-se) e deixa para a negatividade histórica e estética, de que a
obra dos Straub deduziu a sua dinâmica, a sua parte visível.
O único vestígio de composição clássica que percorre Onde Jaz o Teu Sorriso? diz respeito
ao amor. Uma evolução afectiva subterrânea, mas linear, leva-nos das progressivas censuras
dirigidas por Danièle Huillet a Jean-Marie Straub a uma série de compromissos práticos
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286 - NICOLE BRENEZ

assumidos em benefício da obra, a uma teia de sinais empáticos muitas vezes ligados a jogos
de citações cinéfilas e termina com uma declaração de amor apaixonado de Jean-Marie por
Danièle. Subitamente, um fim de filme explodindo de amor, que restitui o carácter inane e
alienante a todos os happy end falsificados do cinema da dominação. Onde Jaz o Teu Sorriso?
pulveriza com a sua beleza as falsidades sentimentais que nos repugnam no cinema industrial.
A mesma exigência materialista atravessa Adorno, os Straub e Pedro Costa: uma paixão
pelo trabalho emancipador, de que encontraríamos algumas origens históricas nos textos de
Marx e Engels sobre o pensamento dos operários, que darão origem ao princípio de uma
“ética proletária”. Ora, contrariamente a certas interpretações funestas, em Marx, a ética
proletária não atribui de forma alguma a exclusividade do pensamento crítico a uma classe
social, unindo solidariamente a injustiça, o sofrimento e o pensamento. Em Maio de 1843,
Marx escreve numa carta dirigida a Arnold Ruge: “A existência da humanidade sofredora que
pensa, e da humanidade pensante, que é oprimida, tornar-se-á necessariamente incomestível e
indigesta para o mundo animal dos filisteus, mundo passivo e que goza sem pensar em nada.
Cabe-nos a nós revelar totalmente o mundo antigo e formar positivamente o mundo novo.
Quanto mais os acontecimentos derem tempo à humanidade pensante para se recuperar e à huma-
nidade que sofre para se associar, mais perfeito virá ao mundo o produto que o presente abriga
no seu seio.”4 Jean-Marie Straub, que filmava em 16mm para poder mostrar os seus filmes nas
fábricas, proferiu por vezes declarações radicais contra “a humanidade pensante” reduzida
à corporação dos intelectuais: “Mantenho, como Glauber Rocha, que o cinema é justamente
feito para os operários e os camponeses, que responde à sua necessidade vital. O cinema vai
buscar a sua força à experiência quotidiana dos camponeses e dos operários, ao passo que os
intelectuais não têm experiência nenhuma, é preciso que se saiba que eles nem sequer vivem.
É por isso que os filmes não significam nada para eles, quando é nos filmes que outros
encontram aquilo que os preocupa e têm de superar, dia após dia.”5 Pedro Costa, mais fiel
nesse aspecto a Marx do que aos Straub, e que, em Tarrafal, até agora o seu filme mais
straubiano, tratará os emigrantes clandestinos como dialécticos meditativos, recusa, não
a divisão banal entre operário e intelectual, mas entre pensamento manual e pensamento
conceptual: a mesa de montagem é o lugar tranquilo dessa evidência que exige, porém,
reconquista. Onde Jaz o Teu Sorriso? afirma, documenta e reflecte a figura do cineasta como
artesão comunista, efectuando assim a fusão concreta que o conceito de praxis visava num
plano teórico. Se o que importa é dar uma história ao trabalho, então o ensaio de Pedro
Costa constitui uma boa forma de o fazer: Jean-Marie Straub e Danièle Huillet surgem sem
a ingenuidade mas com a mesma simplicidade do cineasta amador chamado Marcel, cujo
trabalho minucioso e dedicado Jean-Luc Godard comparava ao dos relojoeiros, no episódio
3b de Six fois deux/Sur et sous la communication (1976). Na pequena sala de montagem, em
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TODA A NOVA ARTE... - 287

torno da observação de algumas figuras de raccords, criou-se uma zona transitória de amor
revolucionário. “A arte mantém essa utopia no seio do irreconciliado.”6

1. Theodor W. Adorno, Théorie esthétique (1970), tradução de Marc Jimenez e Éliane Kaufholz, Paris, Klincksieck,
1989.
2. Friedrich Hölderlin, “Remarques sur les traductions de Sophocle” (1804), in Œuvres complètes, tradução de Phi-
lippe Jacottet, Gallimard, 1967; Arnold Schoenberg, Fondements de la composition musicale (1967), tradução de Denis
Collins, Lattès, 1987.
3. Theodor W. Adorno, Théorie esthétique, op. cit., p. 83
4. Karl Marx, Œuvres – Tome 3 : philosophie, tradução e edição Maximilien Rubel, Bibliothèque de la Pléiade, Gallimard,
1982, p. 342. Sublinhado nosso.
5. Mesa redonda com Glauber Rocha, Pierre Clémenti, Miklos Jancso (1970), reproduzida em Cinéma/Politique – Trois
tables rondes, Liège, Labor, 2005, p. 44.
6. Theodor W. Adorno, Théorie esthétique, op. cit., p. 54.
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OUVINDO OS FILMES DE PEDRO COSTA


OU PEDRO COSTA, REALIZADOR PÓS-PUNK
Mark Peranson

Costa: Era exactamente como em No Quarto da Vanda e remonta a um período anterior da minha vida. Era
exactamente como um amigo meu da escola de cinema, com as drogas, também... Eu dizia: “Vamos ver o
John Ford”, e ele dizia: “Vamos ouvir os Clash.” E, então, íamos ver o John Ford e voltávamos logo a seguir para o
quarto, e púnhamos os Clash aos berros.
Cinema Scope: É daí que vem a cena de Ossos com “Lowdown”, dos Wire?
Costa: Sim, acho que sim…

Os ruídos devem tornar-se música


Robert Bresson

When the rich die last


Like the rabbits
Running from a lucky past
Full of shadow cunning
And the world lights up
For the final day
We will all be poor
Having had our say
“Final Day,” Young Marble Giants

Uma das muitas formas produtivas em que podemos dividir o nosso triste mundo é entre
as pessoas que gostam mesmo de música e as outras, que ficam mais pobres. Pedro Costa
disse-me uma vez que, antes de começar a pensar em cinema, gostava era de música.
(Quando lhe perguntaram na pouco concorrida conferência de imprensa em Cannes, a
propósito de Juventude em Marcha, se tinha alguma vez considerado fazer uma adaptação, ele
deu esta resposta memorável: “Sim, sempre quis fazer um filme baseado em Innervisions.”)
Dizer que alguém “gosta de música” [is “into music”], vai para além de um mero interesse, é
mais uma atitude que estrutura um modo de vida: de relação com o mundo, considerando
que ele é feito não só de imagens, mas também de sons, e vendo que há pouco que os distinga
em importância; na verdade, que são inseparáveis. Apesar de toda a recente e efusiva verborreia
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290 - MARK PERANSON

a propósito da notável obra de Costa, tem-se prestado pouca atenção às bandas sonoras dos
seus filmes: quando digo bandas sonoras estou a referir-me a todos os sons, seja uma voz que
tosse ou que diz os “diálogos”, um ruído de fundo – gravado ao vivo na cassete enquanto se
está a rodar uma cena, ou gravado como som ambiente, no local das filmagens – e por último,
mas não menos importante, aquelas canções inesquecíveis. Diria que, mais do que a imagem,
o som é a principal razão pela qual a experiência de um filme como Juventude em Marcha se
adequa mais a uma sala de cinema, e estes sons, por bons motivos, têm muitas vezes sido
ofuscados pelas imagens no que diz respeito à atenção da crítica.
A utilização que Costa faz do som tem-se desenvolvido na sua filmografia num percurso
paralelo ao que já foi descrito por outras pessoas, embora esse percurso talvez se faça no sen-
tido inverso: apesar de se poder defender (e erradamente) que os últimos filmes de Costa –
aquilo a que se costuma chamar a Trilogia de Vanda – representam uma espécie de mini-
malismo depurado, na verdade o trabalho de som tem vindo a tornar-se cada vez mais elaborado,
ou melhor, cada vez mais preciso, uma espécie de música concreta. E, por isso, extrema-
mente complicado, de tal modo que este amador não o consegue explicar; em vez disso,
gostaria apenas de contribuir com algumas impressões e hipóteses. Nestes filmes, os ruídos
são constantes e tornaram-se música: neste sentido, não é descabido chamar-lhes musicais.
Tal como as imagens de Costa, os seus sons, que se repetem frequentemente, combinam o
artificial e o real, inclinando-se bastante para o artifício. Voltar a ver estes filmes impres-
sionantes pode não alterar a sensação da visão inicial, mas ouvi-los repetidamente dá azo a
uma experiência sem fim. Desde a explosão de Stravinsky, ao estilo de Godard, em O Sangue,
até ao jogo entre som, voz e canção em Juventude em Marcha – um filme cujo título inglês
(Colossal Youth) é inspirado no nome do único LP do grupo galês Young Marble Giants,
lançado em 1980 – existem, julgo eu, provas de que Costa é um realizador cuja melhor
descrição pode ser encontrada num termo que não é tradicionalmente cinematográfico:
pós-punk.
Uma hipótese: o fascínio por Costa junto de cinéfilos e críticos mais jovens pode ser
atribuído a esta noção de pós-punk, a este espírito rebelde que podemos encontrar em todos
os seus filmes e que se refina em Juventude em Marcha, um filme cujo título [em inglês] é
retirado de um álbum pós-punk, uma tentativa de fazer algo novo e ousado do ponto de vista
cinematográfico. (Digo pós-punk para o distinguir de um realizador punk como F. J. Ossang,
por exemplo.) A decisão de traduzir Juventude em Marcha para inglês como Colossal Youth é
brilhante porque, tal como o álbum (um exemplo de minimalismo sónico singularmente
despido e absolutamente cativante; aquilo a que Simon Reynolds – que sabe muito mais
acerca do pós-punk do que eu – chama “a originalidade e o carácter invulgar do som […],
o radicalismo discreto”), cada filme de Costa pode ser apreciado se virmos, ou ouvirmos,
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OUVINDO OS FILMES DE PEDRO COSTA - 291

qualquer cena isoladamente. Este título em inglês também desvia o impulso do que seria
um brusco e brechtiano “Youth on the March”, e agrupa-o inconscientemente com a torrente
de filmes recentes que foram buscar os seus títulos a nomes de álbuns ou canções pós-punk,
tal como Unknown Pleasures (2002), de Jia Zhangke, um filme que, em termos concretos,
tem pouco em comum com o de Costa, mas que explora qualquer coisa de semelhante na sua
essência, e pode dizer-se que formam uma espécie de movimento minimalista global. São
filmes discretos num sentido tonal, mas percebemos que são realizados por alguém que está
sobretudo a conter-se, sabendo que, se se deixar levar, algo de essencial poderá desaparecer.
Fazendo referência ao título da excelente análise que faz Reynolds do pós-punk, e fazendo
eco daquilo que já foi muitas vezes dito em relação ao seu método, o que Costa faz é deitar
tudo fora e começar de novo. Quando tentei explicar a um amigo porque é que Juventude em
Marcha me parecia ser uma obra única, no sentido em que, se fecharmos os olhos, conseguimos
perceber a localização de qualquer cena limitando-nos a ouvir – não só a estridência da des-
truição das Fontainhas, mas também o silvar do candeeiro a petróleo da barraca do passado,
o barulho das cartas de jogar, a calma relativa do Casal da Boba – a resposta foi: “Mas não é
isso que a sonoplastia faz?” De certo modo, sim: no cinema, digamos, de Hollywood, os sons
são construídos para estabelecerem a sensação particular de um lugar (apesar de, na maior
parte das vezes, serem efeitos sonoros gravados em estúdio, ao contrário dos filmes de Costa).
Em termos teóricos, uma tal consciência sublinha a construção altamente artificial de cada
um dos filmes de Costa, mesmo do chamado “documentário” No Quarto da Vanda. Mas esta
objecção também ajuda a esclarecer que, para Costa, o som é tão importante como a imagem.
(Numa das vezes em que vi Juventude em Marcha cheguei a perguntar ao projeccionista se
havia algum problema com a cópia, devido à estridência da destruição na banda sonora em
Dolby Digital, só para verem a singularidade do som.)
Uma diferença-chave entre a montagem de som tradicional e aquilo que Costa está a fazer
pode ver-se na percepção de que, em Juventude em Marcha, o som é ao mesmo tempo um
meio para criar uma impressão de lugar e de comunidade, e também um elemento da
narrativa. À medida que a ideia de contar uma história por meios tradicionais desaparece, à
medida que Costa amadurece enquanto artista, a ideia de contar uma história através do som
desenvolve-se e complexifica-se. Num dos flashbacks na barraca, dá-se uma revolução inteira
fora de campo, só pelo som, sem indicadores visuais que mostrem que está a acontecer. Ao
longo de todo o filme, o realojamento da população é sugerido pela maneira como os sons e
as vozes, e os seus níveis relativos, são misturados nas cenas apocalípticas das Fontainhas e
nas cenas do Casal da Boba; dito de um modo muito simples, o murmúrio das vozes das
crianças que se ouve vindo do lado de fora do novo quarto de Vanda torna-se mais forte e
predominante ao longo do filme; crianças essas que vão, contínua e lentamente, preenchendo
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292 - MARK PERANSON

uma arquitectura de ficção científica, como se houvesse uma nova colónia a ser povoada. (A
certa altura, também começamos a ouvir música muito alta, vinda de um apartamento contí-
guo ao de Vanda, outro sinal de que vai ter vizinhos novos.) Os únicos indícios que temos de
uma progressão no tempo são, portanto, sonoros. A sonoplastia é usada para indicar mudança.
Da mesma forma, pensar no processo de Costa com o som como sendo igual ao da
imagem coloca o modo de produção sob uma perspectiva interessante. Não há texto escrito
sobre Juventude em Marcha que não refira a duração da rodagem, o processo de ensaios e a
quantidade final de horas filmadas; é bem verdade. Mas, para cada uma dessas takes, também
há som a ser gravado separadamente, e se acrescentarmos a isso a copiosa quantidade de
som gravado no local, fora das filmagens – recolha de ruídos de fundo no exterior (e até
noutros locais que não exactamente os das filmagens) – Costa tem uma quantidade astronómica
de som gravado por onde escolher. Para cada um dos filmes da Trilogia de Vanda, Costa
passou entre três e seis semanas só a montar o som, com a ideia de “melhorar a sensualidade
das imagens, através de uma aproximação à nossa memória, sensações e impressões da
paisagem sonora das Fontainhas. É um microcosmos sonoro muito rico, exuberante, e, ao
mesmo tempo, delicado e misterioso, no meio da cidade. Uma espécie de reverberação e
tonalidade que encontramos num kasbah, nas velhas cidades árabes ou africanas”.
Ao contrário do processo straubiano de ensaiar em palco antes de filmar, será que aquilo
que Costa faz é parecido com a produção de um disco (e de um LP, ainda para mais), filmando
diferentes faixas de voz para depois procurar a melhor? Será preferível ver os seus actores não
como modelos bressonianos mas antes como instrumentos musicais – ou, talvez, como
actores que tocam instrumentos musicais, sendo o instrumento a voz? James Quandt fornece
outra perspectiva musical, referindo-se à estrutura de Juventude em Marcha como coral, uma
“polifonia primitiva”, sublinhada pela repetição em cantus firmus da carta de Ventura. Mas
uma comparação musical igualmente apropriada poderia ser a referência, demasiado fácil, ao
jazz, no caso dos monólogos improvisados de Vanda, visto que ela está claramente a fazer um
solo, em tom seco e persistente, enquanto que a ensaiada voz de barítono de Ventura, grave e
fulgurante, a mim me faz lembrar outra coisa (sendo a interacção sonora entre a guitarra de
Stuart Moxham e o baixo do seu irmão Philip uma chave para o minimalismo dos Young
Marble Giants): o que acontece nos duetos entre Vanda e Ventura poderia ser o encontro
improvável entre Charlie Parker e Paul Robeson. A este propósito, podemos dizer que o
mundo, mais uma vez, se divide em dois tipos de pessoas: aquelas que são capazes de tolerar,
ou mesmo apreciar, um monólogo de dez minutos de Vanda, e aquelas que não são.

Outra versão sobre o mesmo material: reflectindo sobre o conteúdo de Juventude em Marcha,
sobre o registo de histórias tristíssimas de perda, dificuldade e sofrimento, ocorreu-me que
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OUVINDO OS FILMES DE PEDRO COSTA - 293

também se pode considerar que Costa faz uma espécie de recolha no terreno, é uma espécie de
Alan Lomax ou Harry Smith que está a prestar um serviço etnográfico, a captar (digitalmente)
interpretações e vozes em vias de desaparecimento. São documentos que deviam ser enterrados,
para sobreviverem ao dia do juízo final.

Em Ossos, um filme significativamente escasso em diálogos, o som é usado para tornar


pessoas e objectos equivalentes em termos de significado. Nas primeiras cenas, somos
brindados com uma litania de sons captados com precisão pelos microfones de Henri Maikoff
de modo a parecerem bruitage: a tosse de Clotilde (Vanda), Tina a poisar uma chávena no
fogão, o acender do fogão, o acender de um cigarro. Em pano de fundo, um murmúrio de
vozes, como se viessem de um riacho próximo, ocupando o mesmo espaço invisível da água
que goteja. Um cão a ladrar que nunca é visto, um oposto da dedução mais famosa de
Sherlock Holmes. Isto, diz Costa, são as Fontainhas, um lugar onde o silêncio (e a privacidade)
nunca está presente, onde as vozes se projectam através de paredes finas como papel. Onde
uma porta a bater ou a persiana de uma janela não são suficientes para manter do lado de fora
sons indesejados. Uma comunidade. Depois, o som como choque – o rugido violento do
motor do autocarro que transporta Tina e Vanda para fora do bairro, para uma prisão, para
um hospital. Um bebé a chorar, voz que perfura a banda sonora, a voz principal do filme, sem
palavras e completamente fabricada – no sentido em que a voz do bebé não é gravada ao
mesmo tempo que a imagem do bebé (que, seguramente, em muitas cenas, nem sequer
é um bebé verdadeiro). Mais tarde estamos na Baixa, um lugar mais calmo, onde o ruído é
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fornecido por Clotilde a apertar o avental – depois, o choque de um aspirador a limpar o


tapete dos ricos. Quando Vanda entra no apartamento, o tilintar das chaves ouve-se durante
bastante mais tempo do que o necessário, a lembrar que há uma porta fechada que man-
tém as pessoas como ela do lado de fora, prefigurando o som memorável e o grande plano
final, o trancar da fechadura. No entanto, mais tarde, no mesmo apartamento, ouvimos sons
parecidos enquanto Eduarda, a enfermeira, prepara refeições, os mesmos barulhos de pratos,
o mesmo acender dos cigarros. As panelas fazem os mesmos barulhos, há a mesma faísca
suave quando acendem um cigarro, a mesma respiração quando inalam uma passa.
Se a mistura demente que ouvimos nas Fontainhas é fabricada, também o é o silêncio no
apartamento da enfermeira – tal como o silêncio reverente na Gulbenkian em Juventude em
Marcha – e ambos adquirem uma ressonância temática, enquanto forma de sobrepor os dois
espaços, o da Baixa e o da classe baixa. Em No Quarto da Vanda, estamos completamente
confinados às Fontainhas, mas apesar disso o filme tem um ambiente muito diferente da
quase tarkovskiana paisagem sonora, e não é só porque o bairro está a ser demolido. (A
brutalidade desta destruição é evidenciada pelos cortes, frequentemente violentos, de um
interior mais calmo para um exterior monstruosamente barulhento, com os bulldozers a
trabalhar.) As paredes continuam a ser igualmente finas – há cenas de Vanda e Zita a gritarem
com a mãe, fora de campo, no quarto ao lado, e o clamor constante, vozes, fragmentos de
música e etc., que, no entanto, reforçam constantemente o facto de o Bairro das Fontainhas
ser uma comunidade vibrante, hawksiana. O silêncio é mais do que um luxo no gueto; é, de
um modo geral, desconfortável, o que ajuda a explicar a omnipresença de uma personagem
muito significativa, a televisão sempre aos berros no quarto de Vanda em Juventude em Marcha.
Mais frequentemente do que em Ossos, que é uma boa obra bressoniana (Bresson: “O falso,
quando é homogéneo, pode gerar o verdadeiro”), vemos as fontes destes sons, que são
verdadeiramente diegéticos. A montagem sonora em No Quarto da Vanda é dialéctica, é usada
para criar uma impressão do real: às vezes ouve-se um ruído e, depois, o que se segue é a
imagem desse ruído, mais alto, na presença da imagem: por exemplo, na apresentação de
Nhurro. Ouvimo-lo a varrer do lado de fora da casa, e depois Costa corta para ele dentro de
casa, a trabalhar. Também é frequente a imagem e o ruído serem simultâneos, e depois haver
uma transição para um exterior ou interior, onde o ruído fica mais baixo, como acontece
no plano de um homem a martelar repetidamente uma parede, à frente de um bulldozer,
havendo depois um corte para o interior, onde o som se ouve ao longe.
Apesar de estes sons serem todos gravados no local das filmagens, este aspecto da
montagem sonora ainda se mantém no âmbito do cinema narrativo tradicional, no sentido
em que a imagem e o som decorrem um do outro, mas o movimento motivado de um espaço
para outro cria uma dinâmica que unifica o bairro. Como disse Costa, “Com pessoas desta
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OUVINDO OS FILMES DE PEDRO COSTA - 295

intensidade, há uma tensão que tem de ser ouvida. Tentei criar um movimento sonoro que
sublinhasse o peso e a tensão das coisas”. Além disso, uma audição ainda mais atenta revela
que se passa mais qualquer coisa. Só ao fim de meia hora é que um cão ladra em No Quarto
da Vanda e, depois, só ouvimos este cão mais uma vez: no lugar dele está o canário em casa
de Nhurro, um canário cujo chilrear parece ressoar pelo bairro inteiro (chilrear que reaparece
mais tarde em Juventude em Marcha; devo acrescentar que pensei inicialmente que esse som
fosse um chiar de sapatos), aparecendo em lugares onde claramente não tem direito a ouvir-se
– sobretudo por cima do clamor supostamente constante das casas que são demolidas por
martelos pneumáticos. Há igualmente uma personagem inanimada, completamente invisível,
e que nunca chega a ser definida – parece o alarme de um relógio, que ouvimos pela primeira
vez no quarto de Vanda, mas que surge noutros sítios, como um refrão. (Duvido sinceramente
que toda a gente tenha o mesmo relógio.) É um sinal melancólico e claramente digital de
que acabou o tempo, embora nunca seja dado de maneira tão manifesta como eu exponho
aqui. O que é revelador da diferença entre dizer ou ver qualquer coisa e ouvi-la.
Será isto um sinal de que acabou o tempo? (Também o pássaro na gaiola não podia ser
mais flagrante, mas não parece assim tanto porque é sobretudo ouvido, e não visto.) Se em
No Quarto da Vanda o som é usado de uma forma calculada para construir uma ilusão de
realidade – de certo modo crucial para o filme, no sentido em que mostra uma comunidade que
está a ser destruída –, ao mesmo tempo constitui uma chave para desconstruir a ilusão simples
de um documentário. E isto só se torna completamente evidente se ouvirmos com atenção.

Todo o No Quarto da Vanda é sustentado por músicas, a começar com “Il est mort le soleil”,
por Nicoletta, que primeiro se ouve sobre um ecrã negro e que depois se revela como diegético
(Costa é, em certos aspectos, um bom bressoniano, apesar de dividido: veja-se a “cena de
festa” em Ossos, ao som da música do grupo cabo-verdiano Os Sabura, em que a aparelhagem
é claramente vista e mantida no enquadramento). No final, o compositor húngaro György
Kurtág (cuja música também fecha Juventude em Marcha). Pelo meio, fragmentos de canções
propriamente ditas, cantadas por pessoas que gostam mesmo de música: Nhurro (que,
quando falei com ele, começou a comunicar no seu inglês hesitante falando de vários canto-
res e vários grupos) cantarolando “No Woman No Cry”, de Bob Marley, Vanda assobiando
baixinho um medley do “Agnus Dei” de Bach e das Quatro Estações de Vivaldi, “I’ve Got the
Power”, uma versão portuguesa de “Memories” de Cats, os sons de um violino a ser afinado
(e depois a ser tocado por alguém, de acordo com essa estratégia de primeiro dar a ouvir e
depois a ver), uma música qualquer de acordeão…
Poder-se-ia dizer que cada um dos filmes de Vanda é uma variação sobre um outro álbum
de Stevie Wonder: Songs in the Key of Life. Sempre que surgem canções propriamente ditas
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296 - MARK PERANSON

– excepto no fim de No Quarto da Vanda, diege-


ticamente – apresentam-se-nos como uma suces-
são de choques brechtianos. O aparecimento
imprevisto e agressivo em Ossos de “Lowdown”
dos Wire, banda seminal pós-punk, é ao mesmo
tempo brilhante e, resumidamente, ilustrativo
daquilo que impede o filme de atingir a impo-
nência dos filmes seguintes, porque a sua utili-
zação faz parte da estratégia de contraste espacial.
Quando Eduarda chega, Tina está deitada na
cama, com a canção dos Wire a tocar num leitor
de cassetes fora de campo (uma versão ao vivo,
gravada em Londres, no Roxy, em 1977). Qual-
quer pessoa que tenha uma certa idade apercebe-
se subitamente de que a cena que estamos a ver
é uma experiência típica da adolescência – estar
sentado no quarto, a ouvir música, ser inter-
rompido por uma figura de autoridade. De re-
pente, Tina, a suicida, já não é só alguém que é
oprimido pela sua pobreza/ condição, uma posição
que na realidade a separa do público do cinema de
autor – passa a ser uma adolescente normal, como
qualquer rapariga, de qualquer classe, com uma
gravidez indesejada. A crise dela é, numa palavra,
existencial, e bastam 15 segundos de música pós-
punk para pôr os pontos nos ii. Depois disso,
Vanda declara não precisar de nada. Deixem-nos
em paz. E volta a ligar a música… e é a versão de
estúdio. Olhando-a retrospectivamente, depois de
No Quarto da Vanda e Juventude em Marcha, esta
equação existencial directa parece quase demasiado
simples e ligeiramente forçada, apesar de ser
quase perfeita no domínio do cinema de autor
“tradicional” em versão bressoniana.
A carta encantatória lida e relida em Juventude
em Marcha – uma mistura de Desnos e de Ventura
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– não é senão outra destas canções, um rap que é recitado vezes sem conta, num estilo quase
sem variações. Mas há outra canção em Juventude em Marcha que é igualmente importante:
a canção que Ventura e Lento põem a tocar na barraca, num velho gira-discos, “Labanta
Braço”, é uma popular canção pró-independência do mais famoso e popular grupo de rock
cabo-verdiano, Os Tubarões. Costa explica que o grupo era próximo do PAIGC, o partido
comunista de independência da Guiné e de Cabo Verde, fundado por Amílcar Cabral, um
guerrilheiro, intelectual e herói nacional, assassinado em 1973 pela PIDE. Pelo modo como
aparece no filme, que fora isso é desprovido de música, esta canção riscada sobre a liberdade
funciona como instanciação de uma vertigem, a sua repetição arrasta os espectadores por
uma espiral espácio-temporal, criando uma sensação dramática de tontura e confusão
(exacerbada pelo facto de ser em crioulo e não estar legendada). Seguir o disco que roda sem
parar pode levar os espectadores ao outro mundo, mas com o tempo há-de levá-los ao outro
lado, qualquer coisa como a liberdade.

Bonus track

Costa fez mais dois filmes durante o período da Trilogia de Vanda, e ambos mostram que o
seu interesse pelo som vai além das Fontainhas. Em Onde Jaz o Teu Sorriso?, o ronronar
constante do rebobinar para trás e para a frente na mesa de montagem é música para os ou-
vidos de qualquer pessoa. Além, disso, se já se traçou a comparação entre Danièle Huillet e
Vanda, o cantarolar constante, os monólogos infindáveis e as arengas e repetições de Jean-Marie
Straub talvez façam do casal os dois lados da musa de Costa. E devido à falta geral de atenção
dada à relação de Costa com a música, não é surpreendente que o trabalho menos discutido
da filmografia de Costa possa ser considerado um vídeo musical, ou, para sermos precisos,
três: Ne change rien. Também não é nenhum choque que o seu próximo projecto seja uma ver-
são mais longa deste filme musical, um projecto com a actriz e chanteuse francesa Jeanne
Balibar, filmado em estúdio e nos intervalos entre as digressões. Já existiam fragmentos de
vídeos musicais na filmografia de Costa: o travelling à beira-rio ao som de “Perfect” dos The The,
no seu outro filme a preto e branco, O Sangue, é anterior à cena, agora clássica, ao som de
“Modern Love”, em Mauvais Sang de Leos Carax (1986), com um acrobático Denis Lavant
(a que Costa depois responde com o longo travelling – na direcção oposta – do jovem pai sem
nome de Ossos, tendo por música os ruídos da rua); em tudo isto pode encontrar-se a origem
do vídeo musical em plano-sequência, agora tão em voga.
A colaboração de Costa com Balibar aconteceu por acaso, quando ela estava a gravar o
seu álbum Paramour e lhe pediu para fazer um vídeo para uma das canções (e, conta ele,
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“continuei a filmar e a filmar…”). Inicialmente mostrado em projecção, apesar de não ter


sido concebido explicitamente para ser apresentado assim, o som de Ne change rien, basica-
mente o registo de um concerto ao vivo, foi gravado em directo, juntamente com a imagem,
mas apesar disso a curta-metragem como um todo apresenta-se-me como uma obra teórica,
e talvez a formulação mais clara até à data da prática cinematográfica de Costa. Pode ser des-
crita como uma obra crua mas respeitosa, com Balibar a interpretar três canções: a primeira,
“Rose”, da autoria de Balibar (“A rose is a rose is a rose heureuse”), é gravada nos bastidores
num camarim exíguo (supõe-se que antes de um concerto), com Balibar a cantar, reflectida
num espelho à esquerda, o guitarrista a acompanhar sem amplificação e um baterista, ligei-
ramente fora de campo, a tocar no colo. A câmara, tal como estamos habituados, é estática:
a canção é toda gravada numa única take, e Balibar repete o refrão, “a rose is a rose is a rose
heureuse”. A sua execução da canção é impecável, sem hesitações, e não dá sinal de se
aperceber da presença de Costa ou da sua câmara.
Por outras palavras, trata-se do “ensaio”, que é normalmente visto como versão incompleta
e reduzida ao essencial do espectáculo em palco, mais complexo, que se vê nas duas canções
seguintes, com orquestração, iluminação elaborada e uma actuação mais estilizada. Mas ao
princípio está basicamente às escuras, e Costa passa de planos gerais para grandes planos de
Balibar numa actuação concentrada, a cantar mais duas canções. A primeira, “Ne change rien”
(com letra de Jean-Luc Godard), é quase toda filmada num grande plano escuro, a cara dela
mal se vê, e o resto da banda, bem como o público, nunca ficam visíveis. Podemos partir do
princípio que, como acontece em qualquer concerto numa grande sala, também o público é
incapaz de a ver, só a ouve. Na segunda actuação, “Torture”, de Kris Jensen (de que Kenneth
Anger faz uma versão em Scorpio Rising), encontramos Balibar no centro do palco, numa
constelação de estrelas brilhantes – a luz dos projectores reflectida nos instrumentos – e,
para o fim, torna-se mais leve. No final, aplausos, e depois, durante alguns segundos, um
palco vazio.

Talvez seja só impressão minha, mas a cena dos bastidores, o “ensaio” despojado, tem
qualquer coisa de muito mais conseguido, em comparação com as cenas dos dois números
“profissionais” e de “grande orçamento”. E isso apesar de este ensaio ser claramente uma
quimera, tão encenado como as outras duas actuações. Costa não se limitou a colocar a câmara
e a gravar: da mesma forma que Juventude em Marcha comenta implicitamente a invisibilidade
de uma produção estilizada. A cena de ensaio de Balibar não foi decerto gravada do pé para
a mão, e ela terá passado muito tempo a tocar e voltar a tocar esta canção, tal como as cenas
de Juventude em Marcha são o resultado de horas e horas de ensaios filmados. Balibar sabe
que a câmara está ali, está a actuar e, nas cenas seguintes, o público sabe que ela lá está,
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OUVINDO OS FILMES DE PEDRO COSTA - 299

mesmo que não a consiga ver, e sempre os dois se reunirão. Ne change rien é o título, e esta
ilusão constitui uma chave para a obra de Costa: a ilusão de que nada foi mudado. E, no en-
tanto, nada poderia estar mais longe da verdade.
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DO FILME À EXPOSIÇÃO:
AS INSTALAÇÕES VÍDEO DE PEDRO COSTA
João Nisa

Inscrevendo-se no contexto da crescente circulação de autores e de obras entre a sala de


cinema e as galerias e instituições museológicas, a abordagem dos espaços de exposição por
Pedro Costa, para lá da declarada desconfiança do cineasta relativamente à prática da arte
contemporânea e às suas relações com a história e a cultura cinematográficas, assume-se
como parte plenamente integrante do seu trabalho, prolongando e desenvolvendo algumas
das características essenciais dos seus filmes mais recentes, nomeadamente no que diz
respeito às formas de espacialização do tempo e da montagem presentes no seu interior.
De facto, depois de O Sangue e de Casa de Lava, obras com uma estrutura mais clássica
e ainda claramente dependentes de uma articulação entre locais distantes e do jogo de alter-
nância entre interiores e exteriores, e a partir da descoberta do Bairro das Fontainhas e do seu
particular modo de organização espacial (caracterizado pela exiguidade das casas e ruas, e
pelo efeito de fechamento e autonomia daí resultante), o cinema de Costa veio cada vez mais
a fixar-se num conjunto limitado de pequenos espaços, nos quais passou a decorrer pratica-
mente a totalidade da duração dos seus filmes, assumindo particular relevo nesse âmbito o
carácter recorrente da presença do quarto ou da sala fechada.1
Para lá da sua condição abstracta de princípio de planeamento e de construção, a impor-
tância fundamental da arquitectura para a prática cinematográfica reside sobretudo no produto
da sua actividade, materializada em múltiplas formas de estruturação do espaço físico e dos
seus diferentes elementos. Esta situação pode ser demonstrada a partir de exemplos tão
distintos como o das curtas-metragens de Charles Chaplin, nas quais o cineasta não utilizava
qualquer argumento, começando frequentemente por pedir que lhe construíssem um deter-
minado cenário, a partir do qual vinha depois a desenvolver a sua mise en scène; o da rigorosa
organização simétrica das imagens e do papel essencial dos mais variados tipos de lugares
fechados e da forma do labirinto ao longo de toda a obra de Fritz Lang (que começou por
estudar arquitectura, tendo sempre dedicado extrema atenção à concepção dos seus décors); ou
o da meticulosa exploração por parte de Michelangelo Antonioni da geometria das edificações
dos diversos locais nos quais decorrem os seus filmes, sistematicamente utilizando as suas
linhas e massas como base composicional.
No caso específico de Pedro Costa, que afirma sempre ter preferido filmar em espaços
interiores, a adequação a uma realidade física preexistente, com características muito precisas,
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302 - JOÃO NISA

veio acarretar um vasto conjunto de consequências para o seu trabalho.2 Desde logo, a incli-
nação do cineasta para a elaboração dos seus enquadramentos como unidades extremamente
estruturadas e autónomas, cuja composição precede a acção que nelas se vai verificar,
encontrou uma evidente correspondência na natureza espacial das Fontainhas, fornecendo
este cruzamento entre um princípio abstracto e a materialidade de um lugar concreto a
própria condição de possibilidade para o prolongamento da duração dos seus planos e para
uma maior disponibilidade relativamente a todos os acontecimentos que se vão produzindo
no seu interior. A partir de No Quarto da Vanda, o primeiro dos filmes de Costa a utilizar
o suporte digital e verdadeiro ponto de viragem da sua obra, assistiu-se assim à substituição
da maior fragmentação dos corpos e dos lugares característica do seu trabalho anterior (em
certos momentos próxima daquela defendida e praticada por Robert Bresson) pela tendência
para a apresentação consecutiva de um conjunto de cenas filmadas cada uma delas num
único plano, numa escala mais aberta e com a câmara fixa, sucedendo-se frequentemente
esses diversos blocos sem o recurso a qualquer tipo de planos de transição.
Reforçando o carácter fortemente elíptico que sempre existiu no cinema de Costa, desde
o início atravessado pela violência de certos cortes e por grandes silêncios narrativos, esta
construção dos seus últimos filmes a partir de planos com uma duração francamente mais
extensa veio conferir à sua montagem sobretudo uma função de ordenação e de ajustamento
de longas continuidades homogéneas, afirmando de modo mais declarado o intervalo entre
as diferentes imagens e a sua manutenção no presente, numa zona situada algures para lá
das tradicionais fronteiras entre a ficção e o documentário (distinção, aliás, recusada pelo
cineasta, que considera ser sempre o melhor documento aquele fornecido pela elaboração
ficcional). A esta conjugação de espaços celulares e de longos planos fixos relativamente
autónomos encontram-se associadas duas vertentes, distintas mas complementares, essenciais
para a compreensão da forma de abordagem do contexto expositivo por Costa.
Por um lado, a prolongada exibição de um mesmo espaço fechado, normalmente iluminado
pela luz proveniente de uma única abertura (uma janela ou porta, incluída na imagem sem que
se veja, no entanto, aquilo que está para além dela), através de planos fixos de longa duração
nos quais a sua presença se impõe de forma muito evidente, provoca no ecrã um certo efeito
de duplicação da sala onde se encontra o espectador e do cone luminoso da projecção que
a atravessa. Para lá de todos os acontecimentos de ordem visual ou narrativa que neles possam
ocorrer, os filmes elaborados segundo este princípio aproximam-se assim ao máximo do seu
próprio dispositivo de apresentação, fornecendo quase em permanência uma sua imagem
invertida ou deslocada, o que não deixa de favorecer o seu questionamento e o do modo de
visão por ele implicado, sugerindo implicitamente a possibilidade da sua transformação e a
eventual passagem para condições de recepção caracterizadas por um outro grau de intimidade.3
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DO FILME À EXPOSIÇÃO - 303

A este nível, apesar de originalmente concebido para a série televisiva Cinéma, de notre
temps, o filme que mais se evidencia é, sem dúvida, Onde Jaz o Teu Sorriso?, quase na sua
totalidade realizado numa única sala, cuja penumbra é apenas perturbada pela luz que
penetra pela porta e por aquela gerada pela mesa de montagem na qual vão desfilando as
imagens e os sons de Sicilia! (1998), de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, e ele próprio
uma reflexão directa sobre a prática cinematográfica e as diversas questões que a atravessam.4
Se este modo de construção resultou directamente da experiência de No Quarto da Vanda
(cujo projecto inicial previa que o filme decorresse inteiramente no espaço referido no seu
título), uma parte muito significativa de Juventude em Marcha (no qual, para lá dos diversos
planos nas divisões dos novos apartamentos ou da barraca de Lento e Ventura, a “casa dos
finados”, onde “há muitas figuras”, surge como uma referência explícita ao modelo da sala de
cinema), ou a integralidade de alguns trabalhos de menor dimensão, como as curtas-metragens
The End of a Love Affair e Ne change rien, apontam claramente no mesmo sentido.5
Mesmo se Costa permanece fundamentalmente comprometido com os princípios do
cinema clássico, do qual se procura constituir como herdeiro e continuador, não deixa assim
de se relacionar directamente com a prática de certos autores assumidamente modernos. É
o caso de Chantal Akerman, de Saute ma ville (1968) a Là-bas (2006) responsável por uma
obra toda ela atravessada pela constante presença de locais fechados e de situações de en-
clausuramento, com particular destaque para o espaço doméstico (tendo mesmo realizado
uma curta-metragem, de carácter quase programático, intitulada La Chambre (1972)), e uma
das primeiras cineastas a conceber instalações a partir dos seus próprios filmes, utilizando-os
como se fossem conjuntos de rushes, de modo a restituir aos seus diferentes planos ou
segmentos todas as suas virtualidades. Este aspecto do cinema de Costa aproxima-o ainda do
trabalho de Jean-Claude Rousseau, autor de uma obra singular situada no cruzamento entre
várias formas e possibilidades (e, em certa medida, mais próxima do chamado cinema expe-
rimental, tendo também sido já pontualmente apresentada num âmbito expositivo), na qual os
diversos quartos de hotel repetidamente mostrados de filme para filme se constituem como
autênticos dispositivos de camera obscura, como espaços de recolhimento nos quais se inscrevem
através das suas janelas as variações luminosas e as impressões sonoras do mundo exterior.
Paralelamente a este princípio de concentração num único local fechado, a proliferação
de ramificações e de vasos comunicantes de No Quarto da Vanda, ou a própria multiplicação
de espaços similares de Juventude em Marcha (associada às características arquitectónicas do
novo bairro, no qual decorre uma parte significativa da sua narrativa, e à quase impossi-
bilidade de distinguir as várias divisões vazias dos seus apartamentos ou as entradas e escadas
dos diversos edifícios), originam nesses filmes um modo de construção marcadamente serial,
através do qual os cortes se identificam frequentemente com as mudanças de lugar ou de
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compartimento, assemelhando-se os diferentes “planos-espaços”, para lá do elevado grau de


rigor investido nas suas ligações, às peças de um puzzle susceptível de ser montado de
várias formas.
Com a sua maior diversidade de registos, alternando curtas cenas fragmentadas com outras
muito longas filmadas num único plano e incorporando um certo número de movimentos
panorâmicos e de ângulos de câmara contrapicados o seu cruzamento de sequências referentes
aos dois diferentes bairros, a subtil mistura de dois estratos temporais distintos, o efeito de
repetição de determinados espaços e enquadramentos, e a sua estruturação a partir das diversas
visitas de Ventura aos seus numerosos “filhos” e da rememoração obsessiva da sua carta de
amor, Juventude em Marcha apresenta mesmo uma forma verdadeiramente circular, no interior
da qual se esbatem todas as relações causais, parecendo as suas várias zonas permanente-
mente em contacto umas com as outras, num efeito de evidente espacialização da sua
temporalidade e narrativa.
Alguns dos aspectos essenciais do filme, como a quase constante fixidez da câmara e a
repetida aparição de certos espaços filmados sempre com os mesmos enquadramentos e
directamente encaixados uns nos outros através das deslocações de Ventura e das suas
entradas e saídas de campo (de um modo que confere às portas, enquanto elementos de
separação, mas também de ligação e de passagem, uma importância fundamental), parecem
evidenciar sobretudo a influência exercida pela obra de Yasujiro Ozu.6 No entanto, a extensão
temporal de alguns dos seus planos não deixa de fazer o filme de Costa aproximar-se de
algumas obras centrais do cinema moderno, como Out 1: Spectre (1972), de Jacques Rivette,
experiência de dilatação da duração também ela assente numa estratificação narrativa em
diferentes níveis, sendo igualmente atravessada por diversos planos-sequência nos
quais a câmara parece captar de modo quase indiferente aquilo que vai ocorrendo no seu
campo de registo. A conjugação destes dois tipos de características aproxima ainda Juventude
em Marcha de um filme como Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975),
de Chantal Akerman, todo ele centrado no espaço do apartamento da sua protagonista e
construído a partir de um princípio de repetição e de variação das suas actividades e tarefas
quotidianas, filmadas várias vezes da mesma forma, exclusivamente através de planos fixos
e praticamente na sua duração real (constituindo, de resto, uma das obras às quais a cineasta
retornaria no âmbito das suas instalações, isolando alguns dos seus fragmentos de modo a
apresentá-los autonomamente ou a recombiná-los nas dimensões da exposição).
De uma outra forma, ao tipo de relacionamento entre os vários “planos-espaços” caracte-
rístico da fase mais recente da prática de Costa parece corresponder, ao nível da totalidade da
sua obra, uma certa imbricação dos próprios filmes uns sobre os outros, sucedendo-se entre
eles as rimas, as repetições e as variações, de ordem narrativa, plástica ou formal, numa
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306 - JOÃO NISA

verdadeira proliferação de semelhanças (na qual participam igualmente as diversas referências,


por vezes explícitas, ao trabalho de outros cineastas), organizando-se os diferentes elementos
num efeito de rede, do qual pode surgir como emblema a proximidade física das várias
mulheres de Ossos, ou até a evidente androginia de uma parte das personagens do seu cinema.
É assim, por exemplo, que os cães de O Sangue e de Casa de Lava são ambos chamados
de Escuro, enquanto a venda do bebé de Ossos remete directamente para a transferência
familiar a que se vê sujeita a personagem de Nino no primeiro desses filmes; que o longo
travelling lateral de acompanhamento do percurso urbano do jovem pai de Ossos repete, desen-
volvendo-o, aquele de Casa de Lava seguindo Mariana na sua deambulação pela povoação
cabo-verdiana, o qual retomava já igualmente um outro bastante mais breve de O Sangue,
acompanhando Vicente numa corrida nocturna à farmácia; que planos aproximados dos
rostos em silêncio das suas personagens ou simples figuras atravessam os diversos filmes de
Costa (constituindo mesmo uma sua série uma sequência autónoma em Casa de Lava), en-
quanto as diferentes habitações filmadas ao longo da sua obra apresentam invariavelmente
as mesmas características degradadas e rugosas; que a carta inspirada nas palavras de Robert
Desnos e recitada como um refrão por Ventura em Juventude em Marcha é já a repetição
integral de uma outra lida no mesmo Casa de Lava, no qual o título desse filme posterior
(um slogan revolucionário das décadas de 60 e 70) surgia pela primeira vez; ou que o próprio
acidente de Ventura num andaime, ou a sua abundante descendência fictícia, parecem repetir
tanto a queda de Leão nas obras, como a reivindicação de mais de uma trintena de filhos pelo
patriarca cabo-verdiano Bassoé, ambos igualmente de Casa de Lava.7
Longe de se referirem apenas a alguns aspectos pontuais da obra de Costa, estas relações
de espelhamento verificam-se, de igual modo, ao nível dos próprios filmes enquanto unidades,
derivando parcialmente a construção mais livre de Casa de Lava, desde logo, de uma recusa
deliberada daquilo que o seu autor considerava ser o excesso de romantismo de O Sangue. Por
seu lado, o seguinte Ossos veio constituir uma espécie de contracampo em relação a esse seu
segundo filme (tendo o encontro com as Fontainhas resultado directamente do pedido feito
ao cineasta, durante a sua rodagem, para que entregasse cartas e presentes aos cabo-verdianos
aí residentes), enquanto No Quarto da Vanda começou por surgir como uma reacção à in-
satisfação provocada pela abordagem inicial do bairro, propondo relativamente a ela um
contraponto documental e a radical redução dos meios implicados na sua realização. Para lá das
inevitáveis diferenças associadas às características daquilo que é filmado em cada caso, Onde Jaz
o Teu Sorriso? apresenta igualmente evidentes pontos de contacto com o seu imediato antecessor,8
respondendo Juventude em Marcha, por sua vez, ao fechamento quase absoluto no cubículo
da sala de montagem do Fresnoy, com uma outra abertura e diversidade espacial, ao mesmo
tempo que a influência do trabalho de Straub e Huillet se faz nele sentir com maior intensidade.
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DO FILME À EXPOSIÇÃO - 307

De modo mais concentrado, as três longas-metragens relacionadas com as Fontainhas


não se limitam a fixar os efeitos da passagem do tempo e de diversos acontecimentos sobre
um mesmo grupo de pessoas e um espaço comum, antes operando em relação a eles uma
sobreposição de diferentes registos e perspectivas, na criação de um verdadeiro “efeito cubista”,
através do qual é explorado todo o espectro entre a ficção e o documentário, enquanto o papel
e a importância relativa de cada uma das personagens, bem como dos vários lugares e motivos,
vai variando de filme para filme.9 Não deixando de se aproximar das formas de duplicação
e de desdobramento intensamente exploradas na obra de certos autores do cinema moderno,
como Marguerite Duras ou Jean Eustache, este tipo de relacionamento entre os três filmes
parece encontrar sobretudo paralelo na acumulação de camadas da dita “trilogia de Koker”,
de Abbas Kiarostami (constituída por Khane-ye doust kodjast?, 1987 (Onde Fica a Casa do
Meu Amigo?), Zendegi va digar hich, 1991 (E a Vida Continua ), e Zire darakhatan zeyton,
1994 (Através das Oliveiras ), e também filmada com os habitantes da povoação em torno da
qual toda ela decorre), outro cineasta que se viria a interessar pela utilização de pequenas
câmaras digitais, envolvendo-se igualmente, nos últimos anos, no trânsito entre vários modos
e lugares de apresentação do seu trabalho.
Com as curtas-metragens A Caça ao Coelho com Pau e Tarrafal, ambas construídas a partir
do mesmo material de base e ainda formas de prolongamento das obras anteriores (como se
para o cineasta se tivesse tornado impossível abandonar o universo das Fontainhas), Costa
propôs não tanto duas versões do mesmo filme com diferentes durações, ou mesmo duas
montagens distintas das mesmas imagens e sons, como uma verdadeira deslocação de ponto
de vista narrativo de um objecto para o outro. Toda a parte inicial do primeiro filme, centrada
na figura de Alfredo e na sua deambulação urbana com Ventura, surge assim substituída no
segundo por um longo diálogo, filmado num plano contínuo entrecortado pela aparição do
título, entre José Alberto e a sua mãe num interior escurecido, convocando essa conversa um
conjunto de referências familiares, geográficas e míticas que transformam profundamente
a visão e o sentido das cenas seguintes (igualmente atravessadas por diversas diferenças ao nível
da ordenação dos planos, das suas durações e das próprias takes utilizadas), nas quais se verifica
o encontro do filho com essas duas outras personagens.10
A este constante e cada vez mais denso engendramento dos filmes de Costa uns a par-
tir dos outros, e ao seu relacionamento como se se tratassem das diferentes faces de um
mesmo cristal, responde necessariamente um espaço de pensamento comum, uma verda-
deira zona de partilha entre as várias obras que transcende claramente simples recorrências
temáticas ou estilísticas, parecendo antes os seus diversos elementos constituintes assumir
uma relativa independência no seu interior, mostrando-se permanentemente disponíveis
para a sua reactualização em novas configurações, para se converterem no germe de outros
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308 - JOÃO NISA

trabalhos, ou mesmo para a sua apresentação autonomizada num contexto distinto do da


sala de cinema.
Respondendo a um desafio da crítica e comissária de exposições Catherine David para que
mostrasse as rushes de No Quarto da Vanda, a primeira instalação concebida por Costa, origi-
nalmente apresentada na Biennale d’Art Contemporain de Lyon, no Verão de 2001, assentava
num retorno sobre as cerca de cento e cinquenta horas do material em bruto desse filme,
exibindo uma sua selecção de cento e vinte minutos distribuída sobre dois ecrãs, alinhados um
ao lado do outro, a partir de um princípio de separação entre planos filmados em exteriores
(projectados do lado esquerdo) e em interiores (do lado direito). Dando lugar à criação de um
certo número de dípticos e fazendo sobressair tanto a questão das relações visuais e formais
como a do próprio intervalo no interior dos diferentes pares de imagens simultâneas, a utili-
zação deste dispositivo extremamente simples (no qual o efeito de divisão era ainda acentuado
pelo facto de só se poder ouvir o som de uma das projecções de cada vez, através do uso de
auscultadores) surgia como uma forma de explicitação do modo de construção eminente-
mente espacial do filme original, embora ainda através de uma ordenação sucessiva de vários
planos em cada um dos ecrãs e de uma lógica de organização unicamente binária.
Apresentada ao longo do tempo com diversas variações ao nível da sua disposição espacial,
determinadas em função da adaptação a diferentes lugares e condições,11 e com uma mon-
tagem cada vez mais apurada até atingir a sua eventual forma final e o seu título definitivo
(ele próprio uma referência à sua dualidade constitutiva), Minino macho, minino fêmea
surgia na exposição Fora!, realizada em parceria com o escultor Rui Chafes no Museu de
Serralves (2005-06), com pouco mais de metade da sua duração original e a incorporação de
alguns planos de interiores filmados nas Fontainhas para Juventude em Marcha. Esta versão
da instalação misturava assim indiferenciadamente o material dos dois filmes e as suas
distintas narrativas e temporalidades, enquanto o som das duas projecções era também
ouvido em simultâneo no espaço (sobrepondo-se os intensos ruídos da demolição do bairro
a ambas as imagens), acabando o tipo de relacionamento entre os diferentes elementos visuais
e sonoros por problematizar a possibilidade da simples separação entre interiores e exteriores,
que inicialmente parecia constituir a base do projecto.12
Concebidas a partir do material filmado para Juventude em Marcha, durante o seu próprio
processo de montagem, num momento no qual não estava inteiramente decidida a integração
desses segmentos na sua versão final, as restantes projecções incluídas pelo cineasta na
exposição reflectiam algumas das características do modo de construção dos seus últimos
filmes de forma ainda mais directa. A partir da apresentação isolada de um conjunto de
longos planos fixos situando algumas das personagens no interior de pequenas divisões
unicamente atravessadas pela luz proveniente das suas janelas, era assim proposta uma
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310 - JOÃO NISA

forma de relacionamento entre eles substancialmente diferente daquela que se viria a verificar
no desfile linear do filme, cabendo directamente aos visitantes e à sua livre deambulação ao
longo das salas do museu, transformado em lugar simultaneamente físico e mental, o esta-
belecimento das relações de montagem entre os vários espaços e planos, e entre estes e as
esculturas de Chafes que os enfrentavam ou iam com eles alternando.
Através da organização desses fragmentos em diversos tipos de arranjos visuais, Costa
parecia ainda querer experimentar as várias possíveis modalidades da sua inscrição no
contexto da exposição. Benfica, Colina do Sol e Pontinha consistia assim na apresentação alter-
nada, sobre as duas paredes do canto de uma pequena sala, de dois planos de dois longos
monólogos de Paulo face a Ventura em dois diferentes quartos brancos (“Hospital” e “Funeral”),
desse modo explorando de uma outra forma as possibilidades do sistema da dupla projecção
já utilizado em Minino macho, minino fêmea,13 e reproduzindo, numa versão concentrada,
o próprio princípio de distribuição das suas imagens e sons pelas galerias de Serralves.
Fontainhas, por seu lado, propunha mesmo uma construção cenográfica específica, constituída
por um longo corredor negro que era necessário percorrer para se chegar à imagem de
Ventura repetindo a carta na quase escuridão da sua barraca, num tipo de dispositivo espacial
que, devido à sua excessiva monumentalidade e carga simbólica, surgia claramente como
aquele mais estranho à natureza do trabalho do cineasta.14
De uma outra forma, Casal da Boba ocupava a totalidade do horário de funcionamento do
museu com a apresentação, na sua sala principal, de um alinhamento de quase oito horas do
material filmado ao longo de quatro meses com Ventura e Vanda no novo quarto desta, de um
modo que conferia a essas imagens, captadas sempre do mesmo ponto de vista e projectadas
num ecrã de grandes dimensões, uma forte qualidade de presença e uma natureza quase
escultórica (de resto, acentuada pelo confronto directo com a peça de Chafes que se lhes opunha),
convidando a que os visitantes se instalassem temporariamente no seu interior ou circulassem
no espaço deixado livre em seu redor. Assumindo-se como a projecção central da exposição,
Casal da Boba não deixava de remeter, através da sua duração e da imobilidade do seu en-
quadramento, para as oito horas em plano fixo do Empire State Building, filmado do anoitecer
ao nascer do sol, de Empire (1964), de Andy Warhol, um dos antecedentes fundamentais do
movimento de passagem da sala de cinema aos espaços de exposição, ao assentar na radical
dissociação da temporalidade da sua projecção da dos seus espectadores, já não se destinando
propriamente a ser visto na sua integralidade, suportando que estes entrassem durante a sessão
ou a abandonassem antes do seu final, eventualmente para retornar mais tarde.
Depois de Onde Jaz o Teu Sorriso?, onde Costa abordava directamente a meticulosa
operação de montagem da terceira versão de Sicilia! por Danièle Huillet e Jean-Marie Straub,
centrando-se demoradamente na construção das ligações entre alguns dos seus planos e
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DO FILME À EXPOSIÇÃO - 311

mostrando-os repetidamente a desfilar na mesa de montagem a diferentes velocidades e em


ambos os sentidos, Casal da Boba constituía-se como uma autêntica forma de exposição do
próprio processo de elaboração da obra de que derivava e do paciente método de trabalho do
cineasta, concedendo plena visibilidade a aspectos que nunca poderiam ser apreendidos do
mesmo modo face ao filme concluído e à sua estrutura necessariamente muito mais cerrada.
Apresentando na sua duração original uma selecção do material referente a um único dos
espaços de Juventude em Marcha (no qual o conjunto dos planos do quarto de Vanda, devido
à extensão da sua duração e à repetição do mesmo enquadramento, possui ele próprio uma
evidente autonomia), a projecção vinha assim mostrar como o trabalho do cineasta se funda,
cada vez mais, na rigorosa determinação de um campo visual e na sua prolongada e repetida
filmagem, deixando o tempo acumular-se no seu interior e o repouso e os silêncios alternar
com os diálogos entre as personagens, bem como o acaso e a improvisação integrar-se naquilo
que se encontra previamente definido.
Para lá do papel fundamental assumido pela utilização do suporte digital na prática mais
recente de Costa (que lhe permitiu, no caso de Juventude em Marcha, filmar cerca de trezentas
e cinquenta horas de material ao longo de quinze meses), Casal da Boba pode assim ser
aproximado de dois objectos aos quais o cineasta se tem frequentemente referido, inserindo-os
em algumas das programações que o têm convidado a conceber. Por um lado, Beauty #2 (1965),
filme da primeira fase sonora da obra cinematográfica de Andy Warhol, constituído pelo
registo, ao longo de aproximadamente uma hora de duração e a partir de uma posição de
câmara fixa, de um diálogo casual entre duas personagens sentadas numa cama e uma terceira
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312 - JOÃO NISA

em off, de um modo que evidencia o carácter selectivo do enquadramento e a natureza impessoal


e mecânica, mas também profundamente voyeurista, do seu cinema, num trabalho que o
próprio Costa relaciona com No Quarto da Vanda.15 Por outro lado, Numéro zéro (1971), de
Jean Eustache, verdadeiro manifesto de um recomeço do cinema, assente numa simples
alternância de planos da avó materna do cineasta narrando as suas memórias no interior de
uma pequena sala, filmados em absoluta continuidade por duas câmaras colocadas ao lado
uma da outra, em relação ao qual o seu autor afirmava não ter a certeza de se tratar de um
filme, considerando-o sobretudo uma anomalia, limitada pela quantidade de película utilizada,
na aplicação directa de um dos princípios fundamentais da sua obra: “Desde que a câmara
filme, o cinema acontece.”16
Se as instalações até ao momento concebidas por Costa prolongam directamente o seu
trabalho sobre os espaços fechados e a serialidade e o carácter disjuntivo da montagem dos
seus últimos filmes, bem como o efeito de contínua repetição e transformação dos diferentes
elementos ao longo de toda a sua obra, em contrapartida, sem deixarem por isso de se
constituir apenas como uma prática complementar e derivada, vêm claramente estabelecer
em relação a ela um olhar próprio, distinto daquele associado ao discurso da cinefilia clássica
a partir do qual esta tem sido normalmente considerada. Apresentando alguns dos seus planos
libertos dos constrangimentos da narrativa e da duração cinematográficas, e dos próprios
modos de encadeamento cuidadosamente explorados nos seus filmes, a inserção do trabalho
de Costa nos espaços de exposição acentua assim algumas das suas características intrínsecas,
convidando ao estabelecimento de diferentes aproximações e mostrando como, no seu
âmbito, a maior fidelidade à tradição se combina e confunde com a mais radical modernidade.

1. Jacques Rancière intitulou o seu primeiro ensaio mais desenvolvido sobre o trabalho de Costa, centrado em No Quarto
da Vanda e Onde Jaz o Teu Sorriso?, precisamente “Les chambres du cinéaste” – ver Vacarme, n.°23, Primavera 2003.
2. Sensivelmente na altura da realização de O Sangue, o próprio Costa publicou um texto sobre Land of the Pharaohs
(1955), de Howard Hawks, uma das obras da história do cinema mais directamente atravessadas pelo tema da
arquitectura e pela ideia de encerramento espacial, mesmo se essa sua abordagem salientava sobretudo outro tipo de
aspectos do filme – ver “O Segredo da Grande Pirâmide”, in Howard Hawks, Lisboa, Cinemateca Portuguesa, 1988.
3. Raymond Bellour analisou de forma aprofundada a relação entre o quarto e os dispositivos do cinema e das insta-
lações videográficas, num ensaio onde apresenta uma longa enumeração de trabalhos de diversos domínios nos quais
este tipo de espaço assume uma importância fundamental – ver “La chambre”, Trafic, n.°9, Inverno 1994.
4. Verificando-se mesmo no filme uma equivalência visual entre a sala de montagem e a de projecção, na qual o casal
vai esporadicamente apresentando algumas das suas obras.
5. Surgindo The End of a Love Affair, pequeno filme de cerca de dezasseis minutos, concebido em colaboração com o
coreógrafo João Fiadeiro para o Festival Temps d’Images de 2003 e inteiramente filmado no interior do quarto de uma
pensão lisboeta, com um único actor, como a versão mais concentrada deste princípio, repetindo-se o mesmo en-
quadramento fixo ao longo dos três “movimentos” que o constituem.
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DO FILME À EXPOSIÇÃO - 313

6. Cineasta que Costa considerava já essencial para a existência de No Quarto da Vanda: “Se Ozu não existisse, não
sei como é que No Quarto da Vanda existiria...” – “Conversa entre Alain Guiraudie e Pedro Costa com a participação
de Thierry Lounas”, in Um rio – Duas margens: 1, Entre nostalgia e utopia, Lisboa, DocLisboa, 2002, p. 160.
7. Que, a este nível, parece constituir o verdadeiro ponto de partida da posterior obra de Costa, tendo o confronto com
a realidade e os habitantes de Cabo Verde fornecido um conjunto de temas e de elementos que não cessarão de
retornar nos seus filmes seguintes.
8. Jacques Rancière salientou as semelhanças entre os dois filmes ao nível dos seus espaços fechados, e da própria
dicotomia entre as palavras nestes proferidas e os gestos manuais que no seu interior se vão processando, em
“Les chambres du cinéaste”, op. cit.
9. Por coincidência, ou talvez não, as pinturas de Pablo Picasso eram uma das presenças recorrentes no caderno de
preparação de Casa de Lava (reproduzido na edição do filme em DVD), todo ele assente numa colagem de diferentes
materiais visuais e textuais.
10. Mesmo se a existência de uma versão curta parece corresponder sobretudo à necessidade de cumprir a encomenda
inicial do canal de televisão Arte, já as duas diferentes montagens do filme sobre o trabalho de Danièle Huillet e Jean-
Marie Straub (às quais se pode ainda acrescentar a curta-metragem 6 Bagatelas, série de seis pequenas cenas não in-
cluídas em nenhuma delas, concebida como complemento para a edição em DVD) assentavam em dois modos de
construção substancialmente distintos.
11. Podendo igualmente os ecrãs ser substituídos por monitores ou colocados de frente um para o outro, como
sucedeu durante a retrospectiva do trabalho do cineasta na Mediateca de Sendai (Japão), em 2005, na qual foram
utilizadas duas superficies translúcidas de maiores dimensões, cruzando-se o som das duas projecções unicamente no
centro do espaço entre elas.
12. Tendo mesmo um plano, mostrando uma tábua de passar a ferro iluminada de forma intermitente numa divisão
arruinada, transitado entretanto da série dos interiores para a dos exteriores. Sobre a organização espacial do bairro, que
associa à forma das medinas, declarou o cineasta: “Nas Fontainhas não há realmente uma fronteira entre o interior e o
exterior, o público e o privado. [...] Por vezes, estando no exterior, podíamos estar no interior e vice-versa.” – “Conversa
entre Alain Guiraudie e Pedro Costa com a participação de Thierry Lounas”, op. cit., p. 159.
13. Para lá da sua exibição convencional, The End of a Love Affair foi apresentado no Festival Temps d’Images através
da utilização de dispositivo cénico assente em dois ecrãs, colocados no palco de modo a formar um ângulo recto,
sendo o filme propriamente dito mostrado no ecrã do lado esquerdo, enquanto uma projecção luminosa simulava a
continuação do seu enquadramento no do lado direito.
14. Que afirmou ele próprio a sua desconfiança em relação a esse modo de aproveitamento do espaço em “Conversa
entre Rui Chafes, Pedro Costa, Catherine David e João Fernandes, gravada em Junho e Outubro de 2005”, in Fora!
Out! (catálogo da exposição), Porto, Fundação de Serralves, 2007, p. 105.
15. Da mesma forma, ao mostrar continuamente dois espaços distintos filmados através de planos longos, o dispo-
sitivo de apresentação de Minino macho, minino fêmea não deixava já de remeter para a dupla projecção de um outro
filme de Warhol, The Chelsea Girls (1966), no qual cada bobine de película, com aproximadamente meia hora de
duração, era constituída por um único plano apresentando a acção supostamente correspondente ao interior de um
diferente quarto do Chelsea Hotel, de Nova Iorque.
16. Considerado perdido durante muitos anos, só subsistindo uma sua versão curta montada para a televisão, intitulada
Odette Robert (1980), o filme seria encontrado e restaurado na sua forma original em 2002, por iniciativa do próprio
Costa e de Thierry Lounas.
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315

FILMOGRAFIA

O SANGUE
Portugal, 1989, 35mm, 1:1,33, p/b, 95’, Mono
Pedro Hestnes, Nuno Ferreira, Inês Medeiros, Luis
Miguel Cintra, Canto e Castro, Isabel de Castro, Hen-
rique Viana, Luís Santos, Manuel João Vieira, Sara
Breia, José Eduardo, Ana Otero, Pedro Miguel, Miguel
Fernandes
Realização: Pedro Costa
Imagem: Martin Schäfer
Montagem de Imagem: Manuela Viegas
Som: Pedro Caldas
Montagem de Som: Ana Silva
Música: The The, Igor Stravinsky
Etalonagem: Teresa Leite
Produtor: Víctor Gonçalves, Ana Luísa Guimarães
Apoio Financeiro: Instituto Português de Cinema
(IPC), Radiotelevisão Portuguesa (RTP), Fundação
Calouste Gulbenkian
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316 - FILMOGRAFIA

CASA DE LAVA
Portugal/França/Alemanha,1994, 35mm, 1:1,66, cor, Produtor: Paulo Branco
110’, Mono Co-produtor: Karl Baumgartner
Inês Medeiros, Isaach de Bankolé, Edith Scob, Co-produção: Madragoa Filmes, Gemini Films,
Pedro Hestnes, Sandra do Canto Brandão, Cristiano Pandora Film
Andrade Alves, Raul Andrade, João Medina, João Apoio Financeiro: Instituto Português da Arte
Gomes de Pina, Amália Tavares, Clotilde Montrond, Cinematográfica e Audiovisual (IPACA), Radiotelevisão
Alina Montrond , António Andrade, Manuel Andrade, Portuguesa (RTP), Ministère de la Culture et de la
Daniel Andrade, António Lopes, Sidónio Pais, Francophonie, Centre National de la Cinématographie
Joaquim Antunes, Joaquim Carvalho, Mónica Calle e a (CNC) e o apoio do European Script Fund
participação especial de Luis Miguel Cintra, Isabel de Imagens do filme A Erupção do Vulcão da Ilha do Fogo
Castro (1951), cedidas pelo Professor Doutor Orlando Ribeiro
Realização: Pedro Costa
Imagem: Emmanuel Machuel (AFC)
Montagem de Imagem: Dominique Auvray
Som: Henri Maikoff
Montagem de Som: Jean Dubreuil
Música: Raul Andrade, Travadinha, Finaçon, Prince
Nico M’Barka, Paul Hindemith
Etalonagem: Teresa Ferreira
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FILMOGRAFIA - 317

OSSOS NO QUARTO DA VANDA


Portugal, França, Dinamarca, 1997, 35mm, 1:1,66, cor, Portugal, Alemanha, Suíça, 2000, 35mm, 1:1,33, cor,
94’, Dolby SR 178’, Dolby SR
Vanda Duarte, Nuno Vaz, Maria Lipkina, Isabel Ruth, Vanda Duarte, Zita Duarte, Lena Duarte, Manuel
Inês Medeiros, Miguel Sermão, Berta Susana Teixeira, Gomes Miranda, Diogo Pires Miranda, Evangelina
Clotilde Montrond, Zita Duarte, Beatriz Lopez, Luísa Nelas, Miquelina Barros, António Semedo Moreno,
Carvalho, Aresta, Ana Marta, Iuran, Ricardo Tavares, Paulo Nunes, Paulo Jorge Gonçalves, Pedro Lanban,
Carolina Eira Fernando José Paixão, Julião, Geny
Realização e argumento: Pedro Costa Realização e imagem: Pedro Costa
Imagem: Emmanuel Machuel (AFC) Montagem: Dominique Auvray
Montagem de Imagem: Jackie Bastide Som: Phillipe Morel, Matthieu Imbert
Som: Henri Maikoff Montagem de som: Waldir Xavier, Jean Dubreuil
Montagem de som: Jean Dubreuil Mistura de som: Stephan Konken
Mistura de som: Gérard Rousseau Música: György Kurtág
Correcção de cor: Dora Ferreira Correcção de cor: Patrick Lindenmaier
Música: WIRE, Os Sabura Produtor: Francisco Villa-Lobos
Produtor: Paulo Branco Co-produtor e produtor associado: Karl Baumgartner,
Co-produção: Madragoa Filmes, Gemini Films, Andres Pfäffli, Leonardo Simões, Christoph Friedel
Zentropa Productions Produção: Contracosta Produções, Pandora Film,
Apoio financeiro: Instituto Português da Arte Ventura Film, Radiotelevisão Portuguesa (RTP)
Cinematográfica e Audiovisual (IPACA), Radiotelevisão Apoio Financeiro: ZDF Das Kleine Fernsehspiel,
Portuguesa (RTP) e Fundo EURIMAGES Radiotelevisione svizzera (RTS), Instituto do Cinema,
Audiovisual e Multimédia (ICAM), Filmförderung
Hamburg Schleswig-Holstein (FFHSH)
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318 - FILMOGRAFIA

ONDE JAZ O TEU SORRISO? 6 BAGATELAS


Portugal, França, 2001, 35mm, 1:1,33, cor, 104’, Portugal, França, 2003, DVCam, 1:1,33, cor e p/b, 18’,
Dolby SR Stereo
Danièle Huillet, Jean-Marie Straub Danièle Huillet, Jean-Marie Straub
Realização: Pedro Costa Realização e imagem: Pedro Costa
Colaboração: Thierry Lounas Colaboração: Thierry Lounas
Imagem: Pedro Costa, Jeanne Lapoirie Montagem de Imagem: Patrícia Saramago
Montagem de Imagem: Dominique Auvray, Patrícia Som: Mathieu Imbert
Saramago Mistura de Som : Branko Neskov C.A.S
Som: Matthieu Imbert Música: Anton Webern
Montagem de som: Patrícia Saramago Produção: Contracosta Produções
Mistura de Som: Branko Neskov C.A.S.
Etalonagem: Ueli Nüesch
Produtor: Francisco Villa-Lobos
Co-produção: Amip Paris, ARTE France, Institut
National de l’Audiovisuel (INA)
Apoio Financeiro: Centre National de la Cinémato-
graphie (CNC), Instituto do Cinema, Audiovisual e
Multimédia (ICAM), Radiotelevisão Portuguesa (RTP),
Procirep
Este filme faz parte da série: “Cinéma, de notre temps”,
dirigida por André S. Labarthe e Jeanine Bazin
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FILMOGRAFIA - 319

JUVENTUDE EM MARCHA TARRAFAL


Portugal, França, Suíça, 2006, 35mm, 1:1,37, cor, 154’, Portugal, 2007, DVCam, 1:1,33, cor, 16’, Stereo

Dolby José Alberto Silva, Lucinda Tavares, Ventura, Alfredo

Ventura, Vanda Duarte, Beatriz Duarte, Gustavo Mendes

Sumpta, Cila Cardoso, Isabel Cardoso, Alberto Barros Realização e imagem: Pedro Costa

“Lento”, António Semedo “Nhurro”, Paulo Nunes, José Montagem de Imagem: Patrícia Saramago

Maria Pina, André Semedo, Alexandre Silva “Xana”, Som: Olivier Blanc, Vasco Pedroso

Paula Barrulas Mistura de som: Branko Neskov

Realização: Pedro Costa Produção: Luís Correia, LX Filmes, Fundação Calouste

Imagem: Pedro Costa, Leonardo Simões Gulbenkian

Montagem de Imagem: Pedro Marques Este filme faz parte do projecto “O Estado do Mundo”,

Som: Olivier Blanc uma iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian.

Montagem de Som: Nuno Carvalho


Mistura de Som: Jean-Pierre Laforce
Música: Os Tubarões, György Kurtág
Correcção de cor: Patrick Lindenmaier
Produtor: Francisco Villa-Lobos
Co-produtor: Philippe Avril, Andres Pfaeffli,
Elda Guidinetti
Co-produção: Contracosta Produções, Les Films de
l’Étranger, Unlimited, Ventura Film, Radiotelevisão
Portuguesa (RTP), Radiotelevisione svizzera (RTS)
Apoio Financeiro: Arte France, Instituto do Cinema,
Audiovisual e Multimédia (ICAM), Centre National de
la Cinématographie (CNC)
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320 - FILMOGRAFIA

THE RABBIT HUNTERS NE CHANGE RIEN


(A CAÇA AO COELHO COM PAU)
Portugal, 2009, 35mm 1: 1,33, p/b, 98’, Stereo
Portugal, 2007, DVCam, 1: 1,33, cor, 24’, Stereo
Jeanne Balibar, Rodolphe Burger, Herbé Loos, Arnaud
Alfredo Mendes, Ventura, José Alberto Silva, Isabel
Dieterlen, Joël Theux
Cardoso, Arlindo Semedo, António Semedo
Realização e imagem: Pedro Costa
Realização e imagem: Pedro Costa
Montagem de Imagem: Patrícia Saramago
Montagem de Imagem: Cláudia Oliveira
Som: Philippe Morel, Olivier Blanc, Vasco Pedroso
Som: Olivier Blanc, Vasco Pedroso
Montagem de som; Miguel Cabral
Mistura de som: Hugo Leitão
Mistura de som: Jean-Pierre Laforce
Produção: Pedro Costa, Jeonju International Film
Produtor: Abel Ribeiro Chaves
Festival – Jeonju Digital Project 2007
Co-produtor: Sébastien de Fonseca, Cédric Walter
Este filme faz parte do projecto “Memories” , uma ini-
Produtor assoçiado: Yano Kazuyuki
ciativa do Festival Internacional de Cinema de Jeonju
Co-produção:Sociedade Óptica Técnica, Red Star Cinema
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321

INSTALAÇÕES VÍDEO

MININO MACHO, MININO FÊMEA S/TÍTULO


dupla projecção vídeo, 37’ projecção vídeo, 60’
Dezembro 2007 – Março 2008: Portugal Agora Março 2005: Sendai Mediatheque Gallery, Sendai,
À propos des lieux d’origine, MUDAM, Luxemburgo Japão
Novembro 2006: Shadow Festival, Amsterdão, Holanda Março 2004: Image Forum, Tóquio, Japão
Julho 2006: Centre de Cultura Contemporània de Junho 2004: Solar – Galeria de Arte Cinemática, Vila
Barcelona (CCCB), Espanha do Conde, Portugal
Outubro a Novembro 2005: Charim Gallery, Viena, Austria Novembro 2003: Museo de Bellas Artes, Bilbao, Espa-
Klapstuk ≠12, Stuck Arts Centre, Lovaina, Bélgica nha
Maio a Agosto 2005: Estados da Imagem, LisboaPhoto, Abril a Junho 2003: A Respeito de Situações Reais, Paço
Lisboa, Portugal das Artes, São Paulo, Brasil
Outubro 2005 a Janeiro 2006: FORA! (exposição com Janeiro a Março: 2003: True Stories, Witte de With Cen-
Rui Chafes), Museu de Serralves, Porto, Portugal ter for Contemporary Art, Roterdão, Holanda
22 de Junho a 23 de Setembro 2001: Biennale d’Art
CASAL DA BOBA Contemporain de Lyon, França
projecção vídeo, 476’
Outubro 2005 a Janeiro 2006: FORA! (exposição com THE END OF A LOVE AFFAIR
Rui Chafes), Museu de Serralves, Porto, Portugal projecção vídeo, 16’
Concepção: João Fiadeiro e Pedro Costa com a colabora-
BENFICA, COLINA DO SOL E PONTINHA ção de Gustavo Sumpta
dupla projecção vídeo, 11’50’’ 2003: Festival Temps d’Images, Portugal
Outubro 2005 a Janeiro 2006: FORA! (exposição com Centro Cultural de Belém, Lisboa, Portugal
Rui Chafes), Museu de Serralves, Porto, Portugal Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, Lisboa,
Portugal
FONTAINHAS 2004: Festival Temps d’Images, La Ferme du Buisson,
projecção vídeo, 4’36’’ França
Outubro 2005 a Janeiro 2006: FORA! (exposição com
Rui Chafes), Museu de Serralves, Porto, Portugal
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NOTAS BIOGRÁFICAS

THOM ANDERSEN é cineasta, crítico, progra- JOHANNES BERINGER é autor, tradutor e crítico
mador de cinema e professor. É professor no Cali- de cinema. Edita desde 1996 a revista de cinema
fornia Institute of the Arts (CalArts), tendo alemã Shomingeki (www.shomingeki.de).
ensinado na Suny School em Buffalo e na Ohio
State University. Realizou os filmes Melting NICOLE BRENEZ é professora de Estudos Cine-
(1965), Short Line Long Line (também conhecido matográficos na Universidade Panthéon-Sorbonne.
como “--- ------”) (1967), Olivia's Place (1966/ Foi formada na École normale supérieure. Publicou
1974), Eadweard Muybridge, Zoopraxographer diversos livros, incluíndo Shadows de John Cas-
(1975) e em colaboração com Noël Burch, o filme savetes (Nathan, 1995), De la figure en général et du
Red Hollywood sobre as vítimas da Lista Negra de corps en particulier. L'invention figurative au cinéma
Hollywood que acompanhou o livro Les Commu- (De Boeck Université, 1998), Traitement du
nistes de Hollywood – Autre Chose que des martyrs Lumpenproletariat par le cinéma d’avant-garde
(Presses Sorbonne Nouvelle, Paris, 1994). Final- (Séguier, 2007), Cinémas d’avant-garde (Cahiers
mente realizou o filme compilação Los Angeles Plays du cinéma, 2007), Abel Ferrara. Le mal mais sans
Itself (2003). O seu trabalho foi apresentado em fleurs (Cahiers du cinéma, 2008). Co-editou Poé-
diversas retrospectivas, nomeadamente em Lisboa tique de la couleur. Une histoire du cinéma expéri-
em 2004. Programou entre outras, as séries Black- mental (Auditorium du Louvre, 1998), Jeune, dure
listed – Movies by the Hollywood Blacklist Victims et pure ! Une histoire du cinéma d’avant-garde et ex-
(com Noël Burch, Viennale, 2000), ou em 2008, périmental en France (Cinémathèque française/
Los Angeles – A City in Film (Viennale). Mazzotta, 2001), Cinéma /Politique – Série 1 (Labor,
2005), Jean-Luc Godard : Documents (Centre Pom-
PHILIPPE AZOURY iniciou a sua actividade de pidou, 2006) e Jean Epstein. Bonjour Cinéma und
crítico na revista Les Inrockuptibles em 1998. Tem andere Schriften zum Kino (FilmuseumSynema-
colaborado regularmente para o jornal diário Publikationen, Vienna, 2008). Contribui regular-
francês Libération. É autor de dois livros em colab- mente com artigos nas revistas Trafic, Cahiers du
oração com Jean-Marc Lalanne: Fantômas, style cinéma e Rouge. Desde 1996 que é responsável pela
moderne (Centre Pompidou/Yellow Now, 2002), e programação de cinema de vanguarda e experi-
Cocteau et le cinéma – Désordres (Centre Pompidou mental da Cinémathèque française.
/Cahiers du cinéma, 2003). Colaborou com o
fotógrafo Antoine D’Agata em Stigma (Images en RUI CHAFES nasceu em Lisboa em 1966. Em 1989
Manœuvres, 2004). Prepara actualmente uma terminou o curso de Escultura na Faculdade de
monografia sobre Philippe Garrel. Belas-Artes em Lisboa. Entre 1990 e 1992 estudou
na Kunstakademie de Düsseldorf com o artista
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323

alemão Gerhard Merz. Desde o final dos anos 80, o RICHARD DUMAS fotografa desde a infância.
trabalho de Chafes foi apresentado em diversas in- Após uma incursão efémera pelo rock e de um
stituições nacionais e internacionais. Destacam-se doutoramento em Robótica, tornou-se fotógrafo
as exposições individuais: Durante o fim no Museu profissional em 1991, depois de uma viagem a
de Arte Moderna de Sintra/ Colecção Berardo e no Tóquio. Apesar de expor regularmente (sendo
Palácio e Jardim da Pena (2000), Ash Flowers no Es- representado pela Galeria VU em Paris), o seu
bjerg Kunstmuseum e Kunsthallen Nikolaj, em terreno predilecto de expressão é ainda a im-
Copenhaga, Dinamarca, Onde Estou na Fundação prensa, tendo começado a trabalhar regularmente
Volume!, em Roma; bem como a sua participação no jornal francês Libération. Deu seguimento à
na Bienal de Veneza (1995), Sonsbeek 9 (Arnhem, sua paixão pela música assinando diversas capas
2001), na Bienal de São Paulo (2004) ou a exposição de discos.
Ad Absurdum no Museu Marta Herford, em Her-
ford, na Alemanha (2008). BERNARD EISENSCHITZ é filme historiador e
tradutor. Publicou livros sobre Fritz Lang (Fritz
JOÃO BÉNARD DA COSTA é presidente da Cine- Lang, la mise en scène [dir.], Cinémathèque
mateca Portuguesa desde 1991. Foi um dos fun- française /Museo Nazionale del Cinema, Torino,
dadores da Revista O Tempo e o Modo (1963). Entre 1993), Nicholas Ray (Roman américain, les vies de
1964 e 1966 trabalhou como investigador no Nicholas Ray, Christian Bourgois, 1990), sobre o
Centro de Investigação Pedagógica da Fundação cinema Alemão (Le Cinéma allemand aujourd’hui,
Calouste Gulbenkian e de 1966 a 1974 foi secretário Armand Colin, 1999) e Soviético (Gels et Dégels
executivo da Comissão Portuguesa da Associação [dir.], Centre Pompidou/Mazzotta, 2000) e mais
Internacional para a Liberdade da Cultura. Foi re- recentemente um livro de entrevistas com Robert
sponsável pelo Sector de Cinema do Serviço de Kramer Points de départ, entretien avec Robert
Belas-Artes da Fundação Gulbenkian, aquando da Kramer (Institut de l’Image d’Aix-en-Provence,
sua criação (1969-1991). Dos inúmeros textos que 2001). Foi membro do conselho editorial da
publicou e catálogos que editou contam-se os resvista Cinémathèque até ao número 18, é editor-
volumes O Musical (1987) e os que dedicou a chefe da revista Cinéma.
cineastas como Alfred Hitchcock (1982), Josef von
Sternberg (1984), Fritz Lang (1983), John Ford CHRIS FUJIWARA é autor, crítico de cinema, jor-
(1983) ou Howard Hawks (1987), todos publicados nalista, editor e tradutor. É autor de obras como
pela Cinemateca Portuguesa. Publicou igualmente The World and Its Double, uma biografia crítica de
as compilações de textos Os Filmes da Minha Otto Preminger (Faber & Faber, 2008) e o editor
Vida/Os Meus Filmes da Vida 2003 Volume 1 e da antologia Defining Moment in Movies (Cassell
2007 Volume 2), Histórias do Cinema Português Illustrated Books, 2007). É igualmente autor de
(1991), Muito lá de Casa (1993) e O Cinema Português Jacques Tourneur: The Cinema of Nightfall (The
Nunca Existiu (1996). Johns Hopkins University Press, 2001) e editor de
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324 - NOTAS BIOGRÁFICAS

um catálogo sobre a obra de Peter Watkins. O seu Françoise d'Assise by Olivier Messiaen (1992). Gorin
próximo livro, Jerry Lewis, vai ser editado pela é igualmente programador e ensaísta, tendo orga-
University of Illinois Press. Contribui com artigos nizado a série The Way of the Termite: The Essay in
para o Boston Phoenix, é editor da revista online Cinema 1909-2004 (apresentado na Viennale, 2007
Undercurrent. Diversos textos do autor estão e no Pacific Film Archive de Berkeley, 2009).
disponíveis no seu site www.insantemute.com.
ANTÓNIO GUERREIRO é licenciado em Línguas e
TAG GALLAGHER é crítico e historiador. Autor de Literaturas Modernas (Português/ Francês). En-
John Ford: The Man and His Films (University of saísta e crítico literário do semanário Expresso,
California Press, 1986) e The Adventures of Roberto publicou um volume de ensaios, O Acento Agudo
Rossellini (Da Capo Press, 1998). Publicou nu- do Presente (Cotovia, 2000). Tem colaboração dis-
merosos artigos sobre o cinema de King Vidor, persa em revistas e volumes colectivos, e editou,
John Ford, Edgar G. Ulmer, Jean-Marie Straub e com Olga Pombo e António Franco Alexandre,
Danièle Huillet, Max Ophüls, entre outros. Enciclopédia e Hipertexto (Editora Duarte Reis,
2006). Fundou com José Gil, Silvina Rodrigues
JOHN GIANVITO é realizador, programador e Lopes a revista Elipse. Walter Benjamin e Aby
crítico. Realizou os filmes The Flower of Pain Warburg (sobre os quais tem vários artigos publi-
(1993), Address Unknown (1986), The Mad Songs cados) são os dois pontos fortes do seu trabalho
of Fernanda Hussein (2001) e Profit Motive and the nos últimos anos.
Whispering Wind (2007). Foi professor de cinema
na Universidade de Massachussetts em Boston e SHIGUÉHIKO HASUMI é professor emérito da
na Rhode Island School of Design. Universidade de Tóquio, a que presidiu de 1997 a
2001. Enquanto professor de cinema supervi-
JEAN-PIERRE GORIN é cineasta, crítico e professor. sionou, entre outros, cineastas como Kiyoshi
Iniciou a sua carreira no cinema como realizador Kurosawa e Shinji Aoyama. Publicou Yasujiro Ozu
na década de 60. Criou com Jean-Luc Godard o (Cahiers du cinéma, Paris, 1983), Seijun Suzuki –
Grupo Dziga Vertov, seminal no período de cinema The Desert under the Cherry Blossoms (edição do
político na década de 60, início de 70. Em 1975, Festival de Cinema de Roterdão, 1991), Il Cinema
Gorin fixou-se em San Diego, onde é professor no di Kato Tai (co-edição de Sadao Yamane, Festival
Departamento de Artes Visuais da Universidade Internacional Cinema Giovani, 1997) e Mikio
de San Diego. Em colaboração com o artista e Naruse (co-edição de Sadao Yamane, Festival Inter-
autor Manny Farber desenvolveu uma série de nacional de Cinema de San Sebastian, 1998). Es-
conferências dedicadas ao cinema. Realizou uma creveu diversos ensaios sobre cinema,
trilogia documental, Poto and Cabengo (1979), nomeadamente sobre a obra de John Ford,
Routine Pleasures (1986) e My Crasy Life (1991). Howard Hawks, Hou Hsiao-Hsien, Jean Renoir,
Realizou igualmente Letter to Peter, on Saint entre outros.
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NOTAS BIOGRÁFICAS - 325

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE é licenciado cinema (para os artistas e públicos) com ênfase em
em Filosofia, é autor de uma vasta obra de ficção, França e Portugal, o cinema e a nação, política e
poesia e ensaios sobre arte, colaborador de O Inde- migrações na Europa, e sobre políticas públicas,
pendente e co-director da revista As escadas não têm representações e mobilizações. É igualmente in-
Degraus. Recebeu os prémios José Régio de poesia vestigador associado do Centre de recherches inter-
da Feira do Livro do Porto (1975) e Nicola de poesia disciplinaires sur le monde lusophone (CRILUS)
(1985). Obra: Sob Sobre Voz (1971), Porto Batel da Universidade de Paris X Nanterre no âmbito de
(1972), Turvos Dizeres (1973), Alguns Círculos (1975), uma acção universitária luso-francesa sobre o
Meridional (1976), Crónica (1977), Vinte e Nove Poe- cinema português, estabelecida entre a Univer-
mas e Direito de Mentir (1978), Actus Tragicus sidade Paris X e a Universidade de Vila Real de
(1979), O Roubador de Água (1981), O Regresso dos Trás-os-Montes.
Remadores e À Beira do Mar de Junho (1982), Um
Nome Distante (1984), Tronos e Dominações (1985), DOMINIQUE MARCHAIS é crítico de cinema na
Pelo Fim da Tarde (1989), Terra Nostra (1992), O revista Les Inrockuptibles. Realizou o filme Lenz
Barco Vazio (1994), Não é Certo Este Dizer e O Lugar échappé (2003) e encontra-se a montar Le Temps
do Poço (1997), Bellis Azorica (1999). Em 2009 des grâces, pesquisa documental sobre o mundo
publicou com Rui Chafes Pickpocket, (Cinemateca agrícola actual em França, abordado sob o ângulo
Portuguesa – Museu do Cinema). da noção de "trabalho".

PHILIPPE LAFOSSE é autor da longa-metragem, ADRIAN MARTIN é crítico e co-editor da revista em


La Cucaracha (Emmanuèle et les mutants…), 2001. linha Rouge. Autor de obras como The Mad Max
Publicou J’ai rencontré deux ou trois profs qui ne Movies (edições Currency Press, 2003), e Phantasms:
collaborent pas à l’abrutissement (Éditions du Chat the Dreams and Desires at the Heart of our Popular
aragonais, 2006) e L’Étrange Cas de madame Huillet Culture (McPhee Gribble, 1994) e mais recente-
et monsieur Straub/ Comédie policière avec Danièle mente de ¿Qué es el cine moderno? (Uqbar Editores,
Huillet, Jean-Marie Straub et le public (Éditions 2008), participou em obras colectivas como Movie
Ombres, 2007). Coordena a edição em DVD dos Mutations: The Changing Face of World Cinephilia
filmes de Danièle Huillet et Jean-Marie Straub nas (co-editado por J. Rosenbaum, BFI Film Classics,
Éditions Montparnasse. Prepara actualmente um 2008) ou The Last Great American Picture Show:
livro sobre Luis Buñuel, a publicar pelas Éditions New Hollywood Cinema in the 1970's (Amsterdam
Ombres. University Press, 2004). É professor na Univer-
sidade Monash em Victoria, Austrália.
JACQUES LEMIÈRE fundou e é responsável pelas
Jornadas Cinematográficas do Instituto de Soci- JOÃO NISA é autor do filme Nocturno (2007) e
ologia e de Antropologia. O seu trabalho de pesquisa encontra-se a realizar um outro filme a partir da
versa sobre as políticas públicas para o sector do novela L'Image, de Jean de Berg (Catherine
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326 - NOTAS BIOGRÁFICAS

Robbe-Grillet). Tem-se dedicado à investigação das movimento operário francês do século XIX (Le
relações entre o cinema e a arte contemporânea. Maître ignorant, La Nuit des prolétaires, Les Noms de
Publicou ensaios sobre o trabalho de Aleksandr l'histoire, La Mésentente). Publicou igualmente La
Sokurov, Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi, Fable cinématographique (Seuil, 2001) e nas edições
Abbas Kiarostami, Chantal Akerman, Danièle La Fabrique, Le Partage du sensible: esthétique et poli-
Huillet e Jean-Marie Straub . É professor na Escola tique (2000), La Haine de la démocratie (2005) e Le
Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha. Spectateur émancipé (2008).

JOSÉ NEVES nasceu em Lisboa, em 1963. Em ANDY RECTOR é um autor e realizador residente
1986 licenciou-se em Arquitectura pela FAUTL, em Los Angeles. Foi-lhe atribuído o prémio da
onde ensina desde 1989. Em 1990 abriu atelier Fipresci "Talent Press" na Viennale em 2004 onde
próprio. escreveu sobre as retrospectivas de Danièle Huil-
let, Jean-Marie Straub e John Ford. Publicou trabal-
MARK PERANSON é crítico de cinema e editor da hos de colagem sobre No Quarto da Vanda (Éditions
revista Cinema Scope. É programador associado do Capricci e Intermédio) e sobre Juventude em Marcha
Festival Internacional de Cinema de Vancouver e (Revue Vertigo, n.° 33). É autor do blogue Kino Slang
coordenador da programação do Vancity Theatre. onde escreveu sobre os filmes de Lisandro Alonso,
Os seus artigos sobre cinema foram publicados Charles Burnett, Philippe Garrel, Jean-Luc Godard,
em vários jornais e revistas. Realizou o filme Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, Irving Lerner,
Waiting for Sancho (2008). Jerry Lewis e Jean Renoir.

JAMES QUANDT é programador da Cinemateca de JONATHAN ROSENBAUM é um crítico e jornal-


Toronto. Organizou retrospectivas dos filmes de ista norte-americano. Entre 1987 e 2007 escreveu
Tarkosvsky, bem como os programas itinerantes da para o jornal Chicago Reader. De entre os vários
obra de Bresson, Naruse, Mizoguchi, Imamura, livros que publicou, destacam-se Film: The Front
Ichikawa e Rossellini. Editou monografias sobre Line 1983 (Arden Press, Denver, 1983), Moving
Robert Bresson, Kon Ichikawa, Shohei Imamura e Places: A Life at the Movies (Harper & Row, 1980),
Apichatpong Weerasethakul. Escreveu sobre o Placing Movies: The Practice of Film Criticism (Uni-
cinema de Jean-Luc Godard, de Hong Sang-soo, Jia versity of California Press, 1995), Abbas Kiarostami
Zhang-ke, Manoel de Oliveira, Hou Hsiao-Hsien, (co-editado com Mehrnaz Saeed-Vafa, University
Tsai Ming-liang e Alexandr Sokurov, entre outros. of Illinois, 2003), Essential Cinema (Johns Hopkins
University Press, London, 2004), Discovering
JACQUES RANCIÈRE é professor de filosofia em Orson Welles (University of California Press, 2008)
Paris VIII. Publicou numerosas obras centradas e em co-edição com Adrian Martin, Movie Muta-
na questão do político, em particular através de tions.
textos e acontecimentos relacionados com o
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NOTAS BIOGRÁFICAS- 327

PAOLO SPAZIANI é crítico de cinema e actor de


teatro. Publicou ensaios sobre Danièle Huillet e
Jean-Marie Straub, Carmelo Bene, Carl Th. Dreyer,
Julio Bressane, Guy Debord e Orson Welles.

LUCE VIGO é crítica de cinema e autora de


dossiers pedagógicos, colaborou em diversas
obras colectivas. Foi responsável pela progra-
mação e animação de salas de cinema e colaborou
com festivais de curta-metragem. Co-dirigiu com
Catherine Shapira a edição de Allons z' enfants au
cinéma! Une petite anthologie de films pous un jeune
public (Les enfants de cinéma, 2001). Publicou
Jean Vigo, une vie engagée dans le cinéma (Cahiers
du cinéma/ CNDP, 2002). É Presidente da Asso-
ciação "Prix Jean Vigo".

JEFF WALL nasceu em Vancouver, no Canadá,


onde vive e trabalha. Entre 1964 e 1970, estudou
História de Arte da Universidade de British Co-
lumbia em Vancouver e pós-graduou-se no
Courtauld Institute of Art de Londres (entre 1970
e 1973). Desde a década de 60 que o trabalho de
Jeff Wall aborda a arte conceptual através da foto-
grafia. O seu trabalho foi exposto em diversas oca-
siões ao longo das duas últimas décadas;
recentemente com exposições em Frankfurt,
Montreal, Basel, Washington D.C. e Los Angeles.
Participou na Documenta 11, a quarta, depois de
1983, 1987 e 1997. Escreveu igualmente diversos
ensaios sobre arte e o seu trabalho é objecto de
diversas monografias: Jeff Wall Photographs
(Steidl & Partners, 2003), Catalogue Raisonné
1987-2004 (Steidl & Partners, 2005) e Jeff Wall,
Essays and Interviews (The Museum of Modern
Art, Nov, 2007).
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328

BIBLIOGRAFIA SELECCIONADA

LIVROS

DANS LA CHAMBRE DE VANDA


Cyril Neyrat (editor), Collection “Que fabriquent les cinéastes”, Éditions Capricci, Paris, 2008
Edição DVD de No Quarto da Vanda – “Conversa entre Pedro Costa e Cyril Neyrat” – “Mutual Films”,
colagem de Andy Rector, (disponível em espanhol, Edição Intermedio – www.intermedio.net - numa caixa
que inclui ainda os filmes No Quarto da Vanda, Onde Jaz o Teu Sorriso?, Juventude em Marcha,
6 Bagatelas e os filmes de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet Il Viandante e L’arrotino).

FORA! OUT!
Pedro Costa, Rui Chafes, Catherine David, João Fernandes, João Miguel Fernandes Jorge, Fundação de
Serralves, Porto, 2007.

PEDRO COSTA, FILM RETROSPECTIVE


Naoto Ogawa e Tamaki Tsuchida (editores), Sendai Mediatheque, Japão, 2005
Autores: François Albera, Frédéric Bonnaud, Shiguéhiko Hasumi, Nobuhiro Suwa, e “Seminar at The Film
School of Tokyo”, um seminário de Pedro Costa.

PEDRO COSTA: WHISPERING IN DISTANT CHAMBERS


Naoto Ogawa e Tamaki Tsuchida (editores), Sendai Mediatheque, Japão, 2005
Autores: Shiguéhiko Hasumi, Takashi Kitakoji.

ONDE JAZ O TEU SORRISO? / DIÁLOGOS


Pedro Costa, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, Assírio & Alvim, Lisboa, 2003
Edição DVD de Onde Jaz o Teu Sorriso? e os filmes Il Viandante e L’arrotino de Jean-Marie Straub e Danièle
Huillet.
Autores: João Bénard da Costa, Emmanuel Burdeau, Thierry Lounas, Jacques Rancière.

ARTIGOS, ENTREVISTAS

O Sangue
• João Bénard da Costa, “O Sangue”, Textos Cinemateca Portuguesa, Pasta 42
• Fréderic Bonnaud, “Beauté fatale”, Les Inrockuptibles, n.°226, 18 de Janeiro de 2000
• Olivier Joyard, “Les amants de la nuit”, Cahiers du cinéma, n.°542, Janeiro de 2000

Casa de Lava
• Stéphane Bouquet, “La poésie est une énigme”, Cahiers du cinéma, n.°490, Abril de 1995
• João Mário Grilo, “O Gosto da Beleza”, Visão, 19 de Maio 1994
• Luís Miguel Oliveira, “Casa de Lava”, Público, 11 de Fevereiro de 1995
• Eduardo Prado Coelho, "Dança Mariana Dança", Público, 28 de Janeiro de 1995
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BIBLIOGRAFIA - 329

• Olivier Séguret, “Une mélancolie” / “En désamour”, Libération, 16 de Março de 1995


• Frédéric Strauss, “Pedro Costa, de Lisbonne au Cap-Vert”, Cahiers du cinéma, n.°490, Abril de 1995

OSSOS
• Johannes Beringer, “Knochen”, Shomingeki, n.°8, Verão de 2000
• Olivier Joyard, “Le souffle rauque”, Cahiers du cinéma, n.°521, Fevereiro de 1998
• Fernando Lopes, “Fotograma”, Semanário Já
• Luís Miguel Oliveira, “Ossos”, Textos Cinemateca Portuguesa, Pasta 58 e 62
• Dominique Marchais, “Seven Women”, Les Inrockuptibles, n.°137, 4 de Fevereiro de 1998
• Jacques Rancière, “Le mouvement suspendu”, Cahiers du cinéma, n.°522, Abril de 1998
• Olivier Séguret, “Ossos, SOS Humanité”, Libération, 2 de Outubro de 1997

No Quarto da Vanda
• Thom Andersen, “Painting in the Shadows”, Film Comment, Março-Abril de 2007
• Shinji Aoyama, “Um Labirinto em Linha Recta” (inédito)
• Emmanuel Burdeau, “Seul le cinéma”, Cahiers du cinéma, n.°536, Junho de 1999, (traduzido em português
como “Só o Cinema”, Digital Cinema: ciclo de cinema, instalação e performance, Porto,
Capital Europeia da Cultura, 2001)
• Émile Breton, “De l’intime au spectaculaire”, L’Humanité, 16 de Agosto de 2000
• Jean-Louis Comolli, “Dans la chambre de Moebius”, Images documentaires, n.°61-62, 2002
• Bernard Eisenschitz, “Passerelles”, Cinéma 03, Primavera de 2002
• Francisco Ferreira, "Entre no Quarto da Vanda", Expresso, 3 de Março de 2001
• João Mário Grilo, “O Eclipse”, Visão, 1 de Março de 2001
• Serge Kaganski, “Lisbonne scories”, Les Inrockuptibles, n.°305, Setembro de 2001
• Manoel de Oliveira, “Documentaire et Fiction. À propos de Dans la Chambre de Vanda”, Images
Documentaires, n.°47-4s8, 2003
• James Quandt, “Still Lives: The Films of Pedro Costa”, Artforum, Setembro de 2006
• Charles Tesson, “Lisbonne année zéro”, Cahiers du cinéma, n.°560, Setembro de 2001

ONDE JAZ O TEU SORRISO?


• Thom Andersen e Pedro Costa, “No Secrets, Just Lessons”, Cinema Scope, n.°29, Inverno de 2008
• Philippe Azoury, jornal Libération, “Costa et les Straub en liberté” (19 de Setembro de 2001),
“La leçon de Straub et Huillet” (8 de Dezembro de 1999) e “Straub-Huillet, le cinéma remonté”
(11 de Julho de 2001)
• Johannes Beringer, “Danièle Huillet, Jean-Marie Straub, cinéastes”, Shomingeki, Primavera-Verão de 2002
• Émile Breton, “Sculpter la pellicule”, L’Humanité, 15 de Janeiro de 2003
• Francisco Ferreira, jornal Expresso, “A démarche”(11 de Janeiro de 2003), “Acendalhas”( 4 de Dezembro de
2004), “Working Class Movie!” (14 de Julho de 2001)
• Laurence Giavarini, “Question de démarche”, Trafic, n.°47, Outono de 2003
• Marie-Anne Guérin, “Leur temps est celui de la peur”, Cahiers du cinéma, n.°575, Janeiro de 2003
• Philippe Lafosse, “Filmer, c’est vivre”, Le Monde diplomatique, Junho de 2003
• Jacques Mandelbaum,“Dans le secret de la chambre noire”, Le Monde, 9 de Julho de 2001
• Jacques Rancière, "Les Chambres du cinéaste", Vacarme, n.°23, Primavera 2003
• Antoine Thirion, “Costa-Straub d’une table l’autre”, Cahiers du cinéma, n.°598, Fevereiro de 2005,
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330 - BIBLIOGRAFIA

JUVENTUDE EM MARCHA
• Phillipe Azoury e Olivier Séguret, “Costa bravo”, Libération, 27 de Maio de 2006
• Johannes Beringer, “Jugend voran”, Shomingeki, n.°19, Outono 2007
• François Bovier, “La communauté exilée de Pedro Costa”, Catalogue 12e Biennale de L’image en mouvement,
Centre pour L’image contemporaine Saint-Gervais, Genève, Jrp/Ringier, 2007
• Émile Breton, “Les beaux enfants de Ventura”, L’Humanité, 20 de Fevereiro de 2008
• Emmanuel Burdeau, “Pedro Costa, d’arrière en avant”, Catálogo do FID Marseille, 2007
• Robert Davis, “How Buildings Learn Along the Lisbon Low Road”, Errata, 17 de Abril de 2008
• Francisco Ferreira, “Cat People”, Expresso, Suplemento Actual, n.°1805, 2 de Junho de 2007
• Gilles Grand, “La boucle des sandales tinte”, Cahiers du cinéma, n.° 621, Março de 2007
• Adrian Martin, “Ruinous Sequels”, Reading Room 3, 2009
• James Naremore, “Naremore’s 10 films of 2007”, Film Quarterly, Vol. 61, n.°4, Verão 2008
• Cyril Neyrat, “Pas de géant”, Cahiers du Cinéma, n.° 631, Fevereiro de 2008, (disponível em Português na
Revista Devires, volume 5, n.°1, Janeiro – Junho de 2008)
• Ana Balona de Oliveira, “Rooms of Colossal Bones – Pedro Costa Trilogy”, Mute, 26 Junho de 2008
• Mark Peranson, “The Young Untold. Pedro Costa shows us the way to go”, San Francisco Bay Guardian,
5 de Março de 2008, “A Desperate Utopian Dream. Pedro Costa: an Introduction.”, Vertigo, Volume 3, n.°9,
Verão de 2008
• Jacques Rancière, “La lettre de Ventura”, Trafic, n.°61, Primavera de 2007
• Andy Rector, “Sans l’ombre d’une hésitation…Ventura”, Vertigo, n.°33, Verão de 2008
• Sukhdev Sandu, “Gallery of Incandescent Images”, Daily Telegraph, 2 de Maio de 2008
• Jean-Philipe Tessé, "Pedro Costa: Les Conquérants", Chronicart, 12 de Fevereiro de 2008

OUTROS ARTIGOS, ENTREVISTAS E CONVERSAS

• Pedro Maciel Guimarães e Daniel Ribeiro, “Entrevista a Pedro Costa”, Edição e Montagem de CD áudio:
Sílvio Rosado e Catarina Simão. Co-Produção Procur.art e Filmes de Quintal, Incluído no Catálogo Forum-
Doc.bh, 2007
• Philippe Azoury e Olivier Séguret, “On vieillit en tournant”, Libération, 13 de Fevereiro de 2008
• Óscar Faria, “Recordações das Casas dos Mortos”, Entrevista, Público, Suplemento Y, 24 de Novembro de
2006
• Francisco Ferreira, “A Vida Depende dos Trocos”, Expresso, Cartaz, 26 de Setembro de 2000, “Guarda a
minha fala para sempre”, Expresso, Suplemento Actual, 25 de Novembro de 2006
• Mark Peranson, "Pedro Costa: An Introduction", Cinema Scope, n.°27, Verão de 2006
• Antoine Thirion, “Entrevista”, Cahiers du Cinéma, n.°631, Fevereiro de 2008
• Daniel V. Villamediana; Manuel Yanez; Carles Marques; Eva Munoz, “Entrevista”, Letras de Cine, Junho de
2006 (versão integral disponível em Cuadernos de Cine Ficco com o título Três horas con Pedro, México,
2008)
• “Conversa entre Alain Guiraudie e Pedro Costa com a participação de Thierry Lounas”, em Um Rio - Duas
Margens: 1, Entre nostalgia e utopia, Lisboa, DocLisboa, 2002
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BIBLIOGRAFIA - 331

SOBRE AS INSTALAÇÕES

• Conversa entre Pedro Costa, Chris Dercon e Catherine David, “From black box to white cube”, Witt de With
Centre for Contemporary Art, 26 de Maio de 2007 (www.janvaneyck.nl)
• Stéphane Delorme “L’image en chantier”, Cahiers du cinéma, n.°584, Novembro 2003
• João Nisa, “O Cinema no Museu. A partir de Une visite au Louvre, de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet.”,
Docs.pt, n.°6, Dezembro 2007

LUGARES NA NET

Pedro Costa – www.pedro-costa.net


Ainda não começámos a pensar – http://aindanaocomecamos.blogspot.com (autoria de André Dias)
Dias Felizes – www.last-tapes.com (autoria de Cristina Fernandes e Rui Manuel Amaral)
Kino Slang – www.kinoslang.com (autoria de Andy Rector)
Sempre em Marcha – http://pedrocosta-heroi.blogspot.com (autoria de José Oliveira)
Unspoken Cinema – http://unspokencinema.blogspot.com (autoria de Harry Tuttle)

OUTROS LUGARES NA NET

Art Forum – www.artforum.com


Senses of Cinema – www.sensesofcinema.com
Rouge – www.rouge.com.au (revista em linha dirigida por Adrian Martin)
Cahiers du cinéma – www.cahiersducinema.com
Cinemascope – www.cinema-scope.com
Chronicart – www.chronicart.com
Critikat – www.critikat.com
Madragoa Filmes – http://madragoafilmes.pt
Fid Marseille – http://fidmarseille.org
L’Humanité – www.humanite.fr
Peau Neuve – http://peauneuve.net (autoria de Stephane Mas)
Peine Perdue – http://peineperdue.blogspot.com/2008_08_01_archive.html (autoria de Ángel)
Girish – http://www.girishshambu.com (autoria de Girish Shambu)
GreenCine Daily – http://daily.greencine.com
The Evening Class – http://theeveningclass.com (autoria de Michael Guillén)
The House Next Door – www.mattzollerseitz.blogspot.com
The Academic Hack – www.academichack.net (autoria de Michael Sicinski)
D+Kaz – www.d-kaz.com (autoria de Daniel Kazman)
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SUMÁRIO
9 A Casas Queimadas - Ricardo Matos Cabo
15 O Negro é uma cor ou o cinema de Pedro Costa - João Bénard da Costa
29 Still Lives - James Quandt
40 Straub Anti-Straub - Tag Gallagher
53 Política de Pedro Costa - Jacques Rancière
65 Condenados à Morte, Condenados à Vida - Rui Chafes
73 O Sangue - Johannes Beringer
83 Órfãos - Phillipe Azoury
91 A Vida Interior de um Filme - Adrian Martin
99 “Terra a terra”: O Portugal e o Cabo verde de Pedro Costa - Jacques Lemière
117 O Mistério das Origens - Chris Fujiwara
125 Algumas Erupções na Casa de Lava - Jonathan Rosenbaum
133 Aventura: Um ensaio sobre Pedro Costa - Shiguéhiko Hasumi
147 Seven Women - Dominique Marchais
151 A Propósito de Ossos - Jeff Wall
157 Ossos - João Miguel Fernandes Jorge
165 Histórias de Fantasmas - Thom Andersen
174 Retrato de Família - Richard Dumas
179 No Quarto da Vanda - João Bénard da Costa
187 A Alegria Terminal - Paolo Spaziani
195 Amour Crépuscule: pensamentos desordenados sobre alguns filmes de Pedro Costa - John Gianvito
199 Cabo-verdianos de Lisboa: que futuro? - Luce Vigo
203 A Suspensão e a Resistência - António Guerreiro
207 Pappy: A Rememoração dos Filhos - Andy Rector
237 O que conta este filme(s)? - Bernard Eisenschitz
241 Sete Condições para nos Pormos em Estado de Fazer um Trabalho - José Neves
249 Nove Notas sobre Onde jaz o Teu Sorriso? - Jean-Pierre Gorin
259 Mas Porquê?! (Observações) - Philippe Lafosse
281 “Toda a nova arte poderia ser qualificada como montagem”: Onde jaz o Teu Sorriso?, ou da necessidade artística
em contexto materialista - Nicole Brenez
289 Ouvindo os Filmes de Pedro Costa ou Pedro Costa, realizador pós-punk - Mark Peranson
301 Do Filme à Exposição: as instalações-vídeo de Pedro Costa - João Nisa

315 Filmografia
321 Instalações vídeo
322 Notas Biográficas
328 Bibliografia
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REMERCIEMENTS

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ICONOGRAFIA

FILMES DE PEDRO COSTA © Pedro Costa


O Sangue - p. 14, 21, 64, 67, 68, 71, 72, 76-77, 79, 81, 82, 85, 87, 89, 90, 94, 97, 259, 277 (cima)

Casa de Lava - p. 98, 102-103, 112-115, 116, 118, 120, 123, 124, 129, 130, 131, 132, 134, 135, 136, 137

Ossos - p. 16, 27, 31, 32, 140, 146, 148, 149, 150, 153, 155, 156, 160-163, 299

No Quarto da Vanda - p. 28, 35, 108-109, 143, 164, 167, 178, 180, 181, 182, 185, 186, 190, 193, 194, 197, 232-
233, 293, 296, 304 (cima esquerda)

Onde Jaz o Teu Sorriso?, Sicilia! © Danièle Huillet, Jean-Marie Straub - p. 41, 46 (baixo), 240, 248, 252, 257, 260, 267,
268, 272, 274, 275, 277 (baixo), 278, 280, 284, 287, 304 (cima direita)

6 Bagatelas - p. 245

Juventude em Marcha - p. 36, 38, 42, 44 (baixo), 45, 46 (cima), 47, 48, 49, 50, 52, 56, 63, 139, 144, 170, 198,
201, 202, 204, 206 (esquerda), 208 (direita), 213 (centro), 214 (cor), 215 (cor), 217 (cor), 218 (cor), 222 (cor),
225, 227 (cor), 228, 229 (baixo), 234-235, 270, 288, 300, 304 (baixo esquerda)

Tarrafal - p. 208 (esquerda), 236, 304 (cima direito)

The Rabbit Hunters - p. 238

The End of a Love Affair - p. 304 (centro esquerda)

Ne change rien - p. 304 (centro direito)

INSTALAÇÕES © Pedro Costa


Minino Macho, Minino Femêa - p. 309
Casal da Boba - p. 311

FOTOGRAFIAS de Richard Dumas


Retrato de Familia © Richard Dumas - p. 174-177, 334

OUTROS FILMES
They Live by Night, Nicholas Ray (DR) - p. 18

Der Tod des Empedokles © Danièle Huillet, Jean-Marie Straub - p. 44 (cima)

The Grapes of Warth, John Ford (DR) - p. 206 (direita), 213 (cima, baixo), 214 (p/b), 215 (p/b), 216, 217 (p/b),
218 (p/b), 222 (p/b), 227 (p/b)

Otona no miru ehon-Umarete wa mita keredo


Eu Nasci, Mas..., Yasujiro Ozu (DR) - p. 229 (cima)

Chronik der Anna Magdalena Bach © Danièle Huillet, Jean-Marie Straub - p. 271

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