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RENASCIMENTO ITALIANO


Ensaios E Traduções

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RENASCIMENTO ITALIANO

Ensaios E Traduções

Organização:
Maria Berbara

com a colaboração de:


Leidiane Carvalho
Raphael Fonseca
Fernanda Marinho

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© Copyright 2010 by NAU Editora
Rua Nova Jerusalém, 320
CEP: 21042-235 - Rio de Janeiro (RJ)
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Projeto Gráfico:
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Design Capa:
Paulo Mariotti e Elisabeth de Gail
Revisão de texto:
Leidiane Carvalho, Raphael Fonseca e Fernanda Marinho

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
R327
Renascimento italiano : ensaios e traduções / organização: Maria Berbara;
com a colaboração de: Leidiane Carvalho, Raphael Fonseca, Fernanda
Marinho. - Rio de Janeiro : Trarepa, 2010.
il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-85936-86-0
1. Arte renascentista. 2. Renascença - Itália. 3. Arte - Itália - História.
I. Berbara, Maria, 1968 - II. Carvalho, Leidiane. III. Fonseca, Raphael. IV.
Marinho, Fernanda.
10-4541. CDD: 709.45 CDU: 7.034(450)

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou
transmitida por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação)
ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita das Editoras.

1ª edição - 2010

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Prefácio e
Agradecimentos

E
ste livro reúne ensaios e traduções sobre o Renascimento
escritos por pesquisadores ativos em universidades brasilei-
ras. Os ensaios não são primordialmente dirigidos a investi-
gadores altamente especializados, mas a estudantes e leitores inte-
ressados em história da arte. Ulteriores pesquisas sobre cada um
dos temas abordados pelos ensaios podem ser iniciadas a partir da
consulta aos livros e artigos citados nas notas. As traduções, realiza-
das por especialistas, apresentam textos fundamentais da literatura
artística relativa ao Renascimento acompanhadas de uma introdu-
ção e amplas notas de apoio ao texto. Os ensaios e traduções são
apresentados por ordem alfabética de autor (sobrenome).
O livro é acrescido de um glossário, no qual são reunidos e expli-
cados 85 termos citados ao longo do mesmo; uma tabela cronoló-
gica contendo datas relativas a importantes acontecimentos artísti-
cos, históricos e culturais; e uma bibliografia com textos fundamen-
tais sobre o Renascimento, traduzidos ao português e facilmente
encontrados em livrarias e bibliotecas nacionais. O texto introdu-
tório aborda questões centrais no âmbito da história e história da
arte relativas ao Renascimento, incluindo questionamentos recen-
tes quanto ao alcance e utilização do termo. Embora a maioria dos
artigos aborde, primordialmente, temas relativos à arte italiana, o
livro não exclui comparações ou cruzamentos com artistas e teorias
artísticas de outras regiões europeias.
A produção deste livro foi, desde o início, um trabalho de equipe,
o qual envolveu alunos e ex-alunos da UERJ. Clarissa Campello pre-

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parou digitalmente os mapas. Leidiane Carvalho redigiu o glossário
e proporcionou permanente assistência relativamente a problemas
técnicos e informáticos que surgiram ao longo do processo de orga-
nização do livro. Fernanda Marinho redigiu a cronologia e a biblio-
grafia, traduziu o texto de Stefania Caliandro e realizou grande
parte do contato com os autores, além de ter colaborado de forma
sempre constante e segura no processo de organização como um
todo. Raphael Fonseca preparou a cronologia e o índice e formatou
e diagramou o manuscrito final entregue à FAPERJ, incluindo as
imagens. Ana Resende foi a responsável pela tradução do texto de
Juliana Barone. Cabe a essa excelente e dedicada equipe, portanto, o
primeiro agradecimento.
Esse volume não teria sido finalizado — ao menos não na forma
como havia sido ideado — sem o auxílio da FAPERJ, que apoiou,
através do edital APQ3, a sua edição. Não poderíamos deixar de
agradecer, por fim, à NAU Editora, por sua aposta em nosso projeto,
e aos autores dos ensaios e traduções que compõem esse volume,
por sua confiança, generosidade e dedicação.

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Sumário

Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
Maria Berbara

Mapas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
Cronologia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
Ensaios. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
ӱӱGiulio Romano, o herdeiro de Rafael,
e as premissas de uma nova arte . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64
Letícia Martins de Andrade

ӱӱLeonardo da Vinci sobre a pintura


e a observação da natureza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
Juliana Barone

ӱӱ“Io non fu’ mai pictore né scultore come


chi ne fa boctega.” Michelangelo e a tradição
do ateliê italiano nos séculos XV e XVI . . . . . . . . . . . . 119
Maria Berbara

ӱӱA poética do espaço arquitetônico versus a


predominância das artes figurativas. Contradições
críticas em As Vidas de Giorgio Vasari . . . . . . . . . . . 130
Elisa Byington

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ӱӱPintura de gênero flamenga e sua herança
no âmbito do naturalismo bolonhês. . . . . . . . . . . . . . . 150
Stefania Caliandro

ӱӱConsiderações acerca da fortuna crítica de Tiziano


Vecellio na Península Ibérica durante o século XVI . . . 166
Raphael Fonseca

ӱӱUm outro Renascimento: A representação de um


príncipe no Salão dos Meses de Ferrara . . . . . . . . . . 188
Nancy Kaplan

ӱӱLeonardo da Vinci e suas estadias milanesas:


o fluxo das linguagens artísticas na Lombardia . . . . 198
fernanda marinho

ӱӱAs Origens Mediterrâneas do Renascimento . . . . . 215


Luiz Marques

ӱӱDürer e a Antiguidade Italiana: Reflexões


sobre as relações entre Warburg e Winckelmann . . . 251
Claudia Valladão de Mattos

ӱӱO Paragone entre a Pintura e a Escultura


– A Proposição de Uma Via Conciliatória
Através dos Modelos Plásticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 268
Alexandre Ragazzi

Traduções. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 295
ӱӱVida de Giulio Romano,
pintor, de Giorgio Vasari . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 296
Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

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ӱӱVida de Pietro Perugino,
pintor, de Giorgio Vasari . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 337
Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

ӱӱA “Villa Madama” em uma carta de Rafael


de Urbino a Baldassare Castiglione . . . . . . . . . . . . . . 360
Tradução e notas: Letícia Martíns de Andrade

ӱӱCarta de Francesco Petrarca a Giovanni


Colonna di San Vito (Fam. VI, 2) . . . . . . . . . . . . . . . 385
Tradução e notas: Maria Berbara

ӱӱVida de Leonardo da Vinci, Michelangelo


e Rafael, de Paolo Giovio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 400
Tradução e notas: Fernanda Marinho

ӱӱVida de Leonardo da Vinci, de Giorgio Vasari . . . . . 409


Tradução e notas: Fernanda Marinho

ӱӱDürer e a Antiguidade Italiana,


de Aby Warburg . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 427
Tradução e notas: Claudia Valladão de Mattos

Glossário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 435
Leidiane Carvalho

Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 449
Imagens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 453
Índice Onomástico e Topográfico. . . . . . . . 485
Biografia dos Autores. . . . . . . . . . . . . . 491

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Introdução

Maria Berbara

N
os escritos de Francesco Petrarca (1304–1374) floresce a
ideia do Renascimento. Enquanto a historiografia medie-
val dividia a história em antes e depois do nascimento de
Cristo, Petrarca considera os séculos que sucederam a derrocada
do império romano ocidental e o momento contemporâneo a ele
como um período de retrocesso, obscurantismo, barbárie e deca-
dência. Para Petrarca, o esplendor romano de grandes homens,
sábias letras e belas obras entrara em profunda e irreversível
decadência a partir da conversão do Império ao cristianismo, no
século IV; por período “antigo”, assim, ele entendia aquele ante-
rior à decadência romana causada pela adoção do cristianismo;
por “moderno”, o posterior. Em suas cartas e poemas, Petrarca
preconizava o nascimento de uma nova era, na qual a neblina
dos séculos passados se dissiparia graças ao retorno à claridade
meridional da antiguidade clássica. Anos depois, o humanista
Flavio Biondo (1392–1463) cunharia o termo Medium Aevum,
ou Idade Média, para referir-se ao período transcorrido entre o
saque de Roma pelos Godos, em 410 (por ele equivocadamente
datado em 412), e 1412. O esquema segundo o qual entre a gran-
deza dos antigos e o seu renascimento, no século XV, transcorre
um período intermédio de mil anos, influenciou profundamente
humanistas, historiadores, filósofos e artistas da época, e segue
vivo, de certa forma, até os dias atuais. Naquele contexto, o termo
rinascita, renascimento, tornou-se corrente, na medida em que
pensadores contemporâneos passavam a considerar a era em

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que viviam como o receptáculo da longa tradição clássica, a qual,


ignorada ou vilipendiada ao longo de séculos, podia finalmente
reencontrar a luz do dia.
No campo das letras, organizava-se e editava-se febrilmente textos
latinos, mas traduzia-se também massivamente obras gregas, sobre-
tudo Platão. Já em 1396, o diplomata e professor bizantino Manuel
Chrysoloras (c. 1350–1415) foi convidado a deixar Constantinopla
para ensinar grego em Florença, onde ávidos humanistas aguarda-
vam ansiosamente a chance de aprender a ler a Ilíada e a Odisseia no
original. A oportunidade não passou despercebida ao então jovem
estudante de direito florentino Leonardo Bruni (c. 1370–1444),
quem, quarenta anos mais tarde, recordaria em sua autobiografia
seu dilema pessoal ante a decisão de abandonar ou não seus estudos
das leis a favor do grego:

“Quando Chrysoloras chegou [a Florença] fiquei dividido,


pois, embora considerasse vergonhoso abandonar o estudo
do direito, também parecia-me quase criminoso perder uma
tal chance de estudar grego. Assim, em meu espírito juvenil,
com frequência perguntava-me: “Quando tens a oportuni-
dade de conversar com Homero, e Platão, e Demóstenes, e
todos os outros poetas e filósofos e oradores sobre os quais
tantas coisas admiráveis são ditas, e de adquirir a mara-
vilhosa educação que advém de seu estudo, renunciarás a
isso? Por setecentos anos ninguém, na Itália, foi capaz de
ler o grego e, no entanto, admitimos que é dos gregos que
provêm todos os nossos sistemas de conhecimento (…) Há
muitos professores de direito, de modo que sempre poderás
estudar isso, mas esse é o único professor de grego; se ele
desaparecesse, não haveria nenhum outro de quem pudes-
ses aprender”. Convencido por esses argumentos, tornei-me
aluno de Chrysoloras, e entreguei-me com tanto ardor ao
estudo que no que aprendia durante a vigília, de dia, medi-
tava também pela noite, durante o sono”.

12

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Introdução

O próprio Bruni, Uberto Decembrio e Cencio de’ Rustici, alguns


dos outros alunos de Chrysoloras, traduziriam entre eles dez diá-
logos platônicos incluindo Górgias, Crito e a República. Em 1423
o humanista siciliano Giovanni Aurispa (c. 1370–1459) levou mais
de 200 manuscritos gregos de Constantinopla à Veneza, entre os
quais as obras completas de Platão e Plotino, tragédias de Sófocles
e Ésquilo, versos de Píndaro, além de outros tesouros até então des-
conhecidos na Itália. Em 1453, a conquista de Constantinopla pelos
turcos otomanos impulsionou a migração de toda uma geração de
intelectuais de língua grega — e seus livros — para cortes italianas,
o que favoreceu ainda mais o aprendizado do grego e a tradução e
estudo de manuscritos escritos nessa língua. Sob o patrocínio do
governador de Florença, o célebre Lourenço Magnífico, o filósofo
Marsilio Ficino (1433–1499), nos anos 1460‑90, traduziu a totali-
dade das obras de Platão para o latim, finalizando um projeto ini-
ciado anos antes pelo Cardeal Bessarion. Em 1484, Ficino publica
a primeira edição latina completa dos diálogos, acrescidos, em
1496, por uma edição de notas e comentários ao texto. Também no
campo religioso, o passado greco-romano passa a ser considerado
por diversos autores menos como um antagonista do cristianismo
e mais como um seu precursor, iluminando-se com vigor a conti-
nuidade entre as duas esferas e apontando-se analogias entre a reli-
gião cristã e correntes filosóficas e espirituais precedentes. Apesar
de que, como a historiografia mais recente não deixou de apontar
muitas vezes, não seja mais possível manter a construção simplista
de uma Idade Média aristotélica e um Renascimento platônico (na
verdade, mesmo na Itália há uma importante tradição de aristo-
telismo humanista) tampouco se pode negar o protagonismo do
estudo, interpretação e transmissão dos textos de Platão — detec-
táveis, inversamente, ao longo de todo o medievo. Sobretudo no
século XV, a filosofia platônica foi mais estudada do que em qual-
quer outro momento posterior ao fim da Academia Ateniense
(529 d.C.). Embora a ideia de que Aristóteles seja superior in natu-
ralibus (isso é, nas coisas da natureza) e Platão, in divinibus (nas

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Maria Berbara

coisas divinas), remonte à antiguidade, durante o Renascimento a


filosofia platônica passa a ser considerada uma fonte de sabedo-
ria válida mesmo em um contexto espiritual cristão, a ponto de a
tradição filosófica que surge nesse período ter sido batizada por
alguns estudiosos de Platonismo Cristão. Filósofos como Cusanus,
Bessarion ou o próprio Ficino sublinham os vínculos entre o pla-
tonismo e os primeiros estágios do cristianismo, em alguns casos
inclusive advogando por uma reforma teológica cristã a partir do
retorno às origens platônicas.
Em solo italiano, alimenta-se o sentimento de herança relativa-
mente ao passado clássico e a confiança na possibilidade de restaurá-
lo. Embora autores gregos e latinos tenham sido lidos e respeitados
por intelectuais medievais, nos séculos XIV e XV a tradição clássica
torna-se o paradigma absoluto, opondo-se ao passado medieval
obscuro e bárbaro. Por outro lado, graças a homens como Petrarca,
Dante e Giotto, assim como à solidez do conhecimento das línguas
clássicas e dos estudos produzidos sobre os textos antigos, cresce o
orgulho pelas realizações presentes.
Paralelamente, surge toda uma geração de humanistas “antiquá-
rios” que se dedicavam a pesquisar e anotar inscrições latinas, assim
como a reconstruir a topografia das cidades antigas, sobretudo
Roma, a partir da observação minuciosa das suas ruínas. Em 1474,
Flavio Biondo publica seu Italia illustrata, uma compilação de anti-
guidades encontradas na Itália; análogos trabalhos de levantamento
de ruínas e obras de arte antigas, na Itália e na Grécia, surgem pelas
mãos de humanistas como Ciriaco d’Ancona, Poggio Bracciolini e
Felice Feliciano. Roma, por sua vez, torna-se o destino obrigató-
rio de diversos artistas estrangeiros e de outras regiões italianas, os
quais viajavam à urbe para estudar e copiar os grandes modelos
da antiguidade clássica. Esses artistas — como, já no Quinhentos,
o português Francisco de Holanda ou o holandês Martin van
Heemskerck — produziam minuciosas coleções de desenhos figu-
rando monumentos e vistas da Cidade Eterna, os quais levavam
consigo à sua terra natal a fim de prosseguir seus estudos sobre a

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Introdução

antiguidade romana. Por outro lado, diversas obras pictóricas e


escultóricas da antiguidade romana eram exumadas e posiciona-
das em lugares de honra, onde artistas contemporâneos avidamente
estudavam-nas e copiavam-nas. Sobretudo em Roma, mas tam-
bém em Veneza e outras cidades italianas, formam-se importan-
tes coleções particulares de antiguidades, como por exemplo a do
Cardeal Federico Cesi. Entre essas coleções destacava-se o assim
chamado Cortile Belvedere, no Vaticano, o qual incluía, entre outras
maravilhas como o Apolo Belvedere ou a Venus Felix, o célebre
Laocoonte, uma das obras antigas mais influentes do Renascimento.
Em janeiro de 1506, o grupo escultórico foi descoberto e exumado
em um vinhedo situado no monte Oppio, em Roma. O próprio
Michelangelo, juntamente com o arquiteto Giuliano da Sangallo,
acorreu ao local das escavações, onde ambos reconheceram ime-
diatamente nos antigos blocos marmóreos a obra mencionada por
Plínio, o Velho, como “omnibus et picturae et statuariae artis prae-
ferendum”, isso é, superior a todas as outras no campo da pintura e
da escultura. Júlio II apressou-se em adquirir o Laocoonte, que foi
gloriosamente transportado ao Vaticano e instalado em um nicho
desenhado especialmente para ele no Cortile Belvedere. A partir
desse momento, o grupo escultórico foi repetidamente cantado em
versos, mencionado em tratados, estudado em desenhos. O huma-
nista Jacopo Sadoleto (1477–1547), um dos assistentes de Júlio II,
compõe por encomenda do Papa um poema celebrando a sua res-
surreição, novamente banhado pela luz de uma Roma renovada.
Uma carta contemporânea descreve a agitação e o entusiasmo com
que a população acolheu a espetacular descoberta:

“Toda Roma, dia e noite, corre ao palácio [vaticano] para


vê-lo. Parece o Jubileu.”

Uma das características principais do Renascimento é o fortale-


cimento da ideia do mecenato, isso é, o patrocínio de artistas por
parte de homens ou famílias poderosas, assim como de ordens reli-

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giosas e membros de clero. Diversos papas perceberam o valor polí-


tico que a retórica e as artes visuais antigas poderiam adquirir para
a consolidação de uma nova Roma, concebida enquanto herdeira
da Roma antiga, mas moral e espiritualmente superior a ela, gra-
ças ao cristianismo. Júlio II (papa entre 1503 e 1513), cujo nome
papal alude adrede, evidentemente, ao grande Júlio César, captara
perfeitamente o enorme poder das obras de arte na formação de
uma nova cultura e ideologia. Durante seu pontificado, promoveu
um espetacular programa de renovação urbanística em Roma, des-
tinado a transformá-la em um magnífico espelho do poder da Igreja.
Seu objetivo era transformar a Santa Sé numa Roma renovada, cujo
esplendor emularia e mesmo superaria o da antiga capital imperial,
a qual intensamente admirava; com este fim, propõe a remodelação
de várias igrejas, entre as quais Santa Maria del Popolo; reforma
várias ruas e constrói outras, como a Via Giulia e a Via della Lungara;
no Vaticano, encarrega a Bramante a reconstrução de San Pietro
e do Cortile Belvedere. Idealiza, ainda, uma soberba redecoração
pictórica do palácio vaticano, encomendando a Rafael as stanze e a
Michelangelo, o teto da Capela Sistina. Sob seu pontificado, espeta-
culares antiguidades recuperadas — como o Laocoonte — e magni-
ficentes obras contemporâneas — como o teto da Sistina — serviam
para consolidar a nova imagem de Roma como a poderosa santa
sede que, a partir da herança direta da grandiosidade antiga, haveria
de tornar-se, uma vez mais, o centro do mundo.
Júlio II, como outros papas e prelados antes dele, empregou uma
grande quantidade de artistas que passaram a trabalhar, às vezes com
exclusividade, sob o direto patrocínio do Vaticano. Essa prática, como
dito acima, foi comum a outros membros da aristocracia italiana, os
quais igualmente engajaram-se em um mecenato artístico extrema-
mente ativo e quase sempre vinculado à sua família (o mecenato,
de resto, é atualmente considerado como um dos processos sociais
dominantes na Europa pré-industrial). Mecenas pertencentes às mais
nobres famílias italianas investiam na criação de coleções particula-
res de obras de arte antigas e modernas, manuscritos, instrumentos

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Introdução

musicais, medalhas: Francesco Sassetti encomenda a Ghirlandaio a


decoração pictórica da magnífica capela que leva seu nome, na igreja
florentina de Santa Trinità; Mantegna pinta as paredes do palácio
ducal, em Mântua, e Leonardo é empregado pelo duque Lodovico
Sforza, em Milão. Surge a moda dos estúdios (studioli), quartos priva-
dos reservados ao estudo nos quais se guardavam zelosamente itens
colecionados. Em alguns casos, os grandes artistas da época eram
encarregados da decoração pictórica dos studioli; assim, por exem-
plo, o estúdio do duque de Urbino, Federigo da Montefeltro (1422–
1482), foi decorado com intarsie representando livros, estatuetas,
instrumentos científicos e musicais, armas e armaduras, indicando
a dupla natureza — intelectual e guerreira — do duque. O mais céle-
bre studiolo foi talvez o de Isabella d’Este (1474–1539), marquesa de
Mântua, ávida colecionista de antiguidades e também de novidades
modernas. Seu foi o Cupido Adormecido esculpido por Michelangelo
na juventude do artista, assim como telas de Perugino, Lorenzo
Costa, Mantegna e Correggio. A coleção que albergou no castelo San
Giorgio (Mântua), uma das suas várias residências, cresceu tanto que
parte dela foi alojada em um quarto precisamente abaixo do studiolo
conhecido como “gruta” (grotto), assim chamado pela ausência de
janelas e pela aparência geral de isolamento e reclusão. Ali, rodeada
por suas pinturas, esculturas, gemas, bustos e estatuetas — além de
curiosidades como um “chifre de unicórnio” e âmbar — Isabella reu-
nia seus amigos e promovia recitais musicais.

Politicamente, nos séculos XIV e XV consolidam-se as princi-


pais potências políticas italianas, inclusive o papado. A assim cha-
mada Idade Média italiana se caracterizara, em grande medida, por
uma fragmentação política fortemente marcada pelas disputas entre
o papado, de um lado, e o Império, de outro. A península dividia-se,
fundamentalmente, em três áreas: o sul e a Sicília, que formavam
o reino de Nápoles e Sicília; a Itália central, dominada, em grande

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Maria Berbara

parte, pelos Estados Papais, e o norte, sob o domínio do império ger-


mânico desde o século X. A partir do século XIII, com o enfraque-
cimento do império germânico, cidades norte-italianas recuperam
sua autonomia e convertem-se no que se convencionou chamar de
cidades-estado. As guerras entre elas e forças estrangeiras, contudo,
continuaram constantes, de modo que sua quantidade decresce ao
longo destes séculos e as que subsistem no século XV são maiores e
mais poderosas. Em 1305, por outro lado, a cúria abandona Roma e
se estabelece em Avignon, seguindo-se um longo período de cisma
durante o qual tanto Avignon como Roma reivindicam a sede do
papado. Nesta época, a Itália ainda é um emaranhado confuso e
descentralizado de pequenas repúblicas, reinados e feudos indepen-
dentes, frequentemente atacados por forças estrangeiras, especial-
mente francesas. Ao longo do século XV, porém, consolidam-se as
grandes linhagens das principais famílias italianas: os Medici em
Florença, os Sforza em Milão, os Gonzaga em Mântua, os Este em
Ferrara e os Borgia em Roma. Apesar da instabilidade política, o
norte da Itália, extremamente rico, domina grande parte do comér-
cio mediterrâneo. Florença e Veneza contavam-se entre as cidades
mais prósperas, com uma grande classe comerciante e banqueira
respectivamente. A fragmentação política da Itália manifesta-se na
diversidade linguística — na península falava-se uma miríade de
dialetos locais, além de línguas estrangeiras — assim como em um
sentimento de patriotismo local que se convencionou chamar cam-
panilismo em referência ao campanile, isso é, o sino da torre das
igrejas de cada aldeia ou cidade. Esse campanilismo manifesta-se
frequentemente na obra de cronistas e historiadores que, mesmo
alegando escrever sobre a Itália, privilegiam sua região de origem;
tal foi o caso, por exemplo, da própria Italia illustrata de Biondo,
a qual confere um marcado protagonismo à sua Romagna natal, e,
naturalmente, das Vidas do aretino Giorgio Vasari, livro sobre o
qual se falará mais adiante.
Na antiga estrutura medieval, os artistas participavam de dife-
rentes guildas segundo os materiais com os quais trabalhavam;

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Introdução

em Florença os pintores, por exemplo, participavam inicialmente


da guilda de médicos e herboristas, no interior da qual passam a
formar um ramo específico em 1378; os escultores, por sua vez,
eram geralmente admitidos na guilda menor dos artesãos que tra-
balhavam a pedra e a madeira. O termo “artista”, em seu sentido
genérico, não era empregado quase nunca: pintores ou escultores
eram considerados não como possuidores de uma vocação espe-
cial, mas como membros das guildas às quais pertenciam e per-
feitamente comparáveis a seus colegas artesãos. No século XV, no
entanto, o ateliê artístico italiano transforma-se em uma estrutura
complexa onde numerosos assistentes e colaboradores, orientados
a trabalhar segundo a maneira do mestre, produziam obras de arte,
por vezes, em uma escala quase industrial. Domenico Ghirlandaio
(1448–1494), líder daquele que foi talvez o maior ateliê florentino
do século XV, teve entre seus aprendizes, segundo Vasari, Francesco
Granacci, Niccolò Cieco, Jacopo del Tedesco, Baldino Bandinelli, e
o próprio Michelangelo, que com ele teria aprendido e trabalhado
em sua primeira adolescência.

O conceito de um renascimento artístico-cultural foi cristalizado


por Giorgio Vasari (1511–1574) em suas Vidas (Le vite de’ più ecce-
lenti architetti, pittori et scultori italiani, da Cimabue insino a’ tempi
nostri, descritte in lingua toscana da Giorgio Vasari pittore aretino.
Con una sua utile et necessaria introduzzione a le arti loro). Publicado
pela primeira vez pelo editor florentino Lorenzo Torrentino em
1550 (edição “torrentiniana”), o livro é revisto, aumentado e repu-
blicado em 1568, sempre em Florença, pela tipografia de Jacopo
Giunti (edição “giuntina”), sendo este o texto sobre o qual com
maior frequência basearam-se ulteriores comentários e traduções.
Vasari propõe um esquema historiográfico genealógico, isso é, fun-
dado na biografia individual dos artistas e apresentado de forma
cronológica. As Vidas (Vite, em italiano) dividem-se em um proê-

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Maria Berbara

mio geral, uma introdução à pintura, escultura e arquitetura, e uma


série de biografias de artistas dividida, por sua vez, em três partes,
cada uma com o seu próprio proêmio. Na giuntina a primeira des-
tas três partes inclui 28 “vidas” (de Cimabue a Lorenzo di Bicci);
a segunda 54 (de Jacopo della Quercia a Pietro Perugino) e a ter-
ceira 51 (de Leonardo da Vinci a Michelangelo, único artista ativo
por ocasião da publicação do texto). Na primeira idade, segundo
o esquema vasariano, o bárbaro estilo bizantino foi eclipsado pelas
“primeiras luzes” trazidas por Giotto, quem volta a olhar para os
antigos e para as formas da natureza; na segunda idade, a da “melho-
ria” (augmento), os desenvolvimentos da idade anterior amadure-
cem e permitem os enormes avanços de Masaccio (c. 1401–1428)
e Donatello (1386–1466), enquanto na terceira idade alcança-se a
perfeição, o ápice deste processo de renascimento, com a genia-
lidade de Leonardo, Rafael e Michelangelo. Também para Vasari,
a “Idade Média” representa um período de retrocesso em relação
à grandeza da antiguidade; para o historiador, a arte começara a
declinar a partir do século IV, degenerando no que considerava
uma pintura medieval qualitativamente pobre, com suas influên-
cias bizantinas, figuras planas e distorcidas, seu antinaturalismo,
etc. Vasari é talvez o primeiro a falar consistentemente (embora
outros tenham falado esporadicamente antes dele) em um renasci-
mento (rinascita) da arte a partir dos pintores florentinos Cimabue
(c. 1240–1302) e Giotto (c. 1267–1337), que teria “restaurado a arte
do desenho”. A noção do desenho (disegno), de resto, é o conceito
fundamental da arquitetura vasariana: definido pelo aretino como
“o pai das três artes”, é ele que confere unidade à sua coleção de bio-
grafias e legitima a superioridade da tradição toscana. Para Vasari,
os parâmetros da qualidade artística eram outorgados fundamen-
talmente pela qualidade do desenho, pela competência na imita-
ção da natureza, e pelo seguimento dos paradigmas da antiguidade
clássica; nesse sentido, os mais excelentes artistas da terceira idade
podiam em alguns momentos não somente igualar, mas também
superar a arte dos antigos.

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Introdução

Antes mesmo de Vasari, outros poetas e pensadores haviam iden-


tificado em Giotto a aurora de uma nova era. No imaginário ita-
liano renascentista e pós-renascentista, o artista florentino haveria
de constituir uma espécie de pendant de Dante, o genial autor da
Divina Comédia, em sua capacidade de configurar uma cultura
visual revolucionária — relativamente à tradição bizantina — e
essencialmente italiana. O próprio Dante canta sua glória (a qual
sobrepujara a de Cimabue, seu grande predecessor) no canto XI
do Purgatório, e dele o pintor Cennino Cennini afirmaria, anos
depois, que foi capaz de traduzir a arte da pintura do grego ao latim,
inventando o moderno — isto é, Giotto ultrapassa as figuras rígi-
das, rudes e antinaturais bizantinas e as reinventa em solo latino. A
partir de Dante, o toscano torna-se italiano, e a partir de Giotto, a
reaproximação às fontes visuais clássicas, a predominância do dese-
nho, o interesse pela expressão dos afetos e pela mímesis, a repre-
sentação do espaço natural, tornam-se as premissas de uma iden-
tidade artística não já florentina ou toscana, mas italiana, na qual
Florença passa a ocupar um papel redentor. Na famosa Maestà que
pintou aproximadamente entre 1300 e 1303, a virgem transcenden-
tal que seu genial antecessor, Cimabue, havia criado em uma tela
de mesmo tema parece humanizar-se e ganhar um peso que a situa
definitivamente no mundo em que nós próprios vivemos (Figs. 1
e 2, p. 454). O trono, de estrutura gótica, acentua a tridimensionali-
dade, assim como os anjos que o rodeiam. As texturas, a profundi-
dade do espaço, as expressões de afeto, a escada aberta, ladeada por
anjos, que parece convidar o observador a aproximar-se da virgem,
são elementos que indicam uma transformação não apenas epidér-
mica, mas absolutamente estrutural relativamente à arte produzida
contemporaneamente a Giotto. Sua obra mais célebre, as pinturas a
fresco da capela Scrovegni (ou dell’arena), em Pádua, é frequente-
mente considerada o marco inicial do Renascimento no campo da
história da arte (Fig. 3, p. 455).
Pouco após a morte do pintor, Giovanni Boccaccio (1313–1375),
também ele florentino, clamaria no canto VI do Decameron que

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Maria Berbara

Giotto trouxera de volta à luz a arte da pintura, “a qual havia sido


por muitos séculos sepultada sob os erros daqueles que pintavam
mais para entreter os olhos do ignorante do que para comprazer
o intelecto dos sábios”. Tanto a imagem da volta à luz quanto a da
cisão irremediável entre pintura visual e intelectual tornar-se-iam
topoi da literatura e tratadística renascentista ao longo dos próxi-
mos séculos. Giotto dirige um grande ateliê de pintura em Florença,
sendo o primeiro artista italiano a tornar-se pessoalmente célebre;
com ele tem início o processo de revalorização social do artista e a
migração da pintura, arquitetura e escultura do terreno das artes
mecânicas ao das artes liberais. A ideia de que o fazer artístico pres-
supõe uma atividade intelectual — a qual o antecede — e que por-
tanto o artista tem um status similar ao do filósofo ou matemático
é uma conquista intrinsecamente vinculada a pensadores e artistas
florentinos, transportando-se ao resto da Europa somente décadas,
em alguns casos séculos, depois. Em meados do Quinhentos, por
exemplo, o escritor e artista português Francisco de Holanda quei-
xar-se-ia amargamente, em seus Diálogos em Roma, do abismo que
separava Itália e Portugal no tocante ao valor monetário das obras
de arte e ao estatuto do artista.
Na primeira metade do século XV floresce uma geração de
artistas que Vasari agruparia na alba da segunda idade, isso é,
aquela que viu o desenvolvimento dos princípios ressuscitados
por Giotto, Duccio e Cimabue. Filippo Brunelleschi (1377–1446)
projeta a imensa cúpula da catedral de Florença, visível em todo
o vale do Arno, a loggia do Ospedale degli Innocenti e a Sacristia
de San Lorenzo. Seus edifícios, mais além da mera adoção de for-
mas antiquizantes — algo já presente em gerações toscanas ante-
riores — propõem o corpo humano como medida central e para-
digmática de todas as suas partes, em uma conexão sólida com a
tradição vitruviana. Donatello (c. 1386–1466) abandona definitiva-
mente as premissas góticas e infunde vigor, perspectiva e multi-
plicidade psicológica em suas realizações brônzeas e marmóreas;
Masaccio (1401–1428) pulveriza a bidimensionalidade da parede

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Introdução

de Santa Maria Novella com sua assombrosa Trinità (Fig. 4, p. 456), e


Ghiberti maravilha seus conterrâneos com as figuras antiquizan-
tes, plenas a um tempo de energia e elegância, da famosa porta do
Batistério. Paralelamente, alguns intelectuais procuram sistemati-
zar o conhecimento antigo e moderno sobre a arte em tratados;
entre eles, destaca-se Leon Battista Alberti (1404–1472), que, em
seu Da Pintura (1435), elabora os estudos de perspectiva inicial-
mente desenvolvidos por Brunelleschi e já visualmente manifestos
nas obras de Masaccio e Donatello. Em seu tratado, escrito origi-
nalmente em latim mas publicado em italiano em 1436, Alberti
procura demonstrar a fundação ótica da perspectiva através
da célebre imagem da pirâmide visual, cujo vértice seria o olho.
Posteriormente, Piero della Francesca (c. 1416–1492) partiria das
pesquisas de Alberti para escrever seu De prospectiva pingendi
(c. 1472), no qual procura estabelecer regras geométricas relativas
à representação do tamanho de um determinado objeto a partir da
sua distância do olho e da interseção piramidal. Sua extraordinária
e misteriosa Flagelação de Cristo (Fig. 5, p. 457) expressa visualmente
os estudos de Piero sobre a perspectiva, a qual, de resto, foi rapi-
damente adotada pelos grandes nomes da pintura italiana a partir
dos anos 1430; recordemos, para ficar apenas em alguns poucos
exemplos, as extraordinárias séries de Paolo Ucello ou as imagens
da lenda de Santa Úrsula, de Carpaccio (Fig. 6, p. 457). O estudo da
ótica e, consequentemente, da perspectiva, estaria posteriormente
no centro dos interesses de Leonardo da Vinci (1452–1519): em
suas anotações, o genial artista e pensador toscano escreve suas
reflexões acerca das mudanças óticas ocasionadas por alterações na
posição relativa dos objetos, do plano e do observador, assim como
sobre o funcionamento do olho. Leonardo elabora, ainda, vários
métodos para o desenho perspéctico automático, experimentando
diversos sistemas. Ao perceber as possibilidades de ilusão ótica,
assim como ao estudar o efeito de fenômenos atmosféricos sobre a
percepção visual dos objetos, Leonardo acabaria por afastar-se da
claridade absoluta do sistema albertiano.

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Não por acaso, Leonardo é o primeiro artista incluído na assim


chamada “terceira idade” de Vasari, isso é, a da perfeição. O sfumato,
o qual parece liberar definitivamente a pintura da rigidez e artificia-
lidade da era anterior, possibilitara uma aproximação sem preceden-
tes à natureza, condição indispensável, para Leonardo, da grande
pintura. Segundo Vasari, esse período corresponderia, grosso modo,
àquele compreendido entre o final do século XV e o momento em
que escreve, e encontraria entre seus principais expoentes o pró-
prio Leonardo, Rafael e — gigante entre gigantes — Michelangelo
Buonarroti (1475–1564). A relação entre esses três extraordinários
artistas gerou, em si mesma, uma tradição segundo a qual Rafael
mantém seu domínio no campo da graciosidade, da beleza e do apelo
aos sentidos; Leonardo exerce um fascínio intelectual, enquanto a
Michelangelo se associa tanto a extrema potência quanto a vitalidade
e a dor: “A beleza era para Rafael a própria promessa de felicidade;
para Leonardo, o fascínio do mistério; para Michelangelo, converte-
se em princípio de tormento e de sofrimento moral” escreveria o
historiador da arte francês André Chastel em seu Arte e humanismo
em Florença nos tempos de Lorenzo Magnífico (1959). Mesmo antes
de Vasari, Paolo Giovio havia identificado nesses três artistas os
maiores nomes da arte contemporânea, estabelecendo, no entanto,
marcadas diferenças entre eles: em Leonardo enfatiza o amor pela
ciência; em Michelangelo, o caráter selvagem e a tendência ao iso-
lamento; e em Rafael, a graça e sociabilidade. Os três artistas riva-
lizaram ferozmente em vida. Já no início do século XVI, o gonfalo-
niere Piero Soderini propõe uma competição entre Michelangelo e
Leonardo, que a seu pedido iniciam o projeto, respectivamente, da
pintura da Batalha de Cascina (sobre Pisa) e da Batalha de Anghiari
(Milão) na sala do Conselho do palácio de Florença, então republi-
cana; nenhum dos dois projetos, no entanto, chegou a realizar-se,
conhecendo-se o de Michelangelo através de um desenho e o de
Leonardo, de cópias. Anos mais tarde, Michelangelo indicaria seu
protègè, o artista veneziano Sebastiano del Piombo, para representá-
lo em uma competição aberta com Rafael.

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Introdução

Leonardo foi excelente em muitos campos. Atualmente, quando


cientistas e intelectuais especializam-se em áreas e sub-áreas de
conhecimento cada vez mais restritas e excludentes, parece extra-
ordinário que um mesmo homem possa ter se dedicado simulta-
neamente a uma variedade tão ampla de assuntos como a perspec-
tiva, anatomia, mecânica, ótica, botânica, zoologia, gastronomia,
engenharia, astronomia, entre tantos outros. No entanto, durante
o Renascimento não havia, como nos dias atuais, uma distinção
clara entre as artes e as ciências, e não era de todo incomum que
um artista, por exemplo, também se dedicasse à matemática ou à
geometria, como no caso de Piero della Francesca citado acima.
Leonardo passa à história como o gênio que projetava aplainar
montanhas, canalizar rios, driblar a força da gravidade, inventar
máquinas assombrosas; talvez nenhum outro artista ou pensador
identifique-se mais intimamente com a energia, o universalismo e
a potência criativa, tradicionalmente associados ao Renascimento,
do que ele. Possuía um vigor de raciocínio avassalador: uma dimos-
trazione si terribile, como nos conta Vasari, que ninguém que se
pusesse a discutir com ele era capaz de resistir. Leonardo nasce
em Vinci, na Toscana, filho ilegítimo de um tabelião florentino.
Torna-se aprendiz no ateliê do pintor e escultor florentino Andrea
Verrocchio (c. 1435–88) e, provavelmente em princípios de 1482,
estabelece-se na corte do duque Lodovico Sforza, em Milão, onde
permanece intermitentemente até 1499, quando Milão é invadida
pela França. Leonardo retorna então a Florença e realiza uma série
de viagens; em 1516, aceita o convite realizado por Francisco  I,
rei da França, para se estabelecer em Cloux, perto de Amboise,
onde morreria três anos mais tarde. Durante seu período milanês
Leonardo cria artefatos militares utilizáveis tanto em terra como na
água; estuda meticulosamente a anatomia humana e também a de
diversos animais; procura educar-se nos princípios da matemática
aproveitando a proximidade do matemático Luca Pacioli, que tam-
bém se une à corte de Sforza em 1496. Em 1497, a pedido do duque,
realiza a Santa Ceia na parede do refeitório de Santa Maria delle

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Grazie; de volta a Florença, pinta aquele que é, talvez, o quadro


mais famoso do século XX: a Mona Lisa (Fig. 7, p. 458), retrato de Lisa
Gherardini, esposa de Francesco del Giocondo (de onde o quadro
ser também conhecido como La Gioconda). Nessa magnífica obra,
Leonardo parece exprimir visualmente suas pesquisas no campo
da ótica e da anatomia: a sutileza do modelado, a delicadeza do
chiaroscuro, a organicidade da relação entre os diferentes planos
da paisagem, o estudo cuidadoso dos efeitos atmosféricos sobre a
percepção visual das distâncias, todos são elementos que remetem
de imediato às reflexões que Leonardo exprime em seus escritos.
Como escreveu Kenneth Clark, um dos maiores especialistas em
Leonardo do século XX, a Mona Lisa está entre as raras obras que
a cada nova geração cabe reinterpretar, e efetivamente a arte mais
recente, como é bem sabido, manteve um diálogo vibrante com a
obra-prima de Leonardo, propondo releituras e recriações como
“L. H. O. O. Q” de Duchamp e as serigrafias de Andy Warhol.
Da Vinci legou-nos uma abundante produção literária relativa
aos seus estudos, invenções e concepções artísticas. No assim cha-
mado Trattato della pittura — na realidade uma coletânea de seus
manuscritos realizada postumamente — Leonardo manifesta cen-
tralmente sua preocupação em estabelecer um novo estatuto para
as artes. Para ele, a realização artística implica uma atividade mental,
não mecânica, razão pela qual o artista deve ser considerado um
pensador, não um artesão; analogamente, a pintura é considerada
por ele uma ciência porque se funda na matemática, na ótica e no
minucioso estudo da natureza. O artista excelente só pode (re)cons-
truir o mundo visível a partir de um conhecimento profundo das
causas e efeitos no mundo natural. Por outro lado, Leonardo insiste
na natureza quase divina da atividade artística, uma vez que, ao criar
um mundo a partir da sua imaginação, o artista emula Deus. O pin-
tor deve ser universal, escreve Leonardo; não deve excluir nenhum
aspecto da natureza. Entre seus desenhos, encontramos imagens de
velhos, enfermos, pessoas disformes, assim como exames cuidado-
sos das expressões humanas, objeto central dos seus estudos. Outro

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Introdução

ponto fulcral do Trattato é a questão do paragone, isso é, a compara-


ção entre as artes, questão essa que constituía um ponto central dos
debates teóricos quinhentistas. Para Leonardo, a pintura é superior
a todas as outras expressões artísticas, incluindo a música, a poesia,
e, naturalmente, a escultura (em uma célebre passagem do Trattato,
Leonardo afirma que a escultura é uma arte meccanissima, uma vez
que sua execução exige do escultor uma enorme força física; o pin-
tor, pelo contrário, senta-se calmamente diante de seu trabalho e
não precisa realizar senão movimentos delicados e suaves). Anos
depois, Michelangelo, em uma carta enviada ao historiador, literato
e acadêmico florentino Benedetto Varchi (1503–1565), parece con-
testar Leonardo ao afirmar:

“Se quem escreveu que a pintura é mais nobre do que a escul-


tura houvesse compreendido da mesma maneira as outras
coisas que escreve, minha criada teria escritos superiores
aos seus”.

Em diversas passagens de sua correspondência Michelangelo


repete que se considerava fundamentalmente um escultor em már-
more, de maneira que a pintura, a arquitetura e a escultura em
bronze parecem-lhe um desvio de seu verdadeiro ofício. Também
naquele que é talvez seu mais comentado soneto, Michelangelo
tematiza a poética transcendental da escultura em mármore:

“Não tem o ótimo artista algum conceito


que um só mármore em si não circunscreva
com o seu excesso, e só a ele chega
a mão que obedece ao intelecto”.

Na mesma supracitada carta para Varchi, porém, o mestre flo-


rentino não deixa de se referir com certo sarcasmo às discussões
teóricas, “filosóficas”, sobre o paragone, quando ao artista o que ver-
dadeiramente importa é a produção mesma das obras:

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“ (…) nenhum pintor deveria desprezar a escultura em favor


da pintura, e, similarmente, nenhum escultor deveria des-
prezar esta em favor daquela. Por escultura entendo o que
se faz pelo esforço de tirar, e o que se faz pela via do agregar
assemelha-se à pintura. Basta dizer que, sendo ambas — ou
seja, pintura e escultura — provenientes de uma mesma
inteligência, dever-se-ia permitir que fizessem as pazes e
abandonar tantas disputas, visto que se perde mais tempo
com estas do que com a execução das figuras”.

Leonardo renuncia à tradição do desenho, como se viu, a favor


da preponderância da visão, enquanto Michelangelo, em sua
juventude e maturidade, não concebe outra possibilidade senão a
supremacia do desenho e a filiação irrestrita à arte greco-romana.
Leonardo prefere a pintura à escultura, já que a primeira permitiria,
segundo ele, uma mais ampla utilização de recursos miméticos — a
cor, a perspectiva aérea, os efeitos atmosféricos, etc., — enquanto
Michelangelo, por sua vez, considerava-se fundamentalmente
um escultor em mármore e privilegiava de forma quase exclu-
dente a representação do corpo humano. Para Leonardo, as fon-
tes da beleza estão na natureza e devem ser apreendidas empiri-
camente com o auxílio da matemática, da geometria e da ótica;
para Michelangelo, a beleza habita o mundo transcendental, e é
o seu reflexo no mundo sensível que oferece ao artista uma possí-
vel ponte em seu encontro. Leonardo, interessado igualmente pela
representação da paisagem e dos animais, como dito acima, rea-
firma a importância da representação da natureza em toda a sua
variedade — em detrimento dos cânones fixos de representação
das proporções humanas albertianos. Por outro lado, desenvolve
a teoria da expressão, a partir da qual pesquisa de que maneira o
corpo e os gestos podem representar os sentimentos. O bom pin-
tor, afirma, deve estar sempre atento às pessoas quando conversam,
gesticulam, riem, brigam (sem que elas o percebam), procurando
reproduzir seus afetos e paixões. Dessa forma, Leonardo opõe-se

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Introdução

implicitamente também ao idealismo de Rafael, o segundo grande


nome da terceira idade vasariana.
Nascido na refinada Urbino de Federigo da Montefeltro, Rafael
travou conhecimento ainda muito jovem com as obras de Alberti
e Piero della Francesca. Posteriormente, na Umbria, educou-se no
ateliê de Perugino, e, em seguida, em Florença, antes de estabele-
cer-se definitivamente em Roma, em 1508. A partir desse momento
e até a sua morte prematura em 1521, aos 37 anos, Rafael não aban-
donaria a órbita papal. O mestre aprende tanto de Leonardo quanto
de Michelangelo, inspirando-se aberta e diretamente em ambos. De
uma habilidade social rara, reina inconteste no Vaticano durante o
pontificado de Leão X, tendo sido frequentemente acusado de usar
toda a sua influência seja para afastar, seja para diminuir os dois
outros artistas. Vasari (1568), assim como Condivi (também ele
autor de uma biografia sobre Michelangelo), contam que Bramante,
amigo e aliado de Rafael, teria convencido o papa Júlio II a enco-
mendar a pintura do teto da Capela Sistina a Michelangelo com o
objetivo de desprestigiá-lo, obrigando-o a trabalhar em um terreno
— a pintura mural a fresco — no qual Rafael era considerado, até
então, absolutamente superior. Rafael desenvolve em suas pinturas
um profundo sentido de calma e delicadeza, as quais distanciam-no
tanto da arte predominantemente intelectual de Leonardo quanto
das poderosas criações de Michelangelo. Não é um inovador, no
sentido em que Michelangelo e Leonardo foram inovadores; no
entanto, é ele quem atinge a perfeição pictórica segundo os cânones
que a pintura do assim chamado alto Renascimento (c. 1500–1520)
se propusera. Suas figuras movem-se em um mundo ideal, sereno
e ordenado, irradiando, mesmo nos momentos dramáticos, uma
imensa calma. Na assim chamada Madona do prado (c. 1505; Fig. 8,
p. 459), pintada durante seu período florentino, a pirâmide formada
pela virgem, o menino Jesus e São João parece exprimir o anseio,
tão frequentemente identificado com a própria quintessência da
arte renascentista, de exprimir toda a complexidade do belo em
formas simples, essenciais, absolutas. A ideia de representar a com-

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plexidade de forma que pareça simples, ou a dificuldade, de forma


que pareça fácil, associa-se ao termo italiano sprezzatura, o qual é
empregado pelo diplomata e literato Baldassare Castiglione (1478–
1529) em seu livro Il Cortegiano (1528) para definir e enaltecer as
virtudes do perfeito cortesão:

“Tendo eu já refletido muitas vezes sobre onde nasça essa


graça, deixando de lado aqueles que a possuem do céu,
encontro uma regra universalíssima, a qual me parece
mais válida nesta matéria do que em qualquer outra coisa
humana que se diga ou faça: evitar ao máximo toda afeta-
ção, como se fosse uma pedra afiada e perigosa, e — empre-
gando talvez uma nova palavra — usar em todas as coisas
uma certa sprezzatura que esconda a arte e demonstre o que
se faz e diz ser feito sem esforço e quase sem pensar”.

No perfeito cortesão — concebido enquanto paradigma tanto do


ponto de vista ético como estético — essa sprezzatura traduz-se em
um comportamento elegante mas simples, seguro mas não arro-
gante, desenvolto, refinado e extremamente culto. Nas artes literá-
rias e visuais, a sprezzatura manifesta-se nessa mesma simplicidade
e elegância, na facilidade em expressar a dificuldade, na sutileza
e na delicadeza, assim como na qualidade de se fazer ou parecer
fazer tudo naturalmente, isso é, sem esforço. Rafael, grande amigo
de Castiglione, dele pintou um extraordinário retrato (c. 1515) no
qual parece enfatizar suas próprias qualidades cortesãs. A tradição
que opõe essa “complexa simplicidade” de Rafael, assim como a
aparente facilidade com que produz suas obras, à terrível potência e
laboriosidade das obras michelangianas, constituiria um autêntico
topos dos debates quinhentistas no campo da teoria da arte.
Em 1509 — portanto um ano depois de Michelangelo ter come-
çado a pintar o teto da Capela Sistina — Júlio II encomenda a Rafael
a execução dos afrescos das três stanze, no Vaticano. A Stanza della
Segnatura, talvez a mais célebre delas, representa as quatro áreas do

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Introdução

conhecimento segundo a tradição escolástica — teologia, filosofia,


jurisprudência e poesia — em cada uma das suas paredes. Naquela
correspondente à filosofia Rafael pintou a assim chamada Escola
de Atenas (o nome foi dado a posteriori), considerada por muitos
como o zênite dos ideais renascentistas de harmonia formal e espa-
cial (Fig. 9, p. 459). Em um cenário arquitetônico de derivação clara-
mente romana — as ruínas das antigas termas de Caracala foram
sua provável inspiração — Rafael representa antigos filósofos escre-
vendo, pensando, debatendo, discursando, calculando: à esquerda,
Pitágoras, associado à música e à aritmética, demonstra em um
quadro seu sistema de harmonias; à direita, Ptolomeu, de costas,
segura a esfera terrestre diante de Zoroasto, por sua vez com a esfera
celeste; diante deles, Euclides abaixa-se para desenhar um círculo
com seu compasso. Rafael retratou-se a si mesmo nesse grupo de
astrônomos e geômetras: é ele o jovem à extrema direita da com-
posição que, com um barrete negro, encara o observador. Ao alto, à
esquerda, Sócrates aparece em uma discussão acalorada, enquanto
Diógenes deita-se diagonalmente na escada. No centro absoluto do
afresco, Aristóteles, segurando a Ética a Nicômaco, avança o braço
direito em direção à terra, enquanto ao seu lado Platão, com o
Timeu, aponta para o céu. Já Vasari sugerira que Rafael havia retra-
tado personagens contemporâneos a ele como os filósofos da Escola;
Euclides, assim, foi concebido, segundo o próprio Vasari, como
um retrato de Bramante, enquanto confrontos com retratos de
Leonardo parecem sugerir que as feições do grande artista tenham
sido conferidas a Platão. Talvez a mais polêmica identificação de
um filósofo do afresco com um personagem contemporâneo diga
respeito ao homem forte e vigoroso que, sentado na escada, escreve
apoiado em um bloco marmóreo. Ao menos desde o século XIX,
esse personagem tem sido identificado com o filósofo pré-socrático
Heráclito (notadamente pelo estudioso alemão Hermann Hettner),
cuja imagem como solitário e melancólico teria sido divulgada no
Renascimento, sobretudo, por Marsilio Ficino. Paralelamente, tem
sido igualmente considerada a possibilidade de que as feições do

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Maria Berbara

pensieroso — como é frequentemente chamado — sejam nada


menos que as do próprio Michelangelo, grande rival de Rafael.
Michelangelo pintava o teto da Capela Sistina — situada a poucos
metros da stanza della Segnatura — exatamente nessa época, de
modo que é certo que Rafael tenha acompanhado, com maior ou
menor assiduidade, a realização das pinturas, como também que
se encontrasse com Michelangelo quotidianamente nos corredo-
res do palácio vaticano. O pensieroso é representado escrevendo e
apoiado em um bloco marmóreo, em uma provável alusão tanto à
atividade escultórica quanto poética de Michelangelo. Sua posição,
por outro lado, alude sem dúvida alguma à imagem da melancolia,
humor ao qual o grande artista foi associado diversas vezes (inclu-
sive por ele próprio, em seus poemas). Seja ou não um retrato de
Michelangelo, o “Heráclito” evoca, sem dúvida, os poderosos pro-
fetas da Sistina, sobretudo Jeremias. Caso a identificação do pensie-
roso com Michelangelo/Heráclito seja correta, Rafael prestou uma
profunda homenagem a seu rival ao incluí-lo, com destaque, em sua
seleção de grandes homens.
O pintor, escultor, arquiteto e poeta Michelangelo Buonarroti é
o protagonista absoluto das Vidas de Vasari. Nascido “sob fadada
e benigna estrela” em Caprese (Toscana) em 1475, Michelangelo
ingressa como aprendiz no ateliê de David e Domenico Ghirlandaio
em 1488. Em 1489, é convidado por Lorenzo Magnífico a partici-
par do que se convencionou chamar a “academia de artes” dos jar-
dins do palácio S. Marco, onde o governante patrocinava e punha
à disposição de jovens artistas sua coleção de antiguidades. Nos
anos posteriores à morte de Lorenzo, em 1492, Michelangelo tra-
balha sucessivamente em Bolonha e Florença, onde realiza as gran-
des obras pictóricas e escultórias que haveriam de conferir-lhe
uma enorme fama não somente na Itália, mas em toda a Europa:
a Madona de Bruges, a Pietà vaticana, o Tondo Doni, o colossal
David. Em 1505, o papa Júlio II encarrega-lhe a execução de sua
tumba — um projeto que se estenderia pelos próximos 42 anos — e,
em 1508, das pinturas do teto da Capela Sistina, as quais o artista

32

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Introdução

finaliza em 1512 (Fig. 10, p. 460). Condivi, Borghini e o próprio Vasari


relatam a estupefação daqueles que puderam ver os afrescos quando
os andaimes foram desmontados e os panos que os cobriam, reti-
rados: “De todas as partes, viu-se acorrer o mundo a ver os afrescos
descobertos, cuja simples visão os deixava estupefatos e emudecidos”1,
conta-nos Vasari. Nas décadas seguintes Michelangelo realizaria as
esculturas da Sacristia Nova de San Lorenzo, em Florença, executa-
ria o Moisés e os assim chamados Cativos (Fig. 11, p. 461), e, nos anos
1530, estabelecido em Roma, pintaria o Juízo Final, no altar-mor da
Capela Sistina, além dos afrescos da Capela Paulina, também no
Vaticano. Sobretudo em sua velhice, o mestre dedicou-se à arquite-
tura, tendo sido nomeado pelo Papa Paulo III como o responsável
pela remodelação da basílica de São Pedro. A partir de meados dos
anos 1540, cresce extraordinariamente a fama de Michelangelo, e
universaliza-se o apodo “divino”, empregado já nos anos 1530 por
Ariosto em seu Orlando Furioso: “Michel, più che mortale, Angel
divino.” Quando Michelangelo morre, quase aos oitenta e nove anos,
seu corpo é secretamente trasladado à Florença, onde se organizam
espetaculares exéquias em sua honra. Inteiramente financiadas pelo
duque Cosimo I e projetadas conjuntamente por Vasari, Bronzino,
Cellini e Ammanati, a cerimônia realizou-se em San Lorenzo, onde
se encontrava a maior obra florentina de Buonarroti. Jamais um
artista fora honrado com tanto fausto e pompa. A igreja, vestida
de negro e albergando em sua nave um enorme catafalco atrás do
qual erguia-se uma altíssima pirâmide de velas, encontrava-se abar-
rotada ao iniciar-se a cerimônia com um solene Réquiem; após a
finalização da missa, Varchi pronunciou uma longuíssima oração
fúnebre dividida, segundo o uso, em três partes, nas quais respecti-
vamente louvava a perfeição de Michelangelo nas três artes, admi-
rava sua vida e obra como poeta, filósofo e teólogo, e finalmente
exortava os ouvintes a celebrar sua vida antes que lastimar sua
morte. Em uma carta escrita ao duque Cosimo, Vasari afirma que

1  Tradução de Luiz Marques.

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Maria Berbara

nunca anteriormente se haviam reunido tantos destacados artistas,


juristas, nobres, políticos e letrados, como naquela ocasião. Quando
Michelangelo morre, a posição social do artista não poderia estar
mais distante da do “artesão” anônimo da época das guildas medie-
vais. Michelangelo, como Rafael — também ele pomposamente
enterrado no Pantheon romano — assume ante seus contemporâ-
neos uma grandeza comparável à dos mais célebres filósofos, huma-
nistas, cientistas. Relativamente à antiguidade, Michelangelo não a
havia apenas emulado, mas, de acordo com a percepção de muitos
de seus contemporâneos, superado.

O Renascimento italiano possui, evidentemente, uma vas-


tíssima historiografia, em cujo curso talvez nenhum livro tenha
sido tão influente quanto A civilização do Renascimento na Itália,
publicado pelo suiço Jakob Burckhardt (1818–1897) em 1860
e reeditado muitas vezes. Burckhardt desenha a premissa fun-
damental, de certo modo presente até os dias atuais, de que o
Renascimento constitui um período único na história da cultura,
e que na Itália está seu centro e origem. Ao invés de apresentar
o Renascimento de forma cronológica ou narrativa, Burckhardt
define tópicos nos quais questões como o indivíduo, a mulher, as
festividades, etc. são tratados sincronicamente. Em seu ensaio,
o historiador suíço procura persuadir o leitor de que os séculos
XV e XVI testemunharam, na Itália, o surgimento de uma nova
consciência do homem e da vida. Contrariamente à Idade Média,
durante a qual, sempre segundo Burckhardt, a identidade era
definida através das associações de cada pessoa com organizações
laborais, políticas ou religiosas, no Renascimento italiano teria
surgido o conceito moderno de indivíduo. Segundo o estudioso,
o vigor artístico renascentista associa-se a esse novo sentido de
individualidade, o qual impulsiona tanto a criatividade quanto a
sede de glória pessoal do artista.

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Introdução

Na primeira metade do século XX o pesquisador lituano emi-


grado aos Estados Unidos Bernard Berenson (1865–1959) tor-
nou-se um dos maiores, senão o maior connoisseur no campo do
Renascimento italiano. Dono de uma sensibilidade visual extra-
ordinária, Berenson sistematizou em quatro ensaios e extensas
listas suas iluminadas atribuições no campo da pintura italiana,
os quais posteriormente formariam seus livros: Italian Painters of
the Renaissance (1952) e Italian Pictures of the Renaissance (1957–
1968). Paralelamente, Berenson foi fundamental na formação das
grandes coleções particulares de pintura italiana nos Estados
Unidos, como por exemplo a de Samuel H. Kress em Nova York
ou Henry Walters, em Baltimore. Muito distante do formalismo
de Berenson, mas igualmente influente em todo o Novecentos,
o historiador da arte e da cultura alemão Aby Warburg (1866–
1929) concentrou-se no estudo do que chamou Nachleben, isso
é, a “sobrevivência” da antiguidade durante o Renascimento. Se
Berenson desconfiava das pesquisas “iconográficas” por con-
siderar que elas se afastavam ou mesmo antagonizavam a pura
apreciação da arte, Warburg vinculava o exame da imagem a pes-
quisas no âmbito da filosofia, sociologia ou psicologia. Quando,
em 1921, Warburg foi internado em uma clínica psiquiátrica
suíça — onde permaneceria por um período de três anos — seus
assistentes Fritz Saxl e Gertrurd Bing transformaram sua biblio-
teca pessoal em Hamburgo em um instituto de pesquisa público
e aberto, pelo qual haveriam de passar investigadores tão des-
tacados como Edgar Wind, Ernst Cassirer, Rudolf Wittkower e
Erwin Panofsky (1892–1968). Este último, também ele emigrado
aos Estados Unidos por causa da ascensão do nazismo em sua
Alemanha natal, foi um dos principais herdeiros da interdiscipli-
naridade warburguiana e do impulso de pesquisar o significado
das artes visuais (esse seria o título de um seu importante livro
publicado em 1955): para Panofsky, as imagens podem ser “des-
cifradas” por intermédio da investigação de elementos filosóficos,
religiosos e históricos.

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Maria Berbara

Grandes estudiosos como Hans Baron (1900–1988), Remigio


Sabbadini (1850–1934), Eugenio Garin (1909–2004) e Paul Oskar
Kristeller (1905–1999), embora não historiadores da arte especifi-
camente, investigam importantes questões políticas, literárias e filo-
sóficas no âmbito do Renascimento italiano, centralizando a impor-
tância do humanismo. Julius von Schlosser (1866–1938), por sua
vez, concentrou-se no estudo da literatura artística, isso é, as fon-
tes literárias relativas ao Renascimento e suas realizações artísticas.
Entre os seguidores contemporâneos da proposta schlosseriana de
investigação sistemática das fontes textuais renascentistas destaca-
se a italiana Paola Barocchi, organizadora de edições extensamente
anotadas da Vida de Michelangelo, de Vasari, assim como de diver-
sos tratados e epistolários quinhentistas.
Um número significativo de pesquisadores contemporâneos rejeita
o emprego atual do conceito “renascimento” em pesquisas históri-
cas e/ou histórico-artísticas preferindo, em contextos onde preva-
lece o uso da língua inglesa, o termo “early modern”, o qual não pos-
sui, em português ou outra língua latina, uma tradução estabelecida.
De acordo com essa tendência, se “renascimento” é um termo e um
conceito que, como se viu, faz uma referência deliberada ao passado,
“early modern” situa o período que tradicionalmente convencionou-
se chamar por “renascimento” no início da modernidade, estabe-
lecendo portanto um vínculo forte com o mundo contemporâneo.
Além disso, o termo “early modern”, de acordo com seus defenso-
res, desconstruiria automaticamente o italocentrismo vinculado à
noção humanista de “rinascita”, isto é, de um renascer dos modelos
retóricos e visuais antigos operado pelos herdeiros peninsulares da
tradição clássica. Implicitamente, além disso, a adoção do termo
conteria uma crítica à ideia de que a arte europeia do século XV ao
XVIII possa ser compreendida em termos da sua adesão aos mode-
los formais e iconográficos italianos. Por outro lado, a ideia de que
o assim chamado Renascimento tenha constituído um momento de
ruptura absoluta com o passado também é questionada no século
XX, quando pesquisadores detectam diversos “renascimentos” ao

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Introdução

longo dos séculos precedentes — como o renascimento carolíngio,


nos séculos VIII e IX, ou o revival da arquitetura e escultura antigas
em Provença, no século XI. Em solo italiano, alguns pesquisado-
res chegam a afirmar que a tradição clássica jamais se rompeu. No
século XIII, por exemplo, Nicola Pisano esculpe as figuras no púl-
pito do batistério da catedral de Pisa all’antica, a partir da observa-
ção atenta dos sarcófagos romanos.
A criação e a consciência do Renascimento, como foi dito acima,
não são uma fabricação a posteriori, mas foram concebidas e inten-
samente percebidas pelos próprios homens que viveram essa época.
A ênfase na recuperação dos antigos, assim como na ideia de uma
divisão abrupta que separa com um milênio de trevas a lumino-
sidade greco-romana do seu renascimento, no presente, descansa
no conceito fundamental de “era”, ou “idade”, o qual por sua vez
remonta plenamente à tradição clássica; Virgílio, em sua famosís-
sima quarta Écloga, profetiza que o reino de Saturno retornaria, e
com ele a idade de ouro da civilização. O historiador contemporâ-
neo, contudo, não emprega o conceito de “idades” ou “eras”, pois
admiti-lo equivaleria a pressupor a existência de uma uniformi-
dade que lhe parece redutora e simplista. Nesse sentido, por exem-
plo, o grande historiador da arte Ernst Gombrich afirma preferir
aplicar ao Renascimento o termo “movimento” antes que “período”.
Paralelamente, pensadores renascentistas sublinharam não ape-
nas o conceito de renascença, mas também de progresso, isso é, os
modernos estudam e retomam os antigos, mas também progridem
a partir desse estudo. Michelangelo, para Vasari, supera os antigos.
As grandes navegações, por outro lado, demonstram que os gran-
des mestres da ciência greco-romana nem sempre estavam certos;
o célebre médico e naturalista português Garcia d’Orta, por exem-
plo, orgulhosamente afirma em seus Colóquios que “se sabe mais
em hum dia aguora pellos Purtugeses, do que se sabia em cem años
pollos Romanos”, enquanto João de Barros aponta continuamente a
vergonha que sentiriam Estrabão, Pompônio ou Plínio se conheces-
sem as verdadeiras proporções do mundo e percebessem que todo

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Maria Berbara

o globo, salvo os polos, é habitável. Os conceitos de renascimento,


idade (ou era) e progresso, assim como diversos outros termos rela-
tivos tanto a periodizações quanto à ideia de uma evolução histó-
rico-artística, acompanhariam por séculos os estudos no âmbito do
Renascimento, mas entrariam em uma crise que se inicia, ao menos,
no final do Oitocentos.
Paralelamente, criticam-se crescentemente também certos topoi
históricos e histórico-artísticos tradicionalmente vinculados ao
Renascimento, como por exemplo a ideia de que esse tenha sido
um período histórico predominantemente solar, positivo e otimista.
Estudos novecentistas demonstraram o profundo arraigo do con-
ceito e representação da melancolia, por vezes de forma alegórica,
como no caso da célebre estampa de Dürer, por outras vinculada
ao tema da transitoriedade da vida, como nas diversas versões das
Três Idades do Homem — Giorgione, Tiziano (Fig. 12, p. 461), Baldung
Grien, etc. Tende-se a pensar que a representação da morte como
um esqueleto segurando uma ampulheta seja medieval; no entanto,
essa imagem surge em princípios do século XVI, ao mesmo tempo
em que Michelangelo se prepara para pintar o teto da Capela Sistina
e Rafael, as stanze. A percepção aguda da passagem do tempo, her-
dada da tradição clássica, somada a uma consciência histórica parti-
cularmente sensível, povoa a literatura e as artes visuais de imagens
tristes, mórbidas ou melancólicas, nas quais a morte, a velhice, o
tempo, ensombrecem a alegria de uma juventude breve demais.
Sobretudo após o violentíssimo saque de Roma pelas tropas
do imperador Carlos V, em 1527, a imagem das ruínas antigas
não tanto evoca os paradigmas do passado clássico ou a grandeza
daqueles que os criaram, mas exprime um sentimento de desolação
e melancolia ante a percepção da vitória definitiva do tempo sobre o
homem e todas as suas realizações. Non similis sum mihi, isso é, não
me pareço a mim mesma, é a inscrição que aparece em uma gravura
do supracitado humanista português Francisco de Holanda repre-
sentando alegoricamente Roma em um cenário em ruínas (Fig. 13,
p. 461). A magnificência do passado não parece inspirar, nesses casos,

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Introdução

a sua emulação, mas, reafirmando a fragilidade da vida, condena a


priori qualquer projeto humano; Roma, que havia resistido a san-
grentas guerras fratricidas e ferozes invasões estrangeiras, capitulara
ante a ação silenciosa e imperturbável do tempo.
No presente volume o Renascimento não é tratado, necessaria-
mente, como um período histórico; tampouco se busca determinar
aqui uma definição específica, excludente, do termo. Todos os traba-
lhos apresentados neste livro, realizados recentemente por pesqui-
sadores atualmente ativos em universidades brasileiras, conectam-
se, de alguma maneira, ao termo Renascimento, seja em seu sentido
histórico ou historiográfico; nesta acepção, e com essas ressalvas, o
Renascimento, mesmo que justamente entre os detratores do termo,
permanece um tópico absolutamente essencial no âmbito dos estu-
dos não apenas históricos e histórico-artísticos, mas i.a. também
literários, filosóficos, teológicos e científicos.

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Mapas

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Mapas

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Mapas

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Cronologia

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Cronologia

Artes Visuais, Acontecimentos


Filosofia e Literatura Históricos e Culturais
• •

c. 1240
Nasce Cimabue (m. c. 1302)
1241
Papado de Celestino IV

1243‑1254
Papado de Inocêncio IV

1254‑1261
Cimabue, Maestà Papado de Alexandre IV

c. 1255
Nasce Duccio di Buoninsegna
(m. 1319) 1261‑1264
Papado de Urbano IV

1265‑1268
1267 Papado de Clemente IV
Nasce Giotto di Bondone (m. 1337)

1271‑1276
Papado de Beato Gregório X

1276
Giotto, O cortejo nupcial da Virgem Papado de Beato Inocêncio V,
(Capela Scrovegni) Adriano V e João XXI

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Cronologia

Artes Visuais, Acontecimentos


Filosofia e Literatura Históricos e Culturais
• •

1277‑1280
c. 1280/85 Papado de Nicolau III
Nasce Simone Martini (m. 1344)

1281‑1285
Papado de Martinho IV

1285‑1287
Papado de Honório IV
Simone Martini e Lippo Memmi,
Anunciação com os SS. Ansano e
Margarete e quatro Profetas
1288‑1292
Papado de Nicolau IV

1290‑1349
Andrea Pisano (ativo em)
1294
Papado de São Celestino V
1299‑1301 Bonifácio VIII (até 1303)
Construção do Palazzo
Vecchio, de Florença
1303‑1304
1304 Papado de Beato Bento XI
Nasce Francesco Petrarca (m. 1374)

c. 1305-1306
Giotto, Afrescos na Capela
Scrovegni (ou Arena), Pádua

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Cronologia

Artes Visuais, Acontecimentos


Filosofia e Literatura Históricos e Culturais
• •

1353
Giovanni Boccaccio, Decameron

1362‑1370
Papado de beato Urbano V

1370‑1378
Papado de Gregório XI

1377
Nasce Filippo Brunelleschi (m. 1446)

1378
Início do Grande Cisma
Papado de Urbano VI (até 1389)

1386
Nasce Donatello (m. 1466)

1389‑1404
Papado de Bonifácio IX

c. 1395
Nasce Jan van Eyck (m. 1441)

c. 1400
Nasce Fra Angelico (m. 1455)

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Cronologia

Artes Visuais, Acontecimentos


Filosofia e Literatura Históricos e Culturais
• •

1401
Nasce Masaccio (m. 1428)

1404‑1406
Papado de Inocêncio VII

1406‑1415
Papado de Gregório XII

1415
Início da expansão ultramarina de
Portugal (Conquista de Ceuta)

1417-1431
Papado de Martinho V

Masaccio, Trindade
1419
Redescobrimento da Ilha da Madeira
c. 1420-1430
Brunelleschi, cúpula da
catedral de Florença

1425
Masaccio, Trindade (Florença,
Santa Maria Novella)
Jan e Hubert van Eyck,
Políptico de Gantes (Gantes,
Saint Bavon – até c. 1432) Catedral de Florença

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Cronologia

Artes Visuais, Acontecimentos


Filosofia e Literatura Históricos e Culturais
• •

c. 1426
Nasce Giovanni Bellini (m. 1516)

c. 1430-40
Donatello, Davi (Florença,
Museo del Bargello)
Donatello, São Jorge

1431 1431
Nasce Andrea Mantegna (m. 1506) Joana d’Arc é executada em Rouen.
Papado de Eugênio IV (até 1447)

1435 1434
Leon Battista Alberti, Da Pintura Cosimo de Medici torna-se
governador de Florença

1445
Nasce Sandro Botticelli (m. 1510)
1444
Cosimo de Medici funda a Biblioteca
Medicea Laurenziana, em Florença

Botticelli, autorretrato 1447-1455


(detalhe da Adoração
dos Magos) Papado de Nicolau V
1449
Nasce Domenico
Ghirlandaio (m. 1494) 1450
Francesco Sforza torna-se
Duque de Milão
É fundada a Biblioteca do Vaticano

50

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Cronologia

Artes Visuais, Acontecimentos


Filosofia e Literatura Históricos e Culturais
• •

1452
Nasce Leonardo da Vinci (m. 1519)
1453
Fim do Império Bizantino
com a conquista otomana
de Constantinopla

Fim da Guerra dos Cem Anos.


Gutenberg começa a imprimir
a Bíblia

Leonardo da
Vinci, Homem
Vitruviano
1455-1458
Papado de Calisto III
c. 1456-1457
Botticelli, Primavera
1458-1464
Papado de Pio II

1464-1471
Papado de Paulo II

1465
Nasce Erasmo de Roterdã
(m. 1536)
1469
Leonardo da Vinci (1452-1519)
entra no ateliê de Andrea del
Verrochio (1435-1488), em Florença

Nasce Nicolau Maquiavel (m. 1527)

51

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Cronologia

Artes Visuais, Acontecimentos


Filosofia e Literatura Históricos e Culturais
• •

1469
Marsilio Ficino traduz os
diálogos platônicos.
Giovanni União de Castela e Aragão
Bellini, (casamento de Fernando II e Isabel).
Pietà.

1471 1471-1484
Nasce Albrecht Dürer (m. 1528) Papado de Sisto IV

1473
Papa Sisto IV dá início à construção
da Capela Sistina, finalizada em 1481.

1474
Camera degli sposi (Mantegna)

1475
Nasce Michelangelo
Buonarroti (m. 1564) Mantegna, teto da Camera degli sposi.

1478
Conjuração dos Pazzi.
O papa Sisto IV, com o apoio
de Ferdinando de Aragão,
Jacopino del declara guerra a Florença.
Conte, retrato de
Michelangelo. Inquisição espanhola (até 1843)

1483 1483
Nasce Rafael de Urbino (m. 1520) Nasce Martinho Lutero (m. 1546)

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Cronologia

Artes Visuais, Acontecimentos


Filosofia e Literatura Históricos e Culturais
• •

1484-1492
1485 Papado de Inocêncio VIII
Leon Battista Alberti,
De Architettura
Ghirlandaio, Adoração dos pastores
(Florença, Santa Trinità,
Capela Sassetti)
1490
Nasce Tiziano Veccelio (m. 1576)

1492
Cristóvão Colombo
descobre a América
Tomada de Granada
pelos reis católicos
Tiziano, Três Idades do Homem Papado de Alexandre VI (até 1503)

1494
1495-1497 Expedição de Nápoles – Início
Leonardo da Vinci, Última Ceia das guerras da Itália
Tratado de Tordesilhas

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Cronologia

Artes Visuais, Acontecimentos


Filosofia e Literatura Históricos e Culturais
• •

1495
D. Manuel I assume o reinado de
Portugal, até 1521

1498
Vasco da Gama descobre o
caminho marítimo para a Índia
Savonarola é executado em Florença

1499
Aliança de Luiz XII com
Veneza e Florença
Vasco Fernandes, Adoração dos Magos Tomada de Milão e Gênova

1500 1500
Bramante edifica o claustro de Pedro Álvares Cabral
Santa Maria della Pace, em Roma desembarca no Brasil
Hieronymus Bosch, O Jardim das
delícias (Madri, Museo del Prado)

Retrato de
Hieronymus
Bosch em
Pictorum Aliquot
Celebrium
Germaniae
Inferioris
Effigies, de
Domenicus
Lampsonius

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Cronologia

Artes Visuais, Acontecimentos


Filosofia e Literatura Históricos e Culturais
• •

1501-1504
Michelangelo, Davi (Florença, 1503
Galleria dell’Accademia) Albuquerque funda o Império
Português das Índias Orientais
Início do domínio
espanhol em Nápoles
Papado de Pio III
Papado de Julio II (até 1513)

1504 1504
Rafael, Os Esponsais da Virgem Os franceses perdem Nápoles
(Pinacoteca di Brera, Milão)

c. 1505
Giorgione, Tempestade
(Veneza, Galleria dell’Accademia)
Leonardo da Vinci, Mona Lisa

Michelangelo, Tondo Doni

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Cronologia

Artes Visuais, Acontecimentos


Filosofia e Literatura Históricos e Culturais
• •

1506
Bramante começa os trabalhos 1507
na Basílica de São Pedro Revolta de Gênova
Descoberta do Laocoonte contra os franceses

Laocoonte, cópia romana de


original do século II a.C.

1508-1512
Michelangelo, teto da Capela 1509
Sistina (Vaticano) Nascimento de Calvino (m.1564).
Henrique VIII torna-
se rei da Inglaterra

Michelangelo, afrescos no
teto da Capela Sistina

56

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Cronologia

Artes Visuais, Acontecimentos


Filosofia e Literatura Históricos e Culturais
• •
1509-1512
Rafael, Stanza della
Segnatura (Vaticano)

1510
Leonardo da Vinci descobre os Michelangelo, desenho preparatório
princípios das turbinas de água para a sibila líbica (Capela Sistina)

1511 1511
Erasmo de Rotterdam, Abertura do Concílio de Pisa,
O Elogio da Loucura que é transferido para Milão

1512
Dispersão do Concílio de Milão
Balboa chega ao Pacífico.
Os franceses abandonam
a região milanesa

1513 1513-1521
Maquiavel, O Príncipe Papado de Leão X

1514 1514
Rafael sucede Bramante Os portugueses chegam à China.
como arquiteto da Igreja de Copérnico anuncia a
São Pedro em Roma teoria heliocêntrica

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Cronologia

Artes Visuais, Acontecimentos


Filosofia e Literatura Históricos e Culturais
• •
1515
Morte de Luiz XII e subida
1516 ao poder de Francisco I
Ariosto, Orlando furioso
Thomas More, Utopia 1517
Erasmo de Roterdã, Novum 95 Teses de Lutero contra
Instrumentum omne as indulgências

1519
Carlos V torna-se imperador.
Hernan Cortés chega a Tenoctchti-
tlán, a atual Cidade do México

1521
Excomunhão de Lutero.
D. João III assume o reinado
Dürer, retrato de Erasmo de Roterdã de Portugal, até 1557

1522-1523
Papado de Adriano VI

1523-1534
Papado de Clemente VII

1525
Organização da igreja luterana
Reforma em Zurique

1527
1528 Saque de Roma
Baldassare Castiglione, O Cortesão

58

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Cronologia

Artes Visuais, Acontecimentos


Filosofia e Literatura Históricos e Culturais
• •

1528-1535
Inácio de Loyola,
Exercícios Espirituais
Reforma em Berna

1529
O Luteranismo torna-se
religião oficial na Suécia

Parmigianino, 1533
Madona do
pescoço longo Nasce Elisabeth I, da
Inglaterra (m. 1603)

1534 1534
Rabelais, Gargantua Henrique VIII, rei da Inglaterra,
rompe definitivamente com a
Igreja Católica. Cisma anglicano

Papado de Paulo III (até 1549)


c. 1535
Parmigianino, Madona do
pescoço longo (Florença, Uffizi)
1536-1537
Reforma na Dinamarca e na Noruega
1537-1541
Michelangelo, Juízo Final
(Capela Sistina)

1538
Tiziano, Vênus de Urbino
(Florença, Museo degli Uffizi)

59

Renascimento_CS4.indb 59 14/02/2011 20:19:35


Cronologia

Artes Visuais, Acontecimentos


Filosofia e Literatura Históricos e Culturais
• •
1540
Execução de Thomas Cromwell

1542
Restabelecimento da
inquisição em Roma

1543 1543
Gravura em De humanis corporis Fundação da Sociedade de Jesus
fabrica, de
Andreas
Vesalius
1545-1549
Primeiro período do
Concílio de Trento

1548
Francisco de Holanda,
Da Pintura Antiga

1550-1555
Papado de Julio III

1551-1552
Francisco de Holanda, Criação
do Sol e da Lua, em De Aetatibus Segundo período do
Mundi Imagines Concílio de Trento

60

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Cronologia

Artes Visuais, Acontecimentos


Filosofia e Literatura Históricos e Culturais
• •

1555
Papado de Marcelo II
Papado de Paulo IV (até 1559)

1557 1557-1578
Lodovico Dolce, Aretino Reinado de Dom Sebastião
em Portugal

1558
Morte de Carlos V.
Elisabeth torna-se rainha
da Inglaterra

1559-1565
Papado de Pio IV

Tiziano, retrato de Pietro Aretino

1562-1563
Terceiro período do
Concílio de Trento
Fundação da Accademia del
Disegno em Florença (1563)

1566-1572
Papado de São Pio V

1568
Giorgio Vasari, Le Vite (2ª edição)

61

Renascimento_CS4.indb 61 14/02/2011 20:19:36


Cronologia

Artes Visuais, Acontecimentos


Filosofia e Literatura Históricos e Culturais
• •

1572 1572-1585
Luís de Camões, Os Lusíadas Papado de Gregório XIII

1573
Veronese, Cristo na casa de Levi 1578
(Veneza, Galleria dell’Academia) Catacumbas descobertas em Roma

1580
1581 Anexação de Portugal à Espanha
Tasso, Gerusalemme liberata

1585-1590
Papado de Sisto V

1590
Papado de Urbano VII
Papado de Gregório XIV

1591
Annibale Carracci, Polifemo Papado de Inocêncio IX
(galeria Farnese)
1592-1605
1597-1600 Papado de Clemente VIII
Annibale Carracci, teto
da galeria Farnese

1600
William Shakespeare, Hamlet

62

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Ensaios

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Giulio Romano, o herdeiro
de Rafael, e as premissas
de uma nova arte
Letícia Martins de Andrade

A
historiografia da arte costuma encerrar o grandioso capítulo
do Renascimento com a sequência das mortes de Leonardo
da Vinci, em 1519, e de Rafael, no ano seguinte. Michelangelo,
a porção final da tríade dos extraordinários talentos, vive até 1564,
mas sua obra considerada mais representativa fora realizada nas duas
primeiras décadas daquele século. Depois, estrelas de magnitudes
aproximadas — como Caravaggio e Bernini — só voltarão a apare-
cer no século XVII, destacando-se como marcos de um novo tempo,
inaugurando a era barroca.
O Barroco, porém, não surge ex-novo. As condições para a afir-
mação desse estilo, cuja definição primeira nasce do contraste com o
classicismo que caracterizou o Renascimento, se anunciam no inter-
valo entre as mortes de Rafael e Leonardo e a última década do século
XVI. A arte produzida nesse interstício moldou-se justamente a partir
da grande influência trazida pela obra de Michelangelo, ainda ativo
até metade do século, e do próprio Rafael, por meio do trabalho de
seus numerosos discípulos. Entre os artistas dessa época formados na
prolífica escola de Rafael em Roma estava o arquiteto e pintor Giulio
Romano, considerado seu melhor discípulo e aquele que, tendo
aprendido o estilo do mestre, o levaria adiante.
Giulio Romano nasceu Giulio Pippi, e para o menino que nasceu
e cresceu entre as ruínas da Roma antiga o adjetivo pátrio Romano é

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Giulio Romano, o herdeiro de Rafael, e as premissas de uma nova arte

mais que um indicativo de origem, é uma referência histórica e esté-


tica que ele carregará por toda a vida. Acredita-se que Giulio tenha
entrado para o ateliê de Rafael ainda menino, por volta dos dez ou
doze anos de idade. À morte do mestre, herdou, juntamente com
Giovanfrancesco Penni, seu ateliê, suas encomendas inacabadas,
parte de sua clientela e também do prestígio. Em suas Vite,1 Vasari
nos conta que Rafael tomara a Giulio como um filho, recebendo-
o afetuosamente em sua própria casa e o criando, numa atitude
comum na esfera da educação no Renascimento. É certo que, nessa
ocasião, o verdadeiro pai de Giulio ainda vivia, tendo, inclusive,
sobrevivido ao mestre. Formou-se assim, a partir da escrita vasa-
riana, uma imagem mista de Rafael como pai-mestre, implicando
numa grande complexidade de relações, em especial quando se
trata de enxergar seus reflexos nas obras do “filho”.
Tal imagem de Giulio Romano como aluno-filho de Rafael
foi, portanto, criada por Vasari e longamente retomada — rea-
firmada — pela historiografia subsequente até meados do século
XX, sedimentando-se. Na primeira edição de suas Vite, em 1550,
Vasari havia criado uma elogiosa imagem de Giulio Romano que
enfatizava, sobretudo, a herança do mestre: Giulio, ali, era o her-
deiro de Rafael que o alcançara, igualando-se a ele. A segunda edi-
ção, contudo, publicada dezoito anos mais tarde, revê a estatura
artística final de Giulio, que é reduzida, e omite os pontos em que a
equiparação mestre-aluno se mostrava ou podia ser subentendida.
Se em 1550 não havia a menção ao amor paternal de Rafael, em
1568 este é enfatizado, o que faz de Giulio mais um filho do que
um herdeiro artístico à sua altura, afastando a possibilidade de
instauração de um paragone.2

1  (trad.: Vidas). Giorgio Vasari (1511–1574) é o autor de um compêndio de


biografias de artistas italianos publicado em duas edições (1550 e 1568) e inti-
tulado Le vite de’ più eccellenti pittori, scultori e architettori… (“As vidas dos mais
excelentes pintores, escultores e arquitetos”).
2  Cfr. o glossário.

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Letícia Martins de Andrade

Partimos, desta forma, da questão crucial em relação a Giulio


Romano, determinada por Vasari nas Vite de 1568 e retomada pela
crítica sucessiva: sua descendência artística e cultural de Rafael de
Urbino. Vasari inicia a biografia de Giulio Romano sem menção
qualquer às boas e favoráveis estrelas que se contavam ao seu nas-
cimento. Nada é dito sobre seus pais, sua família, o ambiente que
recebe o menino. Nem sequer a controvertida data de nascimento
é mencionada. Nenhuma palavra sobre o talento nato, nada que
pudesse ser equiparado ao nível de seu mestre.
Nas Vite, Giulio emerge diretamente do ateliê de Rafael, como se
tivesse vindo ao mundo para ser acolhido e treinado pelo mestre.
Assim é marcada a dependência a Rafael desde o princípio, supri-
mindo o passado e a filiação de Giulio. As muitas e boas qualidades
que lhe são atribuídas a seguir são aquelas do discípulo: Rafael já
vem citado na primeira linha, e mesmo após sua morte, Giulio con-
tinuará a ser citado em documentos e cartas não pelo nome, mas
como “o aluno de Rafael”.3
Embora não tenha sido privilégio de Giulio, sua identidade den-
tro do imenso ateliê de Rafael permanece confusa, definindo-se e
firmando-se somente após a morte do mestre, quando ele parece
buscar o desenvolvimento de um estilo pessoal — numa espécie de
insurgência — no exercício agora desimpedido de seu talento e de
suas inclinações. Nesse tempo, Giulio promove sua emancipação do
mestre ao definir as bases da sua maniera.4 Tanto na pintura quanto
na arquitetura, os anos que Giulio passa em Roma antes da partida
definitiva para Mântua, em 1524, veem seu afastamento do classi-
cismo rafaelesco tornar-se cada vez mais evidente, veem o artista
seguir a si próprio. Nesse ensimesmar-se e na busca da diferença,
Giulio exemplifica algumas das posturas que irão caracterizar o
Maneirismo, elaborado teoricamente apenas no século XX.

3  BELLUZZI, A. “Giulio di Raffaello da Urbino”. In: Quaderni di Palazzo Te, 8,


IV, janeiro a junho de 1988. Mântua: Edizioni Panini, pp. 9–11.
4  Cfr. o glossário.

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Giulio Romano, o herdeiro de Rafael, e as premissas de uma nova arte

Muitos foram, de fato, os alunos de Rafael, dos quais este se cir-


cundou desde sua chegada a Roma, arrebanhados de várias partes
da Itália e até de fora. Ao lado de artistas de maior vulto, como o
próprio Giulio, sabe-se que um grande número de artistas menores
exerceu atividade ali e que nem todos passavam pelo crivo pessoal
de Rafael. A Giulio Romano teria cabido a responsabilidade de sele-
cionar e treinar esses ajudantes menores, de modo que alguns deles,
supõe-se, tenham ido depois integrar o ateliê romano de Giulio. A
bottega5 de Rafael, uma das mais prolíficas e eficientes do período,
serviu a Giulio também como escola em termos de organização e
controle prático de uma grande estrutura, rendendo-lhe um apren-
dizado que será fundamental, poucos anos mais tarde, no comando
de seu próprio ateliê na corte gonzaguesca.
Embora tenha recebido a contribuição de artistas bastante dís-
pares em formação e qualidade, o ateliê rafaelesco constituía um
conjunto unitário e coeso: um conjunto heterogêneo sob a uni-
dade maior da mão de Rafael. Desta forma, muito difícil continua
sendo determinar as contribuições individuais dos vários artistas
dentro da estrutura funcional daquele ateliê, onde, ao que se sabe,
não havia o comando de um método rígido ou de uma lógica evi-
dente. Cada um dos membros deve ter tido espaço, entre eles e
sempre sob a supervisão de Rafael, para contribuir e para apren-
der, de modo que a ideia de intercâmbio parece mostrar-se no
resultado concreto das obras rotuladas “de ateliê”.
Alguns artistas — é o caso de Giulio — podiam ter um papel
especificado, mas esses papéis eram maleáveis ou temporalmente
limitados, e um mesmo artista podia cobrir alternadamente
diversas funções. Não raro encontram-se duas, três mãos num
mesmo afresco. A Giulio cabia comumente o comando da execu-
ção pictórica, a seleção de ingressantes no ateliê, sua orientação,
etc. Por vezes, no entanto, as funções eram trocadas, de acordo
com a urgência do mestre e a disponibilidade dos alunos. Dessa

5  Cfr. o glossário.

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Letícia Martins de Andrade

forma, o ateliê de Rafael parece ter sido mais do que a estrutura


fornecedora de mão de obra executiva ao artista assoberbado de
encomendas em seus últimos anos; parece ter sido também um
lugar de experimento e de troca — talvez se aproximando, em
alguns aspectos, do sentido contemporâneo da palavra workshop
—, focado no ponto máximo de um classicismo que doravante só
poderá ser revirado e transformado. Sob a benigna e benevolente
regência intelectual do mestre, essa escola é a sementeira que se
verá espalhar rapidamente pela Europa em prometida e abun-
dante colheita: fundamental contribuição para a formação do
Maneirismo internacional.
Desde o início de sua prática artística, Giulio revela tendências
diversas das de Rafael, mas cuja distinção, contudo, é bastante com-
plexa, pela multiplicidade de participações da escola. Somente na
primeira metade do século XX é que a personalidade artística do
jovem Giulio Romano foi sendo descoberta, aprendida, formada.
A partir daquele instante, muito esforço veio sendo despendido
na direção desse artista, na tentativa de compor um retrato mais
nítido. Soube-se assim que, apesar das divergências de suas perso-
nalidades antitéticas, Giulio, nos anos de treinamento ao lado de
Rafael, forma as bases sobre as quais irá construir o seu estilo: um
domínio atento mas flexível do estudo do natural e de um extenso
vocabulário de formas expressivas e fórmulas compositivas conti-
nuamente reelaboradas por seu espírito inquieto.
Que Giulio se identificava com Rafael e o admirava é ponto pas-
sivo. E, de acordo com as evidências, Rafael foi um mestre incomum,
que permitia aos alunos a participação em suas obras — prática que
vivenciara no ateliê de Perugino — e, ao mesmo tempo, sabia enco-
rajar, com sensibilidade e inteligência, o desenvolvimento de suas
personalidades artísticas individuais. No entanto, se Rafael “era de
uma tolerância capaz de ver virtudes em estilos muito diferentes…”,6

6  HARTT, F. Giulio Romano. 2 vol. (New Haven, 1958) Nova York: Hacker Art
Books, 1981, p. 140.

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Giulio Romano, o herdeiro de Rafael, e as premissas de uma nova arte

Giulio tinha liberdade para mudar os planos de Rafael, o que indi-


cava seu grau de independência. Pode-se dizer que o melhor aluno
de Rafael, dono de uma personalidade potente e, ao que parece,
naturalmente destacada, formou-se num solo em que só vingariam
os mais arrojados, os que soubessem definir para si um caminho
próprio, direcionados pelo sólido e rico aprendizado no ateliê, mas
de forma independente, sem renunciar às suas inclinações artísticas
pessoais, antes cultivando-as.
Evidentemente, apesar da relativa liberdade concedida por Rafael
a seus alunos, havia o limite imposto pela necessidade de manuten-
ção de uma unidade reunida sob o timbre do seu grande nome e,
ainda, a possibilidade de terem sido mantidos os maiores talentos
disciplinadamente nivelados abaixo do seu.7 Assim, se o estilo pes-
soal de Giulio já vinha germinando desde os anos de 1515–1516,
é somente a partir da morte do mestre que ele pode mostrar-se
plenamente, amadurecido, embasado e notadamente diferenciado.
O Rafael, mestre admirado e respeitado, torna-se então mais um
modelo de postura e grandeza artísticas do que propriamente um
referencial estético imutável, como ocorreu com muitos dos outros
artistas saídos daquela escola.
Apesar das querelas atributivas que permeiam o estudo de suas
obras no segundo lustro da década de 1510, sabe-se que Giulio
produz, em nome do mestre, pinturas parciais ou completas, além
de variadas adaptações de suas composições e até mesmo obras
totalmente independentes, ao contrário do que se pensava até
há pouco tempo.8 Essa liberdade pode ser inferida de um tre-
cho vasariano da biografia do gravador Marcantonio Raimondi
onde se relata que Giulio, enquanto viveu Rafael, deixara de
mandar gravar suas coisas para não competir com o mestre, “por

7  BELLUZZI, A., op. cit., p. 9.


8  JOANNIDES, P. “The Early Easel Paintings of Giulio Romano”. In: Paragone,
nº 425, julho de 1985, ano XXXVI. Florença: Sansoni Editore, p. 20.

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Letícia Martins de Andrade

modéstia”9: Giulio só irá fornecer seus próprios desenhos para


serem gravados por Marcantonio quatro anos após a morte de
Rafael, na famosa série erótica dos Modi.
Giulio, na realidade, pouco incorpora em sua obra da harmonia
rafaelesca. Em Rafael, as formas, de equilíbrio preciso, movimen-
tam-se tranqüilas nos limites do espaço contido entre o plano do
quadro e o ponto de fuga; espaço habitado por figuras serenas que
constroem e narram sua história com uma expressão mensurada
mas eficaz de sentimento: a dor não grita, a exultação não vibra ou
ri; nada se agita, mas sente. Em Giulio, predomina a inquietude:
em espaços imprecisos, muitas vezes sem princípio nem fim, numa
unidade artificiosa, onde cada figura, em tensão interna, tem um
peso emotivo desestabilizador. Elas não fluem, sinuosas, imersas em
colorido luminoso; antes emergem, poderosas, plásticas, angulosas,
como figuras pétreas panejadas em metal, num universo todo tátil,
tangível, escurecido por tintas negras, que criam climas fumacentos
e salpicam incerteza aqui e ali.
Foi durante a estadia no ateliê de Rafael, e por meio deste, que
Giulio começou a elaborar uma nova orquestração de cores e o
claro-escuro que se tornará característico da arte barroca. As
várias e vivas esfumaturas das cores e os contrastes muito agudos
de luz e sombra parecem ter desabrochado a partir do encontro de
Rafael com o pintor veneziano Sebastiano del Piombo, que esteve
em Roma desde 1510–1511. “O encontro produziu resultados de
sedutora beleza e novidade poética. Para apanhar sua importân-
cia será preciso esperar o fim do Quinhentos com a afirmação de
Caravaggio, que deve muito a Rafael pela elaboração do valor pic-
tórico das luzes e das sombras”.10

9  VASARI, G. 1568, 2ª Edição Newton, 1993, p. 845.


10  RAVELLI, L. “Riflessioni sui caratteri espressivi e pittorici di Giulio Romano”.
In: Giulio Romano. Atti del Convegno Internazionale di Studi su Giulio Romano e
l’espansione europea del Rinascimento. Mântua: Accademia Nazionale Virgiliana,
1989–1990, p. 254. Também Lorenzo Lotto e Dosso Dossi são citados como
influências sobre Rafael.

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Giulio Romano, o herdeiro de Rafael, e as premissas de uma nova arte

Nos últimos quatro ou cinco anos de vida de Rafael, por volta de


1516–1520, Giulio colaborava intensamente com o mestre em suas
pinturas, e o novo claro-escuro rafaelesco se incorporou à arte do
aluno, responsável então pela extensa participação em obras que,
justamente por essa razão, sempre provocaram e continuarão a pro-
vocar a oscilação da crítica a propósito da questão atributiva. Não é
possível distinguir exatamente, numa mesma obra, o que é da mão
do mestre e o que é trabalho do aluno, porque, como bem disse
Vasari, entre todos os alunos, Giulio foi o que mais se aproximou
do mestre no colorido e no desenho. Obras como a Sagrada família
de Francisco I (Paris, Museu do Louvre), a Madonna della Quercia
(Madri, Museu do Prado), o Retrato da Vice-rainha de Nápoles (Paris,
Museu do Louvre), a Santa Margarida (Paris, Museu do Louvre),
entre outras em cuja realização Giulio teve um papel de primeiro
plano, testemunham tanto a reelaboração do estilo rafaelesco em
nova chave de cor e luz quanto sua incorporação por Giulio.
Essa nova chave é a que melhor se apresenta na derradeira obra
de Rafael, A Transfiguração, muitíssimo criticada à época de sua
realização precisamente pelo colorido ao mesmo tempo vibrante
e queimado e pela luz tão contrastada que podia ir do branco ao
negro absolutos. Vasari também lamentou aí o abuso dos pigmentos
negros.11 O efeito que então incomodava os contemporâneos seria o
de “figuras de ferro que brilham”, que pareciam ter sido “expostas à
fumaça”, segundo as palavras que escreveu a Michelangelo o próprio
Sebastiano del Piombo,12 fato que, aliás, denota um afastamento de
Rafael em relação a Sebastiano, uma reelaboração original e distan-
ciada da inspiração original.

11  VASARI, G. /MILANESI, G. Le vite de’ più eccellenti… Florença: Sansoni


Editore, 1906 [1568], IV, p. 378.
12  Carta de Sebastiano del Piombo a Michelangelo datada de 2 de julho de
1518. GOLZIO, V. Raffaello nei documenti, nelle testemonianze dei contempo-
ranei e nella letteratura del suo secolo, segunda edição. Farnborough: Gregg
International Publishers, 1971, p. 70 (Cidade do Vaticano, 1936); HARTT, F.,
op. cit., I, p. 28.

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Letícia Martins de Andrade

Ainda a esse respeito, note-se que a crítica até pouco tempo atrás
tendia a atribuir a Giulio Romano as pinturas menos prestigiosas
de Rafael, aquelas em que esse aspecto, considerado muito ama-
neirado, prevalecia. A crítica vasariana foi assim recriada indefi-
nidamente. É interessante ver como, por exemplo, Quatremère de
Quincy enxerga a interferência de Giulio nas obras de Rafael preci-
samente no emprego da tinta preta. Para esse autor, o “abuso” dos
tons escuros de Giulio apareceriam já como que “contaminando” as
últimas pinturas do mestre, tornando-se um testemunho evidente,
inclusive, de sua participação em determinadas obras dessa fase
e “roubando-lhes a harmonia”.13 Na realidade, Giulio incorporou
e levou adiante a última maneira do mestre: o tratamento minu-
cioso da luz, com um vigoroso claro-escuro e forte aplicação do
pigmento negro denominado nerofumo.14 Esse julgamento nega-
tivo sobre o uso dos tons escuros nas obras de Giulio parece ter
sido unânime entre os historiadores.
Nesse ponto de seu aprendizado, Giulio mostra-se inclinado
a pesquisas luministas complexas também sob outros aspectos,
demonstrando uma predisposição em representar as horas de
transição da luz: aurora ou crepúsculo, em céus feitos de nuvens
coloridas e esgarçadas que frequentemente acrescentam um tom
elegíaco às imagens. Quanto à paleta, pintura tonal em cores fortes:
azuis esverdeados ao fundo, vermelhos e laranjas saturados e quei-
mados, castanhos escuros muito enegrecidos, brancos perolados
nos tecidos, dourados das luzes.
Podemos dizer que Giulio Romano demonstrou esse interesse
pela pesquisa da luz tanto em seus anos romanos quanto no iní-
cio do período de Mântua. O contraste extremado de luz e sombra
que Giulio incorpora ao seu vocabulário pictórico desde a segunda
década do século XVI será reelaborado posteriormente, tornando-

13  QUATREMÉRE DE QUINCY, A.-C. Histoire de la vie et des ouvrages de


Raphaël. Paris, 1824, p. 436.
14  Cfr. o glossário.

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Giulio Romano, o herdeiro de Rafael, e as premissas de uma nova arte

se uma das características mais marcantes do estilo que se difun-


dirá pela Europa a partir do exemplo das pinturas de Caravaggio,
realizadas entre os últimos anos daquele século e os primeiros do
seguinte. No entanto, Caravaggio explorou a luz artificial com a pre-
dileção por tomadas de ambientes internos,15 ao passo que a explo-
ração da luz em Giulio se enriquece em composições que retratam
ambientes internos e externos e, comumente, ambos numa mesma
imagem, mesclando fontes naturais e artificiais. Além disso, embora
em algumas obras a paleta caravaggesca possa ser comparada à de
Giulio por sua limitação (castanhos, vermelhos, brancos), este não
se detém a esse colorido.
O período em que o jovem Giulio trabalhou em Roma é, por-
tanto, completamente pontuado por pinturas luministas. Pode ser
tomado como exemplo precoce de seu interesse pela exploração
da luz um afresco como Isaac e Rebeca observados por Abimelec,
parte da decoração das logge do Vaticano encomendada a Rafael
e realizada pelo ateliê. O afresco mostra Isaac e Rebeca sentados
ao abrigo de um pórtico refrescado por uma fonte; as sombras de
um jardim são entrevistas pela abertura do arco. O colorido dou-
rado do crepúsculo — que muitos creem ser o clarão da lua — ilu-
mina o casal e o cenário com um forte claro-escuro, alongando as
sombras e dotando a cena de um grande lirismo. O foco narra-
tivo é deslocado para a direita da composição, para o jovem casal
namorando e, acima deles, para o rei Abimelec, que, debruçado
num parapeito, os observa. O restante da imagem é feito de arqui-
tetura e luz, gerando um vazio ao centro que poderia corresponder
ao silêncio exigido pela narrativa. Na extremidade esquerda, apa-
rece, entrecortada, uma fonte ornada com um golfinho, trazendo o
movimento e o brilho da água. A atribuição dessa pintura a Giulio
Romano é hoje aceita sem grandes contestações16 justamente, entre

15  Duas exceções são Descanso durante a fuga para o Egito, da Galleria Doria-
Pamphili em Roma e O sacrifício de Isaac, da Galleria degli Uffizi em Florença.
16  DACOS, N. Le Logge di Raffaello. Maestro e bottega di fronte all’antico.
Roma: Istituto Poligrafico dello Stato, 1977, p. 171; DAVIDSON, B. Raphael’s

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Letícia Martins de Andrade

outros motivos, pelo cuidado com o detalhe arquitetônico e pelo


extraordinário tratamento da luz crepuscular que inunda a cena.
Giulio também explora o claro-escuro agudo em sua retomada
da temática rafaelesca das Madonas. São vários os exemplos notá-
veis, tais como o da Madonnina (Paris, Museu do Louvre), consi-
derada a primeira obra remanescente inteiramente realizada por
Giulio e datada em torno de 1515–1517; a Madona Borghese (Roma,
Galleria Borghese, c. 1519), onde as figuras, de colorido inusitado,
são de uma plasticidade que se destaca ainda mais pelo uso da luz;
a Madona Novar (Edimburgo, National Galleries of Scotland), de
cores vibrantes, arquitetura evidenciada e um obscuro São José que
emerge sob o arco do fundo carregando uma lâmpada; a Madona
Hertz (Roma, Galleria Nazionale d’Arte Antica, c. 1520–1523), obra
de juventude na qual o artista emprega a tinta branca pura, espessa e
opaca, para indicar radicalmente os pontos de luz — o que o distan-
cia novamente de Rafael e suas veladuras suaves;17 e a Madona de
Apsley House (Londres, Wellington Museum, c. 1518), que retoma
a impostação do grupo rafaelesco da Madonna della Seggiola, mas
o insere num ambiente escuro iluminado apenas por uma vela.
Tal efeito já tinha sido tentado pelo próprio Rafael numa obra em
que a precoce participação de Giulio é sugerida,18 a Madona dos
Candelabros (Baltimore, Walters Art Gallery, c. 1515). Na obra de
Rafael, a simetria é buscada também na colocação dos focos de luz:
uma vela de cada lado do grupo sacro. Na de Giulio, por sua vez,
a colocação de um único ponto de luz artificial aponta para uma
pesquisa deliberada dos efeitos de luz, antecipando as tendências

Bible. A Study of the Vatican Logge. University Park /Londres: The College Art
Association of America,1985, p. 70; FERINO-PAGDEN, S. “Giulio Romano
pittore e disegnatore a Roma”. In: Giulio Romano. Milão: Electa, 1989, p. 81;
TAFURI, M. “Giulio Romano: linguagio, mentalità, commitenti”. In: Giulio
Romano. Milão: Electa, 1989, p. 17.
17  JOANNIDES, P., op. cit., p. 28.
18  CAVALCASELLE, G. B. / CROWE, J. A. Raphael, Life and Works. Londres,
1882–1883, vol. II, p. 181.

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Giulio Romano, o herdeiro de Rafael, e as premissas de uma nova arte

que se desenvolverão plenamente no século seguinte e quebrando o


equilíbrio baseado na simetria.
Uma pintura de retábulo criada por Giulio Romano para a igreja
alemã em Roma, Santa Maria dell’Anima, está entre as mais belas
realizações de sua carreira, uma obra capital no inteiro corpus desse
artista. Trata-se de uma Sagrada Família com São Tiago e São Marcos
(Roma, Santa Maria dell’Anima, c. 1523) (Fig. 14, p. 462). O grupo é
colocado num interior arquitetônico como uma galeria circular e
vem coroado por putti19 que sustentam um cortinado às suas costas,
proporcionando um destaque do ambiente mais terreno do fundo,
reservando e delimitando o espaço do sagrado. Ao fundo, veem-se
uma velha à soleira de uma porta, uma galinha e seus pintinhos. O
grupo central, da Madona com o Menino, vem deslocado do centro
da obra; o espaço é representado em fuga através de um edifício
circular; os santos colocam-se de modo transversal; o contraste de
claro-escuro acentua o colorido metálico das vestes, tornando a luz
cortante; a velha com o fuso na mão e as aves são elementos acessó-
rios que dão à obra um ar de pintura de gênero.
Em vários aspectos, Giulio aqui demonstra que um afastamento
ainda maior de Rafael vem ganhando espaço. É o primeiro signi-
ficativo retábulo de altar que ele concebe sozinho, ou seja, sem ter
um desenho de Rafael como base. Embora o artista ainda faça uso
de certos módulos rafaelescos, a disposição oblíqua dos elementos,
sua ordenação assimétrica e a excentricidade espacial dificilmente
poderiam ter vindo da maneira mais racional de Rafael.20 É uma
obra de síntese, realizada às vésperas da mudança definitiva para
Mântua: síntese de sua experiência artística, de seu conhecimento
da antiguidade clássica (na arquitetura que cita explicitamente o
antigo) e de seu amor pelo detalhe de gênero.

19  Cfr. o glossário.


20  JOANNIDES, P. “The Early Easel Paintings of Giulio Romano”. In: Paragone,
n. 425, julho de 1985, ano XXXVI. Florença: Sansoni Editore, p. 41.

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Letícia Martins de Andrade

A essa obra Vasari dedica um longo trecho da biografia de Giulio


em 1568, e mais uma vez critica seu emprego dos tons escuros. A
primeira crítica tinha sido feita a propósito do afresco da Batalha
de Constantino, na Sala de Constantino no Vaticano. Trata-se agora
de transpor basicamente o mesmo julgamento negativo a uma pin-
tura de cavalete. O autor emite alguns comentários sobre as técni-
cas empregadas, lamentando o uso excessivo de pigmentos escuros,
originalmente presentes na imagem. Giulio aplica densas camadas
de nerofumo sobre cores luminosas e cambiantes. O resultado é de
efeito dramático, porque Giulio combina o tratamento naturalista
das formas com o exagero do claro-escuro, de modo que as formas
parecem emergir da escuridão, meio fantasmagóricas, ilumina-
das apenas pela luz que vem do fundo. Os efeitos de luz e textura
que surgem aqui, embora sejam comparáveis aos que se veem em
outras obras do artista, são explorados num grau mais intenso: há
um adensamento dos tons fumosos, escuros, dos negros profundos,
contribuindo para a criação de “um ilusionismo dramático, novo
e poderoso”21 que será mais amplamente trabalhado no período
mantuano, sobretudo na Sala de Psiquê. As cores vêm banhadas em
luz, desfiguradas em tonalidades cambiantes, para serem logo mer-
gulhadas novamente em sombra.
Uma reconstituição imaginária da ambientação original desse
retábulo dentro da igreja sugere a intencionalidade da criação de um
cenário dramático que se vale, para tanto, sobretudo da luz.22 A obra
foi planejada para o altar de uma pequena capela da igreja que era
iluminada apenas por uma única janela acima (parte da construção
original) e provavelmente por luzes de velas, de modo que, para o
espectador, o resultado deveria assemelhar-se a uma visão: a pintura
diluindo seus limites nas sombras, fundindo-se ao espaço arquitetô-
nico, mostrando o grupo sacro como uma aparição iluminada.

21  HARTT, F., op. cit., pp. 56–57.


22  LO BIANCO, A. “La ‘Madonna della gatta’ di Giulio Romano: precisazioni
ed ipotesi”. In: Scritti di storia dell’arte in onore di Raffaello Causa. Nápoles: Electa,
1989, p. 93.

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Giulio Romano, o herdeiro de Rafael, e as premissas de uma nova arte

Os efeitos luministas presentes na Madona de Santa Maria


dell’Anima não devem ter passado despercebidos por Caravaggio,
no aproveitamento da luz natural que interage com a luz represen-
tada em favor de um acento dramático da obra, como se percebe na
Vocação de São Mateus, na igreja romana de São Luís dos Franceses.
Outras aproximações entre esta pintura e obras de Caravaggio já
foram feitas, tais como o claro-escuro cortante do rosto da Virgem
com aquele da Judite caravaggesca (Roma, Galleria Nazionale d’arte
Antica, c. 1598).23 De toda forma, novamente Giulio parece anteci-
par um ponto caro à arte barroca: o ilusionismo espacial retórico, ou
seja, a manipulação da pintura em seu ajuste à arquitetura (e muitas
vezes também à escultura), esmaecendo suas fronteiras, enganando
o observador e assim gerando forte impacto ao criar um determi-
nado efeito ou transmitir uma determinada mensagem.
A intenção de iludir, de enganar com a pintura os olhos do obser-
vador — o trompe l’oeil24 — aparece com maior desenvoltura a par-
tir do estabelecimento de Giulio em Mântua, para onde o artista
segue em 1524 a convite do duque Federico II Gonzaga. Para este
duque, Giulio construiu no início dos anos 1530 um palácio de vera-
neio na ilha do Te, tendo elaborado, ele próprio, desde a planta até
os menores detalhes da ornamentação. Embora na maior parte das
vezes Giulio, por falta absoluta de tempo, não tenha podido pintar
com as próprias mãos os afrescos, todas as composições estão sob
sua autoria intelectual. Giulio, portanto, criava, e sua escola execu-
tava a pintura, o que, aliás, rendeu críticas desfavoráveis ao conjunto
pictórico, considerado medíocre na execução.
Nas pinturas da Sala dos Cavalos do palácio Te, é notável a inten-
ção ilusionista. Giulio recria o ambiente: na falsa arquitetura de
mármores de coloração variada, na falsa decoração de gosto clás-
sico, com falsos relevos em bronze dourado e falsas estátuas e bustos
marmóreos, nas falsas janelas abertas para falsas paisagens e nos

23  RAVELLI, L., op. cit., pp. 166, 169.


24  Cfr. o glossário.

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Letícia Martins de Andrade

falsos cavalos que posam para retratos nesse interior suntuoso. O


detalhe naturalista vai ao ponto de um estudo cuidadoso da inci-
dência da iluminação real e da projeção das sombras falsas.
Em Mântua, ainda no Te, o efeito ilusionista será gradual-
mente aperfeiçoado. O destaque a esse efeito presente na Sala de
Psiquê — um dos mais conhecidos ambientes do palácio que Giulio
executa logo após a dos Cavalos — é comentado com admiração por
Vasari em 1568: “Giulio escorçou tão bem aquelas figuras de baixo
para cima, que algumas delas, dificilmente maiores que uma braça,25
mostram-se, vistas do chão, com três braças de altura (…), tendo
Giulio sabido fazer de modo que, além de parecerem vivas (de tanto
relevo que têm), enganam com agradável visão o olho humano.”
O relevo ao qual se refere Vasari é obtido justamente por um
calculado jogo de luz e sombra. Noturnos clareados pela lua e o
lusco-fusco (caro a Giulio desde o trabalho no ateliê de Rafael) das
horas de transição da luz unificam em semi-escuridão cada um
dos quadros componentes da abóbada. Ainda na Sala de Psiquê e
a partir daí, também o uso do claro-escuro dramático se intensi-
fica, mas agora associado a arrojados estudos de perspectiva al di
sotto in su26 (criando imagens vistas em profundidade de baixo para
cima). Sobre a manipulação da perspectiva, elogiada por Vasari no
mesmo trecho citado, o artista parte sempre do ponto de vista de
um observador colocado de pé no centro da sala, modificando gra-
dativamente as figuras e distorcendo-as mais à medida que sobem,
afastando-se em altura e em direção ao centro.27
Para a Sala de Psiquê, com seus escorços vertiginosos e seu claro-
escuro cortante, Caravaggio teria olhado atentamente no período
que precede sua transferência para Roma e que coincide com a
passagem de seu estilo inicial àquele da obscuridade densa e dra-
mática por que é celebrado. Cenas noturnas como a de Psiquê des-

25  Cfr. o glossário.


26  Cfr. o glossário.
27  HARTT, F., op. cit., p. 137.

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Giulio Romano, o herdeiro de Rafael, e as premissas de uma nova arte

cobrindo Amor adormecido à luz de uma lâmpada (Fig. 15, p. 462) e


O banquete no reino de Amor possuem afinidades estilísticas ine-
gáveis com a futura obra caravaggesca. Ademais, uma pintura de
Caravaggio já mencionada por Bellori em 1672 — Júpiter, Netuno
e Plutão (Roma, Casino Ludovisi, c. 1596) — não poderia ter sido
concebida sem o prévio conhecimento de uma composição de
Giulio também presente no palácio Te: Os carros do Sol e da Lua,
ou Apolo e Diana (Fig. 16, p. 462).28
No mesmo palácio, contígua à Sala de Psiquê, encontra-se a Sala
dos Gigantes (Fig. 17, p. 463), planejada por Giulio e executada por seus
auxiliares, e na qual o artista dá prosseguimento às suas experimen-
tações ilusionistas, levando-a a seu ponto máximo. Nesse ambiente
de planta quadrada, todas as paredes e a abóbada são pintadas de
forma ininterrupta, escondendo assim os ângulos e envolvendo
completamente o espectador. Esse recurso da ocultação e atenuação
da estrutura — vale lembrar — já havia sido tentado, em medida e
modo diversos, por Andrea Mantegna na Camera picta do palácio
Ducal, a residência urbana da família Gonzaga em Mântua. Giulio
certamente a conhecia.
Vasari, maravilhado, dedica uma longa passagem da biografia de
Giulio à descrição dessa sala. Para entender melhor o impacto pro-
vocado sobre a escrita desse autor na crítica do século XVI, é pre-
ciso recuar no tempo e recordar a noção albertiana da pintura como
uma janela aberta pela qual o espectador observa outro universo.
Essa concepção pressupõe a pintura como “a intersecção da pirâ-
mide visual representada com arte por linhas e cores numa dada
superfície, de acordo com uma certa distância e posição do centro
e o estabelecimento de luzes”.29 O espectador era imobilizado num

28  GREGORI, M. “Giulio Romano e Caravaggio”. In: Giulio Romano. Atti


del Convengo Internazionale di Studi su Giulio Romano e l’espansione euro-
pea del Rinascimento. Mântua: Accademia Nazionale Virgiliana, 1989–1990,
pp. 193–196; RAVELLI, 1989, p. 272.
29  ALBERTI, L. B. Da Pintura. Campinas: Editora da Unicamp, 1989, p. 83.
Tradução de Antônio da Silveira Mendonça.

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Letícia Martins de Andrade

determinado ponto distinto da superfície pintada, o que pressupu-


nha uma divisão nítida entre o real e o imaginário, entre o especta-
dor e a imagem observada. Giulio, com sua Sala dos Gigantes, que-
bra a estabilidade e a segurança da estrutura albertiana, para jogar o
espectador no centro da obra, dentro dela.
Mas, além disso, e especificamente falando sobre a pintura mural,
esta era tradicional e absolutamente condicionada pelo suporte:
um espaço arquitetônico já determinado e organizado, no qual a
obra devia caber e ao qual, se necessário, devia adequar-se. Na
Sala de Psiquê, Giulio já havia dado sinais de seu desejo de liber-
tar-se dessa sujeição: na abóbada, o artista ocultou e camuflou a
verdadeira estrutura sob a decoração pintada; nas paredes, buscou
a continuidade através de uma concepção focada no ilusionismo
da paisagem. Contudo, as interrupções de janelas e portas não
permitiram a transformação da imagem num ciclorama, como
ocorre na Sala dos Gigantes.
Em verdade, desde a Sala de Constantino — criada por Rafael e
executada por Giulio e Penni —, o esquema ilusionístico se impu-
sera a Giulio. Na concepção de Rafael, as quatro grandes cenas são
tapeçarias falsas, e a ilusão é a da decoração de um ambiente interno
no centro do qual já se coloca o espectador. Na sala dos Cavalos
do Te, a ideia por trás da forma tem o mesmo princípio: o da falsa
decoração de um ambiente. Mas ali, os cavalos retratados são como
uma componente viva, projetando suas sombras nas paredes falsas
que coincidem ainda com as paredes reais.
Assim, é fácil imaginar que Giulio tivesse em mente um projeto
que viesse a transformar o ambiente interno justamente em algo
diverso de um ambiente interno, removendo qualquer sinal de arti-
culação arquitetônica e pintando paredes e teto em sua totalidade.
O artista, na Sala dos Gigantes, quebra por completo a tradição da
subordinação da pintura à arquitetura, evitando qualquer condicio-
namento pelo suporte e, mais que isso, ao contrário, parece inver-
ter a relação, fazendo com que a arquitetura se subordine ao con-
junto, o que se exemplifica pela lareira, hoje inexistente, cuja função

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Giulio Romano, o herdeiro de Rafael, e as premissas de uma nova arte

fora incorporada à narrativa do conjunto: quando acesa, o fogo ali


gerado deveria causar forte impacto, coincidindo com o mundo
inferior, domínio de Plutão, cuja figura está pintada acima.
O texto de Vasari vai certamente ajudar a moldar a experiência
da fruição estética dessa obra pela crítica posterior, embora haja
mudanças de juízo sobre o conjunto da pintura, tão inevitáveis
quanto o correr do tempo e, muitas vezes, contemporâneas e para-
doxais. Se Vasari faz o elogio, se Félibien, mais de um século depois,
ainda mantém o tom encomiástico em sua descrição da obra,30 a
crítica do século XVIII, por outro lado, introduz a censura e ins-
taura o debate sobre o valor artístico da obra, que julga esmagado
pela carga emotiva que contém. Qualquer que seja a leitura da obra
e seu julgamento crítico, não se pode negar o poder de comoção
que ela carrega, que é dado não apenas pelo artifício — quase uma
cilada — construído pelo pintor, elaborado para o envolvimento do
visitante, mas também pelo “terror”, que Giulio consegue exprimir
com sucesso nas faces, quase todas caricatas, e nos gestos das figuras.
Entre 1536 e 1539, Giulio Romano elabora outro projeto de
pintura ilusionista: a Sala de Tróia, desta vez no palácio Ducal de
Mântua. Malgrado as críticas negativas que pesam sobre a execução
do ciclo de pinturas presente nessa sala, a ideia de uma grande com-
posição ciclorâmica, desenvolvendo-se em torno da porção supe-
rior de todo o ambiente, com a utilização de recursos cênicos, de
escorços vigorosos, vai trazer grande influência para o desenvolvi-
mento da pintura ilusionista dos séculos seguintes. O esquema ilu-
sionista pensado por Giulio na Sala de Tróia pode ser vinculado ao
tipo de pintura de teto tipicamente barroco que Pietro da Cortona,
por exemplo, executará no palácio Barberini, em Roma, ou Luca
Giordano no palácio Medici-Riccardi, em Florença.31

30  FÉLIBIEN, A. Entretiens sur les vies et sur les ouvrages des plus excellens pein-
tres. Londres, 1705, II, pp. 192–193 [Paris, 1685].
31  HARTT, F., op. cit.

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Letícia Martins de Andrade

Outro paralelo de obra de Giulio com a futura pintura de tetos


barrocos pode ser sugerido a partir da observação da pintura do
nicho absidal da Steccata de Parma, uma Coroação da Virgem.
Giulio apenas forneceu o projeto para essa obra — um desenho
colorido — e as indicações de execução a ela pertinentes. A pintura
foi executada pelo pintor Michelangelo Anselmi, que seguiu as indi-
cações de Giulio, mas não agradou aos comitentes no resultado aca-
bado. A obra foi reprovada por causa do colorido, considerado irreal
pelo fato de não conseguirem distinguir as figuras, estando todas
envoltas em luz. A obra, por fim, foi depois inteiramente repintada.
No entanto, resta de Giulio Romano uma carta aos comitentes, de
setembro de 1542, em que relata sua concepção para esta obra. O
artista diz ter feito as figuras “ofuscadas pela luz e dentro da névoa,
sufocadas na chama do esplendor em forma de raios de sol (…) eu
quis que todas as coisas, as carnes e os tecidos, tudo estivesse em cor
de chama e fossem tão mais ofuscadas quanto mais altas estivessem”,
as figuras mais baixas, mais próximas do observador, seriam pinta-
das de cor mais naturalista.32
Esse modo de pintar as figuras sacras como se estivessem no fir-
mamento, criando para tanto a ilusão de uma abertura do teto (ou a
de sua ausência) é exatamente aquele que o Barroco empregará com
a intenção de envolver o fiel, comovê-lo, persuadi-lo: instrumento,
portanto, de um poderoso discurso retórico — Correggio já havia
dado exemplo de uma composição de escorços e luzes arrojadas
nos afrescos da catedral daquela mesma cidade de Parma. Giulio
aqui não faz uso da pintura que cria a ilusão do espaço através de
uma perspectiva geométrica rígida e marcada. Nessa obra, é a luz
que cria a ilusão do espaço, das distâncias, e é a luz que unifica
a composição, num expediente que servirá de alternativa aos pin-

32  Archivio dell’Ordine Costantiniano di San Giorgio, Parma, Storia dell’Ordine


Costantiniano, pittura e architettura della chiesa Magistrale della Steccata, vol.
VI, doc. X. In: FERRARI, D. Giulio Romano. Repertorio di fonti documentarie.
Roma: Ministero per I beni culturali e ambientali/ Ufficio centrale per i beni
archivistici, 1992, vol. II, pp. 976–978.

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Giulio Romano, o herdeiro de Rafael, e as premissas de uma nova arte

tores do Barroco e do Rococó que rejeitam a metódica marcação


perspéctica em favor da perspectiva aérea. É o caso, por exemplo,
do veneziano Tiepolo.
Em sua obra arquitetônica, Giulio, que foi o único discípulo
de Rafael a seguir esse ofício, igualmente se afasta do mestre ao
buscar um caminho estilístico independente, transformando as
licenças em regra e dando preferência, corajosamente, a aspec-
tos dissonantes, assimétricos e cenográficos. Esse caminho, se não
chega a desaguar diretamente na arquitetura barroca, com certeza
lhe indica as veredas.
Quando Giulio entrou para o ateliê de Rafael, por volta de 1510–
1511, este estava empenhado no estudo da arquitetura de Bramante.
É o momento em que a arquitetura — que já tinha aparecido em cita-
ções do antigo nos fundos de algumas pinturas de Rafael — come-
çava a ganhar um destaque maior na sua obra. Quando Giulio
chega ao ateliê, Rafael estava trabalhando as stanze33 do Vaticano.
Ele já tinha concluído a stanza della Segnatura e iniciava os traba-
lhos da de Heliodoro. Giulio deve ter sofrido um grande impacto
ao se deparar com obras como A Escola de Atenas, recém-concluída,
onde a arquitetura tem um papel predominante, com sua estrutura
monumental e rítmica. Depois, na Stanza di Eliodoro, a arquitetura,
a pintura, a falsa escultura pintada das partes inferiores das pare-
des e os outros elementos decorativos se agregavam e convergiam
para uma espécie de unidade indivisível das artes visuais. Portanto,
Giulio iniciou seu contato com Rafael no momento em que a arqui-
tetura adquiria uma posição cada vez mais importante no pensa-
mento de Rafael e, certamente, no dele próprio, que pôde assistir,
passo a passo, ao crescimento do interesse do mestre pela arquite-
tura e sua relação com o antigo.
Acredita-se mais comumente que Rafael deve ter incluído Giulio
na preparação e execução dos fundos arquitetônicos de seus afres-
cos a partir da pintura da terceira stanza — a do Incêndio do Borgo.

33  Cfr. o glossário.

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A colaboração com Rafael nesses fundos de afrescos foi mais uma


passagem na formação do Giulio Romano arquiteto, porque assim
ele pôde conhecer desde cedo os artifícios da perspectiva e também
o uso das ordens arquitetônicas, o que o ajudou a embasar o seu
vocabulário arquitetônico e a influenciar seus valores estéticos.
Outro evento importante para a formação do Giulio Romano
arquiteto foi sua participação, como aluno de Rafael, no projeto de
reconstituição da Roma antiga, a pedido do papa Leão X. Isso coin-
cide com o ápice dos estudos arqueológicos de Rafael, por volta de
1518–1519. Esse projeto pretendia levantar a planta da cidade antiga
e depois redesenhar suas construções com base nas medições de
Rafael. Era um trabalho ambicioso, que Rafael jamais teria podido
executar sem auxílio de seu ateliê. E ele certamente contou com a
cooperação direta de seus auxiliares. Mas Rafael morreu bem antes
de concluir o trabalho, e, embora haja diversas indicações de que
tenha chegado a executar desenhos do antigo como resultado de
suas pesquisas, não se conhece qualquer testemunho gráfico disso.
Infelizmente, todos esses trabalhos de Rafael sobre o antigo foram
perdidos, e com eles, igualmente, aqueles que seriam os primeiros
desenhos de arquitetura que Giulio teria realizado.
O fato é que, cada vez mais, a arquitetura vai se tornar presente
no trabalho de Giulio como auxiliar de Rafael, seja em citações do
antigo nos fundos de pinturas como a Madonna della Quercia e a
Madonna della Perla, seja na colaboração em projetos arquitetô-
nicos propriamente. Quando Bramante morreu, em 1514, deixou
a Rafael o cargo de primeiro arquiteto do papa. E a partir daquele
instante, Rafael passou a receber muitas encomendas de arquite-
tura — o que acontecia também com as pinturas —, de modo que
ele, (sobrecarregado, como se sabe) deve ter-se valido, como era
hábito do auxílio de seu ateliê e, obviamente, de Giulio Romano.
Assim, por volta de 1517–1518, Giulio participa dos projetos de
villa Madama e do palácio Alberini, mas sua contribuição por
meio de desenhos não pode ser verificada. Deste modo, os dese-
nhos mais antigos atribuídos ao Giulio Romano arquiteto de que

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Giulio Romano, o herdeiro de Rafael, e as premissas de uma nova arte

se tem notícia remontam a 1518, e são estudos de detalhes para o


palácio Branconio dell’Aquila.
Pode-se dizer que Giulio teve uma formação cuidadosa junto de
Rafael e que isso lhe proporcionou um domínio muito flexível e um
conhecimento vasto das formas expressivas e das fórmulas compo-
sitivas antigas. Dali em diante, ele estava certamente apto a utilizar
esse vocabulário de uma forma soberana e independente. Quando
Rafael morreu, em abril de 1520, Giulio, que devia estar entre 21 e
25 anos, era o único artista que possuía um talento versátil o bas-
tante e que conhecia realmente as ideias rafaelescas para substituir
seu mestre. Por essa razão, foi passado a ele, e não a Antonio da
Sangallo, o Jovem, ou a Baldassare Peruzzi, o encargo de prosseguir
com os trabalhos da villa Madama.
Além de prosseguir com os trabalhos da construção da villa
Madama após a morte de Rafael, Giulio provavelmente também
colabora com o mestre na elaboração dos projetos, e sua influên-
cia é vista em um dos desenhos remanescentes.34 De todo modo,
o trabalho de sua mão é sugerido em alguns pontos específicos
do edifício construído (que não chegou a ser terminado): Giulio
seria visto na fachada do vale, onde a ordem é substituída por uma
grande arcada, num amálgama de elementos heterogêneos que irá
caracterizar sua obra posterior; nos “requadros cegos e planos”
com os quais evita as superfícies livres na fachada;35 nos relevos
sem pausa e comprimidos, que nada têm da leveza aérea do mes-
tre; nos motivos minuciosos do relevo de Giulio na fachada do
jardim — plena de assimetrias dissonantes — que se avizinham
de modo contrastante da arcada de vãos largos criada por Rafael;
nas formas pesadas do portal voltado para os jardins do fundo,
onde as volutas maciças e o frontão partido antecipariam elemen-

34  Desenho U 314 A, em Florença, Galleria degli Uffizi. FROMMEL, C. L.


“Villa Madama”. In: Raffaello architetto. Roma: Electa Editrice, 1984, p. 343.
35  FROMMEL, C. L. “Le opere romane di Giulio Romano”. In: Giulio Romano.
Milão: Electa, 1989, p. 98.

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Letícia Martins de Andrade

tos vistos no Te, assim como o friso que parece curvar-se ao peso,
num artifício típico de Giulio.36
O arrojo de Giulio se mostrou ainda no projeto da residência
Gian Matteo Giberti, no Vaticano, destruída no século XVII para
dar lugar à Scala Reggia de Bernini. Giulio foi corajoso ao ostentar
seus caprichos bem diante da monumental fachada de ingresso do
palácio papal: um térreo discreto, com uma pequena entrada numa
parede cega; um primeiro pavimento de fachada assimétrica, com
um dos lados mais longo e leve, aberto em arcos que criavam uma
galeria reentrante em círculo, e outro formado por apenas duas
arcadas cegas, portanto visualmente mais pesadas.
Palácios romanos como o Branconio dell’Aquila e o Alberini tra-
zem os mesmos problemas atributivos que se veem na obra pictórica
de Rafael e Giulio. O palácio Maccarani é a obra mais significativa
para a compreensão do desenvolvimento do posterior estilo arqui-
tetônico de Giulio em Mântua. A fachada principal é dividida tem
três pavimentos, os dois primeiros com a mesma altura e o terceiro
com dois terços da altura dos anteriores. Giulio elabora um jogo de
contrastes entre o térreo, maciço, e os pavimentos superiores, muito
mais leves e delicados. O térreo é feito em obra rústica, com blocos
pesados, formas que tendem ao chão. No piano nobile37 e no supe-
rior, as formas se refinam: quanto mais sobem, mais se tornam frá-
geis e mais tendem à abstração; e quanto mais são abstraídas, mais
acentuam a verticalidade.
Pouca coisa aqui não deriva diretamente de Bramante ou de Rafael,
mesmo os blocos rústicos dentro do frontão do portal. O que muda
é o jogo de projeções dos blocos, criando campos distintos que
avançam mais ou menos, quebrando a estaticidade e a homogenei-
dade. A rústica de Giulio não é um elemento decorativo com o qual
ele preenche uma parede; ele a explora em suas possibilidades plás-
ticas, buscando um efeito dinâmico. Para ele, a arquitetura é feita

36  Id., ibid.


37  (trad.: pavimento nobre)

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Giulio Romano, o herdeiro de Rafael, e as premissas de uma nova arte

de forças vivas, e as formas que ele emprega são animadas. Pode-se


dizer que esse dinamismo está na precedência do Barroco.
Outra obra romana significativa, considerada uma espécie de
auto-retrato arquitetônico de Giulio, é sua própria casa, que ele
reforma. O conjunto é estreito e, portanto, desenvolvido na ver-
ticalidade: somente dois vãos, e desiguais. A fachada mostra dis-
sonâncias, mas o contraste não é mais entre um pavimento térreo
pesado e a leveza dos superiores, mas entre a abertura mais ampla
da entrada e o estreitamento de sua vizinha lateral: Giulio supera
a clássica simetria axial. O relevo da parede é limitado a uma bos-
sagem mais leve, mas que agora alcança o primeiro pavimento, e
isso é uma criação inédita em Roma. Nesse pavimento, a janela
tem colunas jônicas feitas de blocos rústicos projetados, o que cria
um efeito bizarro, porque a ordem jônica é originalmente esguia e
delicada. A bossagem é dinâmica: a aduela de fecho do portal se
projeta, recebendo destaque.
Uma vez em Mântua, o estilo de Giulio amadurece, e o palácio Te
é certamente a maior obra de sua carreira. A planta do Te é muito
simples — Giulio cria um edifício de forma perfeitamente qua-
drada: uma estrutura a quatro alas, que segue o ideal de uma casa
antiga de pavimento único circundado por colunatas (peristilo) — ,
que Giulio recria agora como uma galeria de jardim. Os principais
elementos dessa planta são as galerias dispostas no centro de cada
uma das alas, dando saída tanto para o exterior do edifício quanto
para o pátio interno central, que ocupa todo o espaço entre as qua-
tro alas. Saindo da galeria de Leste, a de Davi, existe uma ponte
sobre um viveiro que leva a um grande jardim disposto no mesmo
eixo do centro do edifício, alongando-o, o que permite que, do por-
tal de entrada, se tenha uma visão em profundidade que passa por
vários planos diferentes da construção. E isso é muito rafaelesco,
lembrando a axialidade daquela impostação desejada por Rafael na
planta da villa Madama.
O que caracteriza a arquitetura do Te é tanto o conjunto das mui-
tas dissonâncias presentes nas fachadas quanto o aspecto decorativo

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Letícia Martins de Andrade

sugerido pela variedade da combinação de motivos e/ou formas


estruturais que se apresentam com um efeito mais pictórico do que
plástico. Giulio parece se comprazer numa brincadeira de ornamen-
tos e contrastes, numa forma bastante peculiar de expressão (orna-
mento e contraste: as duas características mais notórias da música
barroca). Há contraste entre o rústico e o liso, entre a natureza e o
artifício,38 ou seja, entre aspectos informes ou disformes, como o de
formas que se encontram em estado natural, brutas, rústicas, sem
tratamento, e formas perfeitamente acabadas e/ou claramente arti-
culadas em um sistema de organização legível: as ordens clássicas.
Neste ponto é que se pode falar em uma transformação da licença
em regra, porque todos esses contrastes, essa mistura de elementos
díspares vai transcender os cânones que tinham sido fixados pelo
classicismo romano do final do século XV.
Por fim, uma obra que caracteriza agudamente o espírito de Giulio,
e não apenas como arquiteto: a chamada “Rústica” do palácio Ducal
de Mântua (1538–1539) (Fig. 18, p. 464), um pátio aberto usado por
Federico II para a exposição de seus cavalos e um conjunto de apo-
sentos construídos em três das quatro alas que fecham esse pátio
feito inteiramente em obra rústica.
As fachadas têm sete vãos, e são assimétricas: três vãos largos, aber-
tos em galeria à esquerda, e outros quatro mais estreitos (as janelas)
à direita. A novidade está no piano nobile, onde Giulio emprega as
colunas salomônicas, de fuste retorcido. Aqui, essas colunas são uma
citação do antigo que ele recria plasticamente, porque já o havia
feito em diversas pinturas, desde Roma. Dá pra dizer que Giulio
Romano foi quem ressuscitou a coluna salomônica na arquitetura,
aquela que, aliás, se tornará parte da linguagem arquitetônica do
Barroco. Dessa vez, a coluna salomônica é o elemento bizarro que se
mistura à ordem canônica (aqui dórica) do entablamento. Quanto
ao tratamento rústico dos blocos propriamente, este é enfatizado ao

38  GOMBRICH, E. H. / ERBESATO, G. M. Giulio Romano. Il Palazzo Te.


Mântua: Tre Lune, 1999.

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Giulio Romano, o herdeiro de Rafael, e as premissas de uma nova arte

extremo e sem descanso. A bossagem tem uma qualidade “natural”


inédita — com grande variedade de textura impressa nos blocos de
pedra — e se contrapõe à obra de artifício em um grau máximo de
evidência, que são as colunas retorcidas.
O interior da Rústica, menos conhecido que as fachadas, também
exemplifica a mistura entre ordem e ruína. Aqui a cobertura do teto
se apresenta revirada, remexida; os blocos na parte mais elevada
parecem colados ao teto e prestes a cair. Não se trata simplesmente
de um artifício para fazer parecer ainda mais antiga ou arruinada
uma estrutura moderna feita à antiga. Para Giulio, as formas arrui-
nadas da arquitetura antiga são atraentes pelo que têm de formal-
mente expressivo, mas são inseridas numa determinada ordem, são,
de certa forma, domadas, ou seja: há um uso racional desses ele-
mentos, por mais irracionais que pareçam, e a mistura da rústica
com a ordem é uma forma de ressaltá-la por contraste.
É interessante observar que na biografia de Giulio escrita em
1568, Vasari retira do subtítulo o epíteto de “arquiteto” referido
em 1550 ao biografado, deixando somente o de “pintor”. Quando
descreve o palácio Te, fala apenas de sua pintura, e depois cita bre-
vemente a Rústica do palácio Ducal. É possível que a arquitetura
de Giulio Romano tenha sido entendida por Vasari em seus aspec-
tos predominantemente cenográficos, como sentimos nas descri-
ções do ambiente circundante à villa Madama e nas descrições das
pinturas do próprio Te como cenografias. Além disso, o Vasari
de 1568 tinha em mente um outro paradigma para a arquitetura,
aquele oferecido por Michelangelo: uma arquitetura que se base-
ava na prevalência da forma plástica, capaz de gerar, por meio do
domínio das proporções, a monumentalidade, o que Vasari dife-
rencia muito bem da ideia de grandeza como dimensão.39 Na obra
arquitetônica de Giulio Romano, ao contrário, há o predomínio do
ornamento e da variedade (varietà), geradores de linhas e superfí-

39  GENGARO, M. L. “Il tema del rapporto tra le arti nella critica di Giorgio
Vasari”. In Studi Vasariani. Florença: Sansoni, 1950, p. 60.

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Letícia Martins de Andrade

cies, ainda que trabalhadas pela rústica — antes criadora de efeitos


pictóricos —, mas não de volumes construtores e potentes. A rús-
tica, aliás, opondo-se à noção de ordem arquitetônica, acaba por
se apresentar como um princípio cenográfico.
Vasari, portanto, parece perceber na arquitetura de Giulio tanto
o afastamento do classicismo de Rafael quanto o distanciamento
da monumentalidade plástica de Michelangelo, sem conseguir, no
entanto, classificá-la. Porque Giulio vai além desses dois modelos
e em outra direção. Na longínqua e isolada Mântua, ele pôde dar
livre curso às suas inclinações pessoais e assim elaborar despreten-
siosamente o seu estilo. É possível que tenha feito o papel do artista
maneirista ensimesmado e angustiado pela necessidade de buscar a
originalidade capaz de recolocar em movimento o caminho das artes
plásticas há muito coroado pela tríade dos extraordinários talentos.
A morte precoce de Rafael nos impediu de saber que rumos sua
arte teria tomado, mas suas obras finais sugerem uma guinada em
direção à experimentação de que só os espíritos livres e instigadores
são capazes. Formado com relativa liberdade sob essa aura instiga-
dora e dentro de um ambiente intelectual muito prolífico, Giulio
Romano provavelmente cumpriu um destino semelhante ao que
Rafael teria seguido. Sob esse aspecto, talvez Giulio seja, de fato, o
herdeiro e continuador de seu mestre. Não sabemos. De todo modo,
ao reunir corajosa e contraditoriamente a norma clássica às licenças
bizarras incitadas pela experimentação, a obra de Giulio — pintura
e arquitetura — rejeita as certezas imutáveis do classicismo renas-
centista e abriga in nuce40 as premissas da arte vindoura.

40  (trad.: em estado embrionário)

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Leonardo da Vinci sobre a pintura
e a observação da natureza 1
Juliana Barone

L
eonardo da Vinci nasceu em 15 de abril de 1452, na (ou
perto da) pequena cidade de Vinci, na Toscana, filho ile-
gítimo de um notário (notaio) florentino e de uma campo-
nesa local. Quase nada se sabe sobre os seus primeiros anos, mas
seu talento para o desenho deve ter sido evidente e, talvez, tam-
bém a sua versatilidade, pois seu pai conseguiu torná-lo aprendiz
na oficina mais versátil de Florença, na época: a de Andrea del
Verrocchio (1435–1488), que tanto pintava quanto esculpia em
pedra, terracota e bronze.
Leonardo ainda vivia na casa de Verrocchio em 1476, mas naquela
época já deixara de ser seu aprendiz: em 1472, ele fora admitido na
Companhia de São Lucas, uma fraternidade de pintores. Entretanto,
em algum momento entre os anos de 1481–83, quando procu-
rava emprego em Milão na corte de Lodovico Sforza (1452–1508,
Duque de Milão entre 1481 e 1499) — chamado Lodovico Il Moro
(O Mouro) por sua pele escura — Leonardo decidiu destacar não
sua habilidade como pintor, mas como engenheiro, capaz de cons-
truir máquinas úteis na guerra e na vida civil.2 Não está claro quanto
tempo ele esteve empregado nesta capacidade, mas desenhos rema-

1  Este texto foi originalmente escrito em inglês. A tradução, de Ana Resende,


foi revista por Juliana Barone e Maria Berbara.
2  Veja o rascunho, sem data, da carta endereçada a Lodovico (Codex Atlanticus,
fol. 391r a). Este rascunho, no entanto, não parece ter sido escrito por Leonardo.
Foi provavelmente redigido a partir de um esboço de Leonardo, ou por ele ditado.

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Juliana Barone

nescentes testemunham sua contínua fascinação por máquinas


de todo tipo, desde estudos da engrenagem do elaborado relógio
astronômico construído entre 1348 e 1364 por Giovanni de Dondi
(1318–1389)3 a um desenho que mostra uma aplicação do princí-
pio do parafuso arquimediano (utilizado para erguer a água) a ar
movente para supostamente movimentar uma máquina que seria
capaz de voar — não fossem poucas ordens de magnitude entre a
elevação real que podia ser produzida e a necessária para um veículo
de peso real. As obrigações de Leonardo na corte dos Sforza inclu-
íam também projetos efêmeros, tais como de palcos ou roupas para
festivais da corte, assim como o grandioso projeto para o memorial
da dinastia do Duque, sob forma de um monumento equestre em
bronze — três vezes maior que o tamanho real. A segunda versão
deste projeto alcançou o estágio de um modelo grande, destruído
durante a invasão francesa em Milão, em 1499; os soldados utili-
zaram o modelo para praticar tiro. Na fusão do bronze, este monu-
mento teria sido a mais impressionante realização técnica da sua
época. Deveria ser a contrapartida ao monumento equestre ao con-
dottiere Bartolommeo Colleoni (1400–1475), no qual Verrocchio,
mestre de Leonardo, trabalhou entre os anos de 1481 a 1488, uma
estátua por sua vez concebida para emular a realização do mestre de
Verrocchio, Donatello, em seu monumento a Gattamelata realizado
no fim dos anos 1440. É possível que Leonardo tenha contribuído
no projeto de Verrocchio para o monumento a Colleoni.
Leonardo tinha o hábito de desenhar, tanto em seu estúdio
quanto em cadernos de rascunho que sempre carregava consigo.
Graças a sua enorme fama e ao gosto emergente no início do século
XVI por colecionar desenhos, um grande número de desenhos de
Leonardo sobreviveu. Com o auxílio de evidências documentais

3  Veja Baillie, G. H., Alan Lloyd, H. & Ward, F. A. B. The Planetarium


of Giovanni de Dondi, Londres: The Antiquarian Horological Society, 1974;
e King, H. C. & Millburn, J. R. Geared to the stars. The evolution of pla-
netariums, orreries, and astronomical clocks, Toronto: University of Toronto
Press, 1978.

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Leonardo da Vinci sobre a pintura e a observação da natureza

relacionadas às atividades de Leonardo, é possível ver alguns des-


tes desenhos como testemunhos de sua participação em vários
projetos dos quais se sabe que ele participou mas que, entretanto,
não chegaram até os nossos dias.
Vasari nos conta que Leonardo frequentou uma escola de ábaco,
e foi provavelmente antes disto que ele aprendeu a escrever. A cali-
grafia de Leonardo tem a constância de estilo associada a alguém
que tem o hábito da escrita. No entanto, sabemos que ele utilizava a
mão esquerda e, como muitos outros canhotos, aparentemente con-
siderava natural escrever da direita para a esquerda, no que pode-
ríamos chamar de “escrita especular”. Ele escreve desse modo em
suas anotações privadas. Quando escreve para outros, por exemplo,
no texto de um mapa a ser apresentado a um comitente (tal como
o de Arno e Mugnone, atualmente na Royal Library, Windsor), ele
normalmente escreve do modo destro. Ambas as formas de escrita
parecem ser fluentes, sugerindo, em princípio, que ele também fez
uso considerável da escrita da esquerda para a direita; no entanto,
praticamente todas as suas anotações em manuscritos remanes-
centes ocorrem da direita para a esquerda. Mas na medida em que
podia escrever, e aparentemente o fazia sem qualquer dificuldade,
Leonardo era o que hoje se chama de “alfabetizado”. Quando se
referia a si mesmo como “um homem sem letras” (“omo sanza let-
tere”) queria dizer que não fora ensinado a ler e escrever em latim
e não fazia questão de ser erudito no sentido em que um huma-
nista como Leon Battista Alberti era considerado. Há algumas
indicações de que Leonardo tentou aprender latim sozinho — por
exemplo, uma lista de palavras em latim que ele escreveu no Codex
Trivulzianus (Milan, Castello Sforzesco).4 Embora os historiadores
discordem a respeito de quanto latim ele possa ter realmente apren-
dido, existem, ao menos, indicações de que Leonardo estava a par,
em algum grau, por exemplo, do ensino médico e óptico associado

4  Veja Clark, K. Leonardo da Vinci, introd. M. Kemp, Penguin Books, 1989


(1ª ed. 1939), p. 110.

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Juliana Barone

ao estudo de latim nas universidades, e é possível que ele recor-


resse a outras pessoas para explicar passagens de textos em latim
caso necessário. Vasari e o pintor e autor milanês Giovanni Paolo
Lomazzo (1538–1600) nos contam a respeito das realizações literá-
rias de Leonardo, mas nenhum dos seus supostos poemas sobrevi-
veu. De qualquer modo, ele tinha confiança suficiente na própria
educação a tal ponto que, entre seus muitos projetos, ele planejava
escrever um tratado da pintura.
Este projeto aparentemente se originou com o próprio Leonardo,
mais do que como uma sugestão de algum mecenas. Parece que
Leonardo, que se interessava por perspectiva, conhecia o tratado de
Piero della Francesca; ele pode ter tido conhecimento do mesmo
através de Luca Pacioli, o qual Leonardo encontrou, pela primeira
vez, em Veneza, em 1494. Os dois homens se tornaram amigos
quando vieram a trabalhar na corte em Milão, e Leonardo fez uma
série de desenhos de poliedros para ilustrar o tratado de Pacioli
“Da divina proporção” (De divina proportione, impresso em Milão,
1509). Algumas vezes, diz-se que Pacioli estimulou o interesse de
Leonardo pela matemática, mas os próprios interesses matemáti-
cos de Pacioli parecem ter sido em grande medida a aritmética e a
álgebra, assuntos que aparentemente não atraíram tanto Leonardo,
e é perfeitamente possível que o resultado desta amizade tenha sido,
antes, a influência de Leonardo sobre o interesse de Pacioli pela geo-
metria. Pequenos esboços de possíveis poliedros e de alguns impos-
síveis, conservados na grande compilação de notas e desenhos de
Leonardo, conhecida como o Codex Atlanticus (Milão, Biblioteca
Ambrosiana) mostram que Leonardo tinha uma incrível capacidade
de imaginar e representar formas em três dimensões.5

5  Veja Field, J. V. “Rediscovering the Archimedean polyhedra: Piero della


Francesca, Luca Pacioli, Leonardo da Vinci, Albrecht Dürer, Daniele Barbaro,
and Johannes Kepler”, Archive for History of Exact Sciences, 50 (no 3–4), 1997,
pp. 241–289.

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Leonardo da Vinci sobre a pintura e a observação da natureza

Um tratado sobre a pintura

Um editor deu ao tratado de Leonardo o título Trattato della pit-


tura. O tratado, na forma em que agora o conhecemos, é uma com-
pilação dos escritos e desenhos de Leonardo sobre a pintura, feita
por seu aluno e herdeiro, Francesco Melzi (1492– c. 1570). Registro
fiel dos estudos de Leonardo em seus manuscritos, o tratado é de
enorme interesse pois nos diz muito sobre como Leonardo consi-
derava que se devesse proceder no estudo da natureza e da pintura.
Ele acreditava que adquirir conhecimento da natureza era um passo
necessário à reprodução das aparências naturais em uma obra. De
fato, excepcional em Leonardo é a gama de temas que ele abran-
geu no seu estudo da natureza, a qual é também vividamente regis-
trada em seus manuscritos, tanto nos escritos quanto nos desenhos,
assim como o grau de detalhe de suas investigações. Entretanto, o
que temos no tratado não é um texto completo sobre a sua teoria e
prática da pintura, mas uma extensa série de notas e desenhos que
viriam a ser usados na redação de um texto definitivo. Leonardo
nos fala deste procedimento. Numa anotação de 22 de março de
1508, ele explica que o que irá registrar será uma coleção de itens de
fontes diversas, reunidos sem uma ordem particular. Ele acrescenta
que espera, eventualmente, ordená-los de acordo com seus temas.6
Esta é uma descrição adequada do que nós atualmente encontra-
mos nos manuscritos de Leonardo: há muita repetição e reescrita
e, algumas vezes, ao longo dos anos, o mesmo tópico é examinado
de diferentes pontos de vista. Leonardo, frequentemente, envolvia-
se num número de diferentes (mas, algumas vezes, relacionadas)
investigações ao mesmo tempo. Uma típica amplitude de interesses
pode ser vista na folha de desenhos em Windsor (Fig. 19, p. 464), que
data aproximadamente dos mesmos anos que o comentário que
acabamos de mencionar.

6  Londres, British Library, Codex Arundel 263, fol. 1r.

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Juliana Barone

No canto direito inferior, há estudos do olho seguidos por uma


sequência cinematográfica de um homem dando um golpe; o dia-
grama da esquerda mostra a gradação de sombra produzida por
uma bola quando a iluminação vem de duas fontes separadas. No
canto esquerdo superior, temos uma análise das fontes de luz azul
e vermelha e de sombras projetadas e, finalmente, os diagramas
do canto direito superior mostram a transmissão da luz através
de diferentes aberturas.7
Como Leonardo mesmo menciona, ele pretendia ordenar seus
escritos de acordo com o tema. Indicações de que ele realmente
o fez podem ser encontradas em diversas fontes do século XVI,
tais como a Vida de Leonardo, de Vasari, e os escritos de Giovanni
Paolo Lomazzo, assim como do joalheiro, ourives e autobiógrafo
florentino Benvenuto Cellini, que, com efeito, possuía alguns
manuscritos de Leonardo.
Em relação à pintura, o próprio Leonardo afirma claramente que
sua intenção era escrever um tratado, que ele chama “della pittura”,
e algumas indicações suas dos temas que seriam discutidos sobre-
viveram.8 Entretanto, o tratado tal como o conhecemos (Codex
Urbinas Latinus 1270, Rome, Biblioteca Vaticana) é uma compilação
executada cerca de vinte anos após a sua morte, por volta de 1540,
por Francesco Melzi. Na época da morte de Leonardo, em Amboise,
1519, Melzi herdou todos os manuscritos e desenhos leonardianos,
e, pouco depois, levou-os com ele a Milão, onde a compilação pro-
vavelmente ocorreu. Não está claro quanto este texto por ele com-
pilado satisfaz as próprias intenções de Leonardo. Melzi pode ter

7  A figura agachada, em giz vermelho, não é de Leonardo e provavelmente foi


executada antes dele utilizar a folha, que ele dobrou duas vezes. As dobras ainda
estão visíveis, e a vertical cruza as pernas da figura agachada.
8  Veja, por exemplo, Codex Atlanticus, fol. 360r. Para uma discussão do tratado
planejado por Leonardo, veja Barone, J. e Kemp, M. “What might Leonardo’s
own Trattato have looked like? And what did it actually look like up to the time
of the editio princeps?” In: Re-reading Leonardo. The Treatise on Painting across
Europe, 1550–1900, ed. C. Farago, Ashgate, 2009, pp. 39–60.

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Leonardo da Vinci sobre a pintura e a observação da natureza

omitido material que Leonardo pretendia incluir (há, por exem-


plo, muito menos do que poderíamos esperar sobre a construção
em perspectiva, e discussões sobre a anatomia estão ausentes), mas
comparações do que é apresentado no tratado com o material autó-
grafo de Leonardo mostram que o trabalho de cópia de Melzi foi fiel,
tanto pelas ilustrações quando pelo texto. Assim, conquanto possa-
mos ver a compilação como um guia possivelmente limitado quanto
aos temas que Leonardo trataria, no material que ela reproduz, é um
guia confiável. Dentro deste quadro, é muito significativo que Melzi
escolha nos lançar no tema da pintura com uma discussão explícita
de “se a pintura é ou não ciência” (“Se la pittura è scientia o no”).

A pintura como ciência e a comparação das artes

A exemplo de Alberti, Leonardo apela para a óptica básica, geo-


métrica, ou antes, inicialmente, para a geometria mesma: o ponto,
a linha, a superfície e o corpo são apresentados como princípios
da pintura.9 Entretanto, diferentemente de Euclides e Alberti,
Leonardo não trabalha na maneira da matemática, mas naquela
da filosofia natural. Ele nos diz que “ciência” (scienza) é o conhe-
cimento que explica as coisas em termos dos seus princípios: o
corpo como delimitado por superfícies, a superfície como deli-
mitada por linhas, a linha como terminada por pontos, e o ponto
como a menor coisa que pode haver. Ele acrescenta que o ponto é
a coisa mais fundamental de todas; não pode haver, na natureza ou
no pensamento humano, algo que seja seu princípio. Esta análise,
passando do complexo ao simples, está na tradição de Aristóteles
(384–322 a.C.) mais do que naquela de Euclides. Euclides trabalha
por síntese, começando com entidades simples e construindo-as

9  Veja Codex Urbinas, cap. 3. O original foi perdido, mas pode ser datado
c. 1500–5; veja Pedretti , C. e Vecce, C. (ed.) Leonardo da Vinci. Libro di
pittura, 2 vols, Florença: Giunti Gruppo Editoriale, 1995, vol. 1, pp. 132–133.

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Juliana Barone

em entidades mais complicadas. A distinção entre análise e síntese,


e as disputas sobre como cada uma deveria propriamente ser defi-
nida em diferentes contextos eruditos, é uma questão que poderia
ser chamada acadêmica, não apenas no presente sentido coloquial
de ser de limitado valor para o pintor em seu ateliê, mas também
no sentido estrito de que era uma questão bastante discutida nas
universidades e outros círculos eruditos do Renascimento. Ambos
os termos são derivados do grego e foram usados por filósofos anti-
gos, portanto, havia muito material para discussões filológicas e
filosóficas. De fato, no tratado de Leonardo, após algumas reflexões
filosóficas, prossegue uma comparação entre a pintura, a poesia, a
música e a escultura, a qual envolve discussões que consideram a
pintura como uma ciência. Leonardo utiliza a comparação entre
as artes para mostrar que a arte da pintura é “uma coisa mental”
(“cosa mentale”) e uma forma de conhecimento: o pintor precisa
entender como a natureza trabalha e usar o seu entendimento para
recriar a natureza na arte.
Essa comparação das artes parece ser original de Leonardo,
embora mais tarde tenha se tornado um gênero nos escritos de arte.
Debates desse tipo vieram a constituir uma importante caracte-
rística da tratadística artística, sendo, com frequência, designados
pelo termo italiano paragone (literalmente, “comparação”). O tema
da rivalidade entre as artes provavelmente surgiu em discussões na
corte dos Sforza no princípio de 1490, e Leonardo parece ter conti-
nuado a se interessar por ele até 1510.10 Nenhum precedente antigo
é conhecido. Há escritos antigos que comparam pintores e esculto-
res a poetas e oradores, mas só o fazem para explicar as qualidades
dos poetas e oradores envolvidos. Não há discussão dos méritos
específicos das artes visuais, e sequer uma comparação entre elas.

10  Veja Farago, C. Leonardo da Vinci’s ‘Paragone’. A critical interpretation


with a new edition of the text in the Codex Urbinas, Brill Studies in the History of
Art, Leiden, 1992.

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Leonardo da Vinci sobre a pintura e a observação da natureza

Portanto, enquanto alguns dos argumentos de Leonardo podem ser


vinculados a fontes antigas, o seu teor geral, não.
A comparação de Leonardo claramente tem implicações para o
status dos pintores e escultores. Ele está advogando uma revisão
da classificação tradicional das artes. Nesta classificação, escre-
ver poesia e compor música, consideradas como integrantes das
Artes Liberais — a poesia do trivium e a teoria musical do quadri-
vium — eram de status mais elevado que as atividades do pintor e
escultor, que eram consideradas “artes mecânicas” porque envol-
viam a utilização das mãos mais que do pensamento. Ou seja, pin-
tores e escultores eram considerados artesãos enquanto poetas e
compositores eram intelectuais. Compositores de música, em geral,
eram também músicos praticantes, o que tendia a introduzir uma
ambiguidade em seu status, embora músicos que compunham
complicadas peças polifônicas que requeriam uma compreensão
da teoria musical — figuras como Guillaume Dufay (c. 1400–1474)
e Josquin Desprez (1440–1521), ambos os quais passaram muito da
sua vida ativa na Itália — eram geralmente considerados eruditos.
Leonardo oferece argumentos para que também a pintura seja con-
siderada uma ciência, isto é, que a pintura seja inserida nas Artes
do quadrivium. Ele escreve com simpatia sobre a música, porque
assim como a música é baseada em relações matemáticas de pro-
porção e harmonia, também o é a pintura. Entretanto, ele é menos
favorável à poesia, insistindo que o que quer que possa ser evo-
cado em palavras, um pintor pode mostrar em imagens reais. Isto é
para polemizar o conhecido dictum de Horácio (Quintus Horatius
Flaccus, 65–8 a.C.) ut pictura poesis (“poesia é como pintura”).11
Especificamente, Leonardo desafia os poetas a superarem os pinto-
res em retratos, representações de batalhas, figuras belas ou mons-
truosas, ou paisagens. Uma pintura tal como a da Mulher com
Arminho (Fig. 20, p. 465) mostra o que ele tinha em mente quando se
referia a retratos. Leonardo considerava a escultura inferior à pin-

11  Horácio, Ars Poetica, l. 361.

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Juliana Barone

tura. Sua inferioridade é em parte consequência do maior esforço


que solicita, e ele acrescenta que tal labor faz um escultor parecer
ridículo porque este exercício:

é mecanicíssimo, com frequência acompanhado de muito


suor, combinado com pó, convertido em pasta. Com a face
empastada e todo enfarinhado de mármore, [o escultor]
parece um padeiro, e coberto com minúsculos cascalhos,
parece que nele nevou.12

Os comentários de Leonardo sobre a escultura — e talvez


mesmo (em menor medida) aqueles sobre a poesia — podem ser
devidos ao relacionamento pouco cordial com seu contemporâneo,
Michelangelo Buonarroti (1475–1564), que praticava ambas as artes.
Leonardo considerava que a atividade do escultor, além de fazê-lo
parecer um padeiro exausto, era inferior àquela do pintor porque
não necessitava de um conhecimento de luz e sombra, cor e pers-
pectiva. Já o pintor, por contraste, tinha de ser mestre de todas essas,
de modo a produzir os efeitos de relevo, escorço e profundidade
numa pintura executada em uma superfície plana. Isto é, a obra do
pintor necessitava de mais conhecimento e mais habilidade.
A Mulher com Arminho (Fig. 20, p. 465) é o trabalho comumente
escolhido para exemplificar as habilidades do pintor no contexto da
comparação de Leonardo entre as artes, em particular, em relação
aos desafios endereçados ao poeta. O retrato foi pintado por volta
de 1485, quando Leonardo estava em Milão, servindo ao Duque
Lodovico. O tema e as qualidades da modelo são semelhantes
àqueles louvados em sonetos de amor da época. A modelo, uma
bela jovem, é, com efeito, uma das favoritas de Lodovico, Cecilia

12  Codex Urbinas, cap. 36. O original foi perdido, mas pode ser datado c. 1490–
92. A tradução segue aquela em Barone, J. O Paragone do Tratado da Pintura
de Leonardo da Vinci: introdução à comparação entre as artes e tradução anotada,
dissertação de mestrado, Unicamp, 1996, cap. 31, p. 163.

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Leonardo da Vinci sobre a pintura e a observação da natureza

Gallerani. O animal que ela segura fornece a chave para a sua iden-
tidade: o termo grego para os membros da família das doninhas,
ao qual pertence o arminho, é galëe, que alude ao seu sobrenome
“Gallerani”.13 O arminho também indica as qualidades de Cecilia:
ele representa a moderação e a pureza. Não é somente ao utilizar
símbolos que o pintor desafia o poeta; a pintura também expressa
um vívido sentido de comunicação. Cecilia não é representada
numa postura frontal, estática, mas, ao contrário, virando-se, possi-
velmente interagindo com alguém fora da moldura, e parece pronta
a sorrir. A pintura também é notável pelos efeitos sutis de cor e
sombra na face, pescoço e mão de Cecilia, e no corpo do arminho.
As gradações de luz levam em conta como diferentes ângulos de
incidência proporcionam várias intensidades.
A arguição central de Leonardo para atribuir à pintura um status
mais elevado que as artes rivais tem como objetivo caracterizar a
pintura como uma forma de ciência visual. Para Leonardo, o pin-
tor retrata a forma natural fazendo recurso à natureza mesma. Ao
estudar a natureza, através da experiência, o pintor descobre como
a natureza opera e utiliza o seu conhecimento das leis naturais para
recriá-la numa representação visual.
Devemos observar aqui que a palavra “experiência” tal qual a usa-
mos não tem a mesma variedade de significados atribuídos ao termo
utilizado por Leonardo (experientia ou esperientia), que poderia sig-
nificar tanto o que hoje entendemos por “experiência” quanto o que
chamamos de “experimento”. Além disso, entre os nossos conceitos
de experiência e experimento, se encontra, claro, o de observação,
no qual aparatos especiais podem ser utilizados, como, muitas vezes,
na astronomia. A observação também foi, algumas vezes, chamada
de “experiência”. No caso de Leonardo, por exemplo, a fim de testar
princípios que ele havia deduzido da observação da natureza contra
a experiência real, ele estabeleceu arranjos que emulavam as condi-

13  Veja Kemp, M. Leonardo da Vinci: The Marvellous Works of Nature and Man,
Londres: Everyman, 1981.

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ções normais. Como muitos investigadores antes dele, ele também


realizou o que deveríamos agora chamar de “experimentos mentais”,
e fez cálculos e demonstrações práticas de princípios que observou.
Em sua comparação com as artes, Leonardo defende a pintura, e
opõe esta forma de arte contra as outras numa série de combates
individuais, estabelecendo uma série de conclusões. Ele também
considera questões de classificação. Em sua discussão sobre quais
artes são mecânicas e quais não o são, chega a conclusão de que:

As ciências verdadeiras são aquelas que a experiência fez


adentrar pelos sentidos e impôs silêncio à língua dos litigan-
tes. Esta não alimenta com sonhos seus investigadores, mas
sempre prossegue a partir de princípios verdadeiros e notó-
rios, com sucessivas e verdadeiras averiguações, até o fim,
como se denota nas primeiras matemáticas (…). E se tu dis-
seres que tais ciências verdadeiras e notórias pertencem ao
grupo das mecânicas, porque não podem ser findadas exceto
manualmente, direi o mesmo de todas as artes que passam
pelas mãos de escritores, que pertencem ao grupo do desenho,
parte da pintura.14

Leonardo vê a ciência da pintura como derivando da experiên-


cia, que ele afirma ser a “mãe de todas as certezas” (madre di ogni
certezza), como, de fato, ele nos deixou um enorme número de
desenhos que registram observações e experimentos. Um exemplo
de tal estudo (Fig. 21, p. 466) mostra uma das muitas observações de
Leonardo do fluxo da água, neste caso ao redor de obstáculos. Seu
trabalho como engenheiro envolvia o controle do fluxo da água, e
entender o seu comportamento era relevante, pois ele afetava os

14  Codex Urbinas, cap. 33. O original foi perdido, mas pode ser datado c. 1500;
veja Pedretti, C. e Vecce, C., vol. 1, pp. 156–157. A tradução segue aquela
em Barone, J. O Paragone do Tratado da Pintura de Leonardo da Vinci: intro-
dução à comparação entre as artes e tradução anotada, dissertação de mestrado,
Unicamp, 1996, cap. 29, pp. 159–160.

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Leonardo da Vinci sobre a pintura e a observação da natureza

bancos de rios e canais, mas o interesse de Leonardo também era,


obviamente, um interesse puramente visual. No mais, Leonardo rea-
lizou muitos estudos do fluxo de água como parte de suas investiga-
ções sobre o movimento. Ele planejava escrever um tratado sobre
o movimento da água; estudos supostamente de um esboço deste
tratado encontram-se no Codex Leicester (USA, col. Bill Gates), no
qual Leonardo classifica os vários tipos de fluxo produzidos por
diferentes formas de obstrução. Em outras ocasiões, ele estabelece
um apelo à antiga analogia entre microcosmo e macrocosmo: a nota
que acompanha o desenho de Windsor (Fig. 21, p. 466) compara o
fluxo de água ao crescimento do cabelo.
A comparação entre as artes de Leonardo é o tema do primeiro
livro do tratado da pintura. Os outros sete livros são menos siste-
máticos em relação ao conteúdo e à organização, de modo que não
os apresentaremos na ordem em que aparecem — uma ordem que,
de todo modo, talvez se deva mais a Melzi que a Leonardo. Ao invés
disso, falaremos sobre tópicos desenvolvidos ao longo destes livros
que Leonardo considera parte da ciência da pintura.

O sentido da visão

Como parte do seu estudo da pintura, Leonardo estava interes-


sado nos órgãos da visão e na faculdade visual: o olho e as partes do
cérebro que fazem com que o que vemos seja compreendido. Esta
questão, que envolvia o problema da transmissão de raios visuais do
olho ao objeto (em contraposição à teoria de que imagens do objeto
eram transmitidas deste até o olho), e considerações de anatomia, é
parte da perspectiva, que era a ciência completa da visão. Algumas das
ideias de Leonardo podem ser vistas num desenho que mostra seções
verticais e horizontais através da cabeça humana (Fig. 22, p. 466).
Este estudo das seções através da cabeça humana foi realizado
entre 1489–92, quando Leonardo estava em Milão. Ao olhar para
tais desenhos, precisamos lembrar que a anatomia é uma ciência

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caracteristicamente inexata. Normalmente um corpo humano não


corresponde a outro em todos os detalhes, e muitas estruturas são
suficientemente complicadas para convencer os anatomistas de que
eles encontraram o que de fato buscavam. Os estudos do cérebro
feitos por Leonardo nos apresentam agora um claro exemplo da
dificuldade em distinguir entre os elementos fornecidos por cuida-
dosa dissecação e aguda observação, e aqueles devidos à leitura de
textos médicos e de uma vívida imaginação visual. Nos desenhos do
cérebro, em especial, Leonardo seguiu o sistema tradicional no qual
o cérebro tem três ventrículos interconectados. O primeiro, cha-
mado imprensiva (ou impressiva) recebe as impressões sensoriais. O
segundo ventrículo, chamado sensus communis, recolhe e combina
a informação recebida; é o sítio do intelecto, da faculdade de jul-
gar e da imaginação (fantasia). Leonardo é altamente inovador ao
associar o intelecto à imaginação deste modo, e o faz de modo intei-
ramente consistente com sua teoria da arte, que descreve o pintor
como tendo de empregar o poder racional do intelecto ao descobrir
como a natureza opera, e depois utilizar a imaginação para recons-
truir a natureza, de acordo com estas operações naturais. O terceiro
ventrículo é onde a memória se localiza. O olho desempenha um
papel central neste sistema, comunicando diretamente com as séries
de ventrículos.15 Nessa época, Leonardo aparentemente ainda não
aprendera que os nervos dos dois olhos se cruzam um com o outro,
embora a informação estivesse disponível em textos ópticos e seus
estudos tardios mostrem que ele então aprendera sobre isto.16

15  Veja Kemp, M. J. “‘Il concetto dell’anima’ in Leonardo’s early skull studies”,
Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, 34, 1971, pp. 115–134; e Kemp,
M. J., “Dissection and divinity in Leonardo’s late anatomies”, Journal of the
Warburg and Courtauld Institutes, 35, 1972, pp. 200–225.
16  Ver o desenho no canto direito inferior (Fig. 22, p. 466).

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Leonardo da Vinci sobre a pintura e a observação da natureza

Perspectiva artificial

Leonardo estava interessado não apenas no sentido da visão,


mas também em dispositivos para ajudar o futuro pintor a apli-
car a experiência visual na produção de pinturas que imitavam o
mundo natural. Um exemplo de tal dispositivo (Fig. 23, p. 467) mostra
o esboço de um artista utilizando um auxílio perspéctico na pro-
dução de um desenho de uma esfera armilar. Há uma certa ironia
aqui, na medida em que, embora a esfera seja, de fato, um objeto
bastante complicado para uma representação bidimensional cor-
reta, Leonardo realizou um bom trabalho ao desenhá-lo de modo
convincente, em perspectiva, aparentemente sem nenhum auxí-
lio de instrumento perspéctico. Por outro lado, é possível que ele
tenha utilizado um instrumento óptico de algum tipo ao realizar os
desenhos de poliedro para ilustrar o tratado Da divina proporção
de Luca Pacioli.17 A obra foi escrita em Milão, no fim da década
de 1490 e, versões xilogravadas dos desenhos de Leonardo apare-
ceram na edição impressa, em 1509. As ilustrações em perspectiva
não eram, de modo algum, comuns em textos matemáticos; era nor-
mal que as palavras oferecessem toda a informação necessária para
desenhar os diagramas — a ideia aparentemente era a de que os lei-
tores fariam seus próprios desenhos.
O dispositivo em perspectiva que Leonardo mostra (Fig. 23, p. 467),
o qual provavelmente foi por ele inventado, tornou-se depois recor-
rente em escritos sobre a perspectiva, embora geralmente apresen-
tado com algumas variações. Como seus predecessores e sucessores,
Leonardo está pensando em termos da “pirâmide visual”, intersec-
tada por um plano que será o da pintura em perspectiva. O dispo-
sitivo, em seu desenho, oferece uma forma física a este plano de

17  Field, J. V. “Rediscovering the Archimedean polyhedra: Piero della


Francesca, Luca Pacioli, Leonardo da Vinci, Albrecht Dürer, Daniele Barbaro,
and Johannes Kepler”, Archive for History of Exact Sciences, 50 (no 3–4), 1997,
pp. 241–289.

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interseção: a forma do painel plano de vidro. O desenho do objeto


feito no vidro será menor que o próprio objeto, de acordo com as
regras matemáticas que governam a visão natural, isto é, a perspec-
tiva communis. No segundo livro do seu tratado da pintura, e num
dos seus manuscritos, Leonardo explica o procedimento para a uti-
lização deste tipo de dispositivo. Ele diz que o “olho está a uma certa
distância do plano de vidro” e que “a cabeça está presa por um ins-
trumento, de modo tal que ela não pode absolutamente ser movida”.
Então um olho é coberto ou fechado e “a imagem do objeto é tra-
çada no vidro” e “transferida ao desenho no papel”.18 Investigações
e discussões mais abstratas da perspectiva aparecem no tratado da
pintura, em certa medida no primeiro livro e de maneira mais evi-
dente no segundo e terceiro, mas considerações sobre a matemática
da óptica geométrica, que Piero della Francesca chama de “pers-
pectiva para a pintura” (perspectiva pingendi), não desempenham
um papel importante na obra. Nos manuscritos de Leonardo, dis-
cussões deste tipo de perspectiva aparecem, sobretudo, nos escri-
tos que podem ser datados como de juventude. O interesse em tais
questões pode ser visto na sua pintura da Anunciação, uma das suas
primeiras obras, datada por volta de 1473. Nela, a arquitetura da
casa da Virgem é representada em perspectiva e há um pavimento
quadrangulado à direita; o quadrangulamento era, muitas vezes,
utilizado para chamar a atenção para a perspectiva. No entanto, o
mais claro exemplo na pintura do envolvimento de Leonardo com
este tipo de perspectiva, hoje conhecida como “perspectiva linear”,
está em sua Última Ceia (Fig. 40, p. 472), pintada na parede de fundo
do refeitório do convento Dominicano de Santa Maria delle Grazie,
Milão, provavelmente em 1497.
A pintura foi executada como parte do programa de redecoração
da igreja e dos prédios do convento do Duque Lodovico. Em 1492,

18  Codex Urbinas, cap. 90. O original, no MS A, fol. 104r, é datado c. 1492; veja
Pedretti, C. e Vecce, C., vol. 1, pp. 187–188. Passagens semelhantes são
encontradas no Codex Urbinas, cap. 152 e no MS A, fol. 10v.

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Leonardo da Vinci sobre a pintura e a observação da natureza

este programa envolveu o trabalho de Donato Bramante (1444–


1514). A documentação remanescente, sobre a pintura de Leonardo,
é escassa, mas um memorando escrito por Lodovico Sforza ao seu
secretário, em 29 de Junho de 1497, indica que o Duque estava
ansioso para que Leonardo terminasse a obra e, em 9 de fevereiro
de 1498, Luca Pacioli (no prefácio de sua Da Divina Proporção)
trata da pintura como se esta estivesse então acabada.
Na medida em que a Última Ceia é uma pintura mural, a técnica
tradicional para a obra teria sido o afresco, mas Leonardo preferiu
utilizar uma técnica mais semelhante à da têmpera (tal como utili-
zada sobre um painel coberto com gesso). Esta se adequava mais ao
seu método de trabalho vagaroso, e não necessariamente regular,
assim como permitia mais riqueza de tom e cor. No afresco, era
necessário decidir antecipadamente que parte pintar num deter-
minado dia, e o trabalho tinha de prosseguir ao longo da compo-
sição de modo mais ou menos ordenado. A escolha da técnica é
algumas vezes vista como indicativo de que Leonardo evitava o
planejamento detalhado, mas a pintura, por sua vez, parece ter sido
planejada com cuidado e, particularmente, parece ter um esquema
perspéctico construído de forma adequada. Sem dúvida, esta era
a impressão que Leonardo queria causar, embora, como podemos
averiguar hoje, ele tenha tido problemas sobre onde posicionar o
olho do observador. Há alguns deslocamentos no esquema pers-
péctico de Leonardo, os quais provavelmente decorreram da sua
tentativa de superar o problema do posicionamento do ponto de
vista, embora este não tenha, de fato, uma solução exata. A pintura
de Leonardo está consideravelmente acima do nível do olho do
observador real, de modo que um outro nível do olho, inacessível,
deve ser utilizado na construção perspéctica se se quer ver a super-
fície superior da mesa. De fato, este ponto de vista ideal parece
ter sido tomado ao nível dos olhos de Cristo, o que faz sentido, se
pensamos no ponto cêntrico para indicar o lugar ao qual o olhar
do observador será direcionado. Por outro lado, poderia ter sido
possível representar o teto do recinto onde se encontram Cristo

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Juliana Barone

e seus discípulos de modo “correto”, como se fosse visto do chão


do refeitório real, mas na obra de Leonardo as linhas ortogonais
do teto convergem para a cabeça de Cristo, de modo a indicar a
altura do olho do observador ideal. Inconsistências no esquema
perspéctico de Leonardo também envolvem a relação entre o teto
pintado e a cornija (a “moldura” horizontal no alto). O teto, tal
qual representado, não se une ao plano pictórico da parte inferior
da cornija, e não encontra as paredes laterais. Parecem ter havido
razões pictóricas para isto, pois a perspectiva “correta” produziria
uma relação inadequada entre a arquitetura fictícia, pintada, e a
arquitetura real do refeitório.19 Também ocorrem ajustes feitos cla-
ramente em função do conteúdo narrativo da pintura. Por exemplo,
as figuras foram feitas grandes demais em relação à mesa, mas seu
tamanho torna muito mais fácil para o espectador ler suas emoções
nas expressões faciais e nos gestos. Assim, embora a Última Ceia
de Leonardo pareça cientificamente correta, ela não é. Sem dúvida,
Leonardo estava interessado na representação acurada da natureza,
na qual a perspectiva matemática, ou linear, era um método grá-
fico importante, mas quando pintava um quadro, certos aspectos
pictóricos prevaleciam.

Cor e perspectiva aérea

A construção da perspectiva linear é menos proeminente nas


pinturas tardias de Leonardo. De fato, existem outros métodos que
podem ser usados para indicar distância, em particular, nas paisa-
gens, e estes também Leonardo considera parte da ciência do pintor.
Como ele observa no primeiro livro do tratado da pintura:

19  Veja Kemp, M. The Science of Art: Optical themes in western art from
Brunelleschi to Seurat, New Haven e Londres: Yale University Press, 1990.

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Leonardo da Vinci sobre a pintura e a observação da natureza

a perspectiva está dividida em três partes, das quais a pri-


meira relaciona-se somente aos contornos dos corpos; a
segunda, à diminuição das cores de acordo com distân-
cias diversas; a terceira, à perda de definição dos corpos de
acordo com distâncias variadas.20

O primeiro tipo de perspectiva que ele menciona é a linear. O


segundo é a perspectiva da cor; e o terceiro é perspectiva de desapa-
recimento ou perspectiva aérea.
A perspectiva da cor e aérea são estreitamente relacionadas.
Ambas são causadas pela camada de ar entre o olho e o objeto, afe-
tando o modo como tanto a cor e a definição da forma são perce-
bidas. As observações de Leonardo sobre estes dois tipos de pers-
pectiva recebem considerável atenção no quinto livro do tratado da
pintura, e aparecem, embora mais brevemente, no segundo e ter-
ceiro livros. Elas também figuram no sexto, sétimo e oitavo livros,
que analisam os efeitos da cor, luz e sombra sob os títulos “Árvores”,
“Nuvens” e “Horizonte”.
A aplicação das investigações teóricas de Leonardo sobre a
perspectiva da cor e aérea é visível na Virgem dos Rochedos (Fig.
24, p. 467), conhecida em duas versões, a primeira, em Paris, e a
segunda, em Londres.
Embora esta pintura seja relativamente documentada, não o é
de modo completo ou satisfatório. O mais antigo dos documentos
remanescentes, que data de 25 de abril de 1483, é o da comissão
para o altar da Fraternidade Milanesa da Imaculada Concepção. Ele
é endereçado a todos os artistas e artesãos envolvidos na obra, mas
fornece mais detalhes da moldura do que o que se espera da pintura
de Leonardo no painel central. Este documento informa, também,
que uma vez completa, a obra deveria ser posta no altar em San

20  Codex Urbinas, cap. 6. O original foi perdido, mas pode ser datado em
c. 1500–5; veja Pedretti, C. e Vecce, C., vol. 1, pp. 133–134. Uma passagem
semelhante encontra-se no MS A, fol. 98r.

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Juliana Barone

Francesco Grande. Há evidência de que, em 1490, Leonardo dis-


cutia com a Fraternidade sobre o valor da sua pintura e, de fato,
a primeira versão da Virgem dos Rochedos não ficou em posse da
Fraternidade. Ela foi vendida, talvez, a Lodovico Sforza que, no
princípio de 1490, pode tê-la oferecido ao sobrinho como presente
de casamento.21 Uma segunda versão então teve de ser feita para a
Fraternidade, mas não foi terminada até 1506.
Leonardo acreditava que a perspectiva da cor e aérea operavam
de acordo com um sistema, e ele tentou expressar as relações envol-
vidas em termos de proporções. No segundo livro do tratado da
pintura, Leonardo observa que:

Se assumimos que a qualidade da cor é conhecida através da


luz, devemos deduzir que, onde há mais luz, mais a verda-
deira qualidade da cor iluminada será vista, e onde há mais
sombra, a cor será tingida pela cor desta sombra.22

A Virgem dos Rochedos revela como Leonardo aplicou tais ideias


em sua pintura. O drapeado ao longo do corpo da Virgem mostra
uma série de transições para áreas gradativamente mais iluminadas
de amarelo, e a área sombreada sob o braço esquerdo é muito mais
escura que o amarelo que recebe a luz mais direta. No modo usual
de representar sombras, tal como descrito por Cennino Cennini, e
visto em muitas pinturas, a sombra nas dobras do tecido azul seria
de um azul mais intenso, em um tecido amarelo um amarelo mais
intenso, e assim por diante. Ao contrário, Leonardo acredita que as
sombras não são criadas por cores saturadas ou intensas, mas pelo
velamento da cor com o escuro, isto é, com graus proporcionais de
sombra. Ele aplica regras de proporção semelhantes no modelar das

21  Veja Kemp, M. J. Leonardo da Vinci: The Marvellous Works of Nature and
Man, Londres: Everyman, 1981, pp. 93–99.
22  Codex Urbinas, cap. 210. O original está no MS A, fol. 112r e é datado c. 1492;
veja Pedretti, C. e Vecce, C., vol. 1, p. 231.

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Leonardo da Vinci sobre a pintura e a observação da natureza

formas pela variação da iluminação. As gradações da luz nas faces


da Virgem e do Anjo seguem a variação no ângulo de incidência da
luz em tais superfícies; e as transições tonais na palma da Virgem
mostram o efeito da luz refletida de áreas diretamente iluminadas.
Leonardo também investigava alterações na cor e definições da
forma de acordo com alterações na distância, e na altura em rela-
ção ao horizonte, como por exemplo, os cumes das montanhas ou
edifícios. Ele observa no segundo livro do tratado da pintura que
“quanto mais distantes, estes se tornam mais azuis e menos nítidos
de contorno”.23 O fenômeno é atribuído à camada de ar entre o olho
e o objeto. A altura também tem efeito: “o ar assumirá menos da cor
azul à medida que está mais próximo do horizonte”.24 Disto segue
que, quando o pintor representar montanhas, ele deve “assegurar
que de montanha em montanha as bases são sempre mais claras que
os cumes”, e quando ele representar “uma montanha mais distante
da outra”, ele deve “fazer as bases gradativamente mais claras”.25

Movimentos do corpo e da alma

A ciência da pintura de Leonardo inclui o estudo do movi-


mento. Tal postura é totalmente consistente com o tratamento de
um filósofo natural da época porque, no começo do terceiro livro
da sua Física, Aristóteles diz que estudar a natureza é estudar o
movimento (utilizando a palavra para designar tanto movimento
quanto mudança).26 Assim, embora a ideia fosse um lugar comum
nos círculos eruditos, era altamente original para um pintor, e

23  Codex Urbinas, cap. 262. O original está no MS A, fol. 105v e é datado c. 1492;
veja Pedretti, C. e Vecce, C., vol. 1, pp. 149–150.
24  Codex Urbinas, cap. 226. O original foi perdido, mas pode ser datado
c. 1505–10; veja Pedretti, C. e Vecce, C., vol. 1, pp. 236–237.
25  Codex Urbinas, cap. 149. O original está no MS A, fol. 98r e pode ser datado
c. 1492; veja Pedretti, C. e Vecce, C., vol. 1, pp. 208–209.
26  Aristotle, Physics 3.i, 200, b.12 ff.

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Juliana Barone

mostra a preocupação de Leonardo em compreender os princípios


da natureza. Por exemplo, no terceiro livro do tratado, Leonardo
afirma que o movimento vem da quebra do equilíbrio, de modo que
quanto mais distante a figura está de uma posição estável, em equilí-
brio, mais violento o movimento será.27 Ele também pede ao pintor
para representar não apenas “os movimentos corporais” (moti cor-
porali) mas também os “movimentos mentais” (moti mentali), ou
seja, os “movimentos da alma”: assim como torções e inclinações do
corpo revelariam a quebra do equilíbrio e diferentes intensidades
da força, estes movimentos também deveriam ser apropriados aos
estados mentais das figuras. O pintor deve usar as ações corporais
das figuras para expressar as paixões das suas almas. Caso contrá-
rio, a figura estaria “duas vezes morta”: “morta, primeiro, por ser
uma representação, e novamente morta porque a representação não
apresenta movimento nem da alma nem do corpo”.28 Seus desenhos
de cabeças de guerreiros (Fig. 25, p. 467) nos estudos para a pintura
da Batalha de Anghiari — um mural comissionado pelo Governo
Florentino, em 1503, mas nunca completado, fornece exemplos cla-
ros do que Leonardo entendia com este conselho.
O mural deveria cobrir uma das paredes da Sala do Conselho, o
grande cômodo central do Palazzo della Signoria (hoje, chamado
Palazzo Vecchio), formando um par com a Batalha de Cascina, de
Michelangelo. Leonardo utiliza uma nova técnica para modelar for-
mas “à maneira de fumaça” (agora chamado comumente de sfumato),
na qual há uma delicada gradação na transição da luz à sombra. Esta
técnica é particularmente adequada às sutis variações exigidas no
representar os “movimentos da alma” nas expressões faciais.
Leonardo está tentando encontrar os princípios por trás dos fenô-
menos naturais. Suas observações do movimento humano estão

27  Codex Urbinas, cap. 317. O original foi perdido, mas pode ser datado
c. 1505–10; veja C. Pedretti e C. Vecce, vol. 2, p. 270.
28  Codex Urbinas, cap. 297. O original foi perdido, mas pode ser datado
c. 1505–10; veja C. Pedretti e C. Vecce, vol. 2, pp. 263–264.

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Leonardo da Vinci sobre a pintura e a observação da natureza

consequentemente associadas aos seus estudos de anatomia e das


proporções do corpo humano. Portanto, no terceiro livro do seu tra-
tado, ele aconselha o pintor a prestar atenção aos ossos sustentando
e suportando a carne situada nas juntas, que crescem e diminuem
com os movimentos,29 e observar que “corda” (nervo) ou músculo
causa um movimento determinado. Isso permitiria ao pintor evitar
que seus nus parecessem de madeira ou desprovidos de graça.30 Um
exemplo do tipo de estudo anatômico que Leonardo tem em mente
pode ser visto numa folha de Windsor (Fig. 26, p. 467) que mostra a
estrutura do pé e da parte inferior da perna.
Este desenho data de cerca 1510, mas as primeiras dissecações
de Leonardo parecem ter ocorrido por volta de 1490 e ter sido de
animais (macacos, sapos e, possivelmente, um cavalo). O registro
mais significativo que temos das dissecações humanas de Leonardo
refere-se a um velho (Leonardo simplesmente o identifica como il
vecchio), realizada no hospital de Santa Maria Nuova, em Florença,
no inverno de 1507–8. Dissecações — públicas ou privadas — sem-
pre ocorriam durante os meses de inverno, pois o tempo frio retar-
dava a decomposição do cadáver. Dissecações públicas, comumente
de corpos de criminosos executados, eram realizadas por profes-
sores universitários para o benefício dos estudantes de medicina, o
trabalho manual sendo feito, não pelo professor erudito, mas por
um assistente. O professor comentava sobre o que era encontrado.
Dissecações públicas eram, usualmente, realizadas em dois ou três
dias. Em geral, um acordo segundo o qual as autoridades da cidade
forneceriam à universidade um certo número de corpos por ano. O
número seria algo em torno de dois ou três e, embora dissecações
humanas fossem realizadas regularmente, elas não eram frequentes.
Órgãos internos, como o coração, algumas vezes, eram cozidos para

29  Veja, por exemplo, Codex Urbinas, cap. 274. O original foi perdido, mas
pode ser datado c. 1508–10; veja Pedretti, C. e Vecce, C., vol. 2, p. 255.
30  Codex Urbinas 340. O original está no MS L, fol. 79 e pode ser datado de
c. 1502; veja Pedretti, C. e Vecce, C., vol. 2, p. 278.

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Juliana Barone

serem preservados. O primeiro Teatro Anatômico especializado foi


construído na Universidade de Pádua, em 1594 (e ainda hoje existe).
Teatros semelhantes foram construídos, mais tarde, em outras cida-
des. Na ausência destes, as dissecações eram realizadas no maior
prédio disponível, que seria, provavelmente, uma igreja.
As estruturas anatômicas são normalmente complicadas. As ilus-
trações anatômicas de Leonardo mostram que ele dava considerá-
vel atenção ao modo de representar tais estruturas tridimensionais
no papel, e tomava grande cuidado com a clareza e precisão nos
detalhes. Suas ilustrações revelam, também, que ao longo dos anos
ele desenvolveu e aprimorou novas técnicas de representação.31 Por
exemplo, ao mostrar músculos do braço e ombro (Fig. 27, p. 468), não
apenas escolhe uma vista particularmente reveladora, mas também
oferece representações da estrutura a partir de diferentes pontos
de observação. Este desenho parece ter sido concebido como uma
série de oito vistas. Há um outro que se relaciona às quatro vistas
restantes — trabalhando do lado de fora do braço para uma visão
que é quase um perfil.32 No tratado da pintura, Leonardo observa
que o efeito do olho se movendo ao redor de um objeto é o mesmo
que o de um objeto girando.33 E em uma das suas folhas de estudos
anatômicos, ele escreve:

minha representação do corpo humano ser-te-á mostrada


como se fosse um homem real na tua frente (…) como se tives-
ses o mesmo membro do corpo na tua mão e fosses girando-o
gradualmente até que tivesses pleno conhecimento dele.34

31  Ver Kemp, M. “‘Il concetto dell’anima’ in Leonardo’s early skull studies”,
Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, 34, 1971, pp. 115–134; e Kemp,
M. J., “Dissection and divinity in Leonardo’s late anatomies”, Journal of the
Warburg and Courtauld Institutes, 35, 1972, pp. 200–225.
32  Veja Windsor, RL 19005v.
33  Codex Urbinas, cap. 402. O original foi perdido, mas pode ser datado
c. 1508–10; veja Pedretti, C. e Vecce, C., vol. 2, p. 299.
34  Windsor, RL 19061r.

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Leonardo da Vinci sobre a pintura e a observação da natureza

Uma outra técnica que Leonardo adota é a de representar coisas


como se fossem transparentes, de modo a ser possível visualizar
as estruturas mais profundas à medida que as camadas externas
são removidas, como no desenho da anatomia do pé e da parte
inferior da perna (Fig. 26, p. 467). Neste caso, no entanto, ao invés
de ter sido feito diretamente durante uma dissecação, este desenho,
extremamente acabado, provavelmente foi realizado posterior-
mente, baseado numa série de esboços preliminares produzidos
durante a dissecação. De qualquer modo, Leonardo está tentando
ser o mais fiel possível em sua descrição visual da estrutura e meca-
nismo do sistema combinado de pé e tornozelo, à medida em que
são expostos durante o processo de remoção das camadas de tecido
na dissecação de fato. É possível que — talvez, através do amigo, o
anatomista Marco Antonio della Torre (1481–1511) — Leonardo
soubesse algo sobre a obra do médico, anatomista e filósofo natural
grego, Galeno de Pérgamo (129– c. 216). Entretanto, Leonardo pro-
vavelmente preferia a comunicação visual às descrições verbais de
Galeno e outros autores de anatomia.

Conhecimento visual

Para Leonardo, a visão é a fonte mais clara e confiável do “ver-


dadeiro conhecimento” das formas e fenômenos. Ele afirma que
expressar uma informação detalhada em palavras exige “uma quan-
tidade imensa, cansativa e confusa de escrita e tempo”.35 As palavras,
em geral, são utilizadas em suas investigações somente como uma
legenda explicativa ou para descrever o que é representado. Quando
se trata de desenhos preparatórios para pintura, novamente pode-
mos ver Leonardo pensando através de imagens, e fazendo isso
de modo original. No segundo livro do seu tratado da pintura, ele
aconselha o pintor a desenhar rapidamente e a não dar aos membros

35  Windsor, RL 19007v e 19013v.

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Juliana Barone

muito acabamento.36 Somente quando o esboço tivesse alcançado


o que se passava na mente do pintor é que ele deveria prosseguir,
acrescentando e/ou removendo elementos para fazer a sua obra cor-
reta em termos de proporção, perspectiva e fidelidade à natureza.
Algumas vezes, entretanto, Leonardo lembra que seria o “caos” das
linhas superpostas no desenho que levaria o pintor a criar novas for-
mas e invenções.37 Esta técnica de trabalhar composições, em inglês
também chamada de brainstorming, permite uma forma transfor-
mar-se rapidamente em outra e o pintor pode, portanto, alcançar
o acordo desejado entre o movimento do corpo e aquele da mente
do personagem representado.38 No estudo da Virgem e Menino com
Santa Ana e o pequeno São João (Fig. 28, p. 468), por exemplo, há um
tal número de alternativas nas posições dos personagens, umas
conduzindo às outras, que este intenso brainstorming, neste caso,
tornou o desenho ilegível. Leonardo, então, utiliza alguns toques
em branco sobre o trabalho preliminar em giz negro e a pena para
destacar a versão preferida — que ele, então, transfere para o outro
lado da folha pressionando o seu contorno. A técnica de “brainstor-
ming” de Leonardo não é uma simples mudança de estilo gráfico
quando comparada a de seus predecessores, mas uma inovação no
próprio processo criativo. Ela facilita precisamente o “avanço” que
Vasari atribui a Leonardo ao identificá-lo como o pintor que iniciou
o terceiro e mais elevado período da arte italiana. Leonardo, Vasari
diz, “fazia suas figuras realmente se moverem e respirarem”.39

36  Codex Urbinas, cap. 64. O original encontra-se no MS A, fol. 88v e pode ser
datado c. 1492; veja Pedretti, C. e Vecce, C., vol. 1, p. 175.
37  Veja, por exemplo, Codex Urbinas, cap. 76. O original encontrado-se no MS
A, fol. 106r e pode ser datado c. 1492; veja Pedretti, C. e Vecce, C., vol.
1, p. 182. Para comentários sobre este procedimento adotado por Leonardo,
veja Gombrich, E. H. “Leonardo’s method of working out compositions”. In:
Norm and Form, Londres: Phaidon Press, 1993 (1st ed. 1966), pp. 58–63.
38  Codex Urbinas, cap. 189. O original foi perdido, mas pode ser datado
c. 1490–92 ou c. 1500–05; veja Pedretti, C. e Vecce, C., vol. 1, pp. 221–222.
39  Vasari, G. Le Vite de’ più eccellenti pittori, scultori e architettori nelle redazioni
del 1550 e 1568, ed. R. Bettarini e P. Barocchi, 6 vol., Florença, 1976, vol. 4, p. 8.

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Leonardo da Vinci sobre a pintura e a observação da natureza

As investigações de Leonardo do mundo natural e suas novas


técnicas de representação estavam associadas à sua reivindicação
de que a pintura é uma ciência, produzindo uma forma de conhe-
cimento visual. Ele certamente buscou registrar observações dos
objetos e fenômenos naturais, embora representações cientifica-
mente corretas estavam, algumas vezes, fora de alcance. Mesmo na
aparentemente ordenada questão da perspectiva — como vimos na
Última Ceia (Fig. 40, p. 472) — a perfeição óptica teve de ser sacrifi-
cada em favor de uma aparência que fosse correta pictoricamente.
Entretanto, tanto as obras pictóricas quanto os escritos de Leonardo
testemunham sua busca de princípios da natureza para, utilizando-
os na pintura, caracterizá-la como uma forma de ciência visual.
Quanto ao legado dos manuscritos de Leonardo, estes consti-
tuem uma extraordinária fonte de conhecimento, escrita e visual,
mas não é tarefa simples avaliar o quanto influenciaram as gera-
ções posteriores. Em grande medida desconhecidos até o século
XIX, seus manuscritos permaneceram muito menos conhecidos
que o tratado da pintura, o qual circulou amplamente, embora
na forma de versões abreviadas, feitas a partir da compilação de
Melzi. Uma dessas foi impressa pela primeira vez em meados do
século XVII,40 época na qual muito do conteúdo científico aristo-
télico já era datado, embora as reivindicações de Leonardo para a
pintura não o fossem. Como todo historiador a partir de Vasari
concorda, a obra de Leonardo como pintor é amplamente admi-
rada e imitada. De fato, muitas das características que associamos
à arte do Alto Renascimento parecem derivar da obra de Leonardo.
Suas inovações nas formas de representação influenciaram nada
menos que duas das mais importantes figuras da geração seguinte:
Michelangelo e Rafael. Juntamente com suas inovações técnicas,
aquelas teóricas do tratado da pintura desenvolvem em grande

40  da Vinci, L. Trattato della pittura, Paris: ed. R. du Fresne, 1651(em ita-
liano); e Traitté de la peinture, ed. R. Fréart de Chambray, Paris, 1651 (em
francês).

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Juliana Barone

medida o programa albertiano (ou pliniano) de utilizar o entendi-


mento científico para a imitação da natureza na pintura, de modo
que a contribuição de Leonardo como artista e como teórico traz a
marca de sua convicção de que a pintura era uma forma de ciência,
ou seja, de conhecimento visual.

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“Io non fu’ mai pictore né
scultore come chi ne fa boctega.”
Michelangelo e a tradição do ateliê
italiano nos séculos XV e XVI
Maria Berbara

E
m 2 de Maio de 1548, o pintor, escultor, arquiteto e poeta
Michelangelo Buonarroti (1475–1564) envia de Roma, onde
residia, a seguinte carta a seu sobrinho Leonardo, em Florença:

Leonardo,

Recebi o cesto de peras, que somaram oitenta e seis; enviei


trinta e três delas ao Papa, a quem lhes pareceram ótimas e
muito se regozijou. Quanto ao cesto de queijos, a alfândega
alega que aquele transportador é um sem-vergonha e que
nunca o levou ali, de modo que, se eu descobrir que ele está
em Roma, far-lhe-ei o que merece, não pelo queijo, mas para
mostrar-lhe o pouco respeito que tem pelas pessoas.

Tenho estado muito mal estes dias por não poder urinar, o
que é uma minha grande debilidade; agora, porém, estou
melhor.1 Escrevo-te isso para evitar que algum fofoqueiro

1  Michelangelo padecia de cálculo renal, problema que se intensificaria em


março do ano seguinte.

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Maria Berbara

te alarme, escrevendo mil mentiras. Diz ao Padre que não


escreva mais: “A Michelangelo escultor”, pois eu sou conhe-
cido aqui somente por Michelangelo Buonarroti, e que se
um cidadão florentino quer encomendar a pintura de um
retábulo, deve encontrar um pintor, pois eu jamais fui pin-
tor ou escultor dos que fazem um ateliê.2 Sempre evitei
fazê-lo pela honra de meu pai e meus irmãos, ainda que
tenha servido a três papas, o que foi preciso. Nada mais me
ocorre; por minha última carta terás sabido minha opinião
quanto à mulher.3

Não diz nada ao Padre sobre estas linhas que escrevi sobre
ele, pois quero dar a impressão de não ter recebido sua carta.

 Michelangelo Buonarroti em Roma4

Nesta carta, Michelangelo toca em diversos temas de grande


importância para o estudioso do mestre florentino, em parti-
cular, e do Renascimento, em geral. Primeiramente, instrui seu
sobrinho a avisar ao “Padre” — cuja identidade não foi estabe-
lecida pelos historiadores — que não enderece suas cartas a ele
com as palavras “A Michelangelo, escultor”, mas “A Michelangelo
Buonarroti”, ou seja, simplesmente por seu nome. Ao longo de
toda a tradição medieval, quando os artistas se organizavam em
guildas, era comum que cada trabalhador fosse conhecido pelo
seu ofício (sapateiro, marmoreiro, padeiro, etc.) e que mesmo em
documentos oficiais como testamentos, contratos de compra e
venda ou certidões de casamento figurasse a profissão das pes-

2  No original: io non fu’ mai pictore né scultore come chi ne fa boctega.


3  Seguramente trata-se de uma carta perdida, já que na anterior missiva conhe-
cida Michelangelo não menciona essa opinião; certamente, porém, trata-se de
uma referência à futura esposa de Leonardo.
4  A tradução dessa carta, assim como de outros trechos da correspondência de
Michelangelo, é da autora.

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Michelangelo e a tradição do ateliê italiano nos séculos XV e XVI

soas envolvidas. Na Europa ocidental, como é bem sabido, muitos


sobrenomes atuais derivam de apelativos conferidos em virtude
das antigas profissões, as quais muitas vezes eram herdadas de pai
para filho por gerações.
Michelangelo assina diversas cartas anteriores à que se transcre-
veu acima como “Michelangelo, escultor”. A primeira carta enviada
ao seu pai que chegou ao nossos dias, datada em 1 de julho de
1497, é assinada por “Michelangelo escultor em Roma”. A famosa
carta de 1506 a Giuliano da Sangallo, na qual o artista relata o epi-
sódio de sua “fuga” de Roma, é assinada por “Vosso Michelangelo
escultor, em Florença”. Também como “Michelangelo escultor”
são assinadas diversas cartas aos irmãos, amigos e colaborado-
res durante as décadas seguintes. Em 1543, contudo, em uma
carta endereçada a seu sobrinho Leonardo, Michelangelo pede:
“E, quando me escreveres, não põe no sobrescrito “Michelangelo
Simoni” nem “escultor”. Basta dizer: “Michelangelo Buonarroti”,
que assim sou conhecido aqui”. O artista assina essa carta como
“Michelangelo Buonarroti em Roma”.
Na carta de 1548 transcrita acima, como se viu, Michelangelo
repete o pedido, completando a frase com um recado: “se um cida-
dão florentino quer encomendar a pintura de um retábulo, deve
encontrar um pintor, pois eu jamais fui pintor ou escultor dos que
fazem um ateliê”. A boctega (ou bottega) — aqui traduzida por ate-
liê — não deve ser entretanto confundida com o que contempora-
neamente poderia sugerir o termo, ou seja, um estúdio de dimen-
sões normalmente pequenas onde o artista trabalha sozinho ou,
quando muito, com alguns poucos assistentes: os grandes ateliês
de então eram organizações empresariais altamente organizadas
que empregavam diversos colaboradores especializados. Embora
a posição social do artista, na Itália, houvesse ascendido notavel-
mente no século XV, os ateliês de então mantinham, em grande
medida, o caráter corporativo das estruturas medievais, nos quais
os assistentes, anônimos, trabalhavam segundo a orientação de
mestre. Esses mestres empregavam, igualmente, aprendizes, os

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Maria Berbara

quais costumavam ingressar nos ateliês no início da adolescên-


cia, isso é, por volta dos 11 ou 12 anos5 (esse padrão, de resto,
era comum a todas as corporações).6 Os ateliês cumpriam, assim,
também o papel de formar o artista, em um período no qual as
grandes academias ainda não existiam. O período de permanên-
cia desses jovens nos ateliês era variável: Cenninno Cennini, por
exemplo, afirma haver permanecido no ateliê de Agnolo Gaddi
por doze anos, enquanto o pai do próprio Michelangelo, como
se verá logo adiante, emprega-o por um período de três anos no
ateliê de Ghirlandaio. Acima de tudo, esses ateliês eram impor-
tantes atividades comerciais, provistas de libri di cassa nos quais
eram registrados pagamentos, débitos e créditos. O ateliê flo-
rentino quatrocentesco por excelência, neste sentido, é precisa-
mente o de Domenico Ghirlandaio, no qual Buonarroti por pri-
meira vez instruiu-se nas artes. Como sintetiza Lisa Venturini, “a
homogeneidade dos produtos saídos do ateliê ghirlandaiesco é
fruto daquela koiné estilística que Domenico conseguira criar e
manter com vigilante controle não obstante o grande número de
colaboradores”.7 Essa coerência interna torna muito difícil para
críticos contemporâneos distinguir nos grandes ciclos pictóricos
de Ghirlandaio a mão de artistas individuais que, vinculados ao
mestre no início de suas carreiras, alcançariam notoriedade pró-
pria posteriormente. Vasari, em sua Vida de Domenico, recorda,
ainda, que o mestre recomendava a seus colaboradores e aprendi-

5  Ou às vezes até antes disso: Sogliani ingressa no ateliê de Lorenzo de Credi,


por exemplo, aos 9 anos. Para a estrutura dos ateliês florentinos em fins do
século XV cfr. GREGORI, M., PAOLUCCI, A., LUCHINAT, C. A. (orgs.).
Maestri e botteghe: Pittura a Firenze alla fine del Quatrocento. Florença: Silvana,
1993 (catálogo da exposição realizada no Palácio Strozzi, em Florença, entre
outubro de 1992 e janeiro de 1993).
6  Sobre a estrutura dos ateliês no século XV cfr. COLE, B. The Renaissance
artist at work. From Pisano to Titian. Londres: John Murray, 1983, especialmente
introdução e parte I.
7  In Maestri e botteghe, op. cit., p. 111.

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Michelangelo e a tradição do ateliê italiano nos séculos XV e XVI

zes aceitar qualquer trabalho que aparecesse, “de modo que nin-
guém partisse insatisfeito de seu ateliê”.8
Vasari conta-nos que Lodovico, o pai de Michelangelo, inicial-
mente se opusera à vocação artística do filho, matriculando-o ainda
criança na escola de gramática de Francesco da Urbino; quando o
surpreendia desenhando às escondidas, repreendia-o, e, por vezes,
até mesmo batia-lhe, acreditando que “fosse talvez coisa baixa e
indigna de sua antiga estirpe dar vasão a um talento para eles
ainda desconhecido”.9 Como a vocação artística de Michelangelo
permanecesse imperiosa, Lodovico “decidiu, aconselhado por
amigos, para tirar algum proveito e para habilitá‑lo àquela arte,
confiá‑lo aos cuidados de Domenico Ghirlandaio. Quando se ini-
ciou na arte com Domenico, Michelangelo tinha quatorze anos”.10
Nas últimas décadas do século XV, apesar das enormes conquistas
precedentes, a posição social do artista era, ainda, relativamente
baixa, o que explicaria a relutância de Lodovico em permitir que
o filho se dedicasse a uma profissão de natureza ainda límbica.
Também Condivi,11 em sua biografia de 1553, relata que o pai e
tios de Michelangelo envergonhavam-se, a princípio, da sua incli-
nação artística.
Condivi, no entanto, omite quaisquer menções à formação buo-
narrotiana no ateliê florentino, chegando, em outras passagens, a

8  Ed. MILANESI, III (1878), pp. 269–270.


9  Cfr. a brilhante edição da Vida de Michelangelo vasariana de BAROCCHI, P.
(La Vita di Michelangelo nelle redazioni del 1550 e del 1568; Milão: Ricciardi, 1962
(vol. I: texto; vols. II-IV: commento; vol. V: índice analítico), I, p.5. Todas as
traduções da Vida de Michelangelo de Vasari citadas neste artigo são de Luiz
Marques.
10  Idem, p. 6.
11  O pintor e escritor Ascanio Condivi (1525–1574) entra em contato com
Michelangelo, provavelmente, em 1545, quando se muda para Roma; de acordo
com muitos estudiosos, ele redige sua Vita, no início dos anos 1550, sob direta
influência do mestre, a ponto de seu texto ser com frequência referido como
uma autobiografia michelangiana. Aqui utilizamos a edição de Frey, K. (Berlim,
1887); para a supracitada passagem, p. 14.

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Maria Berbara

afirmar que Ghirlandaio, com inveja do promissor Michelangelo,


atuara de má fé; em uma ocasião, afirma Condivi, Ghirlandaio
negara-se a emprestar-lhe um livro; em outra, invejoso da excelente
cópia feita por Michelangelo do desenho de Martin Schongauer,
costumava dizer que ela havia sido produzida em seu ateliê.12 Vasari,
embora em 1550 não tivesse mencionado a passagem de Buonarroti
pelo ateliê florentino, em 1568, morto o mestre, rebate direta e ener-
gicamente a acusação de Condivi: “E como quem escreveu sua Vida
após 1550,13 quando estas Vidas pela primeira vez escrevi, afirme
que alguns por não terem com ele privado enunciaram fatos jamais
ocorridos e calaram sobre muitos outros dignos de nota, taxando
Domenico, neste caso preciso, de invejoso e acusando-o de jamais
haver prestado ajuda a Michelangelo, convém rebater aqui tal
calúnia”.14 Vasari prossegue citando os registros que provam o vín-
culo entre Michelangelo e o ateliê de Ghirlandaio. Apesar de suas
críticas a Condivi, contudo, Vasari enfatiza a genialidade única
de Michelangelo ao inserir, em sua narração da trajetória buonar-
rotiana do ateliê de Ghirlandaio, o topos da superação do mestre
pelo discípulo: “Cresciam o talento e a pessoa de Michelangelo e
Domenico enchia‑se de assombro, ao vê-lo fazer coisas extraordi-
nárias para um jovem, porque lhe parecia não apenas superar os
demais discípulos, que os tinha em grande número, mas rivalizar
muitas vezes consigo próprio, como mestre (…). Domenico deco-
rava então a capela grande de Santa Maria Novella e estando fora
um dia, Michelangelo começou a desenhar diretamente o andaime,
com algumas mesas e todos os instrumentos de trabalho, bem como
a representar alguns jovens que ali trabalhavam. De retorno, ao ver
o desenho, Ghirlandaio disse: ‘Este aqui supera meu conhecimento
de desenho’, e ficou boquiaberto com a nova maneira e imitação que,

12  “(…) il qual [Ghirlandaio], per far l’opera [a cópia de Schongauer] meno mara-
vigliosa, solea dire essere uscita dalla sua bottega, come s’egli ce n’avesse parte”.
13  Referindo-se, evidentemente, a Condivi.
14  BAROCCHI, p. 6.

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Michelangelo e a tradição do ateliê italiano nos séculos XV e XVI

com o juízo recebido do céu, tinha tal jovem em idade tão tenra”.15
Embora esse topos seja frequente nas Vite, ao mencionar a relação
entre Perugino e Rafael, arquirrival de Michelangelo, Vasari enfatiza
não a capacidade de superação do pintor de Urbino, mas de perfeita
emulação: “É coisa notabilíssima que, estudando Rafael a maniera
de Pietro [Perugino], imitou-a tão perfeitamente e com tantos deta-
lhes que era impossível distinguir seus retratos dos originais de seu
mestre, e não se podia discernir suas coisas das de Pietro”.16 Essa
excelência na imitação era algo desejável no âmbito das práticas dos
ateliês artesanais, garantindo a produção de produtos “homogenei-
zados” que podiam claramente ser reconhecidos como originários
do ateliê em questão. Michelangelo, ainda tão jovem, não parece,
no entanto, ter-se adaptado a essa prática: seu contrato, originaria-
mente trienal, foi rompido ao cabo de um ano.
Se na biografia condiviana — publicada poucos anos depois da
redação desta carta — minimiza-se a função didática do ateliê a
favor da individualidade e espontaneidade do gênio michelangiano,
na carta, analogamente, é o próprio artista que, diretamente, parece
desdenhar a inclinação comercial de “chi fa boctega”: Michelangelo
não está à venda. A terribilità do mestre florentino, tão especial-
mente sublinhada por Vasari, associa-se não exclusivamente ao
poder irresistível das suas criações ou ao seu famoso mau gênio,
mas também à sua preferência pela solidão tanto no âmbito pessoal
quanto profissional. Michelangelo insistiu em trabalhar sozinho
diversas vezes, como insistiu em jamais liderar um grande ateliê
comercial. É possível que, nos dias atuais, uma posição como essa
pareça comum e até mesmo lógica; o romantismo e movimentos
posteriores certamente contribuíram para a cristalização da ima-
gem do artista como um solitário, assim como para a ideia de que
a reclusão é uma condição indispensável para a realização de obras

15  BAROCCHI, pp. 7–8.


16  Cfr. a edição das Vidas de Milanesi, G., Florença, 1878–1885, IV (1879), p. 317.

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Maria Berbara

grandiosas. Durante o assim chamado Renascimento, contudo, a


posição de Michelangelo era excepcional.
Embora solidamente preparada nos séculos precedentes, a ideia
do artista como possuidor de uma vocação distinta firma-se, ao
menos na Itália, no século XVI. Em Michelangelo, mais além, essa
vocação assume um aspecto sobrenatural, tendo-lhe sido associado,
desde os anos 1530, o epíteto “divino”.17 Vasari, no parágrafo de aber-
tura de sua Vida de Michelangelo (1568), recupera e sintetiza magis-
tralmente essa tradição ao narrar o nascimento do artista como um
acontecimento providencial e salvífico: Buonarroti é enviado por
Deus para corrigir os erros precedentes e para mostrar ao mundo a
perfeição em todas as artes. Significativamente, porém, mesmo em
meio à abundância de referências à divindade de Michelangelo, o
termo “divino” não é associado ao mestre na biografia condiviana,
e o próprio Michelangelo, em diversas cartas, manifesta seu des-
crédito relativamente aos hiperbólicos elogios que lhe eram feitos;
em uma carta de 1542 enviada ao comerciante florentino Niccolò
Martelli, por exemplo, o artista comenta os poemas que aquele lhe
dedicara: “Eles [i.e. os poemas encomiásticos] verdadeiramente me
conferem tantos elogios que, se em mim encerrasse o paraíso, mui-
tos menos seriam suficientes. Vejo que me imaginastes como o que
Deus gostaria que eu fosse. Sou um pobre homem de pouco valor,
que vou labutando18 naquela arte que Deus me deu para prolongar
minha vida o mais que posso.”
Esse contraste pode ser percebido com absoluta clareza nos pará-
grafos de abertura das Vidas de Vasari e Condivi: enquanto Vasari
corrobora a ideia da divindade de Michelangelo e enfatiza a genia-
lidade sobrenatural do artista, a biografia condiviana, muito mais
austera, ressalta sua nobre ascendência: “[Michelangelo] teve sua
origem nos condes de Canossa, nobre e ilustre família do território

17  Para diversas referências literárias à divindade de Michelangelo: cfr.


BAROCCHI, op. cit., vol. I, pp. 21 e seg.
18  A troca da terceira para a primeira pessoa está presente no original.

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Michelangelo e a tradição do ateliê italiano nos séculos XV e XVI

de Reggio, seja por virtude própria e antiguidade, seja por ter-se


aparentado com sangue imperial”.19 A afirmação condiviana parece
ter sua origem em uma carta que o conde Alessandro di Canossa
enviara a Michelangelo, em 8 de Outubro de 1520, dirigindo-se ao
artista como “parente onorando”, e também na semelhança entre
os brasões das famílias Buonarroti e Canossa. A suposta relação
entre ambas as famílias é mencionada breve e cautelosamente por
Vasari em 1568 — “(…) Lodovico di Lionardo Buonarruoti Simoni,
descendente, segundo se diz, da nobilíssima e antiquíssima famí-
lia dos condes de Canossa”20 — e questionada por estudiosos de
Michelangelo desde o século XVIII.21 Em 4 de dezembro de 1546,
Michelangelo envia a seu sobrinho Leonardo, que residia em
Florença, uma carta na qual menciona o tema das nobres origens
da sua família: “(…) nós somos, afinal, cidadãos descendentes de
nobilíssima estirpe (…). Um dia, quando eu tiver tempo, falar-vos-
ei sobre a nossa origem, e de onde e quando viemos a Florença,
o que talvez ignoreis. Não se deve abandonar, assim, o que Deus
nos deu”. Para Michelangelo, não seu excepcional talento, mas a
nobreza das suas origens é um dom divino.
A carta michelangiana transcrita no início desse artigo pode ser
melhor compreendida se relacionada à crescente preocupação de
Buonarroti não só pelas origens da sua família, mas também pelo
desejo de restaurar-lhe a honra, de “ressuscitá-la”, como ele pró-
prio coloca na supracitada carta de 1546: “Eu sempre procurei res-
suscitar a nossa casa, mas não tive irmãos para isso”. Nesses mes-
mos anos Michelangelo concentra-se em conseguir uma esposa
digna para Leonardo, seu único descendente homem e portanto o
único que poderia perpetuar a família Buonarroti; em suas cartas
ao sobrinho, o mestre enfatiza que, ao escolher sua noiva, não

19  FREY, op. cit., p. 6.


20  BAROCCHI, I, p. 4
21  Id., II, p.54 e seg.

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Maria Berbara

leve em consideração o dote, “ma solo a nobiltà, sanità e bontà”,22


isso é, nobreza, saúde e bondade.
Michelangelo completa seu recado ao “cidadão florentino” e seu
comentário sobre os ateliês com a frase: “Sempre evitei fazê-lo [i.e.,
estar à frente de um ateliê] pela honra de meu pai e meus irmãos,
ainda que tenha servido a três papas, o que foi preciso” — isso é, o
artista precisara aceitar encomendas de Júlio II, Leão X e Clemente
VII, mas jamais fizera algo tão desonroso como liderar uma bottega.
Para Michelangelo, não parece haver uma grande distinção entre as
guildas de artesãos medievais; as grandes estruturas quatrocentistas,
como a de Ghirlandaio; ou mesmo os grandes ateliês contemporâ-
neos a ele, liderados por artistas-celebridades como Rafael: todos têm
uma natureza corporativa e comercial que lhe desagrada profunda-
mente. Há poucas coisas que Michelangelo tenha odiado mais que o
trabalho “em equipe”; é bem sabido, por exemplo, que ele pinta o teto
da Capela Sistina com uma quantidade muito menor de ajudantes
do que o habitual em uma empresa daquela envergadura. Segundo
Vasari, “a obra [i.e., as pinturas em afresco do teto da Sistina] iniciou-
se com alguns testes, cujos resultados permaneciam, contudo, por
demais distantes de sua ambição. Insatisfeito, Michelangelo resolveu
uma manhã deitar por terra tudo o que haviam feito seus auxiliares. E
fechou-se na capela, nela não mais os admitiu e nem mesmo em sua
casa aceitou recebê-los”.23 A ideia de uma absoluta autonomia miche-
langiana encontra-se igualmente presente na edição torrentiniana
das Vidas, assim como em Condivi — “Finalizou toda esta obra em
vinte meses, sem nenhuma ajuda, nem sequer de quem lhe macerasse
as cores”24 — e diversos outros autores contemporâneos ao mestre.25

22  CARTEGGIO, IV, p.379. A tríade nobreza-saúde-bondade é repetida diver-


sas vezes por Buonarroti ao aconselhar seu sobrinho quanto à escolha da noiva;
cfr. por exemplo Carteggio, IV, p.357 e 358.
23  Barocchi, I, pp. 37–38.
24  Op. cit., p. 112.
25  Cfr. Barocchi, II, pp. 421–423, que recupera igualmente a recepção român-
tica dessas passagens.

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Michelangelo e a tradição do ateliê italiano nos séculos XV e XVI

Embora testemunhos epistolares demonstrem que Michelangelo teve,


naturalmente, assistentes, esses certamente limitavam-se apenas às
tarefas preparatórias de natureza mais manual, não chegando real-
mente a tocar o teto. Se na Capela Tuornabuoni é difícil distinguir a
mão dos colaboradores de Ghirlandaio, na Sistina não se distingue
senão Michelangelo; Vasari, assim como alguns de seus contempo-
râneos, percebia claramente que o mestre rompia não apenas com a
ideia do ateliê quatrocentista, mas também com a maniera praticada
nesses mesmos ateliês, à qual seus contemporâneos permaneciam
fortemente vinculados na primeira década do Quinhentos.
Se Michelangelo renegava a tradição dos ateliês ao modo antigo,
no entanto, também não se adaptava ao novo modelo acadêmico
que emerge em meados do século XVI. Sobretudo na segunda
metade do século, artistas e teóricos insistiriam em que os princí-
pios artísticos pudessem ser intelectualmente “ensináveis” em um
contexto institucional.26 Como explica Martin Kemp, “a motivação
social dominante das academias era que o artista deveria ser aceito
como membro do alto escalão social. Essa aspiração social con-
trariava completamente a aceitação da ideia de que um indivíduo
talentoso fosse necessariamente de um comportamento bizarro”.27
Seria preciso esperar o romantismo para que se cristalizasse a ideia
do grande artista como o gênio autônomo e solitário, quase sem-
pre melancólico e irredutível em sua auto-suficiência. Alheio a esses
modelos, na carta transcrita no início desse artigo Michelangelo
revela com clareza, eloquência e enorme capacidade sintética uma
atitude e um sentimento que, muito antes do estabelecimento deci-
sivo da ideia de individualidade absoluta do artista, sempre pare-
cem tê-lo acompanhado, e que haveriam de cimentar, também nos
séculos subsequentes, o mito da sua inimitabilidade.

26  Cfr. KEMP, M. “The ‘Super-Artist’ as genius”. In: Genius: The History of an
Idea, org. por Murray, P.; Nova York: Basil Blackwell, 1989, pp. 32–53.
27  Id., p. 49.

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A poética do espaço arquitetônico
versus a predominância das artes
figurativas. Contradições críticas
em As Vidas de Giorgio Vasari 1
Elisa Byington

N
os tratados arquitetônicos do primeiro Renascimento o
espaço possuía importância central ligada ao significado
simbólico de que era investido. A ideia de beleza do edi-
fício dependia da simetria e da proporção dos números que uniam
as partes ao todo. A geometria, na qual se inscreviam tais relações
numéricas, espelhava as proporções do corpo humano que, sendo
à imagem e semelhança de Deus, garantia a correspondência entre
macrocosmo e microcosmo, homem e número. A abstrata questão
das proporções refletia as relações entre natureza, matemática e
arquitetura, segundo princípios universais e absolutos. O raciona-
lismo humanista que caracterizou o Quatrocentos sofre fraturas no
início do Quinhentos, ocasião em que a rigorosa construção geo-
métrica do espaço, significativa em si, cede terreno à “imagem espe-
tacular do espaço” nos projetos de Bramante e Rafael — para usar a
feliz formulação de Giulio Carlo Argan.2

1  O presente texto é a versão revista e ampliada do trabalho apresentado no sim-


pósio “O corpo clássico e anti-clássico na arte”, 19–20/10/2004, Unicamp, SP, Brasil.
2  Argan, G. C. “Michelangelo Architetto”. In: Clássico e Anticlassico. Il
Rinascimento da Michelangelo a Bruegel, Milão, 1984.

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Contradições críticas em As Vidas de Giorgio Vasari

Progressivamente destituída da dimensão abstrata e ideal ao


longo do século XVI, a criação do espaço, própria à arquitetura, é
suplantada pela importância da figura que passa a dominar a hie-
rarquia da produção artística e das reflexões sobre arte: seja como
protagonista das histórias, sempre mais apreciadas na sua capaci-
dade de transmitir conteúdos e plasmar sentimentos, seja como
desafio máximo da representação artística.
As Vidas dos mais excelentes arquitetos, pintores e escultores escri-
tas por Giorgio Vasari em meados do século XVI em Florença,
espelham essas transformações culturais e artísticas. Ao longo do
livro é possível perceber as preocupações, dificuldades e contradi-
ções que caracterizam a abordagem da arquitetura, disseminadas
não apenas nas partes teóricas sobre as três artes do desenho que
introduzem o livro, ou nos proêmios que anunciam as conquistas
de cada fase e a evolução dos estilos através do tempo, mas tam-
bém nas biografias dos artistas.
Em trabalho precedente,3 focalizamos o significado da alteração
do título da segunda edição d’As Vidas, publicada em 1568, na
qual o autor transferia os arquitetos da primeira à ultima posição
entre os artífices. Quisemos provar que tal alteração, considerada
em seu contexto, longe de ser desprovida de significado — fruto
de decisão arbitrária de algum revisor —, dizia respeito à mudança
de prestígio intelectual e artístico por que passa a arquitetura em
Florença naqueles anos. Não se trata da perda de prestígio social,
pois o arquiteto não deixa de ser o interlocutor privilegiado do
poder. Pelo contrario, ele é sempre mais louvado como figura efi-
ciente de artista, capaz de dirigir, controlar e se responsabilizar
pelo trabalho dos outros artistas envolvidos nas grandes realiza-
ções. Mas a mudança no frontispício do livro vasariano — inserida

3  Byington, E., “Arquitetura e disputa entre as Artes nas Vidas Vasarianas”,


texto apresentado no Congresso Internacional sobre a Tradição Clássica, junho
2004, Unicamp, SP. In: Marques, L. (org.) A Tradição do Antigo, São Paulo:
Editora Unicamp, 2007

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Elisa Byington

no âmbito da disputa pelo primado entre as artes4 que apaixonava


o ambiente naqueles anos — aponta para uma crise na avaliação
da arte da arquitetura em comparação com a pintura e escultura.
Tal crise reflete transformações seja do papel ético outrora atribu-
ído à arquitetura pelo racionalismo humanista, seja da posição de
vanguarda que a disciplina havia ocupado na elaboração da lin-
guagem artística do Renascimento.
Em meados do século XVI, a nova arquitetura havia deixado o
âmbito arqueológico que havia caracterizado o século anterior, mar-
cado pelo estudo das ruínas e pela descoberta das formas e funções
das obras da antiguidade. Tornara-se então um conjunto de regras
bem codificadas, como demonstram os Tratados de Sebastiano
Serlio (Veneza, 1537–1566) e La regola delli cinque ordini de Jacopo
Barozzi del Vignola (Roma, 1562), verdadeiro manual prático. O
sistema das ordens arquitetônicas — toscano, dórico, jônico, corín-
tio, compósito —, definido por Serlio pela primeira vez, pressupõe
a repetição de módulos compositivos, do basamento ao capitel,
visando justamente a uma normatização do antigo e ao estabele-
cimento de limites à invenção dos arquitetos. Tal sistematização,
popularizada pela expansão da imprensa, amplia significativamente
o número de leitores e é responsável também pela redução do pres-
tígio cultural de um saber anteriormente limitado pelo acesso aos
manuscritos. Estes eram marcadamente teóricos e desprovidos de
exemplos ilustrados — tanto Vitrúvio quanto Alberti não traziam
ilustrações — característicos dos novos tratados. A arquitetura, ora

4  O debate tradicionalmente conhecido como paragone, comparação entre as


artes, foi relançado em Florença, em 1547, pelo filósofo e historiador Benedetto
Varchi ao promover uma enquete entre os artistas sobre a superioridade da
escultura ou da pintura. Na sua apresentação e discussão do problema diante da
Academia Florentina, Varchi defende a posição preminente da arquitetura por
ser a mais útil, e portanto a mais nobre entre as artes, e por ser também a única
capaz não apenas de imitar, mas também de vencer a natureza. “Due lezzioni”,
Florença, 1549. In: Varchi, Pittura e Scultura nel Cinquecento, Florença: ed.
Sillabe, 1998.

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Contradições críticas em As Vidas de Giorgio Vasari

condicionada por técnicas, modelos e medidas, limitada na “inven-


ção”, acaba por ver desgastada parte do próprio prestígio e legitimi-
dade artística.
Ainda que o autor de As Vidas não se preocupe em justificar a
mencionada alteração no título — justamente quando ele próprio,
na nova edição, passou a assinar o livro não apenas como pintor
mas também como arquiteto —, nem teorize diferente status para
a arquitetura, os escritos produzidos em seu ambiente trazem indí-
cios eloquentes da existência de um quadro em transformação. Um
ambiente intelectual e artístico que já não tem a mesma sensibi-
lidade em relação às teorias que haviam garantido à arquitetura
a preminência hierárquica na disputa entre as artes. Na prática,
parece já tê-la subvertida.
Intimidado pelo impulso das Academias Vitruvianas,5 sempre
mais numerosas e ciosas das regras do próprio saber, e pela auto-
ridade do tratado de Alberti,6 citado pelo autor no início das Vidas
como referência universal e indiscutível, o ambiente de Vasari tem
dificuldade em enfrentar do ponto de vista teórico as novas ques-
tões da arquitetura, entre tradição e inovação: condicionada pelo
escolasticismo das regras estabelecidas, de um lado, e pela liberdade
contida nas obras de Michelangelo,7 de outro. Não obstante se ocu-
pem da arquitetura apenas de maneira marginal, os textos sobre
arte — Vasari, Danti, Cellini, Bandinelli —, em comentários explí-

5  O tratado De Architectura, escrito por Vitrúvio durante o reino do imperador


Augusto nos anos 20 a.C. foi descoberto pelos humanistas no início do século
XV. Lá estão as ordens arquitetônicas, as regras e medidas de cada um dos ele-
mentos que as integravam. Por ser o único tratado de arquitetura da antiguidade
a ter sobrevido tornou-se referência fundamental para o Renascimento e objeto
de estudo em círculos de intelectuais e artistas, na Itália e no resto da Europa,
sobretudo a partir do século XVI — as chamadas academias vitruvianas.
6  O tratado do humanista Leon Battista Alberti (1404–1472), De re edificatoria,
pretendia ser uma modernização da obra de Vitrúvio. Dedicado a Lorenzo, o
Magnifico, foi publicado postumamente em Florença em 1485.
7  Tafuri, M. L’Architettura del manierismo nel cinquecento europeo, Roma:
Officina Edizioni, 1966.

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Elisa Byington

citos, embora não sistemáticos, corroem sub-repticiamente o lugar


de preeminência outrora ocupado pela mais útil das artes.
As formas dos ornamentos das obras arquitetônicas de
Michelangelo — combatidas em Roma pelos partidários da regra
vitruviana8 — eram formas inexplicáveis, irredutíveis a uma regra
conhecida e compartilhada. Em Florença, a defesa de tal experi-
mentalismo arquitetônico não resulta, na prática, em escritos teó-
ricos que espelhem os novos tempos. Ainda que fosse sempre mais
difundida a ideia de ascendência michelangiana do “julgamento do
olho” — tanto para obras de pintura, de escultura e de arquitetura
—, em contraposição aos valores mensuráveis pela régua e com-
passo, um juízo de tipo subjetivo que se contrapunha abertamente
à tratadística tradicional, a mesma não resultou em formulações
teóricas consequentes.9 Uma tal lacuna é intensamente lamentada
por Vasari justamente na Vida de Leon Battista Alberti, onde o
autor chega a atribuir a razão da fama do grande arquiteto e teórico
somente ao fato de não ter havido “entre os artistas modernos quem
tenha sabido discorrer sobre o assunto através da escrita, ainda que
infinitos tenham-se sido superiores na prática”.10
Em tempos marcados por um tal divórcio entre teoria e prática,
e simultaneamente caracterizados por uma febre decorativa que faz
com que o artista se reaproxime do artesão que havia sido, é natural
que a matemática — instrumento outrora capaz de unificar e dar
dignidade cientifica às artes — se distancie do significado superior

8  Cfr. memorial dirigido a Paulo III por Giovan Battista da Sangallo em mérito
à cornija do Palazzo Farnese feita por Michelangelo depois da morte do seu
irmão Antonio il Giovane (29 de setembro de 1546) julgando-a de proporções
“bastardas”; feita “ao modo bárbaro” cit. Pagliara, “Vitrúvio da testo a Canone”.
In: Memoria dell’antico nell’arte italiana, vol. III. Dalla tradizione alla archeolo-
gia, Torino,1986.
9  Esta será a tentativa de Vincenzo Danti em seu Trattato delle perfette propor-
zioni de 1567 que se interromperá depois do primeiro livro.
10  Vasari, G. Vita di Leon Battista Alberti. In: Le Vite de’ più eccellenti architetti,
pittori e scultori, nelle redazioni del 1550 e 1568, ed. R. Bettarini e P. Barocchi,
Florença, 1966 (tradução da autora).

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Contradições críticas em As Vidas de Giorgio Vasari

de expansão do raciocínio abstrato e torne-se quase exclusivamente


sinônimo de técnica e banal ofício. A ligação privilegiada da arqui-
tetura aos números lhe rendera equiparação à música. No novo
clima cultural, semelhante condicionamento pela matemática e pela
geometria relegava a arquitetura à posição de arte menos compro-
metida com a “invenção”, mais fácil e menos nobre, subsidiária,
portanto, às outras artes.

Arquitetura e Paragone

Não obstante Vasari procure formalmente se ater à posição tra-


dicional dos tratados de arquitetura e que, no proêmio d’As Vidas,
afirme — à semelhança de Leon Battista Alberti — que pintura e
escultura servem como ornamento ao edifício e a ele são subordi-
nadas, em suas considerações críticas o autor inverte a relação. No
seu raciocínio, a arquitetura acaba a serviço das artes figurativas que
antes lhes eram conceitualmente subordinadas.
A passagem a que nos referimos é particularmente significativa
por tratar de Michelangelo, figura paradigmática para a estrutu-
ração do pensamento artístico no ambiente de Vasari e, como tal,
sempre citado pelo autor com intenções bem precisas. Ele diz: “(…)
para que [Michelangelo] não tivesse que procurar outro mestre e ter
onde apropriadamente colocar as figuras feitas por ele, a natureza
doou-lhe tão completamente a ciência da arquitetura que, sem neces-
sitar de outrem, pode por si mesmo dar lugar honrado e conveniente
a umas e outras imagens que conformou…”11 — afirmação que trai
uma ótica segundo a qual a importância do edifício está em servir
como receptáculo para as criações das artes figurativas.
A citação acima ocupa no texto vasariano lugar de conclusão, ao
fim da meticulosa exposição da controvertida disputa pela prima-
zia entre as artes — conhecida também com o nome de paragone

11  Vasari, G. “Proemio di tutta l’opera”. In: Le Vite, op.cit.

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Elisa Byington

—, questão atualíssima e central para o debate cultural da época,


com a qual o autor introduz seu livro. Depois de ocupar quase todo
o Proêmio argumentando o dissenso entre as partes, Vasari assume
a posição de pacificador dos ânimos acirrados e diz: “me parece
que os escultores têm falado com excessivo ardor e os pintores com
excessivo desdém”, e propõe diplomaticamente a igualdade entre
“as três artes do desenho”. Para ele, na nova formulação, não era a
arte em si mas o trabalho do artista a tornar uma arte superior a
outra; postulado que se materializava na excelência alcançada por
Michelangelo em todas as três.
Em tal controvérsia, a arquitetura era habitualmente deixada
de lado em posição teórica de superioridade, devido à sua maior
utilidade aos homens e à civilização. Uma posição hors concours
sacramentada pelas Lições de Benedetto Varchi, que havia exposto
as razões de maior nobreza da arquitetura com lógica aristotélica,
nas teses publicadas em Florença em 1549.12 Em teoria, Vasari
segue as posições de Varchi, não ousando contrariar as afirmações
do literato da Academia Florentina. Mas, na substância, as decla-
rações em louvor das prerrogativas da escultura ou da pintura — a
grande capacidade mimética, o maior número de figuras e a varie-
dade de situações que eram capazes de representar — com as quais
o aretino demonstrava a maior excelência de uma ou outra, pare-
cem coerentes no relegar a função de receptáculo à arquitetura na
passagem acima citada; parece uma conclusão natural.
Mesmo porque, reiteradamente, os desafios elencados como
característicos da pintura, motivos que a tornavam superior à
escultura, eram relacionados pelo autor justamente à sua maior
distância dos instrumentos de mensuração. O maior exemplo de
tal dificuldade superior é a pintura a fresco, diz Vasari, que, não
obstante utilize o compasso para transpor o desenho ao cartão,
encontra incontáveis percalços na execução sobre o reboco fresco

12  Varchi, B. “Due lezzioni”, op.cit.

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Contradições críticas em As Vidas de Giorgio Vasari

que impede a visão exata das cores durante sua realização: “é como
trabalhar no escuro” — define orgulhoso.
Como mencionamos, o significado simbólico do espaço no
século XV era diretamente vinculado à importância da geome-
tria aplicada às técnicas artísticas e ao lugar de preeminência
atribuído à matemática como ciência singular. Esta era capaz de
conduzir ao conhecimento abstrato das relações e das medidas,
fazendo com que as mesmas assumissem significados além do
nível racional. Vale recordar que antes das edições impressas, os
livros de arquitetura não traziam imagens e sim regras, relações
proporcionais, definição de estruturas, que deixavam ao leitor ou
ouvinte a possibilidade de imaginá-las, caso não as conhecesse
já.13 Por meio da matemática, o espaço prestava-se a analogias
universais, astrológicas e teológicas a que estavam sujeitos as for-
mas e os números.
O início do Renascimento havia sido marcado por uma certa
dissolução das divisões rígidas da vida intelectual, fazendo com
que arte e ciência compartilhassem de um mesmo terreno. Leon
Battista Alberti descreveu as regras da projeção geométrica volta-
das à definição do espaço pictórico; Piero della Francesca escre-
veu De Perspectiva Pingendi, tratado de perspectiva aplicada à
pintura; Leonardo teorizou o uso da geometria na análise da natu-
reza e reconstrução das figuras tendo como finalidade a represen-
tação pictórica das mesmas (Fig. 29, p. 468). Ilustrou também o livro
De Divina Proportione do matemático Luca Pacioli, seu grande
amigo. A rigorosa observação das leis da perspectiva na constru-
ção da imagem pictórica, ou a proporção geométrica dos corpos,
não era por nenhum deles considerada interferência na liberdade
da criação artística.
Vasari, no entanto, move-se em outro terreno. Em meados do
século XVI, o uso da matemática pelos artistas possui significado

13  Carpo, V. M. Il disegno architettonico all’epoca della sua riproduciblità


meccanica in L’architettura nell’età della stampa, Milão, 1998, p.47–86.

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Elisa Byington

oposto. Tornara-se sinônimo de técnica em oposição à inventio.


A ideia racional de beleza ligada aos números, própria do período
anterior, havia sido substituída pela ideia de graça, expressão da
subjetividade de julgamento, em consonância com a formulação
michelangiana do julgamento dos olhos, da necessidade de ter o
compasso nos olhos e não nas mãos. Tal abordagem subjetivista
havia sido nutrida no ambiente neoplatônico que vive grande
efervescência nas últimas décadas do século XV em Florença.14 O
não lógico, ou o ilógico, era uma dimensão do imaginário aberta
à consciência pelo neoplatonismo; pertencia ao clima cultural no
qual haviam sido desenvolvidas as ideias que viam na expressão
do artista a imagem da virtude divina que o mesmo era capaz de
revelar. Esta poética é singularmente expressa por Michelangelo
em um de seus mais célebres sonetos onde diz que nem mesmo
um grande artista possui ideia alguma que o mármore em si já
não contenha.15
Tais ideias, que problematizavam a relação entre arte e a reali-
dade a ela subjacente, implicavam em diferente relação entre arte
e natureza — ao invés da mímesis, estas buscavam a revelação de
uma forma contida na natureza —, entre ciência e arte, mas tam-
bém entre espaço e figura. Discussão inspirada pelo neoplatonismo,
cujas ideias tornam-se muito difundidas mas cujas noções são difi-
cilmente aplicáveis à arquitetura que, além de tudo, é obra coletiva.
O espaço arquitetônico, assim destituído de sua unidade poética,
passa a ser apenas o lugar “onde apropriadamente colocar as figu-

14  Movimento ligado à obra do tradutor e filósofo Marsilio Ficino que entre os
1460 e 1490 animou a Academia Platônica de Florença. Sobre a influência de tal
doutrina na obra de Michelangelo ver Panofksky, E. Estudos de Iconologia,
ed. Perspectiva, São Paulo.
15  “Non ha l’ottimo artista alcun concetto /C’un marmo solo in sè non cir-
coscriva/Col suo soverchio, e solo a quello arriva /La man che ubbidisce
all’inteletto” Nao possui o ótimo artista conceito algum /que o mármore por
si só já não contenha/ Com sua abundância, e somente aquela alcança / a mão
que obedece ao intelecto”. Michelangelo Buonarotti, Rime e lettere, Roma: ed.
UTET, 2006.

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Contradições críticas em As Vidas de Giorgio Vasari

ras” — como afirmado por Vasari na passagem analisada. Ou seja,


passa à condição de receptáculo para as outras artes.
Semelhante ideia esboçada em Vasari parece ser o embrião do que
pouco mais tarde encontrará configuração muito característica na
arquitetura italiana; ou seja, a tipologia arquitetônica da “galeria”,
que iria caracterizar fortemente as residências senhoriais. O espaço
assim concebido é destinado à admiração das obras de arte figura-
tivas mais importantes, atendendo a exigências de colecionismo e
representação social. Dentro desta lógica, serão também projetados
inteiros palacetes com a função exclusiva de abrigar o ciclo de afres-
cos mais significativo para o mecenas e as peças mais importantes
da coleção de pintura e escultura do príncipe.16
A novidade da colocação vasariana na passagem citada, que faz
da arquitetura receptáculo para as outras artes, torna-se ainda mais
evidente quando o autor, dois parágrafos adiante, faz marcha a ré,
entrando em contradição com o raciocínio exposto. Preocupado em
seguir a doutrina oficial e a tradição, Vasari conclui o proêmio do
seu livro afirmando: “começarei pela arquitetura por ser a principal e
mais útil, à serviço e ornamento da qual estão as outras duas” — jus-
tificando assim a estrutura do livro.17
Na afirmação acima, Vasari faz suas as palavras usadas por
Benedetto Varchi na disputa sobre a primazia entre as artes, defen-
dida na Academia Florentina. Os termos adotados, apesar de a
nosso ver não mais espelharem convicções reais do autor, serviam
para manter um quadro de referências condizente com as teorias

16  A atual Galleria Borghese em Roma, sede de extraordinária pinacoteca situ-


ada no parque da villa Borghese, foi construída nas primeiras décadas do século
XVII com finalidade exclusiva de reunir e promover a coleção do Cardeal
homônimo. Ver Byington, E. Galleria Borghese, Berlendis editores, São
Paulo, SP, 2000.
17  O Proêmio é sucedido pelo capitulo introdutório às três artes com o titulo:
Introduzione di Giorgio Vasari alla tre arti del disegno cioè architettura, pittura e
scoltura e prima dell’architettura. O mesmo não muda quando Vasari altera o
título do livro passando a arquitetura para o último lugar. Ver Byington, E.
Arquitetura e disputa entre as artes nas Vidas Vasarianas op.cit. p. 113.

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Elisa Byington

vitruvianas que lhe era cômodo. O mesmo ocorre com Vincenzo


Danti, amigo de Varchi e colaborador de Vasari na decoração do
Palazzo Vecchio, o qual propõe a primazia da arquitetura no iní-
cio de seu Trattato sulle Perfette Proporzioni, para depois afirmar o
contrário ao longo do texto, comentando que a arquitetura perdera
o papel de vanguarda artística e que, na sua época, encontrava-se
banalizada pelo escolasticismo das regras e medidas.
O único a adotar posição explicitamente polêmica e contrária
ao princípio de superioridade da arquitetura defendido por Varchi
é Vincenzo Borghini, lugar-tenente da Academia do Desenho de
Florença — instituição fundada por ele junto com Giorgio Vasari
—, no manuscrito Selva di Notizie, que ele não chega a publicar. O
erudito monsenhor Borghini empreende verdadeiro desagravo aos
arquitetos enunciando de modo categórico que não concebe a profis-
são da arquitetura como atividade distinta da prática do canteiro de
obras: “Já não sei por qual privilégio os que põem em prática os desenhos
[dos arquitetos] chamam-se pedreiros, e quando se lhes quer fazer favor,
mestres de obras, enquanto os pintores e escultores não têm atribuições
que façam esta diferença…”. Trata-se de admissão implícita de que não
compreende as premissas de tipo filosófico que o Humanismo havia
atribuído ao projeto arquitetônico segundo as quais o momento da
concepção e elaboração é distinto do da construção. Tal abordagem
leva-o a relegar a arquitetura à condição de pura técnica e a contestar
o seu lugar entre as artes.
Colaborador fundamental da extensão da segunda edição de As
Vidas, Borghini, na mesma ocasião, era também o mais assíduo for-
necedor de temas iconológicos tanto para os afrescos de Vasari no
Palazzo Vecchio, quanto para os aparatos decorativos das festas, sob
a direção quase exclusiva do aretino. Era o principal “inventor” das
“histórias”, ou autor das invenzioni, como se dizia, encenadas por
meio do suporte de “arquiteturas” — no plural — que ele mesmo
chegava a desenhar para os aparatos efêmeros que ornamentavam
e transformavam as cidades durante celebrações especiais. Tal é o
caso, por exemplo, do célebre “Arco da Prudência” (Fig. 30, p. 469),

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Contradições críticas em As Vidas de Giorgio Vasari

montado em Florença para o casamento de Francisco I e Giovanna


d’Austria em dezembro de 1565, no qual o processo de evolução
das artes no Renascimento, de Cimabue a Michelangelo, era repre-
sentado exclusivamente por artistas toscanos e pela Academia do
Desenho de Florença. Em tais cenografias, veículo para a represen-
tação da história passada e presente de Florença, atribuía-se à cidade
um papel universal na cultura e nas artes.
A arquitetura interessava ao filólogo e historiador Dom Vincenzo
Borghini sobretudo nesta medida, enquanto instrumento cenográ-
fico e meio para a narração das histórias e instrumentos de divulga-
ção e propaganda. O lugar-tenente da Academia do Desenho, Prior
do Hospital dos Inocentes, era figura o quanto mais distante das
questões de pura forma e de abstrações geométricas e militava pela
difusão da imagem a serviço da comunicação de valores psicoló-
gico-afetivos e ideológicos a um amplo público.

Imagem e Palavra

Na época era hábito acompanhar a inauguração de ciclos deco-


rativos, públicos e privados, ou mesmo dos aparatos que ornamen-
tavam a cidade na ocasião das festas, com a publicação do texto
explicativo das imagens. “A descrição das várias espécies de figura e
seus significados — escrevia Borghini — é útil para que as pessoas
menos letradas de posse dos grandes ensinamentos ali contidos sin-
tam dentro análoga satisfação à que os olhos de fora obtém”.18 O
lugar-tenente da Academia do Desenho possuía uma clara visão do
potencial e dos limites da comunicação visual. A justificativa dos
menos letrados era particularmente oportuna para que assim, por
meio da ekfrasis — tradicional exercício literário de tradução das
imagens em palavras — não só fossem confirmados aspectos do

18  Borghini,V. Descrizione della cupola del Duomo di Fiorenza, in Filologia ed


Invenzione nella Firenze di Cosimo I, Florença, 2002.

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Elisa Byington

conteúdo de mais difícil expressão visual, mas também acrescenta-


dos outros, considerados convenientes, que se serviam de tais opús-
culos para serem veiculados dentro e fora das próprias fronteiras.
No mais das vezes, esse tipo de texto de apoio às imagens era con-
siderado de tamanha importância que sua publicação precedia de
alguns dias o acontecimento. Foi o que ocorreu com a descrição da
decoração da igreja de San Lorenzo para o funeral de Michelangelo
Buonarotti em 1564, publicada antes do evento, como acompanha-
mento da Oração Fúnebre que seria pronunciada por Benedetto
Varchi.19 A descrição servia para tornar inequívocos os significa-
dos que se queria transmitir, para permitir ao público acompanhar
adequadamente a cerimônia, como também para documentar e
fixar a memória do evento. No caso do funeral de Michelangelo, o
documento é particularmente interessante por se tratar justamente
da composição de uma história das artes em Florença sob a égide
dos Medici, exemplarmente demonstrada por meio da vida e obra
de Michelangelo. Como tal, o texto é reutilizado com pequenos
cortes na conclusão da biografia de Michelangelo na segunda edi-
ção das Vidas. Este descreve detalhadamente o significado de todas
as alegorias e imagens que compunham o catafalco do “divino
artista”, visando ilustrar suas virtudes morais e artísticas em epi-
sódios ligados ao mecenatismo dos Medici, aos antepassados de
Cosimo I, e à Florença.
A correspondência entre Borghini, Vasari e Cosimo I revela que
um dos fatores responsáveis pelo atraso da publicação da segunda
edição d’As Vidas em 1568 foi a espera pelo texto descritivo do
aparato decorativo das núpcias de Francesco I Medici; ou seja, do
programa completo no qual se inseria o “Arco da Prudência” acima
mencionado. Era por eles considerado imprescindível que tal des-
crição explicativa constasse do livro, ainda que uma versão impressa
já tivesse circulado na ocasião do evento. Realizado em dezembro de

19  Varchi, B. Esequie del Divino Michelangelo Buonarotti, Florença: Giunti,


1564.

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Contradições críticas em As Vidas de Giorgio Vasari

1565, no ano seguinte ao funeral de Michelangelo, neste se afirmava


intenção histórico-ideológica análoga, mas ainda mais evidente e
proselitista, em favor da Toscana dos Medici através de seus artistas
e da Academia do Desenho.
Na Oração Fúnebre pronunciada por Benedetto Varchi na igreja
de São Lourenço no funeral de Michelangelo, o letrado reafirmava
a posição de preeminência da arquitetura sobre todas as artes,
citando, como obra conhecida pelos presentes, a sua célebre Lição
na Academia Florentina sobre a disputa entre as artes, publicada
quinze anos antes.20 Curiosamente, no entanto, ao longo das sessenta
páginas de discurso em louvor da excelência de Michelangelo nas
três artes, as realizações arquitetônicas acabam ocupando poucas
linhas. Varchi justifica o fato com o pouco tempo à disposição e diz
que as realizações neste campo são tantas que sozinhas bastariam
para celebrá-lo. No entanto, depois de ter descrito as esculturas da
Sacristia Nova e narrado a terribilità do Juízo Universal da Capela
Sistina, onde se valia de sua celebrada habilidade retórica para fazer
“ver” por meio das palavras, Varchi deixa a impressão de que a razão
para nem mesmo citar as obras de arquitetura se deve ao fato de não
possuir instrumentos para descrevê-las, por constatar que a arquite-
tura não se presta à narração.
A concepção cenográfica como característica dominante na
arquitetura de Vasari foi com frequência observada pela crítica.
Esta parece coerente com o que observamos até aqui obre o seu
pensamento. Analogamente, para Vincenzo Borghini — principal
autor das invenzioni em todas as empresas decorativas permanen-
tes ou efêmeras que envolvem o aretino na década de sessenta em
Florença — , a arquitetura é digna de ser levada em considera-
ção sobretudo como suporte para a produção de imagens de que
se servia em sua narração histórico-ideológica para glorificação

20  Varchi, B., Lezione della maggioranza delle arti (Firenze, 1949). In:
Barocchi, P. (org.), Pittura e Scultura nel Cinquecento, Florença, 1988.

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Elisa Byington

do papel de Florença. Segundo escreve na Selva di Notizie,21 seu


opúsculo dedicado às questões do paragone, meses após o fune-
ral de Michelangelo, a arquitetura interessava somente quando era
imagem de fasto e poder a exemplo das ruínas da Roma Imperial.
Somente em tal condição, e quando comporta “imensa despesa”,
escreve Borghini, a arquitetura pode ser considerada arte. No texto,
documento crucial para a identificação das ideias sobre arquite-
tura em circulação no ambiente de Vasari, percebemos igualmente
uma mudança significativa na relação cultivada com a arquite-
tura antiga. Esvaziada de seu conteúdo utópico, modelo racional e
modelo social buscado pelos primeiros humanistas, a arquitetura
possui alguma “nobreza” entre as artes quando é celebração e ins-
trumento para a legitimação do poder.
A nosso ver, o paradigma palaciano que marca as reflexões
de Vasari sobre arquitetura22 alimenta-se de noções análogas às
de Borghini, identificáveis desde a primeira edição d’As Vidas.
Desprovido do amparo de uma teoria mais universal e abstrata da
arquitetura, Vasari se mostra atraído pelas conquistas técnicas e
artesanais ligadas à profissão. O seu tratado de arquitetura que abre
a Introdução às três artes do desenho no livro das Vidas é pobre de
ideias e decepcionante se comparado à variedade e complexidade
dos temas abordados por ele em relação às duas outras artes. Não
sendo ele um teórico, e parecendo desaparelhado para analisar uma
arte que pouco se presta a descrição do tipo narrativo, Vasari adota
abordagem de tipo prático, faz do texto Sobre Arquitetura quase um
manual técnico, ocupando toda a primeira parte com as característi-
cas morfológicas e os problemas apresentados pelas pedras — quais
sejam, como e quando devem ser usadas, como trabalhá-las — como
se fossem o principal interesse da arquitetura, quase uma antecipa-

21  Borghini, V. “Una Selva di Notizie”. In: Barocchi, P. (org.), Pittura e


Scultura nel Cinquecento, Florença: Sillabe, 1988.
22  P. Barocchi aponta para este aspecto da arquitetura vasariana no ensaio
“Vasari Architetto”. In: Atti della Accademia Pontaniana, VI (1956–57), 1958,
Nápoles, pp.113–136.

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Contradições críticas em As Vidas de Giorgio Vasari

ção ao pejorativo tagliasassi, cortador de pedras, reservada por Gian


Paolo Lomazzo aos arquitetos em seu livro de 1585.
Na segunda edição d’As Vidas, no capítulo XV da “Introdução”
acima mencionado, Vasari acrescenta uma definição do desenho
arquitetônico espantosamente restritiva: “Estes perfis ou contornos,
ou como queiram chamá-los — diz Vasari —, servem especialmente
à arquitetura. Porque o desenho que a distingue é formado unica-
mente por linhas, o que é o princípio e fim da arquitetura, porque o
restante, mediante modelos de madeira e derivados de tal riscado,
não é outro que obra de marceneiros e pedreiros”.
Conceito equivalente é repetido por Vasari na Vita di Baccio
D’Agnolo, por exemplo, na qual, ao considerar a arquitetura e o
desenho arquitetônico como equivalentes a sua representação sobre
a superfície plana, à semelhança de um pano cenográfico, o autor
afirma que, para se ser pintor, é implícito ser arquiteto, pois, para
exercer a própria profissão “o pintor não pode deixar de fazer as
plantas dos edifícios”. Algo semelhante ocorre em relação ao projeto
arquitetônico “uma vez que não se fazem casas, nem escadas, nem
planos onde as figuras pousam — diz Vasari — sem antes se estabe-
lecer a ordem e a arquitetura”.
Por outro lado, ao desenho como um todo, o pintor Vasari atri-
bui uma espécie de saber universal, “porque a pintura abraça a
invenção da história, a dificílima arte dos escorços, todos os cor-
pos da arquitetura para poder fazer os casarios e a perspectiva, etc,
infinitamente” (I,16).
Essas passagens parecem confirmar a visão restritiva do dese-
nho arquitetônico, desprovida de qualquer aceno às complexas
relações que ligam os volumes no espaço e reconhecimento de tais
características como necessárias à “invenção” na base do projeto.
Elementos sem os quais a arquitetura vira “obra de marceneiros e
pedreiros”, como diz Vasari em sintonia com Borghini, principal
colaborador da segunda edição das Vidas e autor de análoga consi-
deração na Selva di Notizie. Deixando de lado nesta sede o problema
da formação — aspecto que parece ter aproximado excessivamente

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Elisa Byington

o arquiteto ao artesão no ambiente de Vasari — acredito que o esva-


ziamento progressivo dos significados intelectuais e poéticos que
haviam distinguido a ideia de espaço, excessivamente abstratos
para as necessidades da época, tenha concorrido para o desprestígio
artístico da arquitetura.
Ao contrário, a percepção de Vasari das particularidades da inven-
ção formal quando se trata de obras de pintura e escultura, assim
como sua capacidade de descrevê-las, tem eficácia ímpar. O mesmo
não acontece em relação às obras de arquitetura diante das quais
o autor com frequência confunde inovações estilísticas com con-
quistas técnicas, como observou Paola Barocchi, atribuindo-lhes a
mesma importância. Isso ocorre em seu próprio prejuízo ao citar os
Uffizi como exemplo de ordem dórica na Introdução à Arquitetura.
O dórico, escolhido por Cosimo I para o edifício, foi realizado por
Vasari com “il vero modo che usarono gli antichi” — diz ele, ou seja,
com arquitrave, friso e cornija postos sobre a coluna ao invés dos
arcos comumente adotados por razões de estética segundo explica-
ção do autor. Nas entrelinhas podemos ler sua polêmica com Leon
Battista Alberti, por ele criticado nas Vidas justamente por ter posto
arcos sobre as colunas na loggia Rucellai. Mas ao invés de valorizar
a própria escolha estilística e artística dos Uffizi, Vasari a confunde
com proeza técnica e passa a expô-la como tal, pomposamente “em
beneficio do mundo e dos artífices” — diz o autor.

Ordem e “licença”

A questão da licença criava para os contemporâneos não poucos


problemas do ponto de vista teórico, sobretudo por não se inscrever
dentro das regras e medidas de Vitrúvio. Por outro lado, a licença,
ou inovação, se fazia valer do exemplo de Michelangelo e sua liber-
dade na reelaboração da linguagem formal da antiguidade que, nas
palavras de Vasari, “havia rompido laços e correntes” abrindo cami-
nho para os arquitetos.

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Contradições críticas em As Vidas de Giorgio Vasari

As inovações eram condição imprescindível para a evolução esti-


lística identificada por Vasari na construção histórica d’As Vidas.
No caso de Michelangelo, as novidades se apresentam de maneira
inequívoca nos comentários sobre a arquitetura da Sagrestia Nuova
e na Libreria Laurenziana, em Florença, exemplos acrescentados
pelo autor na edição de 1568, quando ele mesmo passou a ser arqui-
teto além de pintor. A passagem diz respeito à ordem compósita
que Michelangelo havia sido capaz de elevar ao nível das ordens
clássicas, ainda que a mesma não tivesse sido prevista por Vitrúvio.
“[Michelangelo] deu grande ânimo àqueles que, ao vê-lo agir, puse-
ram-se a imitá-lo e assim novas invenções foram vistas nos orna-
mentos” — escreve Vasari na Vida de Michelangelo. No entanto, ao
tratar a questão das ordens arquitetônicas no início do livro, Vasari
lamenta as consequências indesejadas da nova liberdade “no nosso
tempo, certos arquitetos plebeus, presunçosos e sem desenho, sem
analisar e imitar com adequado juízo, quase por acaso, sem obser-
var decoro, arte, nem ordem alguma, fizeram coisas monstruosas e
piores do que as alemãs” (I, 65).
Vasari chama de “licença” a inovação em relação às regras esta-
belecidas, teorizada por ele como elemento distintivo das artes e
artistas que integram a terceira parte do livro: conceito fundamen-
tal que caracteriza a Idade que o autor definia como “moderna”. Na
construção evolutiva proposta por Vasari, as artes, para alcançarem
a perfeição que as distinguiu no início do século XVI, precisaram
ir além das regras conquistadas durante a Segunda Idade, corres-
pondente ao século XV, e, a estas regras, acrescentar uma “licença”.
Mas tal “licença”, ainda que não fosse regra — dizia ele — precisava
saber conviver com esta, “sem deturpá-la ou criar confusão”. Em
relação às medidas, o autor dizia ser necessário um “correto juízo
para que as figuras, sem precisarem ser medidas, alcançassem, na
dimensão em que eram feitas, uma graça que excedesse a medida”.
Como podemos constatar nos exemplos acima, a “licença” revela-se
particularmente espinhosa para a arquitetura por tornar subjetivos
os conceitos até então objetivos de regra, medida e beleza.

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Elisa Byington

Na poesia, que ocupa quase toda a produção literária de


Michelangelo, a idéia subjetiva de Graça substitui a de Beleza
(outrora garantida através do número), e a visão superior do artista
faz com que o julgamento dos olhos — os “compassos da razão”,
le seste del giudizio, é objeto de teorização de Vincenzo Danti no
Tratado que publica em 1567, em nome de Michelangelo — valha
mais do que as medidas dos esquadros e compassos.
Em carta ao cardeal Rodolfo Pio da Carpi (o destinatário não é
certo), deputado da fábrica de São Pedro que provavelmente havia
feito alguma restrição às novidades introduzidas ao projeto da basí-
lica, Michelangelo responde usando a imagem do corpo humano, sua
simetria e variedade, para exemplificar as semelhanças e as diferenças
entre as partes na planta de um edifício, e sobre como mudar os orna-
mentos tendo mudado a planta: “Monsenhor Reverendíssimo, (…)
Quando uma planta muda de forma, não é somente lícito, mas neces-
sário, mudar também os ornamentos e, analogamente, seus corres-
pondentes: e os meios são sempre livres, como se queira; assim como
o nariz, que está no meio no rosto, não é obrigado nem a um, nem a
outro olho, uma mão é bem que fique obrigada a ser como a outra, e
um olho como o outro, por respeito aos lados e às correspondências.
Porque uma coisa é certa, os membros da arquitetura dependem dos
membros do homem”.23Esta analogia, no entanto, leva Michelangelo
a concluir “chi non è stato o non è buon maestro di figure, e massime
di notomia, non se ne può intendere” de arquitetura.24 Ao invés de
número e geometria, ele propõe anatomia como disciplina básica
para os arquitetos. Como observa James Ackerman (Londres, 1961),
no lugar da relação abstrata e filosófica habitualmente proposta, e da
metáfora matemática a que nos referimos, Michelangelo propõe uma
analogia orgânica na qual “as partes de um edifício são comparadas

23  Barocchi, P. Il Carteggio di Michelangelo, vol.V, Florença: Spes, 1965–


1983, p. 123.
24  “Quem não foi ou não é um bom mestre da figura [humana], e especial-
mente de anatomia, não pode compreender isto”.

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Contradições críticas em As Vidas de Giorgio Vasari

não às proporções ideais do corpo humano, mas à suas funções”. O


corpo fornece o modelo para a articulação e o movimento no espaço.
Tudo indica que Michelangelo tenha se afastado do aspecto literal
desta afirmação no final de sua vida quando sua arte caminha na
direção de uma maior abstração, quando não quis mais “far tanti
bambocci”. É o que nos faz crer a Pietà Rondanini, derradeira obra
do mestre com suas formas quase imateriais, desencarnadas, assim
como a arquitetura mais despojada, sem ornamentos externos,
da ultima fase. A isto parece combinar-se a valorização do espaço
interno dos seus últimos projetos arquitetônicos. Este seria o caso
da planta central da igreja de San Giovanni dei Fiorentini, externa-
mente de aparência despida, assim como o da a nova articulação
espacial que distingue a capela Sforza em Santa Maria Maggiore. Tal
processo parece culminar na igreja de Santa Maria degli Angeli nas
termas de Diocleziano, para o qual o artista concebe poucas estru-
turas, de modo a deixar quase somente o espaço do antigo edifício.25
Em Florença, contudo, o ambiente de Vasari parece distante de
tais reflexões do mestre sobre o que poderíamos chamar de relação
entre “figuração” e “abstração”. Tanto que, em 1572, Vasari inicia a
decoração interna da imensa cúpula de Brunelleschi na catedral de
Florença , povoando-a de figuras da familia Medici, segundo “inven-
ção” do habitual frei Borghini sobre a temática do Juízo Universal,
obra que seria concluída por Federico Zuccari depois da morte de
Giorgio Vasari em 1574.

25  Em ensaio recente, Thoenes, C. “Michelangelo e Arquitetura”. In:


Michelangelo Arquiteto a Roma, Milão: ed. Elekta, 2009, pp. 25–37, aponta para a
transformação e comenta que não lhe parece ainda suficientemente estudada e
discutida a mudança da arquitetura de Michelangelo nos anos romanos, depois
das criações dos anos 30 e 40 em Florença.

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Pintura de gênero flamenga
e sua herança no âmbito do
naturalismo bolonhês 1
Stefania Caliandro

O
entrelaçamento de diversas influências, procedentes tanto
das novas proposições pictóricas elaboradas em âmbito
nórdico quanto do repensamento dos grandes modelos
clássicos (Michelangelo, Rafael), torna-se um momento-chave para
entender o último Renascimento italiano, durante o qual artistas
como os Carracci e, em seguida, Caravaggio, reagem aos exageros
formais do maneirismo para reencontrar um naturalismo culto,
antes que soluções barrocas viessem a impor-se no século seguinte.
O último Quinhentos não é, portanto, apenas um período de transi-
ção entre grandes tendências, mas de experimentação e de reformu-
lação de temas e motivos de acordo com os novos ditames religiosos
e, igualmente, do patronato burguês. Elevando à pintura elementos
iconológicos destinados até então à ilustração popular, a arte fla-
menga enriquece o próprio repertório da criação artística, intro-
duzindo a pintura de gênero e, quase simultaneamente, a natureza
morta. Uma análise das derivações desses temas e motivos na arte

1  Tradução de Fernanda Marinho, revista pela autora e por Maria Berbara.


Uma primeira versão desse texto, aqui ampliado, foi publicada em francês
sob o título “Du réalisme flamand au naturalisme italien : Joachim Beuckelaer et
Annibale Carracci”, Correspondance(s), 10, Université Marc Bloch, Estrasburgo,
2003, pp.11–17. A autora agradece à tradutora e à organizadora deste livro pela
colaboração.

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Pintura de gênero flamenga

italiana mostra um tecido intrincado de heranças e reapropriações,


testemunhando os escambos constantes existentes, ainda que por
vias secundárias, com a produção nórdica.
A escola antuérpia procurava reanimar um maneirismo enfra-
quecido com um renovado vitalismo em um clima de sincretismo
complexo. As crescentes exigências de deleite sensorial de ricos
mercadores — que encomendavam obras de arte — confrontavam-
se com as primeiras reações devocionais à vaga iconoclasta que
tolhia diversos centros artísticos da Europa do Norte, culminando
com as resoluções austeras da Contrarreforma. Paradoxalmente, o
percurso traçado por Joachim Beuckelaer, apud seu mestre Peter
Aertsen, viria ser fundamento da retomada naturalista que revigora
a arte italiana. Se o historiador de arte Roberto Longhi já esclareceu
em que medida o realismo de Caravaggio evoluiu da sua formação
lombarda e do jogo de influências que traziam localmente reflexões
de outras escolas2, alguns desses pintores aparentemente secundá-
rios, como os Campi, mas também Passerotti em Bolonha, con-
tribuíram para a circulação de soluções inovadoras, participando,
entre outros, da formação de Annibale Carracci.
Um confronto direto entre duas criações, Mercado de peixes (Fig.
31,p.469),deJoachimBeuckelaer,e Açougue(Fig.32,p.469),deAnnibale
Carracci, atesta a herança das pesquisas flamengas sobre a escola
bolonhesa. Além da migração dos motivos e gêneros iconológicos,
é preciso, porém, ressaltar as diferenças que destacam, em primeira
instância, a concepção do espaço pictórico de Annibale das soluções
adotadas na Antuérpia. O naturalismo desenvolvido por este no iní-
cio da sua carreira pictórica flanqueia, de fato, a implantação de um
sólido classicismo, o qual não deixará de manifestar-se, de maneira
mais eloquente, na sua fase madura. O estudo da natureza e de cenas
de gênero anima e amplia a produção do pintor sem que ele deixe,
contudo, de reaproveitar os modelos estabelecidos pela própria tra-
dição, dando um novo salto no sentido neoclássico.

2  Cfr. Longhi, R. Caravaggio. Roma: Editori Riuniti, 1982.

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Stefania Caliandro

Tijelas e recipientes repletos de peixes — inteiros, em postas ou


despedaçados — invadem o primeiro plano da imagem e o olhar do
observador é convidado, assim, a demorar-se no Mercado de peixes
(Fig. 31, p. 469) de Joachim Beuckelaer (Antuérpia, 1533–35 – 1574 c.3).
A mercadoria, exposta por todos os lados, ocupa de fato uma boa
parte do campo pictórico, não apenas a parte principal, em primeiro
plano, mas também os lugares mais escondidos, como o cesto cheio
de peixes que se percebe atrás dessa exposição, no estreito espaço
que separa o homem da mulher no segundo plano, e a arraia pen-
durada na pilastra desta arquitetura impossível de se distinguir. A
mercadoria, exibida por toda a tela, motiva a existência e a atividade
destes dois vendedores, um que mostra a quem olha, com um gesto
um pouco travesso, uma bela posta de salmão, e outra, cansada e
resignada ao próprio papel, que abaixa o olhar e se apóia em um
recipiente como que buscando alívio. É, por outro lado, a merca-
doria que explica a presença e a postura das duas mulheres mais ao
fundo, uma com chapéu, que parece olhar alguma coisa em baixo,
e outra, jovem, agarrada ao cesto, que se volta atraída pelo gesto do
vendedor — jogo de olhares e de sinais que só faz aumentar a refle-
xividade da imagem entre aquilo que é para ser visto e aquilo que é
mostrado; jogo de atitudes e de trocas visuais que só parece cessar,
de maneira enigmática, no olho esbugalhado e, ao mesmo tempo,
cegado do peixe decapitado em baixo ao centro.
Ao fundo, uma paisagem entrevista através das arcadas à esquerda
deixa à mostra uma barca, provavelmente de pescadores, circun-
dada por pequenas figuras movendo-se nas suas redondezas e sobre
a ponte. Esta abertura do espaço reitera também a isotopia do tema
da representação; ela parece garantir a continuidade temporal com
o objeto exposto em primeiro plano — o peixe fresquísimo, recém

3  Considerou-se que Beuckelaer tivesse morrido em 1575, embora o Museu


de Belas Artes de Bruxelas, na legenda das suas obras, indique a data de 1573.
Talvez essa segunda datação se relacione com a identificação recente do irmão
Huybrecht Beuckeleer, pintor mencionado na Antuérpia de 1567 a 1584.

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Pintura de gênero flamenga

pescado. O tratamento pictórico procura sublinhar a veracidade


da imagem destacando o brilho das escamas, os reflexos úmidos
e a diferente materialidade do produto (re)presentado: sente-se a
densidade da carne nas cores vivas das postas, aprecia-se a esfu-
matura dos corpos opacos, figura-se ao tato o dorso escorregadio
dos peixes, percebe-se a transparência da água na caldeira. Estes
efeitos de matéria que caraterizam a pintura flamenga relativamente
a outras estratégias ilusionistas, como a perspetiva linear para o
Renascimento italiano, são aqui empregados na continuidade de
uma tradição iconológica com a qual este quadro, no entanto, colide.
O crítico Johannes Sievers, um dos primeiros a consagrar um
estudo aprofundado à obra pictórica de Beuckelaer, louva exata-
mente estes efeitos de realismo, os quais chegam a transmitir tanto o
peso e a frescura destes peixes acuradamente diferenciados segundo
suas espécies, quanto os reflexos luminosos dos corpos polidos, por
vezes também parcialmente imersos na água, e os refletidos brilhos
das ramas4. Esta habilidade técnica, retomando os artifícios da tra-
dição nórdica, é todavia posta a serviço da afirmação de uma pintura
de gênero que Beuckelaer desenvolve na Antuérpia a partir de seu tio
e mestre Peter Aertsen5. Este havia pintado em quadros cenas popu-
lares, geralmente inspirando-se em gravuras, arte de maior difusão,

4  Cfr. Sievers, J. Jahrbuch der Königlich Preußischen Kunstsammlungen,


Berlim, 1911, vol. 32, p.185–212, citado ente outros por André Gilbert, Joachim
Beuckelaer (1533–1575). Dernières Œuvres, sem lugar de edição (documento
depositado na biblioteca central da Universidade Católica de Leuven), 1994,
sem numeração de páginas. Na sua obra monumental sobre a arte flamenga,
Max J. Friedländer não menciona, todavia, Beuckelaer, e dedica apenas algu-
mas páginas a seu mestre Peter Aertsen; cfr. Friedländer, M. J. Die
Altniederländische Malerei, 14 vol., Berlim e Leiden: Cassirer e Sijthoff, 1924–37
(trad. inglesa Early Netherlandish Painting, 14 vol. mais um suplemento, Leiden,
A. W. Sijthoff ’s Uitgeversmaatschappij, 1975, especialmente vol. 13, “Antonis
Mor and his contemporaries”).
5  Cfr. o livro mais aprofundado de Moxey, K. P. F. Pieter Aertsen, Joachim
Beuckelaer, and the Rise of Secular Painting in the Context of the Reformation,
(Outstanding dissertations in the fine arts, thesis-Chicago, 1974) Nova York e
Londres: Garland Publishing Inc., 1977.

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Stefania Caliandro

onde a jovialidade componesa tocava a comicidade vulgar: campo-


neses que dançam, brigam, festejam e fazem amor mostravam, por-
tanto, atitudes licenciosas e gestos impúdicos, distinguindo-se assim
dos costumes da tradição pictórica. Não obstante, a lascívia sensual
e alusivamente erótica das festas camponesas pintadas por Aertsen
(homens que bebiam, tocando as mulheres, e estas, que evocam
através de seus gestos metáforas sexuais)6 geralmente se justificava
na sua obra pela adoção de um conjunto iconológico religioso que
a legitimava7. Se as suas cenas de gênero, assim como suas nature-
zas mortas, tornam-se amplas no campo pictórico a tal ponto do
observador perder visualmente a referência do tema religioso esbo-
çado ao fundo8, elas permanecem, todavia, conectadas, salvo raras
excessões, à ideologia religiosa e aos motivos da iconologia clássica9.
Cenas de gênero e naturezas mortas eram assim, de algum modo,
justificadas por um simbolismo cristão e por uma didática morali-
zante10. Beuckelaer, por sua vez, parece explorar com menores reti-
cências a dimensão puramente pagã destas representações. Com cer-

6  Veja-se como exemplo os quadros de Aertsen (todos de dimensão médio-


grande): Festa camponesa, 1550, 85 x 171 cm, Kunsthistorisches Museum,
Vienna; Companhia camponesa, 1556, 142,3 x 198 cm, Museu van den Bergh,
Antuérpia, e A dança do ovo, 1557, 84 x 127 cm, Rijksmuseum, Amsterdam.
7  Veja-se como exemplo: Cena na cozinha com Cristo na casa de Marta e Maria,
1553, 126 x 200 cm, Museu Boymans-van Beuningen, Roterdã, os dois quadros
do mesmo tema Cristo e a adúltera respectivamente de 1559, 123 x 179 cm,
Staedel Kunstinstitut, Frankfurt, e aquele não datado, 122 x 180 cm, Museu
Nacional, Estocolmo, e Retorno da procissão, 1550, 110 x 170 cm, Museu de
Belas Artes, Bruxelas.
8  É o caso de Açougue com a fuga para o Egito, 1551, 124 x 169 cm, Upsala
University, e Cena de cozinha com Cristo na casa de Marta e Maria, 1552, 60 x
101,5 cm, Kunsthistorisches Museum, Viena.
9  Veja-se Cozinheira, 1559, 127,5 x 82 cm, Museu de Belas Artes, Bruxelas, e
Mercado, 1569, 83,5 x 169,5 cm, Museu Hallwyl, Estocolmo.
10  O aparecimento da natureza morta como gênero em si não teria sido, no
entanto, inesperado, segundo Charles Stirling, porque podia valer-se da fonte lite-
rária de Plínio o Velho que, em De rerum naturae (livro XXXV, verso 37), des-
creve as lojas e os objetos pintados pelo artista Piraikos; cfr. Stirling, C. La
nature morte de l’antiquité à nos jours, Paris, Tisné, 1952, p.37, mencionado por

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Pintura de gênero flamenga

teza, seguindo seu mestre, habituou-se a buscar referências religio-


sas que lhe autorizassem o prazer de detalhar imagens luxuriosas11
e, sobretudo, de pintar atividades populares e cenas cotidianas12;
mas as prerrogativas bíblicas perdem cada vez maior importância
— e espaço no campo pictórico — até que a autonomia destes novos
gêneros pictóricos finalmente chega a ser reconhecida13. Não ape-
nas a obra de Beuckelaer coloca-se, assim, nas origens da natureza
morta na arte moderna ocidental, especialmente graças a seu Porco
esquartejado (1563) que parece ter inspirado inclusive H. Van Rijn
Rembrandt14, mas igualmente, e com maior evidência, ela confere

Moxey, Pieter Aertsen, Joachim Beuckelaer…, op. cit., p.27. Quase todos os quadros
de Aertsen e Beuckelaer aqui citados são reproduzidos neste último livro.
11  Veja-se dois quadros, sem datação, de Beuckelaer com o mesmo tema: Cena
de cozinha com o caminho para Emmaus, de 60 x 82 cm, Museu Castelvecchio,
Verona, e de 169 x 110 cm, Mauritshuis, Haia.
12  Veja-se as suas quatro obras intituladas Mercado com Ecce homo, respectiva-
mente: de 1561, 123 x 165 cm, Museu Nacional, Estocolmo; de 1565, 100 x 120
cm, Coleção Schottenstiftes, Viena; de 1566, Uffizi, Florença, e de 1570, 151 x
202 cm, Museu Nacional, Estocolmo. Veem-se também Fuga para o Egito, 1563,
112,5 x 153,5 cm, Museu de Belas Artes, Bruxelas; Cena de cozinha com Última
Cena e caminho para Emmaus, 111–1/2 x 144 cm, Museu Nacional, Praga, e os
dois quadros de Cena de cozinha com Cristo na casa de Marta e Maria, respecti-
vamente de 1565, 130 x 201 cm, Museu Nacional, Estocolmo, e de 1566, 171 x
250 cm, Rijksmuseum, Amsterdam.
13  Muito mais numerosas que em Aertsen são as obras de Beuckelaer desvin-
culadas de qualquer referência religiosa, como: Mercado, 1564, 114,8 x 170,5
cm, Wilhelmshohe, Kassel; Mulher no mercado, 1565, 110 x 81 cm, Museu van
den Bergh, Antuérpia; Vendedores de animais exóticos, não datado (último perí-
odo) 136 x 202 cm, Museu Capodimonte, Nápoles; Açougue, 1568, 146 x 205
cm, Museu Capodimonte, Nápoles; Companhia camponesa, 1563, 131 x 175 cm,
Museu Real das Belas Artes, Antuérpia, e Feira camponesa, 1563, 113 x 162 cm,
Hermitage, San Petersburgo.
14  Beuckelaer, Porco esquartejado, 1563, 114 x 83 cm, Museu Walraf-Richartz,
Colônia. Este quadro, do qual Maarten van Cleve realizou uma variante em
1566, parece ser a base de duas pinturas de Harmenszoom Van Rijn Rembrandt,
uma provavelmente dos anos de 1630, conservada na Art Gallery de Glasgow,
e a outra de 1655, no Louvre de Paris; cfr. Moxey, Pieter Aertsen, Joachim
Beuckelaer…, op. cit., p.101–102, espec. nota 2 p.101.

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um valor iconológico e um estatuto artístico independente às cenas


de gênero. É o que ocorre com o tema do Mercado de Peixes (Fig.
31, p. 469), que Beuckelaer elabora inicialmente no âmbito do motivo
clássico da pesca milagrosa15, reduzindo em seguida a referência
religiosa à paisagem ao fundo da representação16, até destacar-se
finalmente da iconografia tradicional nas múltiplas versões, todas
de dimensões bastante consideráveis, que realizou até sua morte17.
Esta evolução iconológica de temas e motivos na arte moderna
ocidental se esclarece, notadamente, à luz de certas mudanças his-
tóricas que redefiniam, na época, o valor das imagens enquanto
veículos de funções ideológicas, sociais e religiosas. De um lado, as
obras de arte flamengas respondiam sempre mais às exigências de
comanditários particulares, como ricos comerciantes e banqueiros
desejosos não apenas de demonstrar sua fé nas igrejas, mas também
de deleitar-se com objetos que adornassem suas moradias. Por outro
lado, a reforma protestante e as diversas posições teológicas que se
desenvolveram desde o início do século tornavam delicado o uso
das representações pictóricas. Sem pretender retomar o complexo
debate da época sobre as imagens, é oportuno notar que as posições
menos extremas e não iconoclastas haviam enfatizado a necessidade,
de um lado, de representar sobretudo momentos narrativos dos tex-
tos sacros e, de outro, que estas cenas tivessem um propósito didá-

15  Ver o seu Mercado de peixe com a pesca milagrosa, 1565, 110 x 203 cm,
Coleção Macdonald, Ilha de Skie.
16  Ver o seu Mercado de peixe com a pesca milagrosa, 1570, 156 x 213 cm, Museu
Capodimonte, Nápoles.
17  Veja-se os seus diversos quadros de Mercado de peixe, por exemplo: aquele
de 1569, 147 x 200 cm, Museu Capodimonte, Nápoles; de 1574, 150 x 211 cm,
Museu Real das Belas Artes, Antuérpia; de 1574, 135 x 210 cm, coleção privada
Rhode Saint-Genèse, e aquele não datado (talvez não completado), 140 x 206
cm, Ferens Art Gallery, Hull — os últimos três são reproduzidos em Gilbert,
Joachim Beuckelaer (1533–1575), op. cit., o autor conta tout court seis realizações
de Beuckeler deste tema.

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Pintura de gênero flamenga

tico18. A pintura iniciada por Aertsen e retomada por Beuckelaer


teria, portanto, tentado responder a estas diversas exigências tanto
dos comanditários quanto as relativas às diretrizes religiosas: a ideia
de representar episódios da narrativa sacra com cenas de gênero em
primeiro plano, efetivamente, eliminava qualquer possibilidade de
adoração idólatra da imagem ou dos personagens figurados e permi-
tia, ao mesmo tempo, a inserção de alguns elementos de deleite sen-
sorial. Em determinado momento, porém, especialmente quando a
reação da Contrarreforma começou a fazer-se ouvir, essa estranha
mistura de gêneros deve ter sido vista como ainda mais profana e
irrespeitosa à religião. O tratado do teólogo Johannes Molanus,
difundindo em Flandres as resoluções do Concílio de Trento (con-
cluído em 1563), oferece a esse propósito um testemunho da reação
severa que a Igreja adotava contra as imagens — e os pintores —
que ofuscavam os temas sacros com elementos não pertinentes19.
Provavelmente por causa desta mudança histórica e da mutação
consequente da sensibilidade religiosa, Beuckelaer precisou aban-
donar a mistura de gêneros que seu mestre e ele próprio haviam até

18  Era em particular a posição adotada pelo protestantismo de Lutero; Moxey


analisa os debates religiosos sobre a função e os perigos que se atribuem às
imagens nas diferentes óticas de Erasmo de Roterdã, Martinho Lutero, Calvino
e dos iconoclastas (Zwingli e outros), sem, todavia, explicar verdadeiramente a
influência que aquelas reflexões e eventos religiosos tiveram sobre a pintura de
Aertsen e de Beuckelaer; cfr. Moxey, Pieter Aertsen, Joachim Beuckelaer…, op.
cit., p.109–196, espec. 126–133.
19  Já em 1565, Erasmo havia mencionado o tema de Cristo na casa de Marta
e Maria como um daqueles que se prestava ao abuso, porque os pintores repre-
sentavam os apóstolos bebendo; contudo um quadro de gênero realizado por
Aertsen ainda pôde chegar a Roterdã em 1553 e mesmo Beuckelaer teria conti-
nuado a trabalhar neste tema e outros que podiam ocasionar cenas licenciosas,
como aquela de Cristo e a adúltera. Era propriamente este tipo de pintura que
atacava e prescrevia, com punições rígidas, o teólogo da Universidade Católica
de Leuven, Johannes Molanus, no seu De Picturis et Imaginibus Sacris publicado
em Leuven em 1570; cfr. Moxey, Pieter Aertsen, Joachim Beuckelaer…, op. cit.,
p.235–236.

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agora empregado20. Contrariamente a Aertsen que, no seu último


período, abandonou os quadros de gênero a favor de uma reapro-
ximação a um tratamento mais tradicional dos temas religiosos21,
Beuckelaer escolheu dedicar-se ainda mais às cenas populares e do
cotidiano, continuando, no entanto, a trabalhar na Antuérpia, cidade
onde o catolicismo foi restaurado em 156722. Assim, apesar da difu-
são internacional de sua pintura, passou a última etapa da sua vida
em total pobreza.
A mudança iconológica que ele trouxe não foi, todavia, menor,
uma vez que contribuiu a dar novo impulso às pesquisas artísticas
que, em Flandres, como em outros lugares, buscavam reagir aos
artifícios demasiadamente eruditos de um maneirismo em processo
de desvitalização. De fato, se Beuckelaer é algumas vezes mencio-
nado entre os últimos expoentes do maneirismo antuérpio, não se
ressaltou suficientemente seu papel na renovação dos gêneros e nas
complexas evoluções de um certo realismo que procurava voltar-se
ao cotidiano. O confronto com uma outra pintura de gênero, reali-
zada pelo menos uma década mais tarde e em outro ambiente por
Annibale Carracci (Bolonha, 1560 – Roma, 1609), permitirá com-
preender melhor a influência do primeiro na história da arte, assim
como a especificidade e as diferenças das suas abordagens relativa-
mente a temas, sob certos aspectos, similares.
Por volta de 1585, Annibale Carracci pintou o Açougue (Fig. 32,
p. 469), tema explorado de diversas formas também por Beuckelaer23.

20  Beuckelaer, no entanto, pintou a Cozinheira com Cristo na casa de Marta e


Maria ainda em 1574, Kunsthistorisches Museum, Viena; cfr. ib., 265.
21  Aertsen parece ter realizado o seu último quadro de gênero, o Mercado
citado anteriormente, em 1569, e se dedicou nos seus anos restantes de vida,
entre 1573 e 1575, a três obras religiosas que se diferenciam completamente das
criações precedentes; cfr. ib., 250–263.
22  Cfr. ib., 263.
23  Annibale Carracci, Açougue, 1585, 185 x 266 cm, Christ Church, Oxford.
Posner (1971), que também reproduz esta tela em Annibale Carracci, op. cit.,
data-o por volta de 1582–83. Para as obras de Beuckelaer sobre o mesmo
tema, cfr. supra.

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Pintura de gênero flamenga

Nesta tela, o jovem Annibale representa, em tamanho natural, o tra-


balho de quatro açougueiros realizando suas atividades diárias: aba-
ter, dispor a carne, pesá-la, servir aos clientes. O tema, qualificado
como naturalista em confronto tanto com a pintura maneirista, que
ainda dominava a arte italiana, quanto com o registro elevado ado-
tado posteriormente pelo próprio artista, pareceu por muito tempo
tão surpreendente pela escolha do gênero e pelas dimensões que lhe
eram atribuídas, que até o final do século XIX a crítica acreditou ser
necessário explicar o quadro como um bizarro retrato de família
justificado pela profissão do pai de um dos três Carracci24. Hoje em
dia, as fontes de Annibale foram detectadas em relação seja com o
seu primeiro aprendizado no ateliê de Bartolomeo Passerotti, seja
com os intercâmbios ocorridos entre a família Carracci e aquela de
Vincenzo Campi25. Estes dois pintores — Passerotti em Bolonha e
Campi nos arredores de Cremona — criavam, por volta de 1580,
obras influenciadas pela pintura de gênero flamenga, em particular
pelos quadros de Beuckelaer, que haviam visto e eram conservados
na Coleção Farnese em Parma26. Assim, o Açougue de Passerotti e,
sobretudo, quadros de Campi como o Mercado de peixes e Família

24  O pai (Vincenzo) de Ludovico Carracci, sendo este último primo dos
irmãos Agostino e Annibale, era efetivamente um açougueiro. Reportando esta
interpretação anedótica, Donald Posner demonstra que não aparece mais nem
oportuna nem relevante, na medida em que seria árduo reconhecer os retratos
nos personagens representados; cfr. Posner, D. Annibale Carracci. A Study in
the Reform of Italian Painting around 1590, 2 vol., catálogo, National Gallery of
Art-Kress Foundation, Londres, Phaidon, 1971, p.9.
25  De 1582 a 1584, o irmão de Annibale, Agostino Carracci, havia mantido
contato com a família de Vincenzo Campi, com o objetivo de realizar uma
longa série de retratos gravados de homens ilustres para o livro de Antonio
Campi Cremona fedelissima città et nobilissima colonia dei Romani rappresentata
in disegno…; cfr. Boschloo, A. W. A. Annibale Carracci in Bologna. Visible
Reality in Art after the Council of Trent, 2 vol., Haia, Government Publishing
Office, 1974, p.46.
26  Estes quadros provavelmente foram comprados e importados por Alessandro
Farnese depois de terem sido realizados intercâmbios comerciais e financeiros;
cfr. Posner, Annibale Carracci, op. cit., p.10.

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de vendedores de peixe27, parecem ter estado presentes na mente de


Annibale neste período e lhe ter inspirado, entre outros, o Comedor
de feijões e o desenho Jovem que come28. Como em relação a todas as
suas fontes, Annibale não os cita ou retoma de maneira direta, mas
reelabora e faz seus os elementos que toma emprestado. Com exce-
ção de raros detalhes29, é fácil perceber com qual liberdade rein-
terpretou em seu próprio estilo as cenas de gênero de Passerotti e
Campi. Estes de fato haviam acentuado de maneira quase caricatural
a jovialidade camponesa e os gestos desajeitados dos seus persona-
gens que, agitando-se ademais em um espaço excessivamente obs-
truído por objetos, animavam-se marcadamente, de modo a inter-
pelar o observador30. Exagerando, com um procedimento ainda
maneirista, certas soluções de Aertsen e Beuckelaer, como a intera-
ção com o observador e a exibição da natureza morta, Passerotti e
Campi haviam direcionado estas cenas de gênero ao burlesco e ao
ridículo — elementos que os dois pintores flamengos só pretendiam
evitar. Nada disso ocorre no Açougue de Annibale (Fig. 32, p. 469) que,
pelo contrário, mede pesos, posturas, gestos, formas e cores, reco-
nhecendo a dignidade da profissão de seus personagens. Ademais,
até quando em uma outra variante de Açougue31, Annibale ainda se
vale da estratégia de interpelar — um dos vendedores volta-se ao

27  Bartolomeo Passerotti, Açougue, Galleria Nazionale, Roma; Vincenzo


Campi, Marcado de peixe e Família de vendores de peixe, ambos na Coleção
Fugger, Kirchheim (Mindelheim) (os primeiros dois quadros são reproduzidos
em Posner, Annibale Carracci, op. cit.; o terceiro em Boschloo, Annibale
Carracci in Bologna, op. cit.).
28  Annibale Carracci, Comedor de feijões, aproximadamente 1583–84, 57 x 68
cm, Galleria Colonna, Roma, e Jovem que come, Uffizi, Florença (reproduzidos
em Posner, Annibale Carracci, op. cit.).
29  Boschloo nota que a posição da mão que levanta a colher de Comedor de
feijões e aquela que segura a tigela do Jovem que come retomam as soluções de
Campi; cfr. Boschloo, Annibale Carracci in Bologna, op. cit., p.71–72.
30  Cfr. Posner, Annibale Carracci, op. cit., p.10–11.
31  Annibale Carracci, Açougue, aproximadamente 1582–83, 59,9 x 71,4 cm,
Haddo House, Major David Gordon, Aberdeenshire. Por causa do seu formato
e porque ela parece ter sido pintada de maneira muito mais rápida, esta ver-

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Pintura de gênero flamenga

observador mostrando a mercadoria —, ele elimina o gestual cari-


catural e a ênfase expressiva utilizada no mesmo tema por Passerotti
e explora, como também procurava fazer Beuckelaer, o mundo des-
tes trabalhadores no pleno respeito de suas atividades.
O estilo e a reflexão pictórica de Annibale diferem, no entanto,
claramente da abordagem de Beuckelaer. Enquanto este organiza o
espaço do mercado plano por plano, seguindo uma dinâmica do
olhar instável e, assim, descentralizante, Annibale no Açougue (Fig.
32, p. 469) estrutura, em tamanho natural (tela de Oxford), uma ver-
dadeira loja no sentido em que arquiteta a superficie de maneira
ordenada de tal forma que, como em um friso antigo, cada figura
possa encontrar seu próprio lugar. Ao invés de escavar o espaço em
profundidade, um jogo de planos ortogonais parece obstruir a parte
de trás. Se a disposição ainda evoca a apresentação emoldurada da
mercadoria, proposta por Campi em Mercado de peixes, aqui há um
estreitamento tão acentuado do espaço que, por um lado, a posição
das duas figuras em segundo plano, no alto ao centro, torna-se pro-
blemática e, por outro, a massa desfigurada do animal eviscerado à
direita parece desbordar na frente da cena, além do consentido pela
posição do homem que tem esta carcaça à direita32. De modo geral,
no entanto, os personagens se distribuem segundo um ritmo caden-
ciado que essencialmente justapõe suas atividades. A impressão de
uma organização clássica do conjunto é confirmada pela maneira
segundo a qual os protagonistas são representados. Se o arranja-
mento espacial, principalmente ao centro, sugeriu à crítica uma pos-
sível relação com o Sacrifício de Noé pintado por Michelangelo no
teto da Capela Sistina em Roma, as figuras parecem antes derivar do
Sacrifício de Noé de Rafael nas logge vaticanas, que Annibale plau-
sivelmente conhecia através de gravuras que circulavam na época,

são é aparentemente anterior à tela de Oxford; cfr. o comentário de Posner, ib.,


p.15–16 (e a sua reprodução do quadro).
32  Estes dois blocos de carne se reencontram, em posição invertida uma em
relação à outra, na variante de Açougue em Aberdeenshire, onde enquadram
antes o espaço da representação.

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como a de Marco Dente (Fig. 33, p. 470)33. Ao passo que o açougueiro


ao centro, no alto, e aquele à direita parecem reelaborar — segundo
o estilo de livre citação próprio de Annibale — respectivamente o
Noé de Michelangelo e o personagem que traz o animal à direita na
gravura de derivação rafaelesca, o açougueiro ajoelhado em baixo
ao centro remete mais diretamente ao personagem que abate, cuja
posição é invertida na gravura. Uma vez que a fonte para a figura
à esquerda parece ter sido identificada em uma imagem dos lans-
quenês alemães gravada por Jost Amman34, é evidente que o qua-
dro de Annibale deixa muito pouca margem a uma elaboração livre
ou espontânea do espaço e das figuras. De forma similar, mesmo
para o cachorro que se entrevê sob o balcão, poderia pensar-se em
numerosos estudos dal vero, como aquele que o artista fez para o
açougueiro que pesa a mercadoria35.
Esta abordagem muito calculada, que funde e calibra, de modo
sempre ponderado, tanto a apropriação dos clássicos quanto o
estudo da natureza, situa-se quase opostamente ao trabalho de
Beuckelaer nas suas cenas de gênero. Nas suas diversas realizações
do Mercado de peixes, a retomada de certas partes idênticas (por
exemplo os quatro peixes gordos em primeiro plano nos quadros da
Antuérpia e de Rhode Saint-Genèse), de alguns motivos parecidos
(o prato oval de madeira repleto de pequenos peixes nas obras de

33  Nesta data Annibale ainda não tinha ido a Roma. Cfr. ib., p.14–15 e
Goldstein, C. Visual Fact over Verbal Fiction. A Study of Carracci and the
Criticism, Theory, and Practice of Art in Renaissance and Baroque Italy, Cambridge,
New York, Port Chester, Melbourne e Sydney, Cambridge University Press
(Estados Unidos), 1988, pp.185–186. (Ambos reproduzem a gravura realizada
por Marco Dente do Sacrifício de Noé de Rafael).
34  Jost Amman, Soldados, Graphische Sammlung Albertina, Viena (reprodu-
zida no ensaio de Goldstein, ib., p.190).
35  Annibale Carracci, Estudo para o Açougue, desenho, Royal Library, Windsor
(reproduzido em Posner, Annibale Carracci, op. cit.). Os Carracci foram por
outro lado os fundadores da Accademia degli Incamminati, onde o estúdio de
modelos era particularmente encorajado; cfr. Goldstein, Visual Fact over
Verbal Fiction, op. cit., p.165.

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Pintura de gênero flamenga

Hull, Nápoles e Estrasburgo; o peixe imerso no caldeirão naqueles


da Antuérpia, Hull, Nápoles, Rhode Saint-Genèse e Estrasburgo;
etc.) e mesmo a semelhança dos personagens pintados (o homem
que corta os peixes nas telas da Antuérpia, Rhode Saint-Genèse e,
em medida menor, Hull e Estrasburgo) ou a repetição de seus atribu-
tos (o avental em xadrez, o facão, etc.) fazem justamente duvidar que
Beuckelaer tenha podido seguir uma prática espontânea ou dal vero;
de fato, ele parece articular o espaço de uma maneira mais intui-
tiva que ponderada. O olhar não é dirigido de modo estruturado na
imagem, mas é, ao contrário, encorajado a saltar entre planos e pro-
fundidades seguindo dinâmicas sugeridas localmente pelas formas e
cores. A aglomeração das diferentes partes, organizadas, no entanto,
em uma composição global, não é ordenada nem pela perspectiva
linear, nem pelo critério de justaposição adotado por Annibale. Da
visão de vôo de pássaro do primeiro plano de Mercado de peixes de
Estrasburgo, o ponto de vista passa, sem muita continuidade per-
ceptiva, à perspectiva frontal do segundo plano, com até mesmo a
impressão de uma vista de baixo para cima de certos lugares (veem-
se os personagens posteriores e a pilastra à esquerda), para sugerir
enfim uma perspectiva lateral no fundo (os degraus da escada no
centro-direita, assim como o cais e o teto da construção na paisagem
à esquerda). Esta focalização local dos elementos pintados contribui,
portanto, para determinar uma percepção descontínua e instável do
todo, a qual se encontra reforçada pela condição, assim enfatizada,
de uma recepção puramente visual. O amontoamento das mesas e
dos recipientes em primeiro plano realmente aniquila toda tentativa
de projeção cinestésica no espaço da representação, ao passo que a
acumulação de objetos, figuras e, sobretudo, fragmentos arquitetô-
nicos incoerentes (pilastras, arcos, escadas desproporcionais)36 não

36  Como o mestre Aertsen e até 1570, Beuckelaer elabora com frequência arqui-
teturas renascentistas retomadas dos livros de Sebastiano Serlio; cfr. Moxey,
Pieter Aertsen, Joachim Beuckelaer…, op. cit., p.41–42 et 77. Neste quadro, os ele-
mentos das construções (dos edifícios) são, contudo, de tal maneira deslocados
que não conduzem a uma definição global do lugar.

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Stefania Caliandro

fazem senão aumentar a sensação de desordem gerada pela disper-


são das formas e cores.
Mais que o espaço organizado da loja de Annibale, Beuckelaer
parece assim querer explorar o momento improvisado, quase caó-
tico do mercado e alcançar, através do arranjo desordenado das
diferentes partes, aquele mesmo efeito de balbúrdia que produz
uma multidão de tons quando estes são identificáveis apenas num
nível local. Enquanto a mostra dos produtos em primeiro plano
mantém o observador à alguma distância, o jogo de olhares e de
indicações gestuais o convidam a penetrar visualmente nas atitu-
des que povoam este mercado. Diferentemente de Annibale que
abstrai seus personagens em tipos que assumem, além de uma
temporalidade precisa, o papel de suas atividades, Beuckelaer for-
nece conotação particular a cada uma das suas figuras, caracte-
riza-as fisionomicamente e elabora suas expressões como indício
de um caráter individual. Naturalmente, nenhuma interpretação
pode desvendar por completo esses signos — como se na abun-
dância das significações possíveis certas alusões permanecessem
necessariamente opacas. Assim, seguindo o dinamismo múltiplo
de um percurso detalhista, o olhar se perde em um excesso que
beira o enigma, do qual a figura fragmentada no alto ao fundo,
subindo uma escada desmedida para desaparecer além dos limites
do campo visível seja, talvez, um emblema.
Em uma época onde era preciso evoluir das fórmulas supera-
das do maneirismo e seguir, ao mesmo tempo, módulos pictóri-
cos definidos no espírito da Contrarreforma, é interessante notar
como um pintor atento como o jovem Annibale Carracci se mos-
trasse propenso a experimentar uma renovação de gêneros advinda
no norte dos Alpes. Se as cenas populares e de naturalismo quo-
tidiano não pertencem somente à sua formação, ele conseguiu,
porém, justapô-las com o estudo tanto do modelo dal vero quanto
dos clássicos, alcançando uma síntese pessoal, além do ecletismo
aparente das suas fontes.

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Pintura de gênero flamenga

Dando prosseguimento a sugestões nascidas em resposta ao


maneirismo flamengo, Annibale abria assim a própria arte a expe-
riências naturalistas que contribuíram à reação ao próprio manei-
rismo italiano, mas, sobretudo, a fortalecer seu conhecimento da
tradição rumo à formulação de uma pintura neoclássica grandi-
loquente. Este processo de repensar o passado e as experiências
recentes transparece notadamente na articulação do próprio
espaço pictórico, que não é concebido, por ele, de maneira intui-
tiva ou ingênua, mas através de uma reelaboração ciente da histó-
ria da arte, valendo-se da consolidada herança renascentista.

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Considerações acerca da
fortuna crítica de Tiziano
Vecellio na Península Ibérica
durante o século XVI
Raphael Fonseca

E
ste ensaio visa lançar luz sobre a fortuna crítica de Tiziano
Vecellio1 (Cadore, c. 1490 — Veneza, 27 de agosto de 1576),
durante o século XVI, como retratista. Para tal, utilizar-me-ei
de textos que lhe são contemporâneos e que possuem como carac-
terística a interpretação crítica de seu corpus de retratos. Faz-se
importante também refletir sobre a fortuna crítica do pintor pelo
viés das imagens, ou seja, pensar diálogos entre outros artistas e
suas proposições de modelos visuais.
Gostaria, portanto, de iniciar esta argumentação citando uma fonte
pouco comentada dentro da historiografia contemporânea da arte:

Bras Pereira — Qual é o mais eminente Pintor em Pintar


Retratos ao Natural, que vós saibais em EUROPA, Fernando?

Fernando — O mais famoso Pintor de Retratos que eu


estimo haver em cristãos, que são a flor deste Mundo, tenho

1  Optamos por utilizar a grafia italiana do nome do artista. Interessante ter


em mente que este possui seu nome adequado a diversas línguas: Ticiano, em
português; Titien, em francês; e Titian, em inglês, por exemplo.

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Considerações acerca da fortuna crítica de Tiziano Vecellio

eu que é TIZIANO em VENEZA, posto que a mim me disse


o IMPERADOR em Barcelona perante o nosso DUQUE
de Aveiro, e perante o Duque de Albuquerque, e perante o
Duque de Alva, que melhor o tirara Do natural Antonio
D’OLLANDA em Toledo, de iluminação, que TIZIANO em
Bolonha. Porém eu dou vantagem a TIZIANO2.

Estas palavras foram escritas por Francisco de Holanda, artista e


teórico português integrante da corte de D. João III, rei de Portugal
entre 1521 e 1557. Trata-se de parte do último capítulo do texto
Do tirar polo natural, concluído por ele em três de janeiro de 1549.
Este é intitulado Finais avisos no tirar ao natural e consiste numa
tentativa de colocar alguns pontos finais em questões desenvolvi-
das nos dez capítulos anteriores do texto, em que o autor explora
diversos aspectos da arte de “tirar ao natural”, ou seja, de realizar
retratos. Fica clara nessa parte a sua constante monumentaliza-
ção da arte realizada na Itália, já que ele afirma que por mais que
o grande Carlos V (“…o imperador em Barcelona…”) tenha pre-
ferido a imagem criada por seu próprio pai, “Antonio d’Ollanda”,
este ainda opta pelo resultado dos pincéis italianos.
Este possível encontro com o imperador, segundo Sylvie
Deswarte-Rosa, deu-se no caminho do português para Roma,
entre fevereiro e abril de 1538, em Barcelona3. Tal reunião teve
como objetivo primeiro a realização de um retrato encomendado
pela até então esposa do imperador e sua compatriota, D. Isabel

2  Citação extraída de edição crítica pelo autor deste ensaio e incluída na disser-
tação de mestrado “Francisco de Holanda: ‘Do tirar pelo natural’ e a retratística”,
defendida na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) em 2010. Tal edi-
ção foi baseada em cópia manuscrita de Monsenhor Gordo, realizada em 1790 e
atualmente conservada na biblioteca da Academia Real de Ciências de Lisboa.
3  DESWARTE-ROSA, Sylvie. Verbete “Francisco de Holanda”. In: SERRÃO,
Vitor. A pintura maneirista em Portugal. A arte no tempo de Camões. Catálogo da
exposição. Lisboa: Comissão nacional para comemorações dos descobrimentos
portugueses, 1995, págs. 480–486.

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Raphael Fonseca

de Portugal, em Valladolid, cerca de um mês antes. A viagem do


português para Roma foi incentivada por D. João III e pode ser
interpretada num contexto maior, em que alguns outros artis-
tas também foram enviados a terras italianas, seja para o estudo
das “antigualhas”, seja para a apreciação e aprendizado com mes-
tres italianos, seja para, especialmente no caso de Francisco de
Holanda, o estudo das fortificações militares lá construídas. De
qualquer forma, a encomenda de D. Isabel nunca foi realizada,
como o próprio português irá relatar em seu último texto, o qual
podemos interpretar como um certo livro de memórias: “Da ciên-
cia do desenho”, de 15714.
Ao escrever que prefere o retrato de Carlos V realizado por
mãos italianas, além de assumir uma postura crítica para com
a retratística quinhentista, Francisco de Holanda lança um pro-
blema. Devido à imprecisão de informações presentes nessas
suas frases, perguntamo-nos: qual dos retratos realizados em
Bolonha ele está a citar? Esta localização geográfica, ao menos,
exclui a possibilidade deste texto estar se dirigindo aos retratos
produzidos após a Batalha de Mühlberg, já que estes foram rea-
lizados em Augsburgo em 1548. Tendo Bolonha como referência,

4  “Cheguei a Sua Majestade e beijei-lhe a mão, e disse-lhe, como ia a Itália, e


que a Imperatriz e meu pai me tinham mandado não passar a ela de Barcelona
sem ver Sua Majestade e sem lhe mandar como furtado o seu retrato. Riu-se o
Imperador e fez-me o gasalhado e cumprimento que pudera fazer a um embai-
xador. Porque sabia ele estimar os engenhos que o mereciam no desenho, ainda
que eu o não merecia. E assim quase me não dando a mão que lhe por força
beijei, me encomendou muito que visse as pinturas de S. Miguel de Bolonha
em Itália, onde fora coroado; dizendo que ninguém o retratara melhor que meu
pai em Toledo, nem Ticiano que o também tinha retratado. E assentando-se
na pequena mesa, já com as duas velas, e fazendo assentar o Duque d’Aveiro, e
deixando ficar em pé os outros dois Duques à porta, se me tornou a desculpar,
dizendo que já era velho para me consentir que o retratasse como a Imperatriz
pedia”. In: HOLANDA, Francisco de. Da ciência do desenho. Lisboa: Livros
Horizonte, 1984, págs. 42–43.

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Considerações acerca da fortuna crítica de Tiziano Vecellio

Francisco de Holanda está citando um dos dois retratos pintados


por Tiziano entre 1530 e 1533.
O contato entre o imperador e o pintor parece ter se dado atra-
vés de Federico Gonzaga, como aponta Luba Freedman5. Este
último, duque de Mântua, já havia sido retratado por Tiziano em
1529 (Museu do Prado, Madri) e inclusive escrito para o artista em
novembro de 1532, solicitando sua presença em Bolonha para rea-
lizar retratos do imperador. Dois retratos foram concluídos, sendo
que apenas um deles sobreviveu aos nossos tempos (Museu do
Prado, Madri), ao passo que o outro é acessível através de uma
xilogravura de Giovanni Brito (Graphische Sammlung Albertina,
Viena) e de uma cópia pintada por Pieter Paul Rubens (Coleção
Lord Mountgarret, Yorkshire).
Tendo em mente as duas imagens e o texto escrito por Francisco
de Holanda, parece possível concluir que, no caso do português
estar apontando com sua frase apenas uma das obras, esta deveria
ser o retrato de corpo inteiro, visto a coerência entre os pressu-
postos formais do “bom retrato” encontrados no texto e a obra: o
rosto “treçado” (inclinado, em três quartos) e à direita, o decoro,
a idealização, a adequação do vestuário ao corpo, a ilumina-
ção destacada da face, e também a coerência entre a construção
monumental da imagem e a posição social de imperador exercida
por Carlos V6.
Ao lidar com esse tópico, a necessidade de coerência entre o
retrato e a posição social na qual o retratado está inserido, cabe
recordar os importantes e influentes escritos de Pietro Aretino,
grande amigo e impulsionador da fama de Tiziano como retratista.
Nascido em Arezzo, em 1492, o escritor irá mudar-se para Veneza
apenas em 1527, irrompendo uma amizade quase imediata com

5  FREEDMAN, Luba. Titian´s portraits through Aretino´s lens. Pennsylvannia


University Press, 1995, págs. 117–118.
6  “Digo que somente os claros príncipes e reis ou imperadores merecerem ser
pintados, e ficarem suas imagens e figuras e sua boa memória aos futuros tem-
pos e idades”. In: HOLANDA, Francisco de. Idem, pág. 14.

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Raphael Fonseca

o pintor veneziano, além também do escultor Jacopo Sansovino,


formando um círculo de contatos inicialmente local, mas que
rapidamente se expande também para Florença e Roma. Das suas
três mil cartas, cerca de 225 possuem referências a Tiziano. Dos
203 retratos atribuíveis a este, 115 foram realizados entre os anos
de 1537 e 1553, justamente um intervalo de tempo pontuado por
quatro das seis edições compostas pelas cartas de Pietro Aretino.7
Cruzando estas informações com o comentado anteriormente
sobre Francisco de Holanda, é importante ter em mente, como
afirma Deswarte-Rosa, que o português, dentre várias outras fontes
textuais, teria levado de volta para Portugal um exemplar destas edi-
ções. Por coerência cronológica, esta deveria ser a edição de 1537,
visto que seu retorno deu-se em 1540 e que a segunda edição apenas
foi realizada em 1542. Se alguma outra edição chegou às mãos de
Holanda não há certeza, mas no caso afirmativo, esta possivelmente
pode ter se dado no fluxo de artistas, religiosos ou mesmo numa
troca comercial entre Portugal e Itália.
Dentre as correspondências contidas na primeira edição, uma das
mais famosas e possível fonte de informações para o pensamento
de Francisco de Holanda sobre retratos é o elogio feito por Aretino
para Verônica Gambara sobre os retratos dos duques de Urbino,
Francesco Maria della Rovere (Fig. 34, p. 470), e Eleonora Gonzaga
della Rovere, em 1537 (Galleria degli Uffizi, Florença). No texto
redigido antes dos poemas encontramos já um ponto constante no
tratamento que Aretino dá nas suas apreciações de retratos. Ele diz:

Io nel vederlo chiamai in testimonio essa natura, facendole


confessare che l´arte s´era conversa in lei propria. E di ciò
fa credenza ogni su ruga, ogni suo pelo, ogni suo segno. E i

7  FREEDMAN, Luba. Titian´s portraits through Aretino´s lens. Pennsylvannia


University Press, 1995, pág. 13.

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Considerações acerca da fortuna crítica de Tiziano Vecellio

colori che l´han dipinto non pur dimonstrano l´ardir de la


carne, mas soprano la virilità de l´animo8.

Para este autor, um bom retrato chega a tal ponto de verossimi-


lhança que se “converte em natureza”. De “tirado pelo natural”, ele
é elevado ao nível do próprio “natural”, isso é, de um ser humano
realmente vivo. Além disso, outro ponto importante é o costume
de associar aspectos plásticos das obras, como por exemplo a cor,
com características daqueles indivíduos retratados. Nesse caso, ele
associa a cor aplicada por Tiziano à “virilidade do ânimo” do duque
de Urbino. Necessário constatar também, como aponta Norman
E. Land9, que o escritor não lida com os retratos da mesma forma
como Petrarca e Pietro Bembo, por exemplo, que criaram sonetos
visando reverenciar belas damas retratadas, deixando em segunda
instância os elogios ao artista e à sua grande capacidade mimética.
Aretino, pelo contrário, no poema dedicado ao retrato do duque,
irá primeiramente vangloriar Tiziano, dizendo mesmo que este
era superior ao grande Apeles, o retratista oficial de Alexandre, o
Grande, elogiado por Plínio, o Velho.

Se ´l chiaro Apelle con la man de l´arte


Rassemplò d´Alessandro il volto e ´l petto,
Non finse già di pellegrin subietto
L´alto vigor che l´anima comparte.
Ma Tizian, che dal cielo ha maggior parte,

8  “Eu o veria [Francesco della Rovere] chamar em testemunho a natureza,


fazendo-a confessar que a arte se converteu nela própria. E isto faz acreditar
em cada ruga sua, cada pelo seu, cada sinal seu. E as cores que foram pintadas
não apenas demonstram a ousadia da carne, mas, sobretudo a virilidade de seu
ânimo”. In: ARETINO, Pietro. Carta de 7 de novembro de 1537 in LARIVAILLE,
Paul (Org.). L´Aretin. Sur la poétique, l´art et les artistes (Michel-Ange et Titien).
Paris: Les Belles Lettres, 2003, pág. 23. Tradução livre.
9  LAND, Norman E. “Ekphrasis and imagination: some observations on
Pietro Aretino´s art criticism”. In: The Art Bulletin, volume 68, número 2,
1986, págs. 212–214.

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Raphael Fonseca

Fuor mostra ogni invisibile concetto;


Però ´l gran Duca nel dipinto aspetto
Scopre le palme entro al suo core sparte.
Egli ha il terror fra l´uno e l´altro ciglio,
L´animo in gli occhi, e l´alterezza in fronte,
Nel cui spazio l´onor siede, e ´l consiglio.
Nel busto armato, e ne le braccia pronte,
Arde il valor, che guarda dal periglio
Italia, sacra a sue virtuti conte10.

Se não encontramos uma correspondência direta entre os tex-


tos, ou seja, se Francisco de Holanda não cita de forma literal os
textos de Pietro Aretino, por outro lado, ao notarmos a importân-
cia que o português dá à composição dos rostos nos retratos, tão
grande a ponto de dedicar cinco capítulos ao tema11, nos depara-
mos com a possibilidade de relações não explícitas ao pensamento
do escritor italiano. Além disso, os exemplos retóricos extraídos
de Plínio, o Velho, como a comum comparação entre o retratista
no Renascimento e as anedotas relativas à Apeles e Alexandre, o
Grande, fazem presença em ambas as fontes textuais. A própria

10  Se o ilustre Apeles com a mão da arte


Pintou de Alexandre o rosto e o peito,
Já não traduziu de seu raro modelo
O elevado vigor que a sua alma compartilha.
Mas Tiziano, que do céu herdou maior parte,
Mostra exteriormente cada conceito invisível;
Mas o grande duque em seu aspecto pintado
Desvela as vitórias entre seu coração partido.
Ele tem o terror entre um e outro cílio,
O ânimo nos olhos, e a altivez em sua testa,
No espaço onde a honra está sediada, e o conselho.
No busto armado, e nos braços prontos,
Arde a virtude, que protege do perigo
Itália, confiada a suas virtudes insignes.
In ARETINO, Pietro. Idem, págs. 24–25. Tradução livre.
11  Relativos à construção plástica dos olhos, sobrancelhas, nariz, boca e orelha.

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Considerações acerca da fortuna crítica de Tiziano Vecellio

necessidade de escolha das grandes figuras dignas de serem retra-


tadas, frisadas por Holanda logo no primeiro capítulo de seu texto,
remete aos elogios de Aretino, relativos ao grosso da produção de
Tiziano, ou seja, aos retratos dedicados à até então alta sociedade
europeia: integrantes da corte de Carlos V ou dos ducados das
significativas cidades italianas do momento.
O escritor não dedica maiores comentários aos retratos de
Carlos V realizados em Bolonha, anteriores ao início da dissemi-
nação de suas observações críticas quanto à produção do amigo
pintor, diferentemente de sua recepção para com os retratos reali-
zados após 1548, merecedores de comentários igualmente publica-
dos. De qualquer forma, é possível que Francisco de Holanda tenha
apreciado pessoalmente o retrato mais propenso a elogios, o corpo
inteiro de Carlos V, de 1533, em uma de suas viagens rumo à ou
partindo de Roma. Mesmo assim, ao optar por dizer que Tiziano
Vecellio era o maior retratista vivo de sua época, é inevitável cair na
tentação de pensar que Holanda tinha consciência da relação entre
o seu pensamento e a fortuna crítica que vinha sendo construída
com fôlego por Pietro Aretino.
Mas o que Tiziano realmente apresenta de diferencial em seus
retratos de pessoas socialmente notáveis? Talvez seja interessante
pensar a partir da tradição local na qual o pintor está inserido, isso é,
a produção de retratos em Veneza e suas relações com outros impor-
tantes artistas como Giovanni Bellini e Giorgione, ambos mes-
tres seus. Colocando lado a lado, por exemplo, um famoso retrato
de doge feito por Bellini, o de Leonardo Loredan (1501, National
Gallery, Londres) e um retrato de jovem (1504, Staatliche Museen,
Berlim) feito pelo artista da geração seguinte, Giorgione, e tendo
em mente mais uma vez a obra ressaltada por Francisco de Holanda,
claras são as nuances de propostas estéticas.
Ao passo que em Bellini temos um cuidado grande com a cons-
trução do rosto do doge, o que leva a ficar em segundo plano a
delicadeza da construção de seu corpo, que pode ser interpretado
como uma releitura da tradição clássica da construção dos bustos

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Raphael Fonseca

romanos, em Giorgione temos uma preocupação mais clara quanto


à plasticidade do corpo desse jovem, além de um cuidado maior
com detalhes, como seus cabelos e seu olhar que encontra o olhar
daqueles que o estão apreciando. O doge Loredan parece existir em
um universo que independe da existência de um elemento externo a
ele, tamanho é o ar de superioridade e auto confiança que apresenta.
Por outro lado, o retrato pintado por Giorgione depende, e bastante,
da presença de um espectador; ele está ali à espera de um encontro,
o que é reforçado para além de seu olhar retórico pela presença de
sua mão encostada numa bancada que antecipa a presença física
deste homem. A mão como que atravessa o ambiente meramente
ilusório da pintura, sendo um ponto de contato e um trompe l’oeil
criado pela grande capacidade técnica do artista.
E Tiziano? Primeiramente, ele propõe um outro formato de
retrato. Enquanto os exemplos anteriores possuem no máximo
cerca de 70 centímetros de largura, os “retratos de estado” criados
por ele ultrapassam as medidas de um metro. Com isso, temos obras
que parecem engolir o espectador; uma sensação tida, por exemplo,
quando adentramos algum espaço expositivo do Museu de Arte de
São Paulo (MASP) e fruímos a sequência de artistas que beberam
de fontes tizianescas em sua retratística, como Rubens, Velásquez
e Goya. Os quadros parecem cair sobre nosso corpo, tamanha a
monumentalidade dada pela forte verticalidade dessas figuras pin-
tadas. Por outro lado, fica claro que Tiziano de forma alguma nega
sua tradição local. Percebemos nos tons dourados que permeiam
o seu Carlos V, por exemplo, uma pesquisa cromática que já era
visível nos exemplos de seus dois mestres. Mesmo o tom de superio-
ridade que o imperador apresenta, com um olhar para algo que está
além dos limites da tela, é relacionável ao retrato criado por Bellini.
Porém, o que parece mais evidente nesse retrato de Tiziano e
em diversos outros realizados por ele, é a decisão de ter inclu-
ído o corpo inteiro da personalidade retratada. Francisco de
Holanda, em seu “Do tirar polo natural”, tece um comentário
sobre esta questão:

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Considerações acerca da fortuna crítica de Tiziano Vecellio

Brás Pereira — Destes-me agora a vida, e não ousava a


pedir-vo-lo, por me terdes dito tanto. E desejava eu muito
de saber Tirar ao Natural uma pessoa toda inteira, e do seu
próprio tamanho e medida desde o assento dos PÉS até subir
à CABEÇA, porque me dizem que em ITÁLIA se costuma e
que o costumam Reis Cristãos por se verem pelo MUNDO.

Fernando — Louvados são em ITÁLIA os RETRATOS


tirados todos em Pé ao Natural, e é por mostrar mais do
homem. Mas louvam mais as Pinturas ou Retratos que eles
Pintam assentados em seus assentos, escolhidos e quietos,
ainda que sejam belicosos e armados os Príncipes que ao
Natural são Pintados em Retrato. E vê-se isto ser verdade
em a Cidade de FLORENÇA, que pode em parte ser cha-
mada MÃE DA PINTURA, em a obra das SEPULTURAS
dos MEDICIS, que maravilhosamente esculpiu em már-
more M. MICHEL ANGELO, PINTOR FAMOSO, os quais
Príncipes em seus Retratos estão Assentados em seus assen-
tos e armados, ou pacíficos. E em outros muitos exemplos
da nobilíssima ANTIGUIDADE poderei provar o que digo
em a Cidade de ROMA12.

Neste trecho, Holanda parece estar remetendo novamente ao


retrato de Carlos V ou, se não, pelo menos ao modelo do qual ele
bebe, as estátuas de imperadores romanos. Estabelecendo uma
comparação com essa tradição, ele cita a possibilidade de retratar
as figuras sentadas, como o próprio Tiziano irá fazer com o impe-
rador em 1548. Ainda podemos ler esse trecho como uma tentativa
discreta de comparar o proposto em Veneza por Tiziano e o reali-
zado por Michelangelo, o tão bem construído textualmente mestre
de Francisco de Holanda, em Florença; o primeiro pela pintura, o
segundo pela escultura.

12  Cfr. nota 2 supra.

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Raphael Fonseca

Erwin Panofsky, em seu clássico “Problems in Titian: mostly ico-


nographic” (“Problemas em Tiziano: majoritariamente iconográfi-
cos”), de 1964, irá lembrar que o citado retrato de Carlos V pos-
sivelmente é cópia de outro realizado pelo artista nórdico Jakob
Seisenegger em fins de 153213 (Fig. 35, p. 471). Em sua argumentação,
após citar o artigo de G. Glück14, responsável por esta primeira lei-
tura, ele diz que não devemos nos deixar levar pela qualidade das
obras. O próprio Panofsky assume explicitamente preferir o retrato
de Tiziano, porém esta predileção não pode fazer com que chegue-
mos à conclusão de que o obscuro artista nórdico teria meramente
copiado o mestre veneziano. Citando a documentação acessível, o
autor alemão afirma que o retrato feito por Seisenegger já estava
pronto em 1532, ao passo que neste mesmo ano, precisamente no
dia 8 de novembro, Tiziano ainda se encontrava em Veneza, tendo
se locomovido à Bolonha apenas no ano seguinte.
Segundo A. Cloulas15, também citada por Panofsky, o número
1532 que figura ao lado de Carlos V no retrato de Seisenegger seria
uma citação à entrada do imperador em Bolonha em 13 de novem-
bro deste ano. O historiador alemão, por outro lado, discorda dessa
leitura e afirma que, caso este fato fosse verídico, tratar-se-ia de
um caso único da história da retratística. Ele prefere crer que o
retrato de Tiziano é baseado no retrato de Seisenegger e cita como
documentação visual uma gravura feita por Hans Burgkmair, ape-
nas publicada em 1755 e parte de uma série extensa de imagens
dedicadas ao imperador Maximiliano I, avô de Carlos V, intitulada
“Weiss-Kunig”. Nesta há a inclusão de um autorretrato do artista
tendo ao seu lado a figura real como que a observar o seu traba-
lho. Aos seus pés está um cachorro deveras semelhante ao cachorro

13  PANOFSKY, Erwin. “Excursus 4: Tiziano y Seisenegger”. In: Tiziano: proble-


mas de iconografia. Madri: Ediciones Akal, 2003, págs. 179–180.
14  GLÜCK, G. “Original und kopie”. In: Festchrift für Julius Schlosser. Zurique,
Leipzig e Viena, 1927.
15  CLOULAS, A. “Charles Quint et le Titien”. In: L’information de l’histoire de
l’art, IX, 1964.

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Considerações acerca da fortuna crítica de Tiziano Vecellio

encontrado nos dois retratos posteriores e de corpo inteiro de


Carlos V. Sabendo de sua improvável circulação pelo ambiente ita-
liano, somados aos comentários encontrados no ambiente artístico
nórdico sobre esta série de imagens, Panofsky conclui que, por-
tanto, a relação entre os retratos se deu através da observação que
Tiziano fez da pintura de Jakob Seisenegger.
Somando-se à argumentação de Panofsky, o historiador espanhol
da arte Miguel Falomir, em texto recente sobre a possível polêmica
entre estes retratos de Carlos V, informa ao leitor que, antes da obra
aqui citada, Seisenegger já havia pintado quatro vezes o impera-
dor e todas de corpo inteiro16. O primeiro retrato foi feito em 1530
(Palácio da Almudaina, Mallorca), outros dois em Praga, em 1531,
e o anterior ao de Bolonha foi pintado também em 1532 (Coleção
Lord Northhampton, Castelo Ashby), mas em Rastibona.
Como Luba Freedman aponta, fazendo coro às anteriores pala-
vras de Erwin Panofsky, na Itália inexistia uma tradição quanto à
representação do corpo inteiro em pintura. Apenas dois seriam os
exemplos facilmente localizáveis e anteriores ao retrato pintado por
Tiziano: o retrato de um cavaleiro, de 1510, de Carpaccio (Museu
Thyssen-Bornemisza, Madri) e o retrato de um homem, de 1526 de
Moretto da Brescia (National Gallery, Londres).
O primeiro insere seu retratado em um ambiente em que a tradi-
ção clássica se faz presente pela inclusão de parte de uma coluna e de
um arco, ícones da plástica da antiguidade greco-romana. Enquanto
isso, no segundo exemplo, encontramos um cavalheiro inserido na
paisagem, fazendo um interessante contraponto com a paisagem
inserida em janela no retrato de Moretto da Brescia. Esta opção
chama atenção pela insistência de Carpaccio em reproduzir as mais
diversas plantas e animais, em um claro diálogo com a pintura rea-
lizada ao norte dos Alpes, além de indícios de uma cidade ao fundo.

16  FALOMIR, Miguel. “111. Jacob Seisenegger. ‘Carlos V con un perro’” &
“112. Tiziano. ‘Carlos V con un perro’”. In: FALOMIR, Miguel. El retrato del
Renacimiento. Madri: Museo Nacional del Prado, págs. 378–380.

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Raphael Fonseca

No que diz respeito à retratística nórdica, temos como famo-


sos exemplos do retrato de corpo inteiro os realizados por Lucas
Cranach em 1514, do duque da Saxônia, Henrique, o Piedoso e
de sua esposa, Katharina Von Mecklenburg (Gëmaldegalerie,
Dresden). Assim como nos retratos de Carlos V, Cranach opta
por incluir na imagem do casal os seus dois cachorros. No lado
esquerdo, na figura masculina, um cão de caça, assim como o dos
retratos de Tiziano e Seisenegger, denotando virilidade e poder.
Enquanto isso, à direita, um cão que remete ao caráter doméstico
da mulher; frágil e pequeno. A atenção também é dada ao vestuário
dos duques, que ostentam o poder pela estamparia e seu decora-
tivismo, em vez dos retratos italianos em que, geralmente, este é
dado pela sobriedade das cores.
Já outro exemplo, lembrado por Miguel Falomir, é Christoph
Amberger, autor de dois retratos de corpo inteiro, de 1525, de um
homem e outro de uma mulher, como que inseridos dentro de
uma arquitetura classicizante e com inscrições em latim ao fundo
(Gemäldegalerie, Berlim). Mais uma vez a acentuação da vesti-
menta é perceptível. Enquanto isso, em outro pintor levantado por
Falomir, Bernhard Strigel, temos o formato do retrato de família,
que muito bem pode ser interpretado como parte de um tríptico em
cujo centro poderia haver uma representação religiosa. Este “Retrato
de Conrad Rehlinger com sua família”, de 1517 (Alte Pinakotheke,
Munique), seria uma imagem do comanditário de alguma obra reli-
giosa? Mesmo sem essa certeza, exposto desta forma, em especial
no que diz respeito à figura paterna, o diálogo com os retratos de
Carlos V é bem claro.
Quando Francisco de Holanda aponta a inclusão do corpo todo
nos retratos como algo tradicionalmente italiano, se Panofsky e
outros autores estiverem corretos, acaba por também tecer um elo-
gio indireto à tradição nórdica dos retratos, por mais que em seu
outro texto, “Da pintura antigua”, de 1548, ele seja deveras rigoroso
com os objetos artísticos criados ao norte dos Alpes.

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Considerações acerca da fortuna crítica de Tiziano Vecellio

O próprio celebrado retrato de Francesco Maria della Rovere foi


pensado como um retrato de corpo inteiro. Basta vermos um dos
poucos desenhos preparatórios de Tiziano que permanecem con-
servados (Fig. 36, p. 471). Os princípios aí estão: o duque fita o espec-
tador e tem os braços apoiados em um bastão, do lado direito, e
no segurar uma espada do outro lado. A posição de suas pernas
recorda, de forma leve, o modo como Tiziano e Seisenegger orga-
nizaram as pernas de Carlos V; um pé encontra-se mais verticali-
zado, em um ângulo de noventa graus, ao passo que o outro está
levemente inclinado, impossibilitando uma ideia de frontalidade
na composição.
Até mesmo Giorgio Vasari, cujo célebre texto “Le vite de’ più
eccellenti pittori, scultori et architetti italiani” (“As vidas dos mais
ilustres pintores, escultores e arquitetos italianos”) tem uma clara
orientação encomiástica ao que diz respeito aos modelos artísticos
pensados e realizados em Florença, na edição de 1568 vê-se obri-
gado a incluir um capítulo breve e relativo ao comentário das obras
até então produzidas pelo ainda ativo Tiziano Vecellio. Ao comen-
tar sobre a opção pela inclusão do corpo inteiro em seus retratos,
Vasari nos dá uma outra interpretação:

L’anno 1541 fece il ritratto di don Diego di Mendozza, allora


ambasciadore di Carlo Quinto a Vinezia, tutto intero e in
piedi, che fu bellissima figura: e da questa cominciò Tiziano
quello che è poi venuto in uso, cioè fare alcuni ritratti interi.
Nel medesimo modo fece quello del cardinale di Trento, allora
giovane; ed a Francesco Marcolini ritrasse M. Pietro Aretino…17

17  “No ano de 1541 [Tiziano] fez o retrato de Dom Diego de Mendoza, naquele
momento embaixador de Carlos V em Veneza, todo inteiro e em pé, que era
uma belíssima figura: e a partir desta começou Tiziano aquilo que depois viu
em uso, isto é, fazer alguns retratos inteiros. No mesmo modo fez aquele do car-
deal de Trento, na época jovem; e para Francesco Marcolini retratou o senhor
Pietro Aretino…”. In: VASARI, Giorgio. Opere di Giorgio Vasari. Florença: S.
Audin, 1822–23, volume V, pág. 204. Tradução livre.

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Raphael Fonseca

Enquanto Francisco de Holanda, Pietro Aretino e mesmo histo-


riadores como Panofsky, Falomir e Lorne Campbell tendem a pensar
sobre esta forma de retratar a partir das obras de Tiziano realizadas
na década de 30, Vasari opta por ler essa tendência quase dez anos
após o primeiro exemplo encontrado. Diferentemente do retrato
de Carlos V, cuja ambiência não é muito construída, justamente
para dar um destaque maior à figura imponente do imperador, no
citado retrato de Don Diego de Mendoza (Fig. 37, p. 471) estamos a
lidar com uma possível outra vertente deste retrato de corpo inteiro.
Nela existe uma preocupação grande com a ambientação em torno
de nosso personagem retratado, o que pode ser percebido pelo cui-
dado com que Tiziano constrói a coluna ao fundo, além da presença
de um relevo all’antica do outro lado do embaixador. Esta forma de
retratar, conforme aponta Vasari, parece ter sido rapidamente dige-
rida por outros artistas, tendo em vista os exemplos já com variáveis
apresentados por Veronese (Paul Getty Museum, Malibu) e Giovan
Battista Moroni (Coleção do conde Moroni, Bérgamo).
Mesmo que suas críticas negativas sejam mais conhecidas, ou
seja, a famosa frase em que ele afirma que Michelangelo gosta-
ria que existisse um Tiziano com maior domínio do desenho, em
detrimento de sua relação com a cor18, não há titubeio para que
Vasari elogie, sempre que possível, algum retrato realizado por
Tiziano. São tantos os retratos, que em dado momento o escritor
chega a afirmar:

E perchè sono infinite l’opere di Tiziano, e massimamente i


ritratti, è quase impossibile fare di tutti memória. Onde dirò

18  “(…) se quest’uomo fusse punto aiutato dall’arte e dal disegno, come è dalla
natura, e massimamente nel contraffare Il vivo, non si potrebbe far piu nè meglio,
avendo egli bellisimo spirito ed una molto vaga e vivace maniera”. In: Ibidem, p.
206. Tradução livre: “(…) se Tiziano tivesse sido assistido pela arte e pelo dese-
nho assim como o foi pela natureza, especialmente quanto à reprodução de
objetos vivos, nenhum outro poderia realizar obras melhores, pois ele teria um
belíssimo espírito e uma muito vaga e vivaz maneira”.

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Considerações acerca da fortuna crítica de Tiziano Vecellio

solamente de’ più segnalati, ma senz’ordine di tempi, non


importando molto sapere qual fusse prima e qual fatto poi19.

Em uma última leitura possível, gostaria de retornar a Portugal


e ao ambiente que circundava Francisco de Holanda. Costuma ser
lembrada, pelos poucos historiadores que se detiveram em uma
análise da produção de retratos portugueses no século XVI, a ida
de Anthonis Mor, pintor do norte da Europa, a terras de Portugal.
Annemarie Jordan-Gschwend, por exemplo, dedica todo um livro
ao assunto, cujo título deixa clara essa relação: “Retrato de corte em
Portugal — o legado de António Moro”20.
Mor chega a Portugal em 1551, ficando nove meses na corte de
D. João III, onde realiza retratos de diversas pessoas da família.
Jordan-Gschwend elenca alguns documentos que apontam para
que, em verdade, essa viagem do artista tenha sido incentivada
pela irmã de D. Catarina de Áustria, Maria da Hungria, que pos-
suía uma célebre galeria de retratos reais. O retratista nórdico a
Portugal teria ido para realizar imagens desse tronco da família real
da irmã de Carlos V.
É inevitável, porém, também tentar relacionar esta sua vinda com
algum impacto proporcionado pelo texto de Francisco de Holanda,
aqui já comentado, concluído em 1549. Se ainda não foi encon-
trada nenhuma documentação que comprove de forma direta esta
relação, por outro lado, existe um fato que contribui para que con-
tinuemos a acreditar na possibilidade de consequências artísticas
proporcionadas pela escrita holandiana. Também no ano de 1549,
como Jordan-Gschwend mesma aponta, D. João III financiou a ida
de um artista nascido na Espanha, porém criado na corte portu-

19  “E porque são infinitas as obras de Tiziano, e especialmente os retratos, é


quase impossível sabê-las todas de memória; onde direi apenas das mais evi-
dentes, mas sem ordem de tempo, não importando muito saber qual foi a pri-
meira e qual feita depois”. In: Ibidem, pág. 204. Tradução livre.
20  JORDAN-GSCHWEND, Annemarie. O retrato de corte em Portugal – o
legado de Antonio Moro (1552–1572). Lisboa: Quetzal Editores, 1994

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Raphael Fonseca

guesa, Alonso Sánchez Coello, para Flandres. Com quem este artista
entrou em contato? Com Anthonis Mor, que, naquele momento,
estava em vias de passar a servir Maria da Hungria, regente dos
Países Baixos21. Importante ter em mente que Mor já possuía uma
fortuna crítica positiva no que diz respeito ao campo do retrato,
tendo servido ao Cardeal Granvelle, que em correspondência de
1583, afirmava que “(…) Sánchez Coello se crió alguns años en mi
casa con el pintor Antonii Mor”22.
Coincidência ou não, Coello foi enviado a terras nórdicas justa-
mente no ano em que Holanda terminou seu texto sobre a retra-
tística. Além disso, no ano seguinte, é bem provável que ele tenha
viajado à Itália junto a seu então mestre Anthonis Mor, que por
sua vez deve ter estudado de forma bem próxima os retratos pin-
tados por Tiziano Vecellio. Para além dessa viagem, é preciso ter
em mente que, por ter sido elevado ao status de artista da corte
de Maria da Hungria, uma Habsburgo, é bem provável que ele já
tivesse entrado em contato com os retratos feitos por Tiziano que
circulavam por Bruxelas e Flandres.
Deste modo detectamos uma cadeia de relações artísticas possí-
veis que envolve a Itália, vista pelos próprios contemporâneos, como
o centro da produção artística, os ditos “Países Baixos” ou “norte da
Europa”, representado por Anthonis Mor, já famoso retratista, mas
ainda mais celebrado após sua viagem à Itália, e, por fim, Alonso
Sánchez Coello, aquele que pode ser visto como o representante da
Península Ibérica e que conseguia beber tanto de fontes italianas
quanto nórdicas, realizando peças que muito agradavam tanto à
corte portuguesa, quanto à espanhola.
Detendo-nos sobre algum exemplo de retrato criado por Anthonis
Mor, entendemos de forma mais clara a ponte entre a sua retratís-

21  JORDAN-GSCHWEND, Annemarie. Verbete “Alonso Sánchez Coello”. In:


SERRÃO, Vitor. Ibidem. pág. 458.
22  “…Sánchez Coello criou-se alguns anos em minha casa com o pintor
Anthonis Mor”. Ibidem.

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Considerações acerca da fortuna crítica de Tiziano Vecellio

tica e a realizada por Tiziano Vecellio. No retrato de D. Catarina da


Áustria (1552, Museu do Prado, Madri) percebe-se a importância de
dar destaque à figura humana através da verticalidade já apreciada
nos “retratos de estado” tizianescos, além da ausência de construção
de uma ambiência externa a esta figura política. Em vez de rascu-
nhar uma paisagem segundo a tradição flamenga (penso em Dirck
Bouts ou Hans Memling), ele preferirá chapar o fundo da composi-
ção, o que realça a grandiosidade da figura política construída. Por
mais que nos retratos desta sua estadia em Portugal não encontre-
mos a inclusão do corpo inteiro das figuras pintadas, seja por opção
artística sua, seja pela possibilidade das telas terem sido cortadas a
posteriori, a influência e recodificação das formas de Tiziano é clara.
Por outro lado, como Campbell comenta de forma breve, em
vez de utilizar-se de pinceladas rápidas e, de certa forma, soltas,
como o pintor italiano faz em alguns de seus retratos — recebendo,
inclusive, críticas negativas de Filipe II23 — Anthonis Mor segue
a tradição nórdica da pintura, tão conhecida por sua vontade de
apreender os mínimos detalhes das figuras pintadas — seja a cons-
trução da teia de cabelos de um retratado, seja a precisão com que
os detalhes dourados de uma roupa são traduzidos plasticamente.
Essas diferenças, por sua vez, já podiam ser percebidas nos sutis
contrastes de formas com que Tiziano e Jakob Seisenegger pinta-
ram retratos de Carlos V.
No ano de 1552, Mor é enviado à Espanha e, posteriormente, à
Inglaterra. Deste ano até o fim de sua vida, em 1576/78, o pintor
ficou famoso por ter realizado diversos retratos das cortes espa-
nhola, inglesa e dos Países Baixos. Enquanto isso, Alonso Sánchez
Coello foi nomeado pintor oficial da corte de Joana de Áustria,
irmã de Filipe II, e do Príncipe João, filho de D. João III e Catarina
da Áustria. Sua permanência, provavelmente, em território portu-

23  CAMPBELL, Lorne. Renaissance portraits. European portrait-painting in the


14th, 15th and 16th centuries. Yale University Press, 1990, pág. 236.

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Raphael Fonseca

guês prolongou-se até 1557, quando finalmente estabeleceu-se na


corte de Filipe II.
Se a produção de Coello, dentro do território português, é de
difícil atribuição e fica, de certa forma, ofuscada pela presença de
Anthonis Mor, como também aponta Jordan-Gschwend (seja pelo
viés das cópias do pintor nórdico, seja pelas obras possivelmente
pintadas em conjunto), o mesmo não pode ser dito de suas obras
produzidas em território espanhol. Apreciar o retrato de D. João
de Áustria (1565, Convento das Descalzas Reales, Madri) é não
deixar de ter em mente o retrato de Francesco Maria della Rovere,
já que estamos a lidar com parâmetros visuais muito bem defini-
dos; mesmo com quase trinta anos de diferença, ainda encontra-
mos a mão direita que segura o bastão, além da esquerda que está
prestes a sacar uma espada. Até mesmo o desenho da armadura
que envolve este filho de Carlos V é semelhante ao que envolve o
duque de Urbino.
Essa recodificação plástica da tradição de retratos implantada por
Tiziano Vecellio também pode ser percebida no retrato do Infante
D. Carlos (1565, Convento das Descalzas Reales), filho de Filipe
II com D. Maria de Portugal, seja pelo recorte do corpo, que em
termos cinematográficos seria um plano americano (por enqua-
drar um pouco acima dos joelhos), seja também pela presença de
um capacete ao lado direito de nossa figura central. Se em Tiziano
temos os símbolos do poder, ao fundo e acima do duque de Urbino,
em Coello um deles se encontra em uma mesa, ao nível da mão
de D. Carlos, o que ameniza o impacto visual dado na obra do
italiano. É nas passagens do claro para o escuro que percebemos
possíveis marcas do aprendizado com Anthonis Mor. Enquanto
em Tiziano temos contrastes de luz menos violentos, que se dão
através de meios tons (plasticidade essa futuramente trabalhada por
um Rembrandt), em Coello há uma necessidade da representação
dos detalhes, além de tons pálidos de pele encontrados também na
retratística dada por Mor.

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Considerações acerca da fortuna crítica de Tiziano Vecellio

Se o impacto visual deste artista ibérico, espanhol de nascimento,


mas criado em corte portuguesa e, inclusive, documentado como
“pintor português” dentro de território espanhol24, não é o mesmo
que o percebido no citado retrato de Tiziano, por outro lado, as
palavras de Aretino poderiam se aplicar à sua obra, devido às suas
claras tentativas de aplicar em suas figuras retratadas o seu “invi-
sível conceito”, ou seja, a adequação entre a imagem e a posição
política das mesmas.
A presença simultânea de Anthonis Mor e Alonso Sánchez
Coello em corte portuguesa, talvez somadas ao aparato teórico
criado e incentivado por Francisco de Holanda, foi responsável
por um boom da retratística em Portugal. Enquanto anteriormente
aos anos de 1550 os exemplos portugueses de retratos são um
tanto quanto esparsos, com algumas boas raras exceções, como
o grande painel pintado por Nuno Gonçalves e, inclusive, citado
por Francisco de Holanda em “Da pintura antiga”, o mesmo não
pode ser dito do recorte temporal sugerido por Jordan-Gschwend,
entre 1552 e 1572. Na primeira data temos o estabelecimento de
Mor em Portugal; na segunda, seis anos antes do falecimento de
D. Catarina da Áustria, ano em que encontramos dois dos últimos
exemplos, encomendados pela rainha, de uma clara recodificação
da tradição tizianesca do retrato.
Neste período temos a presença, por exemplo, de Cristóvão de
Morais, pintor português, integrante da corte de D. João III e autor
de um belo retrato de D. Joana de Áustria, acompanhada por um
pagem negro (Musée Royaux des Beuax-Arts de Belgique, Bruxelas).
Enquanto o duque de Urbino apoiava-se em símbolos militares, a
filha de Carlos V sustenta-se sobre uma outra pessoa, além de fitar o
espectador enquanto segura um leque, possível símbolo de feminili-
dade somada à nobreza de sua posição. Dialogando com este retrato,
há um exemplo espanhol de Alonso Sánchez Coello, o retrato de
D. Isabella Clara Eugênia, acompanhada pela anã Magdalena Ruiz

24  JORDAN-GSCHWEND, Annemarie. Ibidem.

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Raphael Fonseca

(1585–1588, Museu do Prado, Madri). No lugar do leque, esta


mulher ostenta a pequena efígie de um homem — o que não deixa
de frisar a diferença de gênero entre ela e o outro, sua possível sub-
missão enquanto mulher ou esposa.
Outro belo exemplo de retrato de mulher é o realizado por
Jooris van der Straeten, pintor nórdico, possivelmente também
integrante da comitiva de Anthonis Mor em Lisboa, e que pos-
sui obras atribuíveis a datas entre 1556 e 156025. Presente na corte
espanhola entre 1560 e 1568, logo depois Straeten muda-se para a
França, onde realiza um retrato de Isabel da Áustria, rainha fran-
cesa. Nessa obra, assim como no exemplo anterior de Coello, o
artista opta pela inclusão do corpo inteiro, ou, melhor dizendo, do
vestido inteiro, já que sua capacidade de detalhamento do tecido
que a rainha porta é louvável.
Coroando essa análise da fortuna crítica tizianesca na Península
Ibérica quinhentista, temos um dos dois retratos vistos como
ponto final do “legado de Anthonis Mor” por Jordan-Gschwend.
Realizada em 1571 (Fig. 38, p. 471), também por Cristóvão de Morais,
esta pintura pode ser vista como um vórtice dos fluxos artísticos
durante o dito Renascimento. Mesmo havendo quase quarenta
anos de distância entre este retrato e os de Carlos V realizados por
Jakob Seisenegger e Tiziano entre 1532 e 1533, é claro o diálogo
entre ambas as obras. A presença do cão de caça que acompanha
a figura mor da hierarquia política e que o fita, é o ponto mais
gritante de contato. Por outro lado, nas obras relativas a Carlos V
o corpo do animal está presente, ao passo que na obra de Morais
ele aparece como uma mera citação. Nem mesmo a necessidade de
rascunhar uma paisagem ou cenografia ao fundo faz-se necessária;
importa apenas a potência corpórea do rei de Portugal. Bebendo
de uma fonte nórdica, de Anthonis Mor talvez, esta figura fita o
espectador, reforçando o seu eterno superior lugar perante a nossa

25  JORDAN-GSCHWEND, Annemarie. Verbete “Jooris van der Straeten”. In


SERRÃO, Vitor. Ibidem, pág. 491.

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Considerações acerca da fortuna crítica de Tiziano Vecellio

presença. Outro caminho de leitura possível para esse fitar seria,


mais uma vez, o retrato de Francesco Maria della Rovere. Tal pos-
sibilidade de diálogo é ainda reforçada pela forma como o artista
conjuga o encaixe da armadura no corpo da figura, além do posi-
cionamento de sua mão sobre espada e, por fim, a forma como ele
enquadra o seu corpo.
O pintor português inverte o posicionamento do corpo e das
mãos de D. Sebastião, neto de Carlos V e D. João III e rei de Portugal
entre 1568 e 1578. Pintar o rei de Portugal de forma semelhante
ao, um dia, imperador do Sacro Império Romano-Germânico, seu
avô, é tentar, através da imagem, criar uma continuidade da icono-
grafia da família. O que torna este exemplo ainda mais interessante
é que esta tentativa bem-sucedida também acaba por perpetuar
uma tradição artística, impulsionada pelos personagens aqui já
frisados, tais como Tiziano Vecellio, Pietro Aretino, Francisco de
Holanda e Anthonis Mor.
Através destas breves considerações, espera-se ter deixado claro
que falar sobre retrato no Renascimento, em especial no que diz res-
peito ao século XVI, o assim chamado “Alto Renascimento”, é tocar,
inevitavelmente, no corpus de obras de Tiziano. Colocando em
melhores palavras, o comentar as relações entre arte e retratística, e
isso inclui boa parte da criação de retratos posterior ao século XVI,
é tangenciar diversas questões tanto visuais, quanto do campo da
teoria da arte, que vão de encontro à produção deste artista italiano.
Além disso, cabe ter em mente também os fluxos artísticos e geo-
gráficos entre pensadores e artistas capazes de levar um Francisco
de Holanda a eleger Tiziano como o melhor retratista vivo de seu
tempo, além de ser uma referência clara para as obras de pintores
tanto portugueses, quanto espanhóis e nórdicos. As relações entre
Carlos V e a corte portuguesa (Catarina de Áustria) iniciam-se no
sangue e, inevitavelmente, difundem-se pelas artes visuais.

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Um outro Renascimento:
A representação de um príncipe
no Salão dos Meses de Ferrara
Nancy Kaplan

N
a Itália, a diversidade e a vitalidade das tradições
locais durante o século XV permitem que se pense em
Renascimentos. A ideia de um único Renascimento diri-
gido por Florença é devida principalmente a Giorgio Vasari (1511–
74), autor do texto fundador da historiografia da arte e principal
fonte da história do Renascimento artístico italiano, As Vidas dos
mais excelentes pintores, escultores e arquitetos1. Para Vasari, a his-
tória da arte é essencialmente florentina: tem início com Cimabue
(c. 1240–1302?) e termina com Michelangelo (1475–1564). Vasari
frisa a superioridade da maneira toscana, que pode e deve ser
imitada, mas não igualada. No entanto, durante o Quattrocento,
é preciso pensar em uma Itália de cortes que se aristocratiza. Não
se trata de um caso de centro e periferia, com toda a carga nega-
tiva que este termo acarreta. No Norte da Itália, além de grandes
cidades como Milão e Veneza, a corte de Ferrara, entre outras,
apresenta características particulares.
Em 753, o nome de Ferrara surgiu pela primeira vez em um docu-
mento do rei longobardo Desiderio. A cidade junto a um afluente
do Pó na região da Emília-Romanha pertenceu ao grande feudo dos

1  VASARI, Giorgio. Le vite dei più eccellenti pittori, scultori e architetti. ed.
Barocchi, Paola. Florença: Sansoni, 1966–69.

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Um outro Renascimento

Canossa até constituir-se em uma comuna autônoma. Os Este eram


originários da Lombardia, de um ramo dos Obertenghi, senhores
de Gênova e Milão no século X. Grandes proprietários de terras,
deslocaram-se para o nordeste. Na metade do século XI, Alberto
Azzo II adotou o nome Este, de um de seus castelos em uma loca-
lidade próxima a Pádua. Em meados do século XIII, aproveitando
a disputa entre as famílias Adelardi, guelfa, e a Torelli-Salinguerra,
gibelina, os Este assumiram o poder em Ferrara, que governaram
até o fim do século XVI. Durante o século XIV, as disputas com o
papado enfraqueceram a família, mas Nicolò II restaurou a autori-
dade e construiu o castelo estense. O herdeiro, Nicolò III, consoli-
dou o poder da família e constituiu uma rede de alianças políticas
que favoreceram a cidade. Foi sucedido por três de seus muitos
filhos: Leonello, Borso e Ercole. Foi este o período mais importante
da vida política, cultural e artística de Ferrara. Durante o século
XVI, a constante disputa com o papado, que reivindicava a posse de
Ferrara, enfraqueceu a família Este que perdeu o poder e teve que
abandonar a cidade.
A arte ferraresa é pouco conhecida em comparação com a flo-
rentina ou veneziana. A maior parte da produção de Ferrara não se
encontra na cidade, mas em igrejas, coleções particulares e museus
europeus e norte-americanos. Em 1598, quando a família Este
transferiu-se para Modena, levou consigo muitas obras, assim como
arquivos. Os legados papais que assumiram o governo empreende-
ram uma sistemática destruição da cultura ligada aos Este e, por isso,
poucos afrescos restaram na cidade. Apenas em 1934 houve uma
primeira exposição dedicada à arte ferraresa. Concebida em um
momento político controverso, foi objeto de críticas do historiador
da arte Roberto Longhi, profundo conhecedor da arte de Ferrara,
autor do texto fundamental sobre o assunto, Officina Ferrarese2. Em
2007, uma nova exposição, a Mostra Cosmè Tura e Francesco del

2  LONGHI, Roberto, Officina Ferrarese (1934), Florença: Sansoni, 1980.

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Nancy Kaplan

Cossa. L´arte a Ferrara nell´età di Borso d´Este3, apresentou obras


dos vinte anos do governo de Borso d´Este.
O pai de Borso, Niccolò III d’Este, governou Ferrara de 1393 a
1441. Foi um príncipe culto e mecenas erudito, a quem o humanista
Tito Livio dei Frulovisi dedicou o De Re publica, iluminado all’antica
por Cristofaro Cortese (c. 1434). Sob o seu governo, formaram-se os
grupos de miniaturistas e de tapeceiros flamengos, que deram iní-
cio à manufatura de tapeçarias em Ferrara. De uma peregrinação
à Terra Santa, trouxe os primeiros objetos e raridades que deram
origem ao colecionismo da família Este. Também comprou textos
que se tornaram a base da biblioteca estense. Niccolò era consciente
da importância da educação de um príncipe. Fora aluno do huma-
nista Donato degli Albanzani e convidou para a sua corte Giovanni
Aurispa e Giovanni Toscanella para ensinarem dois de seus filhos,
Meliaduse e Borso. Guarino da Verona4 foi escolhido para cuidar da
formação do filho e sucessor Leonello.
O período de maior prosperidade e relevo cultural de Ferrara teve
início durante o governo de Leonello, entre 1441 e 1450. Sob a influ-
ência de Guarino da Verona, criou um círculo literário, descrito por
Angelo Camilo Decembrio no De Politica litteraria. Leonello foi um
grande colecionador de camafeus, moedas e medalhas. Essa coleção
foi de muita importância porque em Ferrara, ao contrário de Pádua
ou Verona, não havia vestígios da Antiguidade. Leonello cons-
truiu um studiolo no palácio de Belfiore para guardar as coleções
de livros e objetos raros. Leon Battista Alberti (1404-72), que dedi-
cou três dos seus tratados a Leonello, esteve em Ferrara visitando-o.

3  NATALE, Mauro (org.). Cosmè Tura e Francesco del Cossa. L´arte a Ferrara
nell´età di Borso d´Este. Ferrara: Ferrara Arte, 2007.
4  Humanista e pedagogo, Guarino da Verona foi professor em Florença, Veneza
e Verona. De 1403 a 1408, estudou grego em Constantinopla. Em 1429, foi para
Ferrara a convite de Niccolò III d’Este. Até a sua morte em 1460, exerceu pro-
funda influência na cultura da cidade e da Europa, já que havia muitos alunos
estrangeiros. O filho, Battista Guarini, descreveu o seu método de ensino em De
ordine docendi et discendi, que teve grande repercussão.

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Um outro Renascimento

Leonello chamou para trabalhar em Ferrara: Pisanello (1395-1455),


Jacopo Bellini (c.1400-70), Piero della Francesca (1400/20-92) e
Rogier van der Weyden (c.1400-64). Pisanello esteve em Ferrara
pela primeira vez em 1432, retornando de Roma onde trabalhara
em São João de Latrão. Voltou diversas vezes entre 1438 e 48. Em
1438, Pisanello e Jacopo Bellini participaram de uma competição
para pintar o retrato de Leonello, vencida por Pisanello. Muitos dos
desenhos de Bellini do caderno do British Museum retratam a vida
cotidiana da cidade. Piero della Francesca realizou em 1449 alguns
ciclos de afrescos, hoje perdidos, no castelo estense e na igreja de
Sant’Agostino. No mesmo ano, existe um pagamento para Van der
Weyden, então em Bruxelas.
Leonello governou com o título de marquês. Em 1452, seu
irmão e sucessor Borso recebeu do imperador Frederico III o
título de duque de Modena e Reggio, provavelmente o evento
comemorado com o pallio registrado nos afrescos do Salão dos
Meses do Schifanoia. Em 1598, o último duque, Cesare, foi for-
çado a abandonar a cidade aos contingentes do papa Clemente
VIII. Após a partida dos Este para Modena, Ferrara passou aos
domínios da Igreja e o palácio foi muito modificado. Os afres-
cos do Salão dos Meses, cobertos com cal no século XVII, foram
recuperados somente em 1820. A municipalidade comprou o
Schifanoia em meados do século XIX e, depois do restauro do
prédio, que se encontrava muito deteriorado, para lá transferiu
o acervo do Museu Cívico, inaugurado em 1498. Graças ao inte-
resse de Aby Warburg (1866–1929)5, historiador da cultura que
elaborou os fundamentos do método iconológico, as intrigantes
imagens que surgiram nas paredes do Salão dos Meses foram
estudadas e interpretadas. As pesquisas de Warburg, expostas
através de uma primeira conferência em Hamburgo, foram em

5  WARBURG, Aby. “Arte italiana e astrologia internazionale nel palazzo


Schifanoja di Ferrara”. In: La rinascita del paganesimo antico: contributi alla storia
della cultura. Florença: La Nuova Italia, 1966.

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Nancy Kaplan

seguida difundidas no X Congresso Internacional de História da


Arte em Roma em 1912.
Foi provavelmente por volta dos anos 70 do século XV que
foram realizados os afrescos de caráter pagão do Salão dos Meses
do palácio Schifanoia de Ferrara. O palácio Schifanoia foi uma
das delizie da família Este, residências edificadas fora do centro
da cidade com o objetivo de proporcionar repouso, meditação e
diversão. No fim do século XIV, o marquês Alberto V construiu o
edifício comprido e térreo além dos limites da cidade, próximo ao
rio Pó. A partir de 1465, sob o governo de seu neto Borso, o palácio
sofreu muitas transformações, inclusive o acréscimo do segundo
piso onde se localiza o Salão dos Meses6, executadas pelo arquiteto
Pietro Benvenuto degli Ordini.
As delizie, como o palácio Schifanoia, possuíam arquitetura seme-
lhante aos palácios aristocráticos, porém destacavam-se pela deco-
ração pictórica. O Schifanoia era o edifício público onde a família
Este recebia embaixadores e dignitários. Tratava-se de um local de
representação e a complexidade da iconografia dos afrescos indica a
destinação erudita. As paredes do Salão dos Meses compõem uma
espécie de calendário com um complexo simbolismo. Estão dividi-
das em espaços iguais por colunas pintadas. Cada segmento é dedi-
cado a um mês e possui três registros horizontais. Na faixa superior,
encontram-se os triunfos dos deuses olímpicos. No centro, o signo
astrológico referente ao mês, cercado por figuras menores repre-
sentando os decanatos, períodos astrológicos com a duração de dez
dias. O registro inferior conta episódios da vida terrena na corte
ducal, de acordo com o mês, e é dominado pela presença de Borso,
duque de Ferrara.
A astrologia era muito importante na corte de Ferrara, como de
resto em outras cortes. Nos séculos XII e XIII, houve um renovado

6  O Salão dos Meses tem 24m de comprimento, 11 m de largura e 7,50 m de


altura.

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Um outro Renascimento

interesse por astrologia e demonologia. Como Saxl7 observa, foi


acompanhado por igual interesse nas imagens de deuses pagãos.
As representações eram feitas a partir de textos do fim do período
helenístico. Os planetas eram representados como seres humanos e
tinham pouca semelhança com os deuses clássicos.
Os afrescos são atribuídos a vários pintores: Cosmè Tura
(c. 1430–95), Francesco del Cossa (c. 1435- c. 1477), Baldassare
d’Este (m.1504), Ercole de’Roberti (c. 1456–96), Galasso di Matteo
Piva (1423–73) e outros menos conhecidos. A maior parte da crí-
tica concorda que os cartões preparatórios sejam de Cosmè Tura e
as pinturas de Francesco del Cossa e Ercole de’Roberti, sob a inspi-
ração do astrólogo, bibliotecário, historiador da família Este e ins-
petor das artes da corte estense Pellegrino Prisciani8. A atribuição é
justificada pela carta autógrafa de 25 de março de 1470, endereçada
por Francesco del Cossa a Borso d’Este. Cossa reclama da baixa
remuneração e do modo como era tratado por Pelegrini Prisciani,
que o nivelava aos outros pintores dos afrescos. Do ponto de vista
estilístico, Warburg interpreta o Salão dos Meses como a transição
do gótico internacional ao Renascimento. Warburg demonstrou
que Prisciani era o responsável pela elaboração do programa icono-
gráfico através de um texto autógrafo em que ele citava as três fontes
das imagens: Manilio, Abu Masar e Pietro d’Abano. Marco Manílio
(42 a.C.-37 d.C.) foi o autor do poema didático Astronômica, dedi-
cado a Tibério. Trata-se de um poema astrológico em cinco cantos,
inspirado no estoicismo. O tema é a influência dos astros sobre a
vida humana, através da ordenação de forças pela razão celeste, a
alma divina. Após 1417, o poema de Manilio encontrava-se entre os

7  SAXL, Fritz, “The revival of late antique astrology”. In: A Heritage of images.
Harmondsworth: Penguin Books Ltd, 1970, p. 32.
8  De acordo com Molajoli, o responsável pelo programa iconográfico pode
ter sido Pietro Bono Avogario, que os documentos de Ferrara recordam como
excelente astrônomo (MALAJOLI, Rosemarie. L’opera completa di Cosmè Tura e
i grandi pittori ferraresi del suo tempo. Francesco Cosse e Ercole de´Roberti. Classici
dell’arte. Milão: Rizzoli, 1974, p. 100).

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Nancy Kaplan

textos recuperados pelos humanistas italianos. Warburg considera


a obra como a principal fonte literária do afresco para os triunfos
dos deuses. A outra fonte é o texto árabe de Abu Masar (m.886), que
se tornou conhecido através de manuscritos espanhóis iluminados.
Pietro d’Abano, que exercia a cátedra de Astrologia na Universidade
de Pádua no século XIV, fez a tradução latina, Astrolabium planum,
a partir da versão hebraica do texto de Abu Masar.
Na faixa central do afresco, encontram-se os signos do zodíaco
cercados por figuras humanas, os decanos, divindades egípcias de
origem indiana protetoras de cada década do mês. Warburg inter-
pretou as complexas imagens dos decanos através da leitura do
texto do filólogo Franz Boll9, Sphaera, que reconstruía a história
da astrologia da Antiguidade. No Salão dos Meses, foram pintados
os mesmos temas astrológicos que eram representados nos séculos
XII, XIII e XIV nos manuscritos ou pinturas de pequenas dimen-
sões. A diferença é que os deuses encontram-se representados em
relação com a vida cotidiana da corte. Warburg considera os afres-
cos um sistema esférico transportado para a superfície plana das
paredes, cujo centro é simbolizado pela corte estense. As cenas do
mundo humano são narrações dos trabalhos do campo de acordo
com as estações e episódios da vida da corte, que glorificam a famí-
lia Este. A figura dominante é o duque Borso d’Este. Todas as cenas
desenvolvem-se em torno dele e têm relação com a sua pessoa.
Trata-se da comemoração do seu bom governo, na iminência de ser
agraciado com o título de duque de Ferrara, que recebeu de Paulo II
em Roma na Páscoa de 1471.
Os afrescos representam a imagem dos doze meses. Na parede
leste, os meses de Março, Abril e Maio. Na parede norte, Junho,
Julho, Agosto e Setembro e na parede oeste, Outubro, Novembro
e Dezembro. Os Meses em estado de conservação que permita sua
leitura são sete, de Março a Setembro.

9  BOLL, Franz, Sphaera, Leipzig: B. G. Teubner, 1903.

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Um outro Renascimento

Na parede leste está representado o mês de Março, que abre o


ano de acordo com a cronologia italiana. Na faixa superior foi pin-
tado o triunfo de Atenas. O carro, puxado por dois unicórnios,
transporta a deusa, que empunha uma lança. No peito, ela traz a
Górgona. Palas protege o mês de março, de acordo com o poema de
Manílio. À direita do carro, mulheres tecem e bordam. Tecer era um
dos atributos de Atenas e os nascidos sob o signo de Áries, princi-
palmente as mulheres, seriam dotados de habilidade para trabalhar
com a lã. Atenas presidia a confecção de roupas porque ela fizera o
seu próprio peplo. À esquerda, um grupo de literatos, magistrados,
médicos, poetas e juristas, protegidos por Atenas, no seu aspecto
de deusa da sabedoria, da inteligência, da razão e do equilíbrio.
Estão vestidos com trajes contemporâneos, quase todos absortos na
leitura ou em seus próprios pensamentos. É um grupo de pessoas
totalmente voltadas para si mesmas. Não parecem notar sequer a
passagem do carro da deusa. Os rostos são bastante individualiza-
dos e pode-se acreditar que sejam retratos. De acordo com Varese10,
entre esses personagens, encontra-se Alberti.
Na parede norte, encontram-se quatro dos doze meses: Junho,
com o Triunfo de Mercúrio e o signo de Câncer; Julho, com o
Triunfo de Júpiter e o signo de Leão; Agosto, com o Triunfo de
Ceres e o signo de Virgem e Setembro, com o Triunfo de Vulcano e
o signo de Libra. Na faixa inferior do afresco do mês de Setembro,
à esquerda, Borso encontra-se entre personagens da corte. De
acordo com Cheles11, a cena representa a visita de um homem de
cultura, provavelmente Guarino da Verona, o maior humanista de

10  VARESE, Ranieri. “Un altro ritratto di Leon Battista Alberti”. In: Mitteilungen
des Kunsthistorischen Institutes in Florenz, XXIX, 1985, pp.183–189, citado por
CHELES, Luciano. “Tipologia dei ritratti nella fascia inferiore del ciclo dei Mesi
di Palazzo Schifanoia”. In: Il Ritratto e la memoria (Convenho, Roma, 11–15 dez.
1989), Roma: Bulzoni, 1993, vol.2, p.109.
11  CHELES, Luciano. “Tipologia dei ritratti nella fascia inferiore del ciclo
dei Mesi di Palazzo Schifanoia”. In: Il Ritratto e la memoria (Convenho, Roma,
11–15 dez. 1989), Roma: Bulzoni, 1993, vol.2, p. 76.

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Nancy Kaplan

Ferrara. No final do Quattrocento, a representação de um perso-


nagem importante e sua corte já era motivo suficiente para consti-
tuir o tema principal de uma decoração monumental. A recepção a
Guarino da Verona é uma atividade que ocorre exclusivamente na
corte e da qual o povo não participa. Cheles12 considera que ape-
nas aparentemente Borso é retratado no mesmo nível da sua corte.
Como príncipe, principal protagonista da cena, ele aparece sempre
em relevo, obtido através de detalhes sutis e de artifícios da com-
posição. No afresco do mês de Setembro, Borso ocupa posição pri-
vilegiada em relação à arquitetura, emoldurado por um arco. Ele
é visto de perfil. De acordo com Cheles, a representação do perfil
de Borso é preferida porque imobiliza a figura em um momento
ideal, que é atemporal e imortal. Fixa o indivíduo no seu melhor
aspecto. O perfil diferencia Borso dos outros personagens e o exalta.
Níveis hierárquicos diferentes são caracterizados através da oposi-
ção perfil e escorço. A escolha do retrato de perfil utilizado de forma
celebrativa é devida a referências clássicas e à associação do retrato
às moedas e medalhas. Em Ferrara, havia o exemplo da medalha
de Pisanello, feita por volta de 1438, durante o Concílio, em que
João Paleólogo é visto de perfil e seu pajem de costas. O personagem
que se presume ser Guarino da Verona, está de frente para Borso,
também emoldurado pelo arco. Mas, enquanto o duque é visto de
perfil, ele é apresentado em três-quartos. Segura algo com a mão
direita, provavelmente um papel. Na faixa inferior dos afrescos, os
personagens são representados levando em conta a necessidade de
adequar a postura e o movimento ao caráter da figura segundo o
De pictura de Alberti13. Apesar de se encontrar em meio a pessoas
da corte ou do povo, Borso é representado com a iconografia do
herói vitorioso, do condottiero, que em geral era visto de perfil e
a cavalo. Ele se destaca pela impassibilidade e compostura. A sua
imobilidade contrasta com o movimento das outras figuras. Ainda

12  CHELES, Luciano, op. cit., p.75


13  ALBERTI. De Pictura, II, pp. 37–44. In: CHELES, Luciano, op. cit., p. 83

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Um outro Renascimento

segundo Cheles, os gestos e atributos contribuem para caracterizar


o retratado e diferenciá-lo hierarquicamente. Somente os persona-
gens de nível superior gesticulam. Os outros utilizam as mãos ape-
nas para fins utilitários. Sendo a gesticulação excessiva considerada
pouco decorosa, Borso e sua corte apenas esboçam os movimentos.
A corte e os populares são bastante diferenciados de acordo com a
vestimenta. A única cena de corte em que Borso, ou qualquer outro
personagem, não usa luvas é o mês de Setembro. Cheles interpreta
a ausência como sinal de respeito a Guarino da Verona, já que tirar
as luvas na frente de alguém denotava reconhecer-lhe a superiori-
dade. Para Chevalier14, aquele que se desenluva homenageia o outro
e como que se desarma diante dele. Cheles também observa que
nas cenas de corte a luva tem significado simbólico e cerimonial.
Evita o contato com a matéria impura e sublinha a distância que
separa o cavalheiro das classes inferiores. Na cavalaria medieval,
a luva era símbolo de direito e soberania, significando o direito à
caça. Durante muito tempo, o uso de luvas de dedos foi privilégio
da nobreza e símbolo de status. Os afrescos do Salão dos Meses, que
são o maior ciclo pictórico profano do Renascimento, encontram-se
imersos em uma cultura cortês e cavalheiresca.

14  CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain, Dicionário de símbolos. Rio de


Janeiro: José Olympio, 1982, p. 567

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Leonardo da Vinci e suas estadias
milanesas: o fluxo das linguagens
artísticas na Lombardia
fernanda marinho

T
endo Leonardo da Vinci deixado uma vasta produção de
diversas ordens — artísticas, literárias, matemáticas — para
melhor aprofundar o estudo a seu respeito cabe determinar
um recorte espaço-temporal de seu legado. Neste ensaio tratare-
mos de suas estadias na Lombardia procurando enfatizar como esta
época repercutiu no desencadear das produções pictóricas do iní-
cio do século, no que diz respeito tanto à assimilação de uma nova
pesquisa estética anunciada no cenário do Cinquecento italiano e
até mesmo europeu, quanto à possibilidade de uma ampliação dos
diálogos artísticos experimentada pelo próprio Leonardo.
Milão foi o primeiro destino do artista depois de ter estabele-
cido sua vida ativa em Florença no início da segunda metade do
Quattrocento. Ao chegar à capital lombarda, já havia trabalhado para
a corte florentina, especificamente para Lorenzo di Medici, tendo
usufruído, portanto, de fama e estabilidade profissional no meio
artístico. Desta maneira, a razão que o deslocou para Milão não
poderia ser menosprezada. A convite de Ludovico Sforza, conhecido
também por Ludovico il Moro, o quarto sucessor Sforza, Leonardo
em 1482 se muda para esta cidade onde se dedica como engenheiro
e arquiteto às organizações militares do duque. Paralelamente a estas
atividades, lecionou a jovens alunos — para quem mais tarde teria
escrito o Tratado da Pintura — atualmente conhecidos como leo-

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Leonardo da Vinci e suas estadias milanesas

nardescos, os quais viriam a constituir um importante grupo da sua


primeira oficina, a qual ajudou a difundir suas pesquisas artísticas.
Esta primeira estada milanesa foi interrompida pelas invasões
francesas da corte de Luis XII, em 1498, quando Leonardo, em com-
panhia de seu amigo Luca Pacioli, teria abandonado a cidade em
direção a Mântua e depois Veneza, retornando à Florença em 1500.
Seis anos depois foi solicitado pelo governo francês, então estabele-
cido na capital lombarda, onde trabalhou como engenheiro durante
seis anos, além de exercer a função de pintor da corte, dividindo-se
durante esta época entre Milão e Florença.
Analisemos, portanto, as razões de seus deslocamentos ao longo
da passagem do final do século XV para o XVI procurando desta-
car suas principais produções e trocas artísticas, as quais viriam a
demarcar o cenário renascentista milanês.

Sob a proteção dos Sforza: a primeira estada milanesa

As consequências da chegada de Leonardo a Milão muitas vezes


são motivo de severas críticas entre os historiadores da arte devido a
uma suposta uniformização da estética milanesa inspirada principal-
mente nas pesquisas pictóricas do mestre1. Vejamos neste capítulo

1  Marani, Pietro C. em seu artigo The Question of Leonardo’s Bottega:


Practices and the Transmissions of Leonardo’s Ideas on Art and Painting (In: The
Legacy of Leonardo – Painters in Lombardy 1490–1530, Milão: Skira, 1998)
introduz a questão da crítica moderna a respeito da chegada de Leonardo a
Milão: excetuando Solário, para Berenson; Marco d’Oggiono, de Predis, Luini,
Solário e Bartolomeu Veneto, para Gadda; Boltraffio e Luini, para Longhi, é de
costume dizer que a influência leonardesca foi prejudicial à pintura milanesa.
No entanto, Marani afirma ter sido esta tendência crítica amenizada principal-
mente depois das últimas compilações de inventários das obras deste recorte
histórico, mais confiáveis que os do passado, que possibilitaram a identifica-
ção de outros leonardescos, como o Mestre da Pala Sforzesca, Giampietrino,
Boltraffio, Cesare da Sesto e em certa extensão Marco d’Oggiono. Estes novos
estudos ao mesmo tempo em que teriam ampliado o alcance das influências

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fernanda marinho

os indícios desta dita padronização formal procurando entender os


motivos de sua difusão no cenário lombardo sob a óptica do impacto
causado pela receptividade das novidades trazidas por Leonardo.
Sua primeira oficina inicialmente era formada por pelo menos três
discípulos: Marco d’Oggiono, Boltraffio e Gian Giacomo Caprotti, o
conhecido Salai, como consta no relato de Leonardo a respeito da
sua conturbada chegada no ateliê2. Apesar de sabermos que estes
três artistas trabalharam para ele ao longo de 1490, desconhece-
mos com que extensão e dedicação isso aconteceu. Provavelmente
Boltraffio e Marco d’Oggiono exerciam também outras atividades
e, portanto, possivelmente consagrados no meio milanês, partici-
pavam das oficinas paralelamente. Logo depois dessa primeira for-
mação também temos notícia da presença de Francesco Melzi e
Giovanni Pietro Rizzoli, conhecido por Giampietrino, mencionado
no Códice Atlântico3 como um de seus discípulos.

de Leonardo na capital lombarda, teriam ajudado a determinar a especifici-


dade de cada um destes artistas relacionados ao mestre.
2  “Jacomo venne a stare com meco il di della Maddalena nel millequattrocento-
novanta, d’età d’anni 10… ladro, bugiardo, ostinado, ghiotto. Il dì seguente andai a
cena con Jacomo, Andrea e detto Jacomo… a dì 7 di settembre rubò uno graffio, di
valuta di 22 soldi, a Marco che stava con mecco, il quale era d’argento e tolseglilo
dal suo studiolo, e poi che detto Marco n’eebe assai cercato, lo trovò nascosto in
nella casa di detto Jacomo… Item ancora a dì 2 d’aprile, lasciando Gian Antonio
uno graffio d’argento sopra uno suo disegno, esso Giacomo gli o rubò, il qual era
di valuta di soldi 24, lira 1, s. 4” / “Jacomo [Salai?] se juntou a mim no dia de
Santa Madalena em 1490, com dez anos… ladrão, mentiroso, obstinado, glu-
tão. No dia seguinte, eu fui jantar com Jacomo, Andrea [Solário ?], e ele disse
que Jacomo… no dia 7 de setembro roubou uma ponta de prata no valor de
22 dinheiros de Marco [d’Oggiono?], que estava morando comigo, e o pegou
de seu estúdio, e quando disse que Marco procurou por ela durante muito
tempo, a encontrou escondida na caixa de Jacomo… Novamente no dia 2 de
abril Giovan Antonio [Boltraffio?] deixou sobre um de seus desenhos uma
ponta de prata e Jacomo a roubou, e custava 24 dinheiros”. Citação do Códice
Atlântico encontrada em: MARANI, Pietro C. Leonardo e i Leonardeschi a
Brera. Firenze: Cantini Edizioni d’Arte Spa; 1987.
3  O Códice Atlântico consiste em uma compilação dos documentos de Leonardo
da Vinci referentes aos seus projetos datados de 1478 a 1518 e organizados por

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Leonardo da Vinci e suas estadias milanesas

No seu Tratado da Pintura Leonardo deixou registradas suas


reflexões sobre a prática pictórica e seus métodos de ensino, repe-
tindo por vezes as atividades desenvolvidas nas oficinas de seu
mestre florentino Andrea Verrocchio. Propunha exercícios base-
ados na prática da cópia, tendo suas produções como modelo e
utilizando a técnica da ponta de prata sobre papel tratado com pó
de osso colorido, chamado inossata, como treinamento que antece-
dia o pincel sobre tela. A seguir podemos conferir algumas de suas
reflexões do Tratado da Pintura que abordam estas questões:

Segunda Parte n° 45:

Quello che deve prima imparare il giovane

“Il giovane deve prima imparare prospettiva; poi le misure


d’ogni cosa; poi di mano di buon maestro, per assuefarsi
a buone membra; poi dal naturale, per confermarsi la
ragione delle cose imparate; poi vedere un tempo le opere di
mano di diversi maestri; poi far abito a mettere in pratica
ed operare l’arte”4.

Segunda Parte n° 46:

Quale studio deve essere ne’ giovani

“Lo studio de’ giovani, i quali desiderano di professionarsi


nelle scienze imitatrici di tutte le figure delle opere di natura,

Pompeo Leoni, artista e colecionador do século XVI.


4  Aquilo que os jovens devem antes estudar: os jovens devem antes estudar a
perspectiva; depois o tamanho de cada coisa; depois as habilidades de um bom
mestre, para se habituar ao bom manuseio; depois do natural, para confirmar
a lógica das coisas estudadas; depois ver por um tempo as obras de diversos
mestres; depois se habituar a executar a arte.

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fernanda marinho

dev’essere circa il disegno accompagnato dalle ombre e lumi


convenienti al sito dove tali figure sono collocate”5.

Segunda Parte n° 47:

Quale regola si deve dare a’ putti pittori.

“Noi conosciamo chiaramente che la vista è delle piú veloci


operazioni che sieno, ed in un punto vede infinite forme;
nientedimeno non comprende se non una cosa per volta.
Poniamo caso, tu, lettore, guardi in una occhiata tutta questa
carta scritta, e subito giudicherai questa esser piena di varie
lettere, ma non conoscerai in questo tempo che lettere sieno, né
che vogliano dire; onde ti bisogna fare a parola a parola, verso
per verso, a voler avere notizia d’esse lettere. Ancora, se vorrai
montare all’altezza d’un edifizio, converratti salire a grado a
grado, altrimenti sarà impossibile pervenire alla sua altezza.
E cosí dico a te che la natura volge a quest’arte: se vuoi aver
vera notizia delle forme delle cose, comincierai dalle particole
di quelle, e non andare alla seconda, se prima non hai bene
nella memoria e nella pratica la prima. E se farai altrimenti,
getterai via il tempo, o veramente allungherai assai lo studio.
E ricordoti che impari prima la diligenza che la prestezza”6.

5  Em qual oficina os jovens devem estar: a oficina dos jovens, os quais desejam
se profissionalizar nas ciências da imitação de todas as figuras das obras da
natureza deve ser próximo ao desenho acompanhado de sombras e luminárias
de acordo com o lugar onde tais figuras estão localizadas.
6  Quais regras devem ser dadas aos pintores iniciantes: sabemos claramente que
a vista é a operação mais veloz que possuímos, e em um ponto vemos infinitas
formas; nada se entende se não uma coisa de cada vez. Tomemos um caso, você
leitor, olhe de relance toda a escrita dessa carta, e rapidamente notará que está
cheia de letras variadas, mas não conhecerá logo que letras são, nem o que que-
rem dizer, e que será necessário ler palavra por palavra, verso por verso, para
poder compreender a mensagem desta carta. Da mesma forma, se quiseres subir
até o topo de um edifício, te conviria ir degrau por degrau, de outra forma, será

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Leonardo da Vinci e suas estadias milanesas

Analisando tais passagens, percebemos que o conceito metodo-


lógico de Leonardo parte de algumas premissas básicas, entre elas
a divisão do ensino em diferentes elementos pictóricos, iniciado na
perspectiva e na proporção das partes. Recomenda que o entendi-
mento da forma inteira se dê a partir de suas partículas, de seus
detalhes. A percepção minuciosa da natureza estaria, portanto, dire-
tamente relacionada ao exercício de sua memorização, a forma só
existiria na sua mais perfeita simetria e proporção depois que a sua
imagem mental correspondesse à natural. E o melhor método de
alcance deste conhecimento seria, para Leonardo, o desenho que
aperfeiçoa a ciência da imitação. Apesar de parecer um método
rigoroso por propor o alcance de uma suposta precisão formal base-
ada na cópia e na sua prática exaustiva, o conceito de perfeição para
Leonardo estava muito distante daquele que predominava tanto
na cultura lombarda quanto na florentina e nos contatos estabele-
cidos entre esta e as produções flamengas, principalmente através
de Hugo van der Goes7. A precisão linear não era mais somente
aquela que pudesse executar um círculo de perfeitas proporções a
olho nu como bem percebido tanto nos detalhes da cultura pictó-
rica flamenga, cada vez mais imbuída no cenário artístico italiano,
quanto na discussão em torno do disegno como a prática artís-
tica mais próxima à atividade intelectual em contraposição à cor.
Leonardo propõe o exercício do desenho como estímulo da per-
cepção das proporções e principalmente do movimento das formas,
como um estudo da ciência do olho. Uma ideia de precisão mais

impossível alcançar o seu topo. E assim lhe digo que a natureza se dirige a esta
arte: se quiser ter a verdadeira ideia das formas das coisas, começará pela partí-
cula das mesmas e não passará para uma segunda fase se antes não guardar bem
na memória e na prática a primeira. E se não o fizer, perderá seu tempo, ou real-
mente desperdiçará trabalho em seu estúdio. E recordo que mais vale estudar com
atenção do que com pressa.
7  Um dos artistas destacados por Paul Hills no artigo “Leonardo and the Flemish
Paintings” (In: The Burlington Magazine, Vol. 122, n° 930; setembro 1980) como
um dos principais contatos entre Leonardo e a estética flamenga.

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fernanda marinho

próxima do objetivo de um desenvolvimento do olhar e não de uma


rigidez formal, a linha seria a iminência do desenho e seu contorno,
movimento gerador de vida e não delimitador espacial. A proposta
do exercício era justamente tornar o ato da criação mais livre de
qualquer formalidade pré-determinada, estimular a criatividade
através da familiaridade do seu tema, ou seja, a cópia como método
de desenvolvimento da técnica e não como finalidade. Na segunda
parte do tratado Leonardo insiste na importância da expressividade
individual, o que corrobora esta ideia:

Segunda Parte n° 78:

Dell’imitare pittori.

“Dico ai pittori che mai nessuno deve imitare la maniera


dell’altro, perché sarà detto nipote e non figliuolo della natura;
perché, essendo le cose naturali in tanta larga abbondanza,
piuttosto si deve ricorrere ad essa natura che ai maestri, che
da quella hanno imparato. E questo dico non per quelli che
desiderano mediante quella pervenire a ricchezze, ma per
quelli che di tal arte desiderano fama e onore”8.

A presença de Leonardo em Milão viria reorganizar o cenário


artístico da cidade. De maneira geral esta reorganização é relacio-
nada principalmente à primeira versão da Virgem das Rochas, hoje
no Museu do Louvre (Fig. 39, p. 472) e à Última Ceia (refeitório da
Santa Maria delle Grazie, de Milão – Fig. 40, p. 472). Com a Virgem das
Rochas o impacto estético se consagrou. Sua encomenda foi feita

8  Sobre imitar pintores: digo aos pintores que nunca devem imitar a maneira
do outro, porque este será dito neto e não filho da natureza; porque justamente
sendo as coisas naturais tão abundantes, deve-se antes recorrer mais à natureza
do que aos mestres, que já a estudaram. E digo isso não para aqueles que pre-
tendem através dela alcançar a riqueza, mas para os que desta arte objetivam
fama e honra.

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Leonardo da Vinci e suas estadias milanesas

no início de 1483 a Leonardo e aos irmãos de Predis pela Confraria


Imaculada Conceição. Esta consistiu em um altar para a Igreja de
São Francisco, em Milão, tendo Leonardo se ocupado de seu nicho
central. A organização dos personagens dispostos em formato de
cruz, ocupando a Madona a posição central comparada a uma
cúpula de onde desce o foco luminoso, estabelece relação, segundo
Giulio Carlo Argan, com as estruturas esquemáticas construídas
por Bramante em Santa Maria presso San Satiro e Santa Maria delle
Grazie. Estes dois artistas dividiam harmoniosamente as atenções
do panorama artístico de Milão: “um arquiteto inspirado no conceito
dos modelos antigos, mas também capaz de incorporar as tradições
locais e outro baseado na maneira naturalística de composição que
abriria espaço para a ‘maneira moderna’”9. Argan também aponta
a representação da gruta como introdução de novos elementos na
composição ao inserir a perspectiva aérea úmida, apresentando o
espaço não como estrutura abstrata e geométrica, mas como atmos-
fera que determina a experiência do real. Esta nova organização
perspéctica espacial se infiltrava nas obras de seus seguidores, que,
aos poucos, experimentavam uma nova concepção pictórica de
representação do espaço mais interligado aos seus personagens atra-
vés de uma umidade atmosférica, conquistada principalmente atra-
vés da técnica do sfumato. Essa nova assimilação pode ser notada
na pintura Virgem com Menino, São João Batista e São Sebastião,
de Boltraffio no Louvre; em outra de mesmo tema e autoria, con-
servada no Szépmüvészeti Múzeum, de Budapeste; na Madona com
Menino e São João Batista, de Bernardino de’Conti, da Pinacoteca di
Brera; Madona com Menino e Santa Ana, do Uffizi, São João Batista
da Pinacoteca Ambrosiana, ou mesmo na Madona com Menino, São
Pedro e São Paulo, da Pinacoteca di Brera, de Salai.
No entanto, as novidades geradas no âmbito da pintura lombarda
a partir do projeto da Virgem das Rochas não se referem apenas à

9  FIORIO, Maria Teresa. “The Many Faces of Leonardismo”. In: The Legacy of
Leonardo – painters in Lombardy 1490 – 1530. Milão: Skira Editore: 1998.

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fernanda marinho

concepção espacial, mas são também relativas às representações


dos seus personagens. Juntamente ao exercício do desenho aplicado
por Leonardo, como mencionado anteriormente, havia a prática da
cópia a partir de modelos escultóricos. No Tratatto della Pittura de
Gian Paolo Lomazzo, datado de 1584, há uma citação de Leonardo
que revela a sua preferência pelo molde de argila ao de mármore
ou ferro, sugerindo o uso do arquétipo esculpido. Segundo Michael
W. Kwakkelstein10, estas citações nos levam a entender que tais
modelos utilizados na execução da Virgem das Rochas foram feitos
exclusivamente para esta pintura e, posteriormente, tornaram-se
parte das ferramentas de seu ateliê dissipando as novas formas entre
os discípulos. A figura torcida do Menino que apóia uma perna
sobre a outra e abençoa com a mão oposta à perna superior rea-
parece em diversas pinturas repetindo a composição de Leonardo
ou mesmo por diferentes ângulos, como se o modelo tivesse sido
rotacionado de acordo com a harmonia compositiva. Na pintura
Madona com Menino, de Bernardino de’Conti, na Pinacoteca do
Castelo Sforzesco, percebemos a mesma figura em posição mais
frontal, assim como na Madona com Menino, São João Batista e
São Sebastião, de Boltraffio, conservada no Louvre. Este mesmo
tema foi repetido por este artista na pintura que hoje se encontra
em Budapeste (Szépmüvészti Múzeum), no entanto, o Menino está
quase de costas, lembrando mais a Virgem das Rochas de Leonardo
e também a Madona com Menino e São João Batista, de Cesare da
Sesto, hoje no Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa.
Com a figura da Virgem a mesma proliferação formal ocorre;
no entanto, as referências ficam mais limitadas à sua feição facial
e seu cabelo, o que nos leva a cogitar a possibilidade de que apenas
seu rosto obteve o modelo escultórico. O estudo em ponta de prata

10 Ver referência em: KWAKKELSTEIN, Michael W. “The use of sculptural


models by Italian renaissance painters: Leonardo da Vinci’s Madonna of the
Rocks reconsidered in light of his working procedures”. In: Gazette des Beaux-
Arts. 6° Période, Tome CXXXIII, 1999.

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Leonardo da Vinci e suas estadias milanesas

de uma cabeça de mulher, encontrado no Windsor Castle e atri-


buído a Boltraffio, lembra os traços de Leonardo. O olhar baixo é
o principal componente que liga estas composições, provavelmente
derivadas da mesma escultura. Outros estudos repetem a forma,
como o de Giampietrino em Florença (Estudo de cabeça de uma
jovem, Gabinetto disegni e stampe degli Uffizi) e duas Madonas de
Boltraffio, a da National Gallery de Londres e a da Chatsworth.
A figura de São João Batista parece ter sido a menos copiada das
três personagens; no entanto, isso não descarta a possibilidade de ter
tido como ponto de partida o modelo em argila. Bernardino Luini
nos mostra a semelhança da posição entre ambos os santos da pin-
tura de Leonardo e da sua, na National Gallery de Londres. A mesma
afinidade pode ser traçada com a pintura atribuída a Giampietrino,
conservada hoje no Museu de Arte de São Paulo (Fig. 41, p. 473). Esta,
por sua vez, reúne os três modelos aqui tratados: a feição da Virgem
e o desenho de seu cabelo traçam uma referência direta à Virgem
de Leonardo, assim como a torção gestual do Menino, apesar de se
encontrar um pouco mais deitado e a posição ajoelhada de São João
Batista, tratando-se, portanto, de uma compilação das tendências
formais experimentadas pelos leonardescos depois de estabelecido
o impacto gerado por esta referência pictórica.
Nos quatro anos seguintes a 1490, Leonardo se dedicou aos
estudos do monumento equestre a Francesco Sforza, ao início da
segunda versão da Virgem das Rochas (National Gallery de Londres
– Fig. 24, p. 467) e à execução do afresco da Última Ceia. Esta tam-
bém deixou um legado de reproduções extremamente vasto que vai
desde o destaque de determinados elementos da cena até a cópia
integral da mesma, como a atribuída a Giampietrino da Royal
Academy de Londres, na qual percebemos a repetição da estrutura
compositiva que organiza os personagens em quatro grupos de três,
obedecendo também o jogo gestual que determina a narrativa da
composição, assim como a réplica já destruída de Andrea Solário,
do Castelazzo; a de Marco d’Oggiono, no Château d’Ecouen, entre
muitas outras. Giampietrino é um exemplo entre estes artistas que

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fernanda marinho

se dedicaram aos estudos de elementos isolados da cena. Dele pode-


mos ver o estudo de braços do Gabinete de Desenhos do Castelo
Sforzesco e a sua relação com o gesto do apóstolo Felipe da Última
Ceia de Leonardo. Este afresco influenciou determinantemente a
cultura pictórica de então, seja através do tipo de organização espa-
cial, da variedade fisionômica de seus personagens ou da expressi-
vidade gestual, como percebemos na pintura de Agostino da Lodi
Lavagem dos pés, hoje na Gallerie dell’Accademia de Veneza (Fig.
42, p. 473): os diversos vetores traçados pelos olhares dos discípulos e
uma certa protagonização gestual além da clara frontalidade com-
positiva, apesar de alguns poucos personagens estarem de costas,
repetindo também as escolhas de Leonardo.
Devido à aliança traçada entre Milão e o imperador alemão
Maximiliano I também foram estreitadas as relações com a França.
No entanto, com a morte do rei francês Carlos VIII, Luiz XII, des-
cendente do primeiro duque de Milão, assumiu o poder e invadiu
a capital lombarda em 1498. Com o colapso da dinastia Sforza a
virada do século milanesa foi marcada por radicais mudanças. Neste
mesmo ano, Leonardo, em companhia de seu amigo Luca Pacioli11,
teria abandonado a cidade em direção a Mantova. Este destino
pode ser justificado pelo interesse de Isabella d’Este, marquesa da
então cidade, de encomendar a Leonardo seu retrato, depois de ter
visto e declarado sua admiração pelo de Cecilia Gallerani (Mulher
com arminho, Czartoryski Museum, Cracóvia). Seguiram depois
para Veneza, retornando a Florença em 1500. Além do mestre, a
cidade foi abandonada por diversos outros artistas relacionados
à corte. No entanto, as mudanças mais significativas não estavam
tão relacionadas às questões políticas, uma vez que a presença de
Ludovico Sforza ainda permaneceu forte durante os primeiros anos
de dominação, principalmente até abril de 1500 (data da sua última

11 Monge franciscano, matemático e amigo de Leonardo da Vinci que ilus-


trou uma de suas mais famosas publicações: De Divina Proportione, do início
do século XVI.

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Leonardo da Vinci e suas estadias milanesas

captura por parte dos franceses, como forma de controle das rebe-
liões milanesas), mas sim ao cenário artístico que enveredava por
uma fase de acúmulos de novas experiências estéticas. Os ditos leo-
nardescos se inseriam em diferentes meios que os permitiam expe-
rimentar uma revitalização de suas habilidades expressivas, tran-
sitando por um clima não mais pautado entre as determinações
do mestre e as escolhas tradicionais lombardas, mas sim de maior
liberdade de assimilação e concepção da forma, possibilitando uma
reconstrução de seus próprios horizontes culturais. Alguns artis-
tas do ciclo de Leonardo se mudaram para outras cidades. Marco
d’Oggiono, por exemplo, inicialmente foi trabalhar na sua cidade
natal Lecco e em Savona, onde assinou contrato com Giuliano della
Rovere. Boltraffio foi para Bologna, mas possivelmente deve ter
passado por Veneza, devido a uma proximidade entre algumas de
suas obras e o ciclo de Giorgione denunciada principalmente pela
aplicação cromática e pelo investimento da volumetria dos drape-
jamentos. O primeiro trabalho de Andrea Solário é documentado
de 1496 para uma igreja na ilha de Murano. E Giovani Agostino
da Lodi deve ter permanecido na capital vêneta entre 1495 e 1504,
onde elaborou um estudo para novas formas de naturalismo
expressivo, baseado nos exemplos de Leonardo da Vinci, contando
também com o apoio de Marco d’Oggiono que também passou por
esta cidade. Como percebido, Veneza já vinha recebendo muitos
dos leonardescos, mesmo antes da queda do poder dos Sforza. Um
documento12 de 1498 tratando do pedido de membros da Scuola
de Sant’Ambrogio pelo pagamento de uma série de telas executadas
por D’Oggiono, já aponta a presença desta escola na cidade. Cabe
perguntar, portanto, o porquê desta preferência. Para Leonardo, o
principal motivo de sua viagem a Veneza pode ter sido a sua ami-
zade com Luca Pacioli. A única visita documentada à cidade é esta,

12 Ver referência em: FIORIO, Maria Tereza. “The many Faces of Leonardismo”,
p. 48. In: The Legacy of Leonardo” – painters in Lombardy 1490 – 1530. Milão:
Skira Editore: 1998.

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fernanda marinho

datada dos dois ou três primeiros meses de 1500, quando parece


ter se ocupado principalmente de projetos relacionados à engenha-
ria hidráulica. A única obra de que se tem notícia desta época é o
estudo para o retrato de Isabella d’Este (Louvre).
Além das questões práticas que envolviam os motivos da ida dos
leonardescos à Veneza — como trabalhos por encomenda muito
solicitados principalmente aos escultores lombardos que encon-
travam uma maior abertura no cenário artístico veneziano do que
os pintores que enfrentavam maiores dificuldades na concorrência
com os próprios vênetos — podemos justificar esta escolha devido
ao clima cosmopolita da cidade. Milão havia recentemente se liber-
tado de dois séculos de dinastias dos Visconti seguida dos Sforza.
A invasão francesa, apesar da crise política, trouxe uma incitação
à renovação deste cenário artístico provocando o intercâmbio de
seus artistas com demais culturas italianas e até europeias de modo
geral, seja através de contatos de segundo grau dados pelos próprios
italianos ou mesmo diretamente com artistas de outros países, prin-
cipalmente os nórdicos. Veneza parecia assim um bom destino por
ser uma cidade portuária cercada de culturas artísticas avançadas.
No entanto, sabemos que os frutos deste contato não foram gerados
apenas na produção dos leonardescos, mas também no cenário pro-
dutivo vêneto, enriquecido pelas novas relações estabelecidas com
a arte milanesa. Os estudos para a Última Ceia do Windsor Castle
provavelmente foram levados com Leonardo a Veneza, sendo muitas
vezes referidos como o ponto de partida para estes novos contatos.

A segunda estadia milanesa: sob proteção de Luiz XII

O retorno de Leonardo à Lombardia foi estimulado por um rela-


tivo alívio das tensões políticas. Já estabelecida a ocupação francesa,
depois da histórica captura definitiva de Ludovico em 1500 — a
qual chegou a se tornar tema de poemas em francês, italiano e latim
— o mestre florentino foi convidado por Carlo d’Amboise, amante

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Leonardo da Vinci e suas estadias milanesas

da arte italiana nomeado governador de Milão, e contratado como


artista da corte de Luiz XII. No entanto, apesar do desejo de rever
as obras pertencentes às conquistas de Ludovico Sforza, sua volta
não significou a vontade de um resgate das antigas formas experi-
mentadas na sua primeira fase milanesa. A expansão dos diálogos
artísticos ocorrida durante o intervalo da presença do mestre na
capital lombarda e da evasão de seus discípulos e artistas da corte,
foi determinante para um maior enriquecimento do vocabulário
cultural do Quinhentos milanês.
Tais mudanças ocorreram mais através de um fluxo natural de
contatos artísticos proporcionado a partir da invasão de Luis XII,
do que propriamente de qualquer determinação ou imposição do
novo governo. Na verdade, se podemos falar de uma intervenção
política no cenário artístico encontrado por Leonardo na sua volta
a Milão, esta seria de uma ordem mais apologética do que repres-
sora da arte local, uma vez que a corte francesa, ao se estabelecer
em Milão, parecia inclinada a continuar os projetos iniciados pelos
Sforza, como os da sacristia delle Grazie, ao qual Bramantino foi
encarregado de dar continuidade, prosseguido com a ordem do
bispo de Paris, Stefano. Mesmo os projetos elaborados durante o
governo francês, sugeriam uma manutenção da linha do governo
de Ludovico: a primeira grande encomenda francesa foi uma série
de tapeçarias representando os meses do ano (Castelo Sforzesco,
Milão) encomendada pelo marechal Gian Giacomo Trivulzio a
Bramantino, o que nos leva a entender a vontade de uma pacífica
inserção dos franceses no cenário artístico lombardo, mesmo que
fragmentado na época. Portanto, o retorno de Leonardo e seus
seguidores não parece ter sido uma tarefa penosa de readaptação
no meio artístico. Esta ideia fica corroborada principalmente pela
presença de dois estudos de monumentos equestres de autoria do
mestre. O primeiro, em homenagem a Francesco Sforza, foi enco-
mendado por Ludovico il Moro, que buscou seu artista em Florença,
cidade mais famosa pelas esculturas em bronze do que Milão, mais
voltada para a escultura em pedra. O convite foi feito primeiramente

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fernanda marinho

a Verrocchio, mas este havia sido contratado pela corte veneziana


para a construção de outro monumento em homenagem a Colleoni,
um capitão mercenário odiado pelos milaneses. Assim, o convite
transferido a Leonardo foi aceito, e, apesar de não ter sido a sua pri-
meira ocupação ao chegar em Milão, foi um dos principais motivos
que impulsionou sua mudança. No entanto, o que resta da escultura
hoje são apenas seus estudos (Royal Library do Windsor Castle),
pois esta foi destruída durante a invasão francesa13. O segundo
estudo, que nunca saiu do papel, já na sua segunda fase milanesa
homenageava Gian Giacomo Trivulzio, aristocrata italiano que
pertenceu à corte milanesa, tendo em 1483 se aliado a Carlos VIII
da França e eleito governador de Milão durante a invasão de Luis
XII. Ambos os projetos estão diretamente ligados aos estímulos da
mudança do artista para Milão; no entanto, suas posições políticas
são controversas. Leonardo primeiramente aceitou trabalhar para
os milaneses depois destes terem perdido Verrocchio para os vene-
zianos e retorna a Milão sob a encomenda daqueles que haviam
destruído seu monumento equestre para a então corte que traba-
lhara, o que nos leva a cogitar uma passividade de Leonardo frente
às questões político-partidárias. Sua preocupação parecia repousar
mais em um legítimo interesse pela produção artística, o que justifi-
caria mais uma vez a sua volta a Milão ainda liderada pelo governo
francês. Adicionado a esta razão podemos também considerar a
possibilidade do mestre florentino ter encontrado uma considerá-
vel dificuldade incitada pela importância da figura de Michelangelo
em Florença, o que o faria sofrer muitas comparações.

13  Vasari, em Le Vite se refere a esta destruição: “E nel vero quelli che veddono il
modelo che Lionardo fecce di terra grandi, giudicano non ver mai visto più bella cosa
né più superba; il quale durò fino che i Francesi venono a Milano con Lodovico re
di Francia che lo spezzarono tutto”. / “É verdade que aqueles que viram o modelo
que Leonardo fez de argila julgam não ter visto nunca coisa mais bela nem
magnífica, o que durou até que os franceses chegassem a Milão com Ludovico
rei de França destruindo tudo”. In: VASARI, Giorgio. Le Vite. Organização: G.
Edoardo Mottini. Milaõ: A. Mondadori, 1929.

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Leonardo da Vinci e suas estadias milanesas

Tendo encontrado um cenário de políticas artísticas receptivas


na nova Milão, podemos dizer que as mudanças notáveis estavam
mais no âmbito de uma ampliação de horizontes do que de uma
reorganização das diretrizes culturais da cidade. É certo que novos
artistas ganharam protagonismo, que os ditos leonardescos haviam
expandido seus vocabulários e que a maior parte da clientela pas-
sava a ser representada pela aristocracia francesa; no entanto, tais
mudanças não parecem ter influenciado as produções de Leonardo.
Nesta nova fase dedicou-se à escultura, às pesquisas de paisagem, à
engenharia hidráulica e principalmente à continuidade de obras já
iniciadas, como a segunda versão da Virgem das Rochas (National
Gallery, Londres) e a Santa Ana (Louvre).
Certos esquemas formais e escolhas estéticas ainda eram man-
tidos entre as produções leonardescas. Podemos perceber relação
entre a organização espacial dos personagens da Última Ceia e a
aglomeração compositiva apresentada na Santa Ana (Louvre): uma
conjugação das formas unidas em uma só massa corporal impri-
mindo ideia de movimento constante, ação e tensão cênica. As
novidades artísticas que ocupariam este novo cenário não foram
trazidas apenas pelas experiências adquiridas por Leonardo, mas
também pelos seus seguidores. Boltraffio teve contato com o clas-
sicismo da Itália central, como podemos perceber no novo uso da
luz impresso tanto no seu retábulo de Casio, Virgem com Menino,
São João Batista e São Sebastião (Louvre), quanto na Santa Bárbara
(Staatliche Museen, Berlin); Lodi e Solário experimentaram o con-
tato com Veneza e lá se aproximaram das obras de Dürer; Marco
d’Oggiono trouxe da Ligúria os ecos formais de Filippo Lippi, e
Cesare da Sesto retornando de Roma se mostrou atraído pelo legado
Papal e pelas inovações apresentadas por Rafael e Michelangelo.
Nesta mistura de referências artísticas, Milão entrou em uma nova
fase do proveitoso embate figurativo traçado entre, por um lado,
a maneira moderna introduzida pelas referências leonardescas e
suas pesquisas artísticas voltadas para uma ciência do olhar e da
percepção da natureza, e, por outro, um relativo resgate do antigo

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fernanda marinho

despertado principalmente através dos artistas que circularam


pelo cenário produtivo romano como também de Bramantino, que
anunciava esta tendência all’antica.

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As Origens Mediterrâneas
do Renascimento
Luiz Marques

N
ão se deve pensar que o Renascimento é assim chamado
“apenas” porque recuperou na medida do possível os
modelos poéticos, retóricos, filosóficos e visuais da civili-
zação greco-romana. Ele é certamente, e antes de tudo, isso mesmo,
e essa operação, de per se, basta para lhe garantir uma posição
excepcional na história da cultura ocidental. Mas como toda ten-
tativa de reapropriação do passado é, inevitavelmente, uma recria-
ção do passado segundo a perspectiva do presente, ao tentar recon-
quistar para si o mundo antigo, o Renascimento criou uma ideia
do mundo antigo que, por sua vez, gerou as coordenadas mentais
do mundo moderno. A ideia em história é mais importante que o
fato, que a pedra. Se não fosse assim, por que Florença, obviamente
muito menos rica que Roma em vestígios do mundo romano, seria
a pioneira desse processo? Aliás, a relativa escassez florentina de
vestígios do passado pôde ser mais estimulante que a abundância
romana desses vestígios, pois a escassez permite mais liberdade de
“invenção” da memória. Não esqueçamos que em história, a memó-
ria de um fato é, em si, insignificante. O que é relevante, o que faz
o mundo dos homens mover-se, é o conteúdo emocional de que o
fato pode ser suporte. Em física, o significado da repetição de um
evento é ínfimo, para não dizer nulo. Quando uma pedra cai de
novo, esse evento apenas confirma pela enésima vez a lei da gravi-
dade. Em história, na experiência humana constituída pela dimen-
são afetiva da memória, toda recorrência, toda repetição de um fato,

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Luiz Marques

de uma ideia, de um enunciado, de uma obra de arte, nada tem de


uma repetição, pois o simples fato de ser percebido como um re-
acontecimento, um re-nascimento, muda seu significado e o faz algo
de irredutivelmente novo. As vanguardas modernistas, obcecadas
pelo novo, esqueceram-se de que é impossível repetir. Nas páginas
que seguem, procuraremos demonstrar de modo circunstanciado
como a modernidade nasce das diversas reações químicas do antigo
fecundado pelo novo na história da arte e das ideias dos séculos
XIII e XIV. Deve-se, com efeito, começar pelo começo, isto é, pelos
artistas que desencadearam esse processo: Nicola Pisano, seu filho
Giovanni Pisano, Cimabue e, naturalmente, Giotto. Os protagonis-
tas desses primórdios da Idade Moderna são, como é fácil entender,
italianos. Mas não apenas. A Itália mostra o caminho, mas se trata
até certo ponto de uma estrada de mão dupla, pois as elites, os lite-
ratos e os artistas italianos apreciam, acolhem e se deixam influen-
ciar pela poesia, pela música e pela arte das cortes da Catalunha
e de Castela, pelas cidades setentrionais, pela sofisticação extrema
da corte da Borgonha, pela poesia troubadour francesa e sobretudo
provençal e, enfim, pela perícia técnica dos artesãos alemães.
O Renascimento elaborou os elementos necessários para sua pró-
pria compreensão. Seus modelos antigos e suas origens medievais
foram analisados por seus próprios historiadores. Maquiavel em
sua obra A Primeira Década de Tito Lívio explora como a antiga
República romana pode fornecer modelos de compreensão da situ-
ação histórica por ele vivida. Por outro lado, faz notar na História
de Florença como a história florentina do seu século deita raízes na
Toscana do século XIII, e não por acaso sua biografia de Castruccio
Castracani (1281–1328) mostra em estado de nascimento as vir-
tudes exemplares do condottiere moderno. Da mesma maneira, os
grandes literatos italianos dos séculos XV e XVI, de Poliziano a
Cristoforo Landino e a Pietro Bembo, compreendem bem como o
destino da expressão poética italiana havia-se formulado entre os
séculos XIII e XIV, na encruzilhada entre a aspereza conceptista
de Dante (1265–1321) e a elegância suprema e algo melancólica de

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As Origens Mediterrâneas do Renascimento

Petrarca (1304–1374), que sonha com uma Roma antiga entre as


púrpuras cardinalícias da corte dos papas de Avignon.
Tanto quanto na política e na literatura, o Renascimento nas artes
visuais “começa” bem antes do Renascimento, isto é, no século XIII,
e aqui, mais uma vez, essa percepção das raízes é mérito de um his-
toriador do próprio Renascimento: Giorgio Vasari (1511–1574),
que inicia justamente com uma biografia de Cimabue (c. 1240–
1302) suas Vidas dos mais insignes Arquitetos, Pintores e Escultores
de Cimabue aos nossos dias, publicadas pela primeira vez em 1550 e,
em uma versão muito ampliada e revista, novamente em 1568. Em
suma, o Renascimento não precisou aguardar as grandes matrizes
interpretativas formuladas pela historiografia do século XIX1 para
se compreender como uma unidade histórica de três séculos, um
percurso que tem início no terceiro quarto do século XIII e que se
debate em uma terrível crise de identidade, de autonomia política e
de hegemonia cultural ao longo do terceiro quarto do século XVI.
Mas as origens de um fenômeno histórico tão complexo como o
Renascimento devem por força ser tão complexas quanto o fenô-
meno de que são origem. E, de fato, uma das características essen-
ciais da cultura no século XIII, especialmente nas regiões banhadas
pelo Mediterrâneo, é seu caráter coral. Sabemos hoje, graças aos his-

1  Tais matrizes são elaboradas prevalentemente, como se sabe, por uma plê-
iade de historiadores de cultura alemã, dentre os quais quatro ao menos devem
ser lembrados: Jacob Burckhardt (1818–1897), Die Kultur der Renaissance
in Italien (1860), com mais de uma tradução em português; Ferdinand
Gregorovius (1821–1891), Geschichte der Stadt Rom im Mittelalter von V. bis
XVI. Jahrhundert, 1859–1872 (tradução italiana, Turim, Einaudi, 3 volumes,
1973); Georg Voigt (1827–1891), Die Wiederbelebung des classischen Alterthums
oder das erste Jahrhundert des Humanismus, Berlim, 1859, 2ª edição muito
ampliada em dois volumes, Berlim, 1880–1881, 3ª ed., Berlim 1893 (tradu-
ção italiana, Florença, Sansoni, 1968); e Henry Thode (1857–1920), Franz
von Assisi und die Anfänge der Kunst der Renaissance in Italien, Berlim, 1885,
segunda edição ampliada, 1904 (tradução italiana aos cuidados de L. Bellosi,
Roma, Ed. Donzelli, 1993). Cf. W.K. Ferguson, The Renaissance in Historical
Thought, Cambridge (Mass.), 1948.

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Luiz Marques

toriadores italianos do Renascimento, graças também a Burckhardt,


que devemos começar no século XIII a história do Renascimento.
Mas, ao contrário de Burckhardt, sabemos também que seus limites
geográficos não se limitam à península itálica. Trata-se de um pro-
cesso histórico resultante da interação entre vastas áreas da Europa
ocidental, mas particularmente entre quatro polos culturais direta-
mente tributários de uma memória comum da Antiguidade e em
mais íntima e ininterrupta relação: (1) a Itália meridional sob domí-
nio dos Imperadores Hohenstaufen, até 1250, no limite até 1266;
(2) a Itália central, ou seja, a Toscana, a Úmbria e o Lácio, com suas
capitais culturais: Florença, Pisa, Siena e Roma; (3) a França ao sul
do rio Loire, correspondente sobretudo às antigas províncias roma-
nas da Aquitania e da Gallia narbonensis, a brilhante civilização de
língua d’Oc, em vias de ser conquistada a ferro e a fogo na Cruzada
albigense (1208–1249) pelos reis Capetinos de Paris, e (4) o com-
plexo catalão-valenciano-aragonês, que, desde finais do século XIII,
entrelaça-se indissociavelmente com a história da Sicília, e, desde
Alfonso de Aragão, com as de Nápoles, Milão, Mântua e Ferrara.
Estes quatro polos tecem uma trama cultural contínua que afirma
sua diversidade e sua complementaridade desde sua constituição no
século XIII, que se consolida e se aprofunda ainda mais durante a
longa experiência provençal do papado (1305–1378), e na qual não
há lugar para se falar em simples difusão do modelo florentino. É
claro que os estímulos artísticos mais importantes que mobilizam
esta teia cultural pan-mediterrânea nascem na Itália central. Mas
seria um erro desconhecer, por exemplo, as influências da poesia
siciliana e dos poetas provençais sobre o Dolce Stil Nuovo, o movi-
mento literário toscano em que Guido Cavalcanti e Dante se forma-
ram. Seria igualmente perigoso, como bem mostrou Cesare Gnudi,
subestimar as afinidades entre as figuras monumentais de Giotto
em Pádua (Fig. 43, p. 473) e as das esculturas da tribuna (iconóstase)
da catedral de Bourges, de meados do século XIII, infelizmente
conservadas em estado apenas fragmentário. Estas afinidades são
proclamadas por Dante que considera o poeta provençal Arnaut

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As Origens Mediterrâneas do Renascimento

Daniel: il miglior fabbro (o melhor artífice). Ao lado do precedente


provençal, a contribuição ibérica (leia-se sobretudo: árabe) à esca-
tologia do poema de Dante foi bem sublinhada em seu tempo por
um grande estudioso, Miguel Asìn Palacios2, que tão bem explo-
rou os efeitos culturais da estada do mestre de Dante, Brunetto
Latini, em 1260, como embaixador florentino junto à corte hispâ-
nica de Alfonso, o Sábio. Seja isto dito e redito, para que jamais se
esqueça que o Renascimento, mesmo quando se alastra pela Europa
do Norte, adquirindo feições próprias, permanece, em suas raízes,
um produto da civilização do Mediterrâneo ocidental, vale dizer da
civilização greco-romana. As interações políticas, linguísticas, lite-
rárias e artísticas entre esses quatro polos de cultura mediterrânea
ao longo do século XIII poderiam ser tema de uma exploração em
profundidade, aliás não ainda exaustivamente realizada pelos histo-
riadores contemporâneos. Mas se nossa questão é detectar as com-
ponentes mais imediatamente responsáveis pela dinâmica cultural
do século XIII que gerou o Renascimento italiano, então devemos
nos concentrar nos dois grandes espectros de forças que gravitam
em torno dos dois partidos em que se divide a Itália do século XIII:
os Guibelinos e os Guelfos, vale dizer, as forças aliadas ao Império e
as que se alinham com a Igreja. Estes dois campos estão, na primeira
metade do século XIII, dominados por duas personagens emble-
máticas: o Imperador Frederico II (1194–1250) e não um papa
(embora não falte aqui um grande: Inocêncio III), mas um certo
Giovanni di Pietro Bernardone (1181/82–1226), que se fez conhe-
cer como Francisco de Assis e que a Itália elegeu como seu patrono.
Detenhamo-nos por ora no imperador.
Neto de Frederico I Barbarossa, Frederico II foi o último gover-
nante efetivo de uma dinastia que logo se extinguiria, mas que
dominou o Sacro Império Romano-Germânico por dois séculos, os
Hohenstaufen, cujo castelo e domínios situavam-se em Schwaben

2  Cf. Miguel Asín Palacios (1871–1944), La Escatología musulmana en la Divina


Comedia, 1919.

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Luiz Marques

(ou Suábia ou ainda Suévia), uma região histórica da atual Alemanha


meridional. Apenas por amor à exatidão, Frederico II, morto em
1250, foi ainda sucedido por um Hohenstaufen, Manfredi, seu filho
ilegítimo com a notável Bianca Lancia, mas este não conseguiu de
fato opor-se ao avanço de Carlos I de Anjou, irmão de Luís IX, que
o derrota e mata em 1266 na batalha de Benevento, inaugurando o
domínio angevino em Nápoles e em parte do sul da Itália. Após a
morte de Frederico II, o Sacro Império Romano-Germânico irá se
reduzindo aos poucos aos territórios de língua alemã, em proveito,
na Itália, da aliança da Igreja e de várias cidades com a casa real
francesa e, ao norte, com o avanço, sobretudo a partir da segunda
metade do século XIV, da Borgonha e das cidades da Flandres. O
velho Império medieval só se recuperará a partir de Maximiliano I
para atingir um novo apogeu com seu filho, Carlos V (1500–1588).
Em 1994, por ocasião das comemorações do oitavo centenário de
seu nascimento, realizou-se em Bari, capital da Apúlia (no sul da
Itália), uma grande exposição dedicada a Frederico II. Não por acaso
seu título era Frederico II Imagem e poder, pois dela resultou justa-
mente uma renovada imagem do imperador que nascera em Jesi, na
Itália, que se considerava “siciliano” e a quem o reino da Sicília (que
então compreendia a ilha e a porção meridional da península) deve
sua condição de potência europeia no século XIII, tanto no plano
político-militar quanto cultural. O Império romano nunca deixou
de ser uma referência convencional para os Imperadores carolíngios
e otonianos, digamos dos séculos IX a XII. Frederico II foi, entre-
tanto, o primeiro a assumir concreta e completamente essa associa-
ção, a ponto de se fazer intitular “Imperator Romanorum Caesar
Augustus” (César Augusto, Imperador dos Romanos). Essa imagem
de propaganda oficial baseada na total identificação com os anti-
gos imperadores romanos espelha-se em todos os aspectos de seu
governo e de sua vida privada. Por exemplo, na monetação do reino,
sobretudo nos Augustales, moedas de ouro cunhadas entre 1231 e
1250 em suas casas da moeda de Brindisi e de Messina, em cujo
anverso surgia a Águia imperial de Roma e, no reverso, sua efígie

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As Origens Mediterrâneas do Renascimento

como Imperador romano, com a inscrição: ROMANOR REX 1212;


ROMANORUM IMPERATOR SEMPER AUGUSTUS ET REX
SICILIAE 1220 (Rei dos Romanos 1212; Imperador sempre Augusto
dos Romanos e Rei da Sicília 1220). No seu retrato fragmentário do
Museu Civico de Barletta, talvez originariamente um retrato eques-
tre, o imperador apresenta-se vestido à maneira dos antigos impe-
radores, com uma clâmide afivelada no ombro por uma fíbula onde
está gravada a sigla S.P.Q.R. (Senatus Populusque Romanorum =
Senado e Povo de Roma). A inscrição na base o chama de César
Divino. Já por esse retrato, embora em estado tão lacunar, pode-
se perceber que é na escultura que o impulso da cultura artística
siciliana em direção ao antigo se manifesta com mais força, graças
a uma legião de ateliês empenhados em construir, novamente em
mármore, uma nova imagem do soberano à maneira de um antigo
César. Pouco resta infelizmente da atividade desses marmorarii, mas
é nessa cultura escultórica capaz, pela primeira vez, de imitar a gran-
deza antiga, que surgirá, talvez no ateliê do espetacular Castel del
Monte, o primeiro escultor da estirpe de que descendem os grandes
escultores do Renascimento: Nicola Pisano (1220/25–c. 1283), na
realidade, Nicola de Apulia, como o nomeiam dois documentos de
1266, pois é da Apúlia, capital do reino de Frederico II, que ele vem
se instalar na Toscana, por volta de 1245, provavelmente envolvido
na decoração escultórica de outro magnífico castelo de Frederico II,
em Prato, perto de Florença. Se a dívida da poesia toscana para com
a siciliana é reconhecidamente grande, a transferência de Nicola,
arquiteto e escultor, para a Toscana promove uma das grandes
fecundações de uma região por outra na história da arte italiana.
Como dito acima, Vasari empenha-se em reconstituir a gênese, a
progressão e a plenitude da arte do Renascimento ao longo dos sécu-
los XIII-XVI. Ele divide esses três séculos (1260–c. 1560) em três
Idades, que se sucedem em constante superação até Michelangelo,
e cujo princípio propulsor permanece, ao lado da imitação direta
da natureza, a imitação da arquitetura e da escultura monumental
antigas. Tal ideia parece impor-se progressivamente na reflexão de

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Vasari, sendo esta a provável razão pela qual as biografias de Nicola


Pisano e de seu filho, Giovanni Pisano, permanecem ainda ausentes
da primeira edição de suas Vidas (1550). Na edição de 1568, entre-
tanto, Vasari dedica-lhes uma biografia importantíssima, na qual faz
nascer a escultura moderna por mérito de uma genial intuição de
Nicola Pisano, em face dos relevos de um sarcófago romano conser-
vado no Camposanto, o nobilíssimo cemitério de Pisa. Trata-se pro-
vavelmente do sarcófago, ainda existente, empregado como tumba
pela mãe da Condessa Matilde de Canossa (1046‑1114/15), cuja
nobreza, entre as mais elevadas da feudalidade, entrelaçava-se com
a da Lotaríngia (pela mãe e primeiro casamento), e com a Casa da
Francônia, entre outras, e cujos domínios estendiam-se desde o ter-
ritório de Brescia até o sul da Toscana. Embora Vasari equivoque-se
na identificação da cena figurada nesse relevo, ele acerta em cheio
quando detecta sua importância para o escultor da Apúlia:

“Nicola, considerando a bondade daquela obra, que lhe


agradava fortemente, empenhou tanto estudo e diligência
em imitar aquela maneira, e algumas outras boas esculturas
daqueles sarcófagos antigos, que foi logo considerado como o
melhor escultor do seu tempo”.

Não sabemos se Vasari conhecia algum taccuino ou caderno de


desenhos de estudos de esculturas antigas de Nicola Pisano, mas é
altamente provável que este existisse, e que a escultura antiga fosse
já então estudada e reempregada “com plena consciência, por preci-
sas razões iconográficas ou propagandísticas”, como nota um estu-
dioso desses cadernos de estudos, Arnold Nelsselrath3. Em todo o
caso, não precisamos conhecer esse perdido taccuino e nem mesmo
precisaríamos conhecer o sarcófago de Matilde, com seus relevos

3  A. Nesselrath, “I libri di disegni di antichità. Tentativo di una tipologia”. In,


S. Settis (org.), Memoria dell’antico nell’arte italiana. Tomo III: Dalla tradizione
all’archeologia”. Turim, Einaudi, 1986, pp. 89–147.

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As Origens Mediterrâneas do Renascimento

figurando o mito de Fedra, para reconhecer no púlpito do Batistério


de Pisa, assinado e datado 1260, mais precisamente na clara arti-
culação analítica entre arquitetura e escultura e no complexo de
estátuas e relevos que o compõem, a concepção grandiosa da arqui-
tetura e da escultura monumental romana. Já por sua estrutura
hexagonal, independente de qualquer parede ou coluna — forma
talvez derivada da planta octogonal de Castel del Monte —, o púl-
pito do Batistério de Pisa (Fig. 44, p. 474) não é mais apenas uma peça
do mobiliário eclesiástico, mas uma arquitetura completa em si,
com sua excepcional estrutura de colunas antigas de granito cinza e
vermelho. Nesta arquitetura, transpõe-se livremente no espaço um
programa iconográfico tão enciclopédico, em sua concisão, quanto
o das fachadas das catedrais góticas. Deve-se ler este programa,
composto de três ordens de esculturas, em sentido ascensional: na
base, leões, águias e atlantes exprimem as forças cósmicas que sus-
tentam as duas ordens superiores. Sobre os capitéis e nos arcos tri-
lobados que neles se apoiam surgem as Virtudes e os Profetas, que
compõem as forças espirituais do cristianismo. Enfim, esta estru-
tura simbólica dá suporte aos seis relevos que rodeiam o púlpito e
cuja sucessão exprime o tempo circular da Graça, isto é, o do nasci-
mento, sacrifício e retorno de Cristo. As cenas são a Anunciação, a
Natividade, a Adoração dos Reis Magos, a Apresentação no Templo,
a Crucificação e o Juízo Universal. Sobretudo as quatro primeiras
cenas são compostas como relevos de sarcófagos. Seu modelo não
é tanto o já citado sarcófago de Matilde, de finais do século II d.C.,
mas os sarcófagos do século III, o que se revela no gosto pela per-
furação dramática do mármore, pelas sombras profundas obtidas
à força de buril, nos abundantes e encaracolados cabelos, barbas,
pelos e crinas dos notáveis cavalos. Mas a este elemento expressivo,
contrapõem-se o paralelismo enfático dos planos, a evidência dos
gestos e da lógica anatômica sob as pregas largas e ligeiramente
geométricas das superfícies amplas e placidamente luminosas.
A Virgem da Natividade é uma mistura de divindade fluvial e de
figura funerária etrusca. A Virgem da Adoração dos Magos lem-

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Luiz Marques

bra uma matrona romana, uma Dea Roma investida do mais sereno
senso de solenidade.
Já nas duas últimas cenas, a Crucificação e o Juízo Universal
(mal conservado), a maior dramaticidade do claro-escuro foi por
vezes considerada um indício da colaboração com outros esculto-
res. É possível, mas tal intensificação expressiva pode exprimir ape-
nas uma evolução do próprio estilo de Nicola ao longo dos anos c.
1257–1260 e é sobretudo apropriada à maior violência desses dois
temas. Aqui, o paralelismo das primeiras cenas dá lugar a um jogo
mais sutil de simetrias, de equilíbrio mais complexo. Este gosto pelo
movimento anuncia as obras sucessivas de Nicola Pisano, tais como
o púlpito da catedral de Siena, de 1265–1268, onde se vislumbra já a
poética que seu filho, Giovanni Pisano (1245/50–c. 1317), levará às
últimas consequências no púlpito de 1301 na igreja de Sant’Andrea,
em Pistóia, talvez sua obra-prima (Fig. 45, p. 474). Mais à frente, vere-
mos como Giovanni recolhe essa herança do pai, nela infundindo de
fato uma dramaticidade que só encontra rival em Donatello, Jacopo
della Quercia e Michelangelo, que o apreciava particularmente.
De Nicola Pisano a Donatello, Vasari observa o salto da incorpo-
ração dos exemplos da escultura antiga em direção a uma assimila-
ção sempre mais íntima da lição essencial dos escultores antigos. Já
no capítulo de Introdução às Vidas, intitulado De la Scultura, Vasari
observa que Donatello mostrava compreender que a “bella forma”
nasce, não da habilidade das mãos (evidente alusão aos artistas fla-
mengos), mas sim do “juízo” (giudizio), isto é, do senso de síntese for-
mal, pois “na simplicidade do pouco mostra-se a agudez do engenho”.
É esse senso de síntese formal do mundo antigo que renasce em Nicola
Pisano e em seus descendentes artísticos. Pois assim como o destino
da poesia italiana joga-se na encruzilhada entre Dante e Petrarca, o da
escultura renascentista, até Michelangelo inclusive, jogar-se-á entre o
equilíbrio clássico de Nicola e a dramaticidade de Giovanni.
Quando se observa a desenvoltura com que os escultores nasci-
dos na Itália meridional de Frederico II apropriam-se da retratística
romana e dos relevos antigos, fica-se surpreso com o descompasso

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As Origens Mediterrâneas do Renascimento

existente entre a escultura e a pintura em meados do século XIII.


Pois ainda que a pintura toscana tente já então introduzir, em sua
interpretação dos modelos importados da arte de Constantinopla,
elementos plásticos e dramáticos que não são próprios dos ícones
metropolitanos, pode-se dizer que suas premissas formais perma-
necem prisioneiras das da sofisticada imaginária bizantina. Para
dizer com as palavras dos escritores italianos dos séculos XIV a XVI
que primeiro refletiram sobre esse período, de Cennino Cennini
(c. 1370–c. 1440) a Vasari (1511–1574), os artistas toscanos de
meados do século XIII permaneciam fiéis à “maniera greca”. Por
maneira grega entenda-se aqui, não a arte grega ou greco-romana,
mas a arte bizantina, isto é, a arte que se desenvolve sobretudo em
Constantinopla (atual Istambul) a partir do ano de 843 (pois as ima-
gens haviam sido oficialmente proibidas no Império bizantino de
730 a essa data) e em seu apogeu dos séculos XI e XII, quando o
Império Romano do Oriente é sem dúvida a primeira potência do
mundo europeu, mediterrâneo e centro asiático.
Para se dar conta dessa adesão da pintura italiana (e em certa
medida europeia) à matriz bizantina, basta compararmos, por
exemplo, um pequeno e precioso ícone produzido por volta de 1110
por um artista de Constantinopla, talvez ativo em Sinai, no Egito4,
com uma obra maior dos anos centrais do século XIII: o estupendo
Crucifixo pintado para a igreja matriz da ordem dos dominicanos
em Bolonha e assinado por Giunta Pisano com a orgulhosa inscri-
ção: “CUI’ DOCTA MANU ME PINXIT IUNTA PISANUS, isto
é: “Com douta mão, Giunta Pisano pintou-me”) (Giunta Pisano,
Crucificação, têmpera sobre madeira, 316 x 285 cm, 1250–1255,
Bolonha, igreja de S. Domenico). Olhemos primeiramente o que as
duas obras têm em comum. Como na Crucificação bizantina, vê-se
na de Giunta Pisano a proporção alongada dos corpos, com a cabeça
muito diminuta segundo uma mesma doutrina das proporções

4  Têmpera sobre madeira, 28 x 21 cm, c. 1100, Monastério de Santa Catarina


de Sinai.

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Luiz Marques

humanas, a minimização da terceira dimensão, o tratamento pre-


cioso da matéria, a atribuição às carnes da luminosidade metálica
do ouro, com suas conotações teológicas, a forma em “S” do corpo
e a forte esquematização da anatomia do abdômen do Cristo, com
predileção em geral pelos ritmos lineares em detrimento dos ritmos
volumétricos. Um grande pensador das formas, Wilhelm Worringer
(1881–1965)5, diria que tudo, nestas duas obras, está deliberada-
mente submetido a um impulso em direção ao abstrato e que nada
ou muito pouco apela à experiência orgânica do corpo humano e
menos ainda aos parâmetros da escultura antiga.
Mas são grandes também as diferenças entre elas. Não porque
Giunta Pisano se insurja contra as premissas formais do protótipo
bizantino, mas porque, ao esposá-las, ele as leva às suas últimas
consequências expressivas. A extrema sutileza teológica da pequena
Crucificação de Constantinopla é em certa medida popularizada
e tende a um sentimento paroxístico do patético: os braços já não
são filamentos de delicada curvatura, mas deixam transparecer seus
tendões penosamente estirados, o corpo se verga mais e se trans-
forma em um “S” pronunciado, os gomos do abdômen incham e se
comprimem entre as linhas, transformadas em verdadeiros sulcos,
os traços da fisionomia se simplificam em uma cifra de sofrimento.
Giunta Pisano leva ao máximo de suas possibilidades emotivas
o tipo do Christus patiens, representado não já vivo e em triunfo
como outrora, mas morto e com as todas as marcas de seus atrozes
padecimentos na cruz. Ao invés de se distanciar da arte bizantina,
Giunta Pisano, portanto, subverte-a de dentro, extraindo-lhe impli-
cações patéticas que não estavam necessariamente no protótipo. O
que a arte bizantina perde em sutileza, ganha em tensão expressiva,
muitas vezes comparada com a poesia rouca de um franciscano
spirituale como Jacopone da Todi. Estamos, aqui, nas antípodas da

5  W. Worringer, Abstraktion und Einfühlung (1908), tradução italiana, Turim:


Einaudi, 1975.

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As Origens Mediterrâneas do Renascimento

escultura greco-romana, justamente quando Nicola Pisano estava


redescobrindo com genial intuição suas formas.
Para entender este descompasso entre escultura e pintura, é pre-
ciso levar em conta ao menos dois fatores. O primeiro é que o ele-
mento mesmo da arte antiga é a escultura monumental, a grande
forma em mármore ou em bronze, e que, portanto, todo movimento
em direção à arte antiga deveria começar, logicamente, na escultura.
Tanto mais porque não se havia praticamente conservado nada da
pintura antiga. O segundo fator é, inversamente, o fato de o ele-
mento mesmo da arte bizantina não ser a pedra ou o bronze, mas a
luz, com suas associações quase automáticas, para a tradição tardo-
antiga orientalizante, entre a luz do mundo e a luz mística da divin-
dade. Ora, a luz deixa-se melhor aprisionar, coagular ou irradiar
na pequena escala e no objeto de luxo, construído ou revestido de
metal, especialmente o ouro, cravejado de pedrarias. A isso acresce
outro fato: os modelos da arte bizantina susceptíveis de serem imi-
tados na Itália não eram obviamente os monumentos, mas os obje-
tos portáteis de ourivesaria e de decoração librária: a iluminura, as
encadernações metálicas de livros, as placas de altares, os sacrários,
as cruzes processionais, os incensórios, as plaquetas figurativas em
marfim e em ouro, em suma, os objetos de luxo eclesiástico e aristo-
crático. Assim, mesmo quando devem pintar obras de mais de três
metros de altura, como o citado Crucifixo de Giunta Pisano (316
x 285 cm), os artistas italianos tendiam a mimetizar o caráter pre-
cioso do objeto. O exemplo mais notável dessa busca da luz preciosa
no grande formato é o grande Crucifixo n. 20 do Museu de Pisa,
outrora no Monastério de San Matteo de Pisa, (Fig. 46, p. 474), obra-
prima da arte bizantina na Toscana, pintado como uma iluminura
sobre pergaminhos que revestem a madeira.Evidentemente esta
ausência de diálogo entre pintura e escultura não poderia continuar
por muito tempo e é fácil entender por que suas inevitáveis intera-
ções só poderiam levar a balança a inclinar-se em favor da última. A
arte bizantina introduzira-se com força na Itália após 1204, quando
o selvagem saque de Constantinopla pelos Cruzados da Quarta

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Luiz Marques

Cruzada levara a uma diáspora de artistas constantinopolitanos pela


Europa centro-oriental e pelos Balcãs, mas também para a penín-
sula itálica e inclusive para as cidades-porto do mar Tirreno, como
Pisa. Ocorre que a arte bizantina, com sua sofisticação imensa, seu
caráter áulico e algo imobilista, não podia dar respostas satisfatórias
ao dinamismo que vinha tomando de assalto a situação política e
cultural europeia sob o impacto de três forças muito diversas, mas
igualmente operantes: (1) no reino da Sicília, onde fora acolhida tão
profundamente nos séculos XI e XII, a arte bizantina não era mais
apropriada ao programa neoimperial de Frederico II, que, como
visto acima, promove para sua maior glória, entre 1230 e 1250,
uma primeira grande revivescência da arte dos Césares romanos;
(2) a arquitetura “gótica”, que se originara no novo coro da basí-
lica de Saint-Denis, perto de Paris, em 1144, arquitetura portanto
de origem francesa (chamada na época Opus francigenum), que se
expande pelo hexágono francês, pela Inglaterra, pela Europa renana
e pela Itália, no rastro das guerras de expansão da realeza capetina
e de sua aliança estratégica com a Igreja de Roma, entre a segunda
metade do século XII e todo o século XIII, gerando uma explosão
de imagens e formas escultóricas novas; (3) o desenvolvimento,
pela mesma área cultural, das Ordens mendicantes — fundadas por
Francisco de Assis e por Domingos de Guzmán — que revitaliza a
capacidade de intervenção da Igreja sobretudo nas cidades italia-
nas, promovendo uma nova espiritualidade e uma nova agenda de
representação das vidas dos santos, com decisivas implicações artís-
ticas, como se verá em seguida. Esses três fatores explicam o rápido
declínio da arte bizantina na Europa e em especial na Itália central
a partir de meados do século XIII, assim como explicam a inércia
com que ela se prolonga ou se perpetua em áreas menos tocadas ou
mesmo intocadas por eles e, a partir do século XIV, mais envolvidas
na resistência ao avanço turco: Veneza, os Balcãs, a Macedônia, os
Países Eslavos, etc. Mas se esses três fatores atuam conjuntamente
na “superação” da arte bizantina, eles travam entre si uma guerra
de morte: de um lado, o Império de Frederico II, aliado às cidades

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As Origens Mediterrâneas do Renascimento

guibelinas; de outro, a aliança entre a casa francesa dos Capetos, a


Igreja, as Ordens mendicantes e as cidades guelfas italianas, sempre
mais numerosas.
Este grande divisor de águas gerou as duas modernas matri-
zes historiográficas na interpretação do período. De um lado,
Burckhardt, em 1860, acentua o novo mimetismo da Antiguidade
inscrito na ideologia imperial de Frederico II e de sua corte. Para
Henry Thode (1885), de outro lado, as origens do que ele entende
por “Renascimento” seriam identificáveis preponderantemente na
nova empatia com a natureza, esse quase panteísmo de Francisco
que infunde nova vitalidade espiritual ao cristianismo, rapida-
mente cooptada e instrumentalizada pela Igreja de Roma. Sem
dúvida, as duas interpretações são tributárias de um debate cul-
tural e espiritual que se trava no século XIX entre os críticos de
Hegel, como Burckhardt, avesso à idealização, e o romantismo
místico de Thode, frequentador dos círculos wagnerianos e genro
de Wagner. Mas o antagonismo ideológico entre o imperador e os
franciscanos foi real, como bem o atesta a vívida crônica de frei
Salimbene (Cronica fratris Salimbene de Adam), na qual se lê:

Credo certissime quod sicut Deus voluit habere unum


specialem amicum quem similem sibi faceret, scilicet beatum
Franciscum, sic diabolus Ycilinum.

“Creio como certo que assim como Deus quis ter um amigo
especial que fez similar a si, ou seja, o beato Francisco, assim
[fez] o diabo em Ezzelino”.

Ezzelino III da Romano, cognominado o Feroz (1194–1259), era,


além de genro, o condottiere de confiança de Frederico II que ater-
rorizou sobretudo as cidades do norte da Itália. Mas é claro que a
questão das origens do Renascimento não pode se reduzir a este
enfrentamento bipolar, que, de resto, foi efêmero, pois com a morte
de Frederico II em 1250 e o extermínio dos Hohenstaufen em 1266

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(Manfredi) e em 1268 (Corradino), os aliados contra o Imperador


na Itália, na falta do inimigo comum, passam a se digladiar entre si.
O espectro das alianças se recompõe e a luta atinge novos ápices de
crueza, como entre franciscanos e dominicanos, entre as tendências
internas do franciscanismo, entre a Inquisição papal e certos spiri-
tuali franciscanos e, sobretudo, entre o papado e a coroa francesa,
reinante agora não apenas em Nápoles, mas também no próprio
Colégio Cardinalício, o que levará três cardeais franceses ao trono
pontifício entre 1261 e 1285. O domínio francês sobre o papado será
tal que ele acabará, como se sabe, por “aprisioná-lo” por quase todo
o século XIV em Avignon, novo “cativeiro da Babilônia”.
Para além do eventual esgotamento interno de suas energias, a
arte bizantina na Itália foi, portanto, abatida, primeiro por Frederico
II e, em seguida, em mais vastas regiões da Itália e da Europa, pelo
triunfo do poder político e cultural francês, o que explica bem a
introdução de tantas características da cultura gótica na arquite-
tura, na escultura e na pintura italiana da segunda metade do século
XIII. Não se deve esquecer que a influência francesa entra na Itália
também pela Universidade de Paris, pois nela ensinam, e em seu
ambiente formam seu pensamento, os grandes teólogos italianos
das Ordens mendicantes, como o dominicano S. Tomás de Aquino e
S. Boaventura, o mais ilustre Geral dos Franciscanos, ambos mortos
em 1274. Seria, portanto, plausível pensar que a arte italiana, face a
tão múltipla hegemonia francesa, viesse a se configurar em finais do
século XIII e mais ainda no século de Avignon (1306–1378) como
um capítulo, província ou dialeto da arte gótica europeia.
Ora, não foi isso o que ocorreu. Diversas razões históricas e
sociológicas ajudam a compreender os limites da penetração do
gótico na Itália, mas todas concorrem em última instância para
uma só: a força de referência da cultura antiga na península. É
essa referência que permitiu uma dupla assimilação da arte bizan-
tina e da arte gótica, sem que, por isso, a Itália se transformasse
em simples província de uma ou outra dessas esplêndidas cultu-
ras. Com Frederico II e Nicola Pisano, o Império não se quer mais

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As Origens Mediterrâneas do Renascimento

nem oriental, nem germânico. Ele se pretende novamente romano.


Sobrevém o domínio francês e a influência gótica é tal que, em um
primeiro momento, de 1257 a 1261 e provavelmente até a morte de
S. Boaventura em 1274, a decoração dos vitrais e afrescos da basílica
franciscana de Assis é confiada a ateliês góticos anglo-franceses e
renanos. Mas eis que, sob o papa franciscano Nicolau IV (1288–
1292), manifesta-se a rejeição a tal empreendimento patrocinado
pela Igreja dos papas franceses e por S. Boaventura, parisiense de
coração. É esta resistência de fundo, para além das rivalidades de
ateliê, que leva ao abandono da decoração gótica e à cooptação de
artistas toscanos e romanos em Assis. Não sabemos se a dialética
de fato existe na história (talvez não seja ela mais que um patrimô-
nio da filosofia da história…). Mas se existe, podemos flagrá-la aqui
em ato, desde que, naturalmente, a assimilação/rejeição dessa dupla
influência converta-se em momento preparatório para uma síntese
maior. E é o que ocorre.
Faltava de fato dar uma expressão positiva a esta dupla rejeição
de Bizâncio e do gótico. Faltava uma arte que não fosse nem bizan-
tina, nem gótica, mas que não se definisse tampouco apenas por
suas resistências a uma e outra. Faltava, em suma, uma arte nacional
italiana, como nacional era a síntese operada por Dante no domínio
da língua e da expressão literária, não obstante a unificação política
se fazer esperar ainda por meio milênio. Enquanto a escultura de
Nicola Pisano não encontrava uma expressão mais geral na pintura,
no espaço contínuo da narrativa pictórica, sua arte não podia se alçar
à condição de gesta nacional. É no encontro de Nicola Pisano com
Cimabue, que se produz essa fecundação, na Toscana, da pintura
pela escultura, por meio da qual a Itália moderna se reconcilia com
a vocação ao mesmo tempo visual e narrativa da civilização romana.
Este encontro se realizou efetivamente nos anos 1270. Sabemos por
Vasari que Cimabue pintou nesses anos não apenas para os fran-
ciscanos de Florença, mas também para os de Pisa, e que dentre as
obras que ali criou conta-se a Maestà do Louvre (Fig. 47, p. 474) . Já
em 1927, um dos grandes historiadores da arte do século XX, Pietro

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Luiz Marques

Toesca, percebia no laminado plástico das pregas da Virgem, que se


dobram de fato pela primeira vez na história da pintura, o estudo dos
relevos do púlpito do Batistério, “como se Cimabue contemplasse,
então, para além do classicismo bizantino, o de Nicola Pisano e de
seus colaboradores”. Tange-se aqui o momento de engendramento
dessa síntese. Mas ela passará da semente à árvore, ela só ganhará a
escala de uma sociedade, nos afrescos da Basílica Superior de Assis.
Antes de entrar na Basílica, é importante recapitular o caminho
até aqui percorrido para se ter bem claro o que entender por essa
síntese criadora de uma arte nacional. O encontro de Cimabue
com os relevos do púlpito de Nicola Pisano, por efetivo que tenha
sido, não passa de uma metáfora, ou melhor de uma metonímia (a
parte pelo todo), dessa síntese. De um lado, Nicola Pisano é apenas
um estímulo para Cimabue, que já conhecera a escultura romana
diretamente em Roma em 1272, e se afastara decisivamente da arte
bizantina de Giunta Pisano, em prol de uma nova monumentalidade
no Crucifixo de San Domenico em Arezzo, dos anos 1260 (Fig. 48,
p. 475), e em prol de uma verdadeira adesão à escultura no Crucifixo
de Santa Croce, pintado provavelmente antes de 1274, isto é, antes
da Maestà do Louvre.
De outro lado, o classicismo estrito de Nicola Pisano nos relevos
do púlpito do Batistério de Pisa, que, como visto acima, mais pare-
cem relevos de um sarcófago do século III, é um episódio extremo
e quase singular de classicismo na escultura do século XIII. Ele não
se repete tal qual nos escultores toscanos como Arnolfo di Cambio
e nem mesmo na obra sucessiva de Nicola Pisano. Isto seja dito
para que se coloque na devida perspectiva o significado desse
retorno em solo italiano às suas referências antigas. Toda imitação,
como toda tradução, é uma operação cujo resultado depende basi-
camente da natureza das relações existentes entre o modelo e sua
imagem. Na tradução, o texto resultante é, em princípio, tanto mais
fiel ao original quanto maior for a afinidade entre a língua de ori-
gem e a língua de destino. Uma tradução, por exemplo, do manda-
rim arcaico para o português de nossos dias é um salto no abismo

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As Origens Mediterrâneas do Renascimento

da alteridade no qual o que sobrevive do original é forçosamente


muito pouco, pois as diferenças entre as duas civilizações em con-
fronto são praticamente intransponíveis. No polo oposto, uma tra-
dução de Cícero para o italiano moderno (e em medida menor para
as línguas neolatinas em geral) é uma operação de espelhamento
entre dois momentos, entre dois aspectos de um mesmo universo
linguístico, vale dizer, de uma mesma civilização. Este exemplo é
útil para precisarmos nosso ponto: a transfusão da arte antiga na
arte nacional italiana de Cimabue, mediada pelo episódio Nicola
Pisano, não é uma simples e mecânica cópia da escultura romana
pela arte toscana dos anos 1260–1280. É uma espécie de anam-
nese na qual a arte moderna re-conhece e revive a antiga porque de
algum modo já a continha dentro de si, já que ambas pertencem,
em suma, à mesma tradição mediterrânea.
Recorde-se aqui, para concluir essa recapitulação, o que foi dito
acima sobre o caráter coral das origens do Renascimento, resultante
da interação entre vastas áreas da Europa ocidental, mas particu-
larmente entre quatro polos mediterrâneos diretamente tributários
de uma memória comum da Antiguidade greco-romana: a Itália
meridional sob domínio dos Imperadores Hohenstaufen, no limite
até 1266; a Itália central; a França ao sul do rio Loire e o complexo
catalão-valenciano-aragonês. A escultura antiga age nesse contexto
como um estímulo desencadeador de uma cultura nacional porque a
trama cultural mediterrânea atingiu no século XIII suficiente riqueza
e complexidade para compreender seu potencial e incorporá-lo. Tal
é a razão pela qual, ao se reapropriar da escultura antiga, a Itália
central, e em particular a Toscana, nada mais fará que exprimir de
modo privilegiado uma tendência a fazer mais programaticamente
atuante a cultura antiga, tendência inerente à toda península itálica
e, no limite, a toda a cultura do Ocidente mediterrâneo.
Morto em 1226, Francisco foi canonizado por Gregório IX em 16
de julho de 1228. No dia seguinte, o próprio papa lançava a pedra
fundamental de sua igreja. Seu grande campanário em forma de
torre quadrada é datado de 1239, data em se supõe já construídas

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Luiz Marques

as estruturas murais da dupla igreja, inferior e superior, com sua


cripta românica para receber os despojos do santo e os peregri-
nos, sobre a qual se eleva uma imensa igreja iluminada por vitrais
e coberta, a primeira na Itália, com ogivas góticas. Consagrada em
1253 por Inocêncio IV, a decoração dos vitrais da basílica começará
já em 1257, mas, segundo estudiosos como Cesare Brandi e Luciano
Bellosi, a verdadeira campanha de decoração da Basílica superior
tem início somente em 1288 graças ao apoio do papa franciscano
Nicolau IV, prolongando-se até 1298–13006. Neste lapso de um
decênio ou pouco mais, assiste-se à sucessão da geração de Cimabue
(1240c. – após 1302), então por volta dos 50, pela nova geração de
Giotto (1267c.-1337), em um frenesi de trabalho que avança, ine-
xorável, atropelando as resistências de uma corrente já então agoni-
zante do franciscanismo “radical”.
Pois a basílica padece de uma contradição insolúvel: de um lado,
ela é a matriz dos franciscanos, e deveria em princípio refletir, ao
menos em parte, as convicções de uma de suas facções, os francisca-
nos spirituali, intransigentes na luta para manter vivo o exemplo sal-
vífico de pobreza e despojamento do santo fundador. Acreditando
na iminência do fim do mundo (Francisco teria vindo anunciá-lo,
inaugurando a terceira e última idade da humanidade, a do Espírito
Santo), os spirituali só podiam rejeitar, como babilônico, o fausto
das catedrais góticas e das basílicas marmóreas de Roma. Mas, de
outro lado, a basílica não pertencia, juridicamente, aos franciscanos
e sim ao papado, que a geria através de um cardeal, apoiado por
outra facção dos franciscanos, os conventuali, mais dóceis a Roma e
à Realpolitk. De modo que, por uma dessas ironias de que a história
da Igreja é rica, é em homenagem ao mais devotado amigo da “Irmã
Pobreza” que se edificará, sob férreo controle papal, o mais estrepi-

6  C. Brandi, “Sulla cronologia degli affreschi della chiesa superiore di Assisi”.


In Giotto e il suo tempo. Atas do Congresso, Roma, 1971, pp. 61–66; L. Bellosi,
Cimabue, Milão: Ed. Federico Motta, 1998.

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As Origens Mediterrâneas do Renascimento

toso complexo pictórico de toda a Itália medieval, abundantemente


enriquecido nas abóbodas estreladas com folhas de ouro.
De certa maneira, essa decoração, por sua vastidão, por sua uni-
dade e complexidade temática e decorativa, pelo caráter excepcional
dos seus valores artísticos, coroa a longa e ininterrupta experiência
do afresco na Itália medieval desde o período carolíngio. Mas muito
mais que como um ponto de chegada, a Basílica superior de São
Francisco de Assis deve ser entendida como o Antigo Testamento
da pintura italiana do Renascimento. Ela anuncia sua gesta, da
Capela Brancacci de Masolino e Masaccio (1428) ao texto extremo
da Capela Paolina de Michelangelo (1550), da mesma maneira que
o Antigo Testamento anuncia o Novo, que, por sua vez, o confirma
e o realiza na plenitude da história.
Como é de praxe, o programa decorativo começa no presbitério e
no transepto da Basílica e evolui em direção à fachada interna oci-
dental, estendendo-se sempre dos registros superiores das paredes
aos inferiores para que, obviamente, a pintura de cima não respin-
gue na de baixo. Esses afrescos do presbitério e do transepto, con-
fiados na maior parte a Cimabue e a seu ateliê, estavam arruinados
já na época de Vasari (1550) e muitos deles sofreram uma alteração
química que inverteu a relação entre claros e escuros, de modo que
não raro parecem hoje fantasmagorias em negativo. Representam
oito cenas da Vida de Maria na abside e doze cenas do Apocalipse e
dos Atos dos Apóstolos nos transeptos esquerdo e direito. Malgrado
tudo, é possível ainda admirar no transepto esquerdo (de quem
olha para o altar) não apenas a primeira verdadeira encenação da
Crucificação de Cristo, em um espaço amplo e pioneiro na pintura,
mas talvez a mais dramática, sonora e mesmo rumorosa de quantas
tenham sido pintadas na história da arte. Cimabue colhe o exato
momento da morte do Cristo, momento que desencadeia a desor-
dem cósmica dos anjos e o grito lancinante da Madalena, que lança
impotente os braços para a cruz como para abraçar o cadáver. Em
contraponto harmônico com este agudo, ouvimos as vozes graves
de Longino e de outro soldado proclamarem, com os braços exorta-

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toriamente erguidos, o sentido da imolação que acabara de lhes ser


revelada (Fig. 49, p. 475). O foco no instante de consumação do deicí-
dio confere ao afresco uma unidade espaço temporal de que apenas
o senso antigo da tragédia tinha sido capaz. Exagera-se pouco ao
dizer que a famosa unidade de ação, tempo e lugar foi inventada em
pintura nesta cena, dois séculos e meio antes da entrada da Poética
de Aristóteles na circulação sanguínea da cultura europeia. Mais
de um estudioso, e Luciano Bellosi recentemente, fez notar como
Cimabue “cita” na multidão da direita do afresco a multidão da
Crucificação do relevo de Nicola Pisano, no púlpito do Batistério de
Pisa, o que só reitera a ressonância do encontro, acima discutido,
entre o pintor e o momento mais clássico da escultura de Nicola. E
Bellosi conclui, certeiro: “Esta citação nos confirma que a renovação
de Cimabue passa também pela relação com os grandes escultores
seus contemporâneos, para os quais nenhum pintor de então havia
pensado em olhar”.
Os afrescos mais bem conservados de Cimabue são os da abó-
boda central do transepto, representando os Quatro Evangelistas em
seus scriptoria, entregues à inspiração angelical que guia a redação
de seus textos e tendo à frente as quatro capitais das “nações” por
eles evangelizadas: São Lucas, considerado conjecturalmente um
auto retrato e que tem, como bem viu Bellosi, um “ar” de “intelec-
tual” tardo antigo, como Boécio, escrevendo o De consolatione philo-
sophiae, é em todo o caso um exemplo da “terribilidade” do artista e
de sua compreensão da grandeza do retrato romano. Ele evangeliza
a Grécia (Ipnacchaia, isto é, In Acchaia), enquanto São Mateus, a
Judeia, representada por Jerusalém; São João, a Ásia menor (Éfeso?),
e São Marcos, a Itália, representada naturalmente por Roma, em uma
das primeiras representações que reproduz, hierarquizando suas
dimensões em função de sua importância política, as basílicas de
S. Pedro e de S. João de Latrão com o Sancta Santorum, o Pantheon,
o Castel Sant’Angelo, o Palácio senatorial do Capitólio, com o SPQR
e o brasão dos Orsini, a Torre delle Milizie, então em poder dos
Annibali, etc. A presença dos scriptoria com os apetrechos de escrita

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As Origens Mediterrâneas do Renascimento

dos santos é indefectível na iluminura bizantina e mesmo carolíngia.


Cimabue segue aqui fielmente a tradição, salvo no frescor com que
representa nesses scriptoria as primeiras naturezas-mortas da histó-
ria da arte moderna, como é o caso sobretudo do S. João.
A passagem da decoração do transepto para a nave única da
Basílica superior de Assis, em algum momento entre 1290 e 1295,
assinala em linhas gerais a passagem de Cimabue (1240c.-1302) a
Giotto (1266–1337). Concretamente, do ponto de vista do anda-
mento dos trabalhos, a transição de uma liderança a outra não é
abrupta, posto que Cimabue e sua equipe, além de certo número de
artistas romanos como Jacopo Torriti, compartilham com Giotto a
decoração dos primeiros afrescos do Antigo e do Novo Testamento
no registro superior das paredes laterais da nave. Também do ponto
de vista da formação de Giotto, esta passagem é quase didática, pois,
sem dúvida alguma, Giotto nasce da costela de Cimabue, seu mes-
tre e sua referência, que ele deve emular e superar, como já Dante
o afirmava. Mas de um ponto de vista mais recuado, mais atento
ao fenômeno da mudança histórica, o que se vê não é a rigor uma
passagem, e sim um salto, uma verdadeira mutação, talvez o único
momento em toda a história da arte ocidental em que o historia-
dor deva se resignar a falar em “emergência”, termo, como se sabe,
incompatível com o continuum temporal de que a história é feita.
Entender, para o historiador, consiste em tentar soldar o “novo” no
“velho”, isto é, mostrar como este prepara subterraneamente aquele,
de modo que o evento, no qual se manifesta enfim a mudança, perca
sua aparência de raio em céu aberto e seja, na medida do possí-
vel, percebido como “resultante” maior de um processo. A noção de
“emergência”, nascida no início do século XX, em oposição justa-
mente à de “resultante” e em um contexto intelectual distante da his-
tória — o da filosofia da mente —, aparece ou ao menos deveria apa-
recer para o historiador como uma noção insuficiente para enten-
der a mudança, o objeto por excelência do pensamento histórico.
Dizer que a mudança é uma emergência é explicar um termo por
seu sinônimo, é renunciar, portanto, a entendê-la, reabsorvendo-a

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no processo, no sistema que a gerou. E, todavia, estamos no caso de


Giotto, salvo melhor juízo, reduzidos a empregar a noção sintética
de emergência, vale dizer, a confessar os limites da análise histórica.
Para se dar conta do salto no novo em questão, é melhor sair
um momento de Assis e comparar, em Florença, o Crucifixo de
Cimabue em Santa Croce7 com o de Giotto em Santa Maria Novella,
obra na qual Giotto se exprime de modo mais individual (Fig. 50,
p. 475). Pouco importa quanto tempo se passou entre uma obra e outra.
Aproximadamente 16 anos, isto é, entre 1274 e 1290? Mas ainda
que fossem 20 ou mais, o tempo da simples maturação apenas não
pode explicar tal mutação. Giovanni Previtali, que em 1967 escre-
veu sobre o artista uma obra exemplar, sintetiza o problema em
uma frase: “Na Cruz de Santa Maria Novella, Giotto supera de um
salto a tradição iconográfica Giunta Pisano-Cimabue, que fazia do
Crucifixo uma espécie de símbolo heráldico da Paixão, e, pela pri-
meira vez na história, pinta um homem, um homem verdadeiro,
crucificado”8. De fato, é completamente outra a compreensão do
corpo humano, de suas proporções, de sua posição na cruz. Nada
mais do “S” bizantino e da dramaticidade titânica de Cimabue, mas
uma posição verossímil, condicionada pela lógica da anatomia sub-
metida à gravidade, um novo modelo do corpo na cruz, repetido
doravante nos milhares de Crucifixos e Crucificações pintadas ou
esculpidas na Itália até o século XVI. O corpo ganhou uma pele gra-
nulada de luz como a pele mesma, uma luz ambiental, silenciosa e
coerente, que incide diagonalmente, como de uma janela situada
no ângulo superior esquerdo da peça, e que modela o corpo em
um claro-escuro sutilmente construtivo. A cabeça pendida é vista
em três quartos e em escorço, o que deixa em pesada penumbra
a cavidade dos olhos e toda a parte exposta da face, envolvendo o

7  Cimabue, Crucifixo, têmpera sobre madeira, 488 x 390 cm, provavelmente


anterior a 1274, Florença, Museo dell’Opera de Santa Croce. Parcialmente dani-
ficado pela enchente do rio Arno de Florença em 1966.
8  Previtali, G. Giotto, Milão: Fratelli Fabbri, 1967, 2ª ed., 1974, p. 37.

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As Origens Mediterrâneas do Renascimento

semblante do Cristo em uma aura de recolhimento que remete pela


primeira vez na história da pintura moderna à esfera da interiori-
dade. Esta interioridade alcança seu ápice na intensidade do olhar
da Virgem, na compostura de suas mãos, no quase sorriso de dor de
seus lábios, nas curvas amplas das pregas de seu manto, majestoso
como uma clâmide imperial: um dos bustos femininos mais dignos,
delicados e tocantes da história da arte. Mais tarde, nos Crucifixos
de Rimini e de Pádua, Giotto desenvolverá equilíbrios diversos entre
a consciência do corpo como estrutura (Rimini) e como epiderme
em comércio com a luz (Pádua).
Mas tudo já está in nuce no Crucifixo de Santa Maria Novella.
Quando Giotto chega a Assis, já de posse dessa criação imensa, seu
domínio do corpo humano é total. Trata-se agora de pô-lo em ação
e é possível afirmar que quando o pintor entra em cena para pintar
as 28 cenas da vida do santo, dispostas ao longo do registro inferior
das paredes laterais e na fachada interna da igreja, é a pintura que
“entra em cena”, no sentido em que a totalidade da representação
pictórica se organiza segundo a economia dramática da narrativa
(Fig. 51, p. 475). Seja, por exemplo, uma cena particularmente povo-
ada como a da Criação do presépio de Greccio (Fig. 52, p. 476). O jogo
entre volumes e vazios, entre horizontais e verticais, entre a profun-
didade do espaço e a parede, tudo “quadra”, tudo — os figurantes,
o espaço e os objetos que o mobíliam — organiza-se em função do
drama em ato. Procuraríamos em vão nessa cena — incluído o epi-
sódio do Crucifixo inclinado “para trás” em prodigiosa perspectiva
—, que não tenha sua razão de ser no reforço da inteligibilidade
da ação. Nada edulcora, distrai ou “se esquece” dela. Ao invés de
dizer como S. João: “No princípio era o verbo”, Giotto diz, como
dirá Mefistófeles no final do Prólogo do Fausto: “No princípio era o
ato”. É o gesto, esse elemento visceralmente teatral, pelo qual o santo
depõe lenta e enternecidamente o menino na manjedoura, que doa
sentido a tudo. É por esse gesto que se cria a tensão dramática entre
espaço e tempo, entre a situação e seu desenlace, entre a estabilidade
plástica das formas e seu potencial dinâmico. Recorde-se, enfim,

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que se gesta nessa pintura uma ética construída na ação e não mais
na contemplação das Virtudes, instância prévia e superior a ela, o
que é essencialmente distintivo da ética moderna.
Deve-se sublinhar ainda, enfim, uma outra implicação do caráter
teatral da pintura de Giotto. Na segunda metade do século XIII, a
pintura medieval tinha a seu ativo um milênio de experiências de
representações de cenas do Antigo e do Novo Testamento. Nesses
anos, além disso, o teatro popular fixara um repertório de gestos
codificados e de imediata compreensão, decerto úteis para a repre-
sentação pictórica. De outro lado, os tropos e as sacras represen-
tações de algumas passagens do Evangelho e de alguns martírios,
tinha já então uma considerável tradição, igualmente proveitosa
para a pintura. Mas esse variado patrimônio de representações visu-
ais era insuficiente diante da nova tarefa que a devoção hagiográfica
requeria da pintura: comunicar visualmente conteúdos, significa-
dos e, sobretudo, eventos não ainda conhecidos de todos (como
eram os da Bíblia): as mil peripécias dos santos “velhos”, narradas
por Jacopo da Varazze na Legenda aurea (1270c.) e, problema ainda
maior, as vidas dos santos “novos”, como Francisco, Domingos,
Antônio, Pietro Mártir, etc. Um exemplo bem mais próximo de nós
— o desenvolvimento da narração cinematográfica, desde os “pri-
mitivos” como Lumière e Méliès até os grandes mestres do cinema
mudo, como Griffith, Eisenstein, Eric von Stroheim, Chaplin, etc.
— pode ser útil para entender algo do que estava em jogo na tarefa
de Giotto de criar 28 grandes cenas de 270 x 230 cm, destinadas a
um público não necessariamente letrado, que deviam contar, cada
uma delas, um fato preciso e facilmente inteligível, transmitindo
ao mesmo tempo, na série, uma síntese abrangente da vida e obra
do santo. Isto só seria possível se o texto fosse encenado a partir de
ingredientes da vida cotidiana e do imaginário comum a um público
imenso e heterogêneo de peregrinos que acorriam de toda a parte
para venerar as relíquias e a gesta de Francisco. Da forja de Giotto
deviam sair personagens com as quais esse público podia se iden-
tificar de modo ainda mais imediato e profundo, se possível fosse,

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As Origens Mediterrâneas do Renascimento

que com as personagens forjadas por Dante. Para fazê-lo era neces-
sário fundir em uma unidade indissociável a figura e seu espaço, de
tal modo que nada aqui fosse “abstrato” e que tudo fosse “educativo”
no sentido homérico do termo. Ao fazê-lo, Giotto criou o mito da
Itália moderna. Mais que isso, fez da pintura do Renascimento o
elemento por excelência no qual a sociedade italiana tematizou a si
própria, encenou seu “psicodrama”. A pintura de Giotto e de seus
“discípulos”, até Michelangelo, foi o teatro da Itália. Ela desempe-
nhou uma função equivalente à do teatro na Atenas de Péricles, na
Londres elizabetana, na Espanha de Calderón de la Barca, na Paris
de Corneille, Racine e Molière, na Weimar de Goethe e Schiller,
na Escandinávia de Ibsen e Strindberg, nos Estados Unidos, enfim,
de Hollywood. Não por acaso faltou na Itália do Renascimento e
mesmo do século XVII um dramaturgo à altura de sua incrível gale-
ria de gênios. Sua função de espelho e educador da sociedade fora
ocupada por Giotto.
Aos olhos do observador distante, os séculos adquirem, por uma
curiosa ilusão de ótica, certa fisionomia. É que desde Hesíodo, nos
primórdios do pensamento mítico, acostumamo-nos à ideia de
que há idades de ouro, de bronze e de ferro. Assim, ora os sécu-
los banham em auras de esplendor, como o “século de Péricles”,
o “século de Augusto”, o “século de Luís XIV”, ora suscitam ima-
gens sombrias, como o século III, que um historiador inglês, Eric
R. Dodds, considerava “Uma idade da angústia”, ou o século XIV:
“O Calamitoso Século XIV”, como o chamava em 1978 um livro de
Barbara W. Tuchman. Naturalmente, essas imagens lançam menos
luz sobre o passado, que sobre o modo como o historiador reage
ao seu próprio século: Voltaire cunhou a expressão “Século de Luís
XIV” para sublinhar a falta de grandeza que deplorava no seu, esse
século XVIII que, graças em parte a ele, chamamos o “século das
luzes”; Dodds aplicava ao século III uma expressão cunhada pelo
poeta W. H. Auden para se referir ao século XX, e o título do livro
de Tuchman era “Um espelho distante”, já que encontrava no “cala-
mitoso” século XIV uma imagem reflexa de nosso tempo.

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Luiz Marques

Sabemos que nem os séculos de ouro são feitos de uma só peça,


nem muito menos o são os de ferro e de angústia. Ocorre que
nossa memória histórica é feita não apenas de fatos, mas também
de mitos, emblemas e metáforas, que com os fatos se entrelaçam
por vezes de modo indissociável. O século XIV, por exemplo, foi
sempre considerado um exemplo peculiar desse amálgama entre
grandeza e miséria, pois dele se diz que foi grandíssimo em sua
primeira metade e que a segunda o precipitou em um abismo.
Que abismo houve, não há dúvida: poucos séculos conheceram tal
encadeamento de catástrofes, que se acumulam a partir dos anos
1330: invernos terríveis, resultados ao que parece de uma mini gla-
ciação, fome e carestia em decorrência da quebra de colheitas, a
Guerra dos Cem Anos entre a França e a Inglaterra a partir de
1337, com a consequente falência dos bancos florentinos, devas-
tações nas cidades e no campo, intensificação da exploração do
trabalho agrícola, etc. Sobre essa sociedade europeia desnutrida e
debilitada, a Peste Negra de 1347 a c.1351 abate-se com uma vio-
lência inaudita. Em apenas 4 ou 5 anos, ela ceifa apenas na Europa,
segundo estimativas variáveis, algo da ordem de 25 milhões de
pessoas, o que corresponderia naqueles anos à metade da popu-
lação daquele continente. Mesmo que essa cifra possa ser exage-
rada, impressiona a rapidez com que a morte age. Como escreve
Boccaccio, as pessoas “almoçavam com seus amigos e jantavam
com seus ancestrais no paraíso”. Passada a peste, outras intervêm,
a guerra continua, as devastações e a exploração ainda mais, tanto
no campo quanto na cidade, o que gera revoltas camponesas como
a Grande Jacquerie de 1358, e revoltas de trabalhadores urbanos
como a dos Ciompi em Florença em 1378. Tudo isso, é lógico,
não poderia não ter reflexos na cultura. Na literatura, o contraste
entre a primeira e a segunda metade do século XIV aparece com
nitidez inquestionável. Basta lembrar que os três demiurgos da
língua e da literatura italianas — Dante, Petrarca e Boccaccio —
escrevem o essencial de sua obra entre c. 1290 e 1351. Toda a obra
imane de Dante nasce entre c. 1290 e 1320; o Decameron é escrito

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As Origens Mediterrâneas do Renascimento

entre 1349 e 1351, quando Boccaccio já compusera outras obras


fundamentais de prosa e poesia. Coroado poeta no Capitólio em
1341, Petrarca desenvolvera em 1350 o essencial de sua obra. Seu
inacabado poema em hexâmetros latinos sobre a segunda guerra
púnica, Africa, fora iniciado em 1338 e nove de seus previstos
doze cantos já existiam em 1343. Também sua lírica, recolhida no
Canzoniere, recebe um ordenamento muito avançado entre 1347
e 1350. Apenas seu epistolário latino ocorrerá entre 1350 e 1364.
A Roma com que Petrarca sonha é muito diversa daquela pela
qual Dante aspira, ainda identificada com a monarquia universal,
enquanto para Petrarca ela é já ponto de partida de um programa
de restauração da grandeza itálica nos moldes do Império romano.
Se a esse ideário acrescentarmos o Genealogia deorum gentilium
de Boccaccio, primeira tentativa de restaurar a mitologia greco-
romana a partir das fontes, vemos como dos anos centrais do
século surge uma Roma que tem valor de ideia norteadora da poe-
sia, do saber e da ação política, a qual se exprimirá, na prática, com
a fascinante tentativa de Cola di Rienzo, em 1347, de restaurar por
uma espécie de golpe de estado as antigas instituições da República
romana, sagrando-se, ele próprio, Tribuno do Povo.
Além da magna tríade dos escritores toscanos, outros autores
notáveis pertencem à primeira metade do século. Não se deve esque-
cer que a versão toscana, dita “ótima”, dentre as diversas do Milione
de Marco Polo, obra-prima da narrativa fabulosa franco italiana, foi
composta antes de 1309 e que a Crônica de Dino Compagni, morto
em 1324, foi comparada (por De Sanctis) a Maquiavel. Na realidade,
os primeiros a cultuarem a superioridade da primeira metade do
século XIV foram os escritores da segunda, entre os quais se con-
tam os “narradores burgueses menores”, como os chama um grande
estudioso das letras italianas, Gianfranco Contini: Franco Sacchetti
(após 1330–1400c.), autor de uma série de novelas, lamenta a morte
de Petrarca e de Boccaccio em um verso que anula as pretensões
poéticas de seu autor: “Agora terminou toda a poesia e estão vazias
as casas do Parnaso” (Ora è mancata ogni poesia e Vote son le case

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Luiz Marques

di Parnaso); Antonio Pucci e Simone Prodenzani continuam e


diluem os modelos literários forjados no primeiro Trezentos. No
que se refere à primeira metade do século, as artes visuais guardam
analogias evidentes com a literatura, pois é nesse período que se
concentram algumas das mais inventivas personalidades artísticas
do século (e do Renascimento): Giotto, Duccio, Giovanni Pisano,
Simone Martini, Ambrogio e Pietro Lorenzetti. Além disso, esses
mestres absolutos são emulados por uma legião de pintores e escul-
tores esplêndidos: em Roma, Pietro Cavallini; na Toscana, Maso
di Banco (Fig. 53, p. 476), Puccio Capanna, Buffalmacco, os assim
chamados Mestre de Figline, Mestre de San Martino alla Palma,
Mestre dos Anjos Rebeldes, Mestre de San Torpè, Mestre do Codex
de San Giorgio, Bernardo Daddi, Francesco Traini; na Emília e na
Romagna, Vitale da Bologna, Giovanni e Pietro da Rimini. A lista
seria longa. Uma segunda analogia possível com a literatura é a
diversidade. É quase inacreditável que uma cultura figurativa tão
unitária como a do primeiro Trezentos toscano possa se exprimir
através de temperamentos artísticos tão absolutamente diferentes.
A dívida de Duccio (1255/60–1318–19) para com seu mestre floren-
tino, Cimabue (c. 1340–1302), é patente em suas obras juvenis, seja
na enorme Madona Rucellai de 1285 (Fig. 54, p. 476), seja na diminuta
Madona dos Franciscanos, de 1290c. (Fig. 55, p. 477). Se fosse conhe-
cida apenas por uma foto, jamais se imaginaria que esta última tem
apenas 24 x 17 cm, tal é majestade de sua arquitetura composi-
tiva. Sem renunciar, portanto, à monumentalidade de seu mestre,
Duccio procede por uma via própria e consegue modelar a Virgem
tão somente com uma linha de ouro puramente musical que bordeja
seu manto e a percorre como uma amável descarga elétrica. Da cos-
tela de Cimabue nasce assim uma poética completamente indepen-
dente. Ao longo do primeiro decênio do século XIV, Duccio renova
esse prodígio de assimilação e transfiguração estilística em relação
a Giotto. Em sua Maestà de 1308–1311 (Fig. 56, p. 477) para a Catedral
de Siena, a mais bela pintura sobre têmpera do século XIV, ele
obtém efeitos de clareza espacial e narrativa dignos de Giotto, tradu-

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As Origens Mediterrâneas do Renascimento

zindo-os porém em um cromatismo precioso e em uma linguagem


rica de reflexos arcaizantes, bizantinos e franceses, cujo charme é
exclusivamente seu. Imitando a audácia de Duccio, seus discípulos
maiores — Simone Martini, Ambrogio e Pietro Lorenzetti — desen-
volverão em sentidos diversos e igualmente independentes a lição
do mestre. Na Alegoria do Bom Governo (Fig. 57, p. 478), Ambrogio
Lorenzetti distende e amplia os espaços controlados de Giotto e de
Duccio, até obter o primeiro panorama da história da arte. Também
Simone Martini imita com perícia o espaço giottesco nos afrescos
da Vida de São Martinho, na Basílica inferior de Assis. Mas pode,
quando quer, simplesmente suprimi-lo. Para se compreender o sen-
tido dessa operação, é preciso retornar a Giotto. Em 25 de março
de 1305, consagra-se a Cappella dell’Arena, um dos espaços mais
famosos do Renascimento, que Giotto acabara de afrescar para o
banqueiro Enrico Scrovegni, com histórias da Virgem e de Jesus
Cristo, realizando sua obra mais ambiciosa. No Sonho de Joaquim,
por exemplo, (Fig. 58, p. 478) o espaço é como um campo magnético
no qual tudo se dispõe em função da figura de Joaquim, recolhido
em si mesmo como uma pirâmide de pedra. Tudo é atraído para o
vértice superior dessa forma densa, centro de gravidade ao mesmo
tempo da composição e da narrativa. O espaço de Giotto é contro-
lado e se concebe tão somente em função da narrativa, pacata e eco-
nômica como o é seu léxico — anjo, pastores, rochas, alguns ani-
mais e tufos de vegetação —, para que nada distraia o espectador da
percepção de uma única interação cênica: Joaquim adormecera aga-
chado e um anjo aparece-lhe em sonho. Em suma, não há espaço,
figura ou elemento decorativo independente da narrativa ou ante-
rior a ela, pois é ela que os cria com a única finalidade de se fazer
inteligível. Examine-se, agora, a Anunciação assinada e datada por
Simone Martini e seu cunhado, Lippo Memmi, em 1333, hoje nos
Uffizi (Fig. 59, p. 479). Aqui, o que comanda a composição é o recesso
da figura da Virgem ao receber o anúncio. Como Joaquim, a Virgem
se recolhe, mas ao invés de ganhar nessa contração a densidade da
rocha piramidal, ela perde seu corpo, transmuta-se em linha, abre

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Luiz Marques

no espaço uma concavidade, deixa a composição dispor-se à volta


de um vácuo. Além disso, o espaço não é uma circunstância (no
sentido próprio da expressão: o que está circundando), gerada pela
interação entre as figuras da Virgem e de Gabriel, como na cena
de Joaquim e o anjo. A Virgem não se insere nele; sua silhueta de
arabesco coloca-se superficialmente sobre esse espaço-luz que, por-
tanto, a precede na ordem do ser. Tudo o mais — figura e fundo
— confunde-se em vibrações diversas do ouro: o anjo, suas vestes,
sua capa esvoaçante (puro pretexto para outro arabesco), suas asas,
o vaso de lírios, o trono, mesmo as manchas do piso de mármore e,
sobretudo, a luz metafísica do espaço. É quase supérfluo insistir nas
conotações teológicas desse ouro, metáfora sensível da luz divina,
alheia em sua abstração a esse mundo de pedra de Giotto que quase
agride os sentidos. Proclo, pensador neoplatônico do século IV, afir-
mava que o espaço é a luz a mais sutil, e a essa ideia Simone Martini
presta aqui um dos mais fascinantes tributos da história das formas.
Estamos em 1333. Giotto, no zênite de sua glória em Florença,
torna-se o primeiro arquiteto da Catedral e dirige os trabalhos de
reconstrução da Ponte alla Carraia. Sua morte em 1337 contribuirá
para o surgimento de um giottismo “oficial”, de que os afrescos de
Orcagna, datados de 1357, de Giovanni del Biondo (ativo entre
1356 e 1398) e de Andrea di Buonaiuto, na igreja e no convento
dominicano de S. Maria Novella são bastante representativos. No
Cappelone degli Spagnuoli, os afrescos de Andrea (1367–1369c.) dão
mostra de grande complexidade e entretêm longamente o especta-
dor em um mundo de referências literárias e teológicas hauridas no
Specchio della vera penitenza do ex-prior dos dominicanos, Jacopo
Passavanti (morto em 1357). Mas poucos são seus momentos de
genuína poesia, ao menos para a sensibilidade contemporânea. De
modo que, se da pintura da segunda metade do século XIV tivessem
restado somente esses exemplos de giottismo “oficial”, poder-se-ia
dizer que o destino da pintura no segundo Trezentos não diferiria
substancialmente do declínio observado na esfera da literatura após
c. 1350.

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As Origens Mediterrâneas do Renascimento

Felizmente, esse esquema de um século XIV tão fecundo em sua


primeira metade quanto diminuído ou quase estéril na segunda não
funciona quando passamos da literatura para as artes visuais. Pois a
segunda metade do século XIV conheceu, também ela, muitos pin-
tores e escultores de belíssima poesia, como Giovanni da Milano,
Antonio Veneziano, Giottino, Nino Pisano, Spinello Aretino, Giusto
di Menabuoi, Altichiero, Tommaso da Modena e muitos outros.
Quando um inigualável escritor e historiador da arte de nosso pas-
sado recente, Roberto Longhi, chamou o século XIV de o Século
de Ouro da arte italiana, ele incluía nele, com razão, também esses
nomes mais tardios. É verdade que a peste, ao suprimir fisicamente
muitos artistas, criou uma grande descontinuidade entre as gera-
ções. É verdade também que, ao potenciar as catástrofes climáti-
cas, agrícolas, econômicas e políticas anteriores, a peste acabou por
favorecer um sentimento de culpa, uma reação ao clima de abertura
laica dos anos de Giotto, um ambiente mais contrito e penitencial,
em suma, uma tendência regressiva em relação às grandes conquis-
tas da primeira metade do século.
Não se trata aqui de retomar o velho debate suscitado por um livro
de Millard Meiss (1951) acerca do impacto da peste sobre a pintura
toscana. À distância de anos, as posições em confronto parecem
menos antagônicas. Luciano Bellosi (1974) tinha razão em insistir
que as tendências em direção a um giottismo “oficial” delineiam-
se já antes da peste; e Meiss estava certo em retrucar que a peste
havia tornado manifestas tendências ainda em gestação9. Resta o
fato que, superada a fase mais aguda da crise em meados do século,
e em que pesem novos surtos da peste nos decênios sucessivos, a
arte europeia recupera rapidamente um nível notável de grandeza e
uma nova capacidade de intercâmbio cultural.

9  M. Meiss, Painting in Florence and Siena after the Black Death, Princeton
University Press, 1951; L. Bellosi, Buffalmacco e il Trionfo della Morte. Turim:
Einaudi, 1974.

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Luiz Marques

Entre finais do século XIII e a primeira metade do século XIV,


artistas florentinos e sobretudo Giotto haviam exportado sua arte
para diversos centros da Itália, meridional, central e setentrional:
Giotto e seus discípulos fazem estadas em Roma, Rimini, Pádua,
Nápoles e Milão. De outro lado, artistas toscanos como Duccio,
o Mestre do Codex de S. Giorgio e Simone Martini, entre outros,
haviam filtrado a arte francesa, enxertando-a no tronco da arte
toscana. Mas agora o diálogo entre Florença e a Itália setentrio-
nal, receptora do gótico europeu, aparece de modo mais sonoro e
explícito. O florentino Giusto di Menabuoi vai à Pádua afrescar o
Batistério do Santo, enquanto Antonio Veneziano e Giovanni da
Milano instalam-se em Florença. Giovanni da Milano é o mais notá-
vel exemplo dessa via de duplo sentido: formado em Milão prova-
velmente em contato com um giottismo difuso, ele já está radicado
em Florença desde 1346, liderando uma reinterpretação profunda
da cultura da primeira pela da segunda metade do século, sob o
signo de uma nova síntese entre a Lombardia e Toscana. Na cena
de Jesus Cristo na casa de Marta, na Capela Rinuccini da sacristia
de Santa Croce (1363–1366), o espaço é inverossímil, pois os nim-
bos roçam o teto, a perspectiva mais sumária, as fisionomias mais
uniformes, as formas mais alongadas, os gestos menos dramáticos e
mais coreográficos, as cores claras têm dominâncias até então des-
conhecidas, mas, sobretudo, o claro-escuro não serve mais apenas
para modelar: ele ganha valores propriamente epidérmicos, fato
que se revela tanto mais em suas obras à têmpera, como na Pietà
de tipo nórdico que ele assina em 1365 (Fig. 60, p. 479), onde o micro
trabalho do pincel sobre a pele requer a visão aproximada e se man-
tém definitivamente inacessível às lentes do fotógrafo. Giovanni da
Milano consegue recobrir as superfícies monumentais da tradição
toscana com uma penugem que só o pincel do iluminador nórdico
de pergaminhos pode almejar.
Estamos às portas de um diálogo fecundo entre o norte e o sul
em escala italiana e europeia, diálogo que avança pelo século XV e
que um grande historiador francês do século XIX, Louis Courajod,

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As Origens Mediterrâneas do Renascimento

batizará com o belo nome de Gótico internacional. Entende-se


em geral por Gótico internacional a cultura figurativa das cortes
europeias que floresce aproximadamente entre 1380 e 1440, carac-
terizada por um forte senso do ornamental, pelas formas sinuosas,
pelas cores preciosas e por materiais suntuosos. Pode-se dizer que
suas formas mais típicas desenvolvem-se na França e no ducado
da Borgonha, respectivamente sob os governos do rei Carlos VI
(1368–1422) e dos dois primeiros duques da Borgonha (1361–
1419), a partir dos quais emerge um dos mais sofisticados modelos
das cortes europeias do Renascimento.
É preciso ter presentes dois elementos ao se concluir este ensaio
sobre os primórdios do Renascimento. Em primeiro lugar, ainda
que o Gótico internacional ou Arte de corte, como se o chama
na Alemanha (höfische Kunst), tenha deixado obras excepcionais
nos domínios da ourivesaria, do esmalte, da arte têxtil, da ilumi-
nura e da tapeçaria, ele produziu também uma arte monumen-
tal e escultores de gênio, acima de todos, Claus Sluter (morto
em c.  1406), expressão máxima da escultura da Borgonha. Em
segundo lugar, é preciso afastar de vez o contraposto simplista de
que o Renascimento florentino dos anos 1400–1425 é uma arte
“progressista” que se insurge contra o Gótico internacional, “con-
servador”. O Renascimento não se afirma em Florença como uma
simples reação ao Gótico internacional. Ele resulta de uma cons-
ciência profunda das possibilidades de se contrapor, mas também
de se combinar essas duas tradições, a de Giotto e a do gótico
de matriz francesa. Essa contraposição aparece de modo emble-
mático em 1401 nos dois modelos de Brunelleschi e de Ghiberti
que disputam a encomenda das novas portas do Batistério. Ela
aparece sob um aspecto plenamente complementar entre 1406 e
1408, quando Jacopo della Quercia coloca à volta da tumba de
Ilaria del Carretto, concebida segundo o modelo gótico francês,
gênios e guirlandas de um classicismo e de uma potência plástica
que, como bem notou Longhi, anunciam Michelangelo (Fig. 63,
p. 481). Ela aparece ainda entre 1408 e 1415, no confronto mais sutil

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Luiz Marques

entre os quatro grandes Evangelistas para a fachada da Catedral de


Florença, esculpidos por dois representantes florentinos do “gótico
internacional” — Niccolò Lamberti e Barnardo Ciuffagni — e por
dois escultores que retomam a exigência giottesca de estabilidade
formal e se medem com uma certa ideia da escultura monumen-
tal romana: Nanni di Banco e Donatello. Ela aparece enfim, entre
1424 e 1428, na Capela Brancacci, palco da mais complexa das
colaborações do primeiro Renascimento, entre Masolino (Fig. 61,
p. 480) e Masaccio (Fig. 62, p. 480), máximos representantes dessas tra-
dições pictóricas. As formas concretas e os desenvolvimentos que
tais confrontos e combinações assumirão ao longo do século XV
extravasa, contudo, os limites deste ensaio.

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Dürer e a Antiguidade Italiana:
Reflexões sobre as relações entre
Warburg e Winckelmann
Claudia Valladão de Mattos

E
m sua biografia de Aby Warburg (1864–1929), Ernst Gombrich
começa com uma viva descrição da inquietude intelectual de
seu mestre: “Era uma característica da mente e do método de
Warburg trabalhar com um número restrito de motivos e elemen-
tos, mas testando-os eternamente em novas permutações e combi-
nações. Um pequeno movimento do caleidoscópio leva a um novo
padrão. De fato, se o leitor persistir em sua leitura, ele descobrirá
que não há nada mais impressionante na obra de Warburg do que
essa busca incessante, nascida de uma profunda insatisfação com as
interpretações tradicionais do Renascimento que ele havia herdado
e absorvido parcialmente durante seus anos de estudo. Por vezes, tal
insatisfação, tal necessidade de re-embaralhar e rearranjar os ele-
mentos da imagem obtida, tem um efeito quase paralisante sobre
Warburg. A imagem se recusa a estabilizar-se.”1
Hoje, com maior distância histórica, podemos dizer que essa
resistência à organização dos fatos em um sistema teórico está-
vel é um dos elementos que garante a atualidade dos escritos de
Warburg. O presente artigo procurará acompanhar alguns aspectos
desses movimentos inerentes ao pensamento warburguiano, atra-

1  Gombrich, Ernst. Aby Warburg. An Intellectual Biography, Chicago:


Chicago University Press, 2ª ed., 1986, p. 6.

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Claudia Valladão de Mattos

vés da análise de seu enfrentamento sistemático do modelo teórico


de Winckelmann no que diz respeito à antiguidade clássica e sua
importância para a estruturação do ambiente intelectual e artís-
tico do primeiro Renascimento italiano.2 Ao longo de nossa expo-
sição, ficará evidente que Warburg rejeita inicialmente o modelo
winckelmanniano, contrapondo-o diretamente à sua teoria da “fór-
mula do pathos”3, mas que, com o tempo, ocorre um movimento
de incorporação crítica de alguns dos postulados daquele autor a
seu arcabouço teórico. Nesse contexto, ganham especial relevância
as pesquisas de Warburg sobre Albrecht Dürer, publicadas em um
artigo de 1905 sobre o artista e traduzido pela primeira vez para
o português nesta edição. Veremos que a partir do momento em
que Warburg se volta para pensar as relações entre o surgimento
do Renascimento no norte e no sul da Europa — e nesse processo a
figura de Dürer é central —, ele retoma o modelo de Winckelmann,
para construir uma nova visão da circulação da tradição clássica
através do continente europeu.

2  Johann Joachim Winckelmann (1717–1768), principal teórico do Neo­


classicismo, escreveu dois livros fundamentais sobre as artes na antiguidade
que se tornaram referências centrais para os estudos da tradição clássica até ao
menos o século XIX. Cf. Winckelmann, Gedanken über die Nachahmung der
Griechischen Wercke in der Mahlerey und Bildhauer-Kunst. In: Gottfied Boehm e
Norbert Miller (org.), Bibliothek der Kunstliteratur - Frühklassizismus, Frankfurt
a. M.: Deutsche Klassik Verlag, 1995 (com tradução parcial para o português
em: Winckelmann, Reflexões sobre a Arte Antiga, Porto Alegre: Movimento,
1993, trad. Herbert Caro e Leonardo Tochtrop), e Winckelmann, Geschichte
der Kunst des Altertums, Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1993
(Winckelmann, História da Arte na Antiguidade, ainda sem tradução para o
português).
3  Aby Warburg menciona pela primeira vez o conceito de Pathosformel (fór-
mula do pathos) em seu texto sobre Albercht Dürer, traduzido neste volume.
Trata-se de estruturas formais transmissoras de conteúdos emocionais, capa-
zes de circular entre culturas distintas, através dos tempos. Warburg utiliza o
conceito para explicar aspectos da transmissão da herança clássica na cultura
do Renascimento italiano.

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Dürer e a Antiguidade Italiana

O exame do corpus de textos produzidos por Aby Warburg ao


longo de sua vida deixa evidente que um de seus principais obje-
tivos era propor uma nova visão, mais complexa e mais dinâmica,
do fenômeno que conhecemos pelo nome de Renascimento. Seu
profundo interesse pelo período ultrapassava em muito a obstina-
ção do historiador da arte, que busca desenvolver teorias capazes de
explicar a produção artística de um dado momento. Para Warburg,
o Renascimento configurava-se, acima de tudo, como um campo
privilegiado de estudo da psicologia humana, das transformações
nas formas de relação do homem com o mundo e a investigação
da importância das imagens nesse processo. De acordo com Ernst
Gombrich4, ele via no processo de retorno à antiguidade clássica, ou,
dito de outra forma, no processo de estetização da arte, que ocorreu
mais acentuadamente a partir do século XV, um importante sintoma
da superação da relação mágica que o homem mantinha com a rea-
lidade. O Renascimento como um todo era para Warburg um labo-
ratório de estudos sobre o processo de emergência da racionalidade
moderna a partir de uma visão mágica de mundo, no qual a recep-
ção da Antiguidade era compreendida como principal força motriz.5

4  Gombrich, op.cit.
5  Tal visão deriva de sua teoria do símbolo. Em seu texto sobre “Arte Italiana
e Astrologia Internacional no Palazzo Schifanoia em Ferrara” (1912), Warburg
demonstra como a necessidade de orientação e controle da natureza configura-
se como força motriz no processo de construção do símbolo. Em um primeiro
momento, animais e figuras humanas são projetados no céu como forma de aju-
dar na orientação e “domesticação” do desconhecido, porém, com o tempo, tais
figuras tendem a se tornar, elas mesmas, reais, passando a exercer efeito sobre
os homens. Para Warburg, tal era a estrutura básica do pensamento mágico,
que deu origem, por exemplo, à astrologia. Nesse sistema, os deuses antigos
eram imbuídos de determinados poderes sobre os homens, exercendo sua influ-
ência através dos astros. Quando, no Renascimento, os deuses voltam à sua
morada no Olimpo, sendo admirados por sua beleza (e não mais temidos por
seu poder), ocorreu um processo libertador de racionalização. Este processo
para Warburg, no entanto, não é marcado por um evolucionismo. A possibi-
lidade de emergência da forma de pensamento mágico ameaça até mesmo o
homem contemporâneo, como é discutido pelo autor nos parágrafos finais de

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Claudia Valladão de Mattos

A construção da “fórmula do pathos” contra Winckelmann

Evidentemente que tal perspectiva renovada do Renascimento


europeu construía-se a partir da rejeição de modelos anteriores e
ainda na época de Warburg, o grande quadro do Renascimento,
principalmente no que tangia sua relação com o Antigo, era mar-
cado pelo modelo proposto por Winckelmann no século XVIII.6 De
acordo com tal modelo, os antigos tinham atingido a perfeição na
representação da figura humana, por gozarem, na Grécia, de condi-
ções (climáticas e políticas) das mais favoráveis para a emergência de
uma sociedade perfeita, da qual a arte era fruto direto. Tal perfeição
era expressa na fórmula moralmente forte da “nobre simplicidade
e grandeza quieta”, desenvolvida por Winckelmann em sua análise
das esculturas do Cortile do Belvedere, especialmente do grupo do
Laocoonte. De acordo com essa teoria, a grandeza moral dos gregos,
refletida na beleza de sua arte, expressava-se em sua capacidade de
autocontrole emocional. Ainda que na célebre escultura, o sacer-
dote Laocoonte estivesse submetido a intensa dor, provocada pela
picada da serpente que o atacara, ele não se entregava a esta dor,
mas, de acordo com Winckelmann, contraía toda sua musculatura,
transformando o grito de dor em um gemido.7

seu texto sobre “O Ritual da Serpente”. Cf. Warburg, Aby. Schlangenritual.


Ein Reisebericht, Berlim: Verlag Klaus Wagenbach, 1995.
6  O próprio Warburg, em diversas ocasiões, contrapõe seu modelo ao de
Wincklemann. Esta contraposição encontra-se já em seu texto sobre Botticelli
e reaparece, por exemplo, no texto sobre Dürer, em uma passagem em que ele
critica o conceito de “Grandeza quieta” do autor: “Devido à ainda influente
doutrina clássica e unilateral da ‘Grandeza quieta’ na Antiguidade, que se desvia
de uma observação profunda do material (…)”.
7  A célebre descrição que Winckelmann faz do Laocoonte será contestada
por Lessing alguns anos mais tarde, que partirá de uma nova interpretação do
“grito” contido do sacerdote para desenvolver sua teoria das diferenças entre as
diversas mídias. Cf. G.E. Lessing, Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da
poesia, São Paulo: Iluminuras, 1998, trad. Márcio Seligmann-Silva.

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Dürer e a Antiguidade Italiana

A ausência quase total de exemplos de pintura Antiga levou


Winckelmann a propor uma teoria da pintura na Antiguidade igual-
mente calcada nos princípios da escultura.8 A grandeza dos artis-
tas do Renascimento é explicada por Winckelmann pela retomada
da Antiguidade clássica e os seus juízos sobre artistas modernos,
que encontramos nas páginas do Gedanken über die Nachahmung
(Reflexões sobre a Arte Antiga, 1755), estão pautados nesse único cri-
tério de emulação dos antigos. Rafael, por exemplo, é considerado
um grande artista, por ter compreendido a lei da “nobre simplici-
dade e grandeza quieta”. Sua Madonna Sistina (Museu de Dresden),
foi, no livro, elevada à obra prima, por revelar uma calma dignidade:
“Vede a Virgem, com o rosto a expressar toda a inocência e ao mesmo
tempo uma grandeza mais do que feminina, numa atitude que revela
uma calma feliz, aquela tranquilidade que os antigos fizeram pre-
dominar nas imagens das suas divindades. Como é grande e nobre
todo seu contorno!”9 Da mesma forma, o São Miguel de Guido Reni
foi valorizado por Winckelmann por sua placidez: “Como são raros
os conhecedores que ante o São Miguel de Guido Reni, na igreja
dos Capuchinhos de Roma, são capazes de descobrir a grandeza da
expressão que o artista deu ao seu arcanjo! Há quem declare supe-
rior a ele o São Miguel de Conca, por exprimir na sua fisionomia a
ira e a vingança, ao invés de planar com o rosto sossegado e sereno
acima do inimigo de Deus e dos homens que acaba de abater.”10

8  Podemos ler no Gedanken: “Todos os elogios que se podem fazer às obras


da escultura helênica deveriam provavelmente ser feitos também às pin-
turas dos gregos. Mas o tempo e a fúria dos homens privou-nos dos meios
que nos permitiriam formular a esse respeito uma opinião irrefutável.” Cf
Winckelmann, Reflexões sobre Arte Antiga, op.cit., 63. Winckelmann con-
siderava as pinturas encontradas em Herculano e Pompeia, exemplos da arte
do período de “decadência” romana.
9  Idem, p. 56
10  Idem, ibidem.

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Claudia Valladão de Mattos

A valorização da imobilidade foi a grande herança de


Win­ckelmann ao Neoclassicismo11, e esta mesma compreensão
da tradição clássica ainda prevalecia no tempo de Aby Warburg.
Warburg, por sua vez, desde muito cedo e sob o impacto da leitura
de Nietzsche, desenvolvera uma visão mais dialética do legado
antigo, que comportava aspectos “apolíneos” e “dionisíacos”. À dife-
rença de Nietzsche, no entanto, para quem o campo das artes plás-
ticas como um todo pertencia ao “reinado de Apolo”12, Warburg
atribuía às imagens clássicas uma dupla origem, subdividindo-as
em um “ethos apolíneo” e um “pathos dionisíaco”. A descrição da
cultura antiga como marcada por essa dupla força recebeu sua for-
mulação lapidar em um texto intitulado “O ingresso do estilo ideal
antiquizante na pintura do primeiro Renascimento”, escrito em
1914: “Os estudos sobre as religiões da antiguidade greco-romana
nos ensinam sempre a observar a antiguidade cada vez mais sob o
símbolo de uma herma bifronte de Apolo e Dionísio. O ethos apo-
líneo germina juntamente com o pathos dionisíaco, quase como
um duplo ramo de um mesmo tronco enraizado na misteriosa
profundidade da terra materna da Grécia.”13

11  O historiador da arte alemão Werner Busch analisará as obras de Jacques


Louis David, por exemplo, a partir desse princípio de paralisação do herói,
constituinte de sua obra (pensemos nos grandes quadros históricos de David,
tais como seu “Brutus”, as “Sabinas”, ou o “Leônidas”). Cf. Busch, Werner. Das
Sentimentalische Bild. Die Krise der Kunst im 18. Jahrhundert und die Geburt der
Moderne, Munique: Beck, 1993.
12  Em seu texto “Ethos und Pathos, Morphologie und Funktion”, apresentado
por ocasião da inauguração da Warburg Haus em Hamburg em 1996, Salvatore
Settis chama a atenção para as importantes diferenças entre os conceitos de
apolíneo e dionisíaco em Warburg e Nietzsche e para o uso particular que
Warburg faz dos termos gregos “ethos” e “pathos”. Cf. Settis. In: Vorträge aus
dem Warburg-Haus, vol. 1, 1997, pp. 31–73. Aqui, p. 34.
13  Warburg, “L’ingresso dello stile anticheggiante nella pittura del primo
Rinascimento”. In: Gertrud Bing (org.), Aby Warburg La rinascita del paganismo
antico, Florença: La Nuova Italia, 1987, p. 307.

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Dürer e a Antiguidade Italiana

Porém, de acordo com Gombrich14, tal compreensão da cultura


antiga já estava bem estabelecida para Warburg durante o período de
suas pesquisas para a elaboração de seu doutorado sobre Botticelli,
defendido em 1893. O problema que interessava a Warburg então era
o da recepção da Antiguidade na cultura do Renascimento italiano
e sua tese visava demonstrar que, ainda que a Antiguidade clássica
possuísse uma dupla vertente “apolínea” e “dionisíaca”, como des-
crito acima, no século XV era justamente o “pathos dionisíaco” dos
antigos que seria interpretado pelos italianos como o elemento clás-
sico por excelência, e não a contrapartida apolínea, tão valorizada
pela tradição, desde Winckelmann. Warburg demonstra seu ponto
de vista enfatizando a importância da recepção da imagem clássica
da Ninfa, com seu movimento de cabelos e vestes, nas figuras femi-
ninas de Botticelli (Fig. 64, p. 481), que por sua vez incorporara o tema
presente nas poesias de Poliziano. De acordo com Warburg, a intro-
dução desse elemento correspondia a uma libertação dos padrões
tradicionais impostos pela cultura medieval e era identificado com
o sentimento clássico dos humanistas que pertenciam ao círculo dos
Medici. Em uma passagem de sua tese sobre Botticelli ele escreveria,
por exemplo: “Se a ‘influência da Antiguidade’ levou aqui a uma
repetição impensada de motivos superficiais de movimento intensi-
ficado, a culpa não se encontra na Antiguidade, cujas criações afinal
demonstram — desde Winckelmann — ter fornecido modelos con-
trastantes e igualmente convincentes de ‘grandeza quieta’; mas antes
na falta de moderação por parte dos artistas. Botticelli foi já um
desses artistas por demais flexíveis.”15 Anos mais tarde, esta mesma
ideia seria retomada através do exemplo da reação dos humanistas
florentinos por ocasião da descoberta de um pequeno grupo repre-
sentando o Laocoonte e seus filhos, encontrado em 1488, portanto,

14  Gombrich, op.cit.


15  Warburg, “Sandro Botticellis “Geburt der Venus” und Frühling”. In: Dieter
Wuttke (org.) Aby M. Warburg Ausgewählte Schriften und Würdigungen, Baden-
Baden: Verlag Valentin Koerner, 1992, p. 63.

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Claudia Valladão de Mattos

quase duas décadas antes da escavação do célebre grupo, em 1506,


hoje exposto no Vaticano. Diz Warburg: “Mas para afirmar que
uma concepção do mundo antigo diametralmente oposta àquela de
Winckelmann, correspondia realmente ao espírito do Quattrocento,
consintam-me de valer-me do testemunho de Luigi Lotti, o qual,
juntamente com Giovanni Tornabuoni procurava coisas antigas
em Roma a mando dos Medici. Ele teve a sorte, durante escavações
noturnas em uma vinícola do Cardeal della Rovere, de encontrar
em 1488 uma pequena réplica do grupo do Laocoonte. O conteúdo
mitológico não lhe parecia claro e lhe era indiferente. Sua admi-
ração entusiástica se voltava ao pathos da forma: ‘e encontrou três
belos pequenos sátiros sobre uma pequena base de mármore, os
três juntos entrelaçados por uma grande serpente, os quais, ao meu
ver são muito belos, e tais que, excluindo o ouvir o som de suas
vozes (entre outras coisas), parecem respirar, gritar e se expressar
com certos gestos admiráveis: aquele do meio se vê quase caindo e
agonizando’.”16
A descrição da “fórmula do pathos” como elemento central na
recepção da Antiguidade pelos italianos no século XV ajudou a
transformar profundamente a visão da cultura renascentista na
Itália. A tese de doutorado sobre Botticelli transformou-se no ponto
de partida para uma série de outras investigações de Warburg, que
visavam confirmar sua intuição sobre o papel que aquela estranha
aparição vaporosa exercia na construção da cultura do primeiro
Renascimento italiano. Nesse contexto, Warburg volta-se para
a análise da presença da estranha figura da serviçal que invade
abruptamente a cena solene do nascimento de São João Batista,
pintado por Ghirlandaio na capela dos Tornabuoni na igreja de
Santa Maria Novella em Florença (Fig. 65, p. 481). À diferença de suas
análises anteriores de Botticelli, que se concentravam na descri-
ção do movimento dos acessórios das figuras representadas pelo

16  Warburg, “L’ingresso dello stile anticheggiante nella pittura del primo
Rinascimento”, op.cit., p.306.

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Dürer e a Antiguidade Italiana

artista, Warburg centra agora seus interesses na expressão visual


do conflito entre dois modos distintos de representação: o modo
quase icônico das figuras centrais do painel e o modo marcado pelo
movimento vivaz da figura da serviçal. De acordo com Gombrich,
Warburg “compreende o afresco [de Ghilandaio] em termos de um
conflito entre um ‘desejo elementar de vida’ e o ‘rígido fanatismo’
de um medievalismo monástico.”17

A recepção da antiguidade no norte europeu

Esse tipo de investigação interessava particularmente Warburg,


pois fornecia respostas não apenas para os enigmas postos pelas ima-
gens investigadas, mas também apontava para aspectos de uma psi-
cologia da imagem que, como já afirmamos, inquietavam o autor. A
ideia de que o Renascimento italiano poderia ser compreendido na
chave de um conflito entre duas visões de mundo tornou-se a força
motriz das futuras investigações de Warburg. Seu texto sobre “A arte
de Flandres e o primeiro Renascimento florentino”, publicado em
1902, é um dos frutos dessas investigações. Depois de anos de pes-
quisa, Warburg demonstra, ao contrário do que era consenso em sua
época, que a corte dos Medici em Florença era grande admiradora
e cliente dos artistas do norte da Europa. A produção de artefatos
nórdicos, como tapeçarias e objetos decorativos, era extremamente
valorizada na Itália e representava, até certo ponto, a continuidade
do “realismo gótico” no interior da cultura italiana. Em passagem
de um texto não publicado sobre o assunto, Warburg afirmaria, por
exemplo: “Os produtos da arte do Norte (…) devem ser entendi-
dos e aceitos como forças que tiveram uma participação orgânica
na formação do estilo do período, pois o primeiro Renascimento
florentino teve de se defrontar com eles como com um oponente
que não deve ser desprezado e que exige respeito. Pois ela [a arte do

17  Gombrich, op.cit., p.113–114.

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Claudia Valladão de Mattos

Norte], em última instância, só pode ser desbancada de uma posi-


ção de estrangeira privilegiada através da evocação de um passado
mais elevado. (…) O investimento energético em direção à grande
maneira all’antica só pode ser explicada como uma resposta ao rea-
lismo do Flandres e, portanto, é uma testemunha clara de sua pode-
rosa influência sobre o estilo.” E Warburg conclui orgulhosamente:
“Ter percebido a necessidade de tal sinopse (que à primeira vista
pode parecer arbitrária) considero, após longo auto-exame, ter sido
o resultado mais significativo dos meus anos de aprendizagem em
pesquisa. Um resultado que se impôs apenas muito lentamente.”18 É
importante comentar que outros estudos de Warburg, como “Sobre
‘Imprese Amorose’ nas mais antigas gravuras florentinas” (1905),
entre outros, apontavam para a herança clássica inerente à produção
gótica do norte. Essas investigações desembocaram, com o tempo,
em um dos seus campos mais férteis de pesquisa, a Astrologia, resul-
tando em textos hoje clássicos, como o seu artigo sobre os afrescos
do Palazzo Schifanoia em Ferrara (1912–22)19.
Os estudos de Warburg sobre o conflito entre “realismo gótico” e
retomada da retórica clássica no contexto da cultura do Quattrocento
florentino foram, aos poucos, sendo traduzidos como um conflito
entre duas tradições clássicas concorrentes. Uma oriunda da recep-
ção mais intensa do “ethos apolíneo” (no norte) e outra, tipicamente
italiana, construída através da retomada de elementos do “pathos
dionisíaco”. Essa polarização entre ethos e pathos, entre norte e
sul, aparece claramente em notas para uma análise da Adoração

18  Warburg, notas para o texto “Weltliche Kunst aus Flandern in Mediceischen
Florenz” (1904). In: Gombrich, op.cit., p.161–62.
19  Warburg, “Italienische Kunst und internationale Astrologie im Palazzo
Schifanoja zu Ferrara”. In: Wuttke (org.), op.cit. Uma das passagens do texto
deixa clara a herança clássica no norte: “Um estudo detalhado da ilustração
de temas pagãos nos livros impressos no Norte mostrou, através de uma com-
paração entre texto e imagem, que a aparência anti-clássica exterior, que nos
incomoda tanto, não deveria desviar nossa atenção do ponto principal, ou
seja, a séria intenção de tornar a antiguidade clássica visível com uma fideli-
dade quase literal.” p.173.

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Dürer e a Antiguidade Italiana

de Ghirlandaio, na igreja de Santa Trinità em Florença. Refletindo


sobre a visível utilização que Ghirlandaio faz da “Adoração dos
Pastores” de Hugo van der Goes, hoje no museu dos Uffizi em
Florença, ele concluiria que o artista lançou mão de diferentes tra-
dições, conforme o objetivo de expressão de “estados mentais ou
físicos intensificados”. Para os estados “mentais” ele recorria à tra-
dição do norte, enquanto que para estados de movimento físico,
ele recorria à “fórmula do pathos”. Warburg teria acrescentado o
seguinte esquema à sua nota:

“Necessidade de intensificação = O extremo da expressão


fisionômica, no momento de maior excitação: pathos ou da
mais profunda contemplação: ethos”.20

A retomada do modelo de Winckelmann


e o artigo sobre Dürer

Curiosamente, podemos observar no processo de polarização


do legado clássico em uma vertente “patética” e outra “contempla-
tiva”, a ocorrência de uma reintrodução (deslocada) do modelo
winckelmanniano da “grandeza quieta” no sistema teórico de Aby
Warburg. A identificação que Warburg realiza entre ethos, cultura
do Norte (van der Goes) e ausência de movimento, merece ser inves-
tigada e nesse contexto o artigo de Aby Warburg sobre Albrecht
Dürer, publicado em 1905 e aqui traduzido para o português, ocupa
uma posição estratégica.
O objeto de investigação do texto são duas imagens representando
a “Morte de Orfeu”: um desenho de Dürer, datado de 1494 (Fig. 66,
p. 481) e uma gravura do círculo de Mantegna, que serviu de modelo
para a primeira obra. Já no primeiro parágrafo, Warburg esclarece
seu interesse por esses objetos: “(…) elas revelam uma influência

20  Os textos estão todos citados em Gombrich, op.cit., pp. 178–179.

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Claudia Valladão de Mattos

dupla21, mas ainda não percebida, do Antigo sobre o desenvolvi-


mento do estilo do primeiro Renascimento.” A dupla influência do
Antigo só pode ser entendida como confluência da tradição clássica
do norte com a tradição clássica do sul, na figura de Dürer. Veremos
que a conclusão do texto confirmará esta hipótese. Warburg segue
esclarecendo a vinculação direta da gravura anônima com mode-
los clássicos: “pois a composição remonta sem a menor dúvida a
uma obra antiga perdida (…)” e enfatiza que nesta e em outras
obras dos círculos de Florença e Mântua “a linguagem facial tipica-
mente patética da arte antiga, característica das mesmas cenas trá-
gicas na Grécia, intervém (…) construindo o estilo de forma não
mediada.” Em seguida, ele evoca as obras de Mantegna e Pollaiuolo,
como importantes modelos para Dürer, que entre 1494 e 1495 pro-
duz obras “cheias de pathos”, acatando “a primazia dos antigos na
representação da vida através de uma mímica exaltada.” Porém, de
acordo com Warburg, a constituição nórdica de Dürer impediu-o
de seguir adiante por esse caminho e “ele de fato opôs à vivacidade
pagã do sul, a resistência instintiva de uma serenidade típica de sua
Nüremberg nativa, o que dá às suas figuras de gesticulações antiqui-
zantes, como um sobre-tom de tranquila força de resistência.”
A seguir encontramos no texto uma passagem fundamental, pois
foi essa “disposição nórdica”, por assim dizer, que guiou Dürer na
recepção do aspecto apolíneo do antigo, que ele encontrou também
na Itália, mas que era pouco valorizado pelos próprios italianos:
“Mas igualmente através da mediação italiana, a Antiguidade veio
ampará-lo, não apenas incitada pelo dionisíaco, mas também clari-
ficada pelo apolíneo: o Apolo Belvedere pairava diante de seus olhos
quando ele buscava a proporção ideal do corpo humano e ele com-
parava a natureza verdadeira às proporções de Vitrúvio. (…) Ele
não encontrava mais nenhum prazer naquele maneirismo de movi-
mento barroco antigo” e em consequência, sua obra, totalmente
baseada no repertório clássico, terminou rejeitada pelos italianos

21  Grifo nosso.

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Dürer e a Antiguidade Italiana

que só compreendiam o Antigo na chave da fórmula do pathos:


“Quando esteve em Veneza em 1506, os italianos não consideraram
sua obra ‘na maneira antiga’, sendo ‘ruim’ por esse motivo.”
Nesse texto, Dürer adquire as feições de um artista completo, que
foi capaz de compreender o caráter duplo (apolíneo e dionisíaco)
do legado antigo. Porém, ele só atinge esse equilíbrio por sua posi-
ção excepcional de artista postado entre o sul e o norte da Europa.
Voltando, no entanto, à questão da retomada por Warburg do
modelo de Winckelmann, é interessante que Warburg tenha esco-
lhido Dürer, um “homem do norte” para relatar a “redescoberta”
precisamente do Apolo Belvedere como referência antiga, pois sabe-
mos que esta escultura estava intimamente associada ao modelo
winckelmanniano de Antiguidade, e especialmente à ideia de
“nobre simplicidade e grandeza quieta”. De fato, o modelo winckel-
manniano parece alimentar, ao menos até certo ponto, os conceitos
de ethos apolíneo e de arte do norte da Europa, tal como Warburg os
entende nesse momento.

A “serenidade” do norte e sua contribuição ao primeiro


Renascimento italiano

A ideia central desenvolvida por Warburg em seu estudo


sobre Dürer, isto é, a teoria de que uma familiaridade com a cul-
tura do norte europeu predisporia à recepção do aspecto apolíneo
da cultura clássica, reaparece em outras importantes análises que
Warburg produz sobre o Quattrocento italiano. Em seu artigo de
1914, já citado acima, tal questão surge associada à análise da pro-
dução de alguns artistas da primeira geração renascentista, como
Ghirlandaio e, principalmente, Piero della Francesca, que, de acordo
com Warburg, impuseram certa resistência ao ingresso da fórmula
do pathos na cultura visual do período.
O argumento principal do texto gira em torno da comparação
do afresco de Piero della Francesca em Arezzo, dedicado à “Batalha

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Claudia Valladão de Mattos

de Constantino” (Fig. 67, p. 482) e a obra de mesmo tema pintada por


Giulio Romano (a partir da composição de Rafael) em uma das
stanze do Vaticano, no início do século XVI (Fig. 68, p. 482). Enquanto
a obra do Vaticano é descrita como pertencendo ao estilo maduro
do Renascimento, com sua representação da “vida pateticamente
intensificada”, o afresco de Piero é associado à ausência de movi-
mento: “(…) aqui não há mais nenhum traço de um conflito físico
violento”, apesar de Warburg apontar para a capacidade de Piero de
“pintar a vivacidade, quando queria fazê-lo (…).”22
A intenção de Warburg aqui é fundamentalmente a mesma que
transparece em seu texto sobre Dürer, isto é, demonstrar que a
entrada da retórica patética antiga na cultura do Renascimento
italiano não se deu sem resistência, ainda que tenha sido vito-
riosa. Warburg analisa a complexa teia de influências medievais e
flamengas que marcaram a primeira geração de artistas modernos
em Florença, como Ghirlandaio e Piero della Francesca, procu-
rando mostrar que esses artistas, ao evocarem um tema clássico
como a história do imperador romano Constantino, por exemplo,
mobilizavam um repertório avesso à fórmula do pathos, apoiando-
se em exemplos “apolíneos” que haviam sido mais caros à tradição
do “realismo gótico”.23
Para compreendermos de forma mais plena o argumento de
Warburg, é necessário nos voltarmos rapidamente ao seu texto sobre
a relação entre “Arte Flamenga e o Renascimento Florentino”. Este
foi um tema que ocupou Warburg de forma intensa, produzindo

22  Cf. Warburg, “L’ingresso dello stile ideale anticheggiante…”, op.cit.,


pp. 290–291.
23  Warburg chama a atenção para o fato da tradição medieval preferir a
representação do triunfo de Constantino, encontrado em um dos medalhões
do Arco de Constantino em Roma (que na verdade representava o imperador
Trajano). Esta imagem também estaria na origem da obra de Piero, ao passo
que os artistas do círculo de Rafael dariam preferência para a cena do Arco
retratando a batalha contra Massenzio. Compare as figuras 87 e 88 na edição
italiana do texto citado acima.

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Dürer e a Antiguidade Italiana

resultados surpreendentes para sua época. Warburg demonstra


através dos resultados de suas pesquisas, que a cultura florentina do
Quattrocento fora profundamente marcada pela produção do norte
da Europa, tanto através das tapeçarias de grandes dimensões que
eram muito apreciadas na Itália, quanto da tradição retratística fla-
menga. De acordo com Warburg, grandes nomes da arte do retrato,
como Jan van Eyck, Hugo van der Goes e Hans Memling, traba-
lharam intensamente para patronos italianos, contribuindo para a
recepção de suas criações no sul. Uma das características marcan-
tes dessa tradição nórdica, de acordo com o autor, era justamente
sua “particular e hábil combinação de íntima devoção e fidelidade
naturalista.”24, tendo “(…) apoiado os esforços dos pintores italia-
nos em obter uma interpretação mais profunda e mais penetrante
do homem na forma de pintura.”25 O gosto desenvolvido pela psi-
cologia do retrato trabalharia contra a retórica do gesto, na consti-
tuição do estilo de artistas como Piero della Francesca, resultando
na profundidade de suas figuras:

“Nas mãos de Piero della Francesca, com um cuidadoso


estudo de luz, quase científico, permanece no conjunto a
capacidade puramente espiritual de simbolizar de modo
misterioso e convincente um momento da vida da alma.”26

Porém, a ligação definitiva de Piero com a cultura ‘apolínea’ do


norte da Europa, aparecerá de forma explícita no comentário final
de Warburg que fecha o parágrafo sobre o estilo do artista italiano:

24  Warburg, “Flandrische Kunst und Florentinosche Frührenaissance”.


In: Wuttke (org.), op.cit., p. 266.
25  Idem, p. 248.
26  Warburg, “L’Ingresso dello stille ideale antichegginte…”, op.cit., p. 290.

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Claudia Valladão de Mattos

“No claro-escuro de Piero della Francesca parece operar aquela


força que um dia, na maneira tardia de Rembrandt, iria nova-
mente sustentar a luta contra a retórica romana da mímica.”27

Piero della Francesca, assim como Albrecht Dürer, atingiu um


equilíbrio ideal em sua arte ao fazer confluir a tradição clássica
apolínea transmitida pelo realismo do norte, com a tradição dio-
nisíaca do pathos, recuperada pelos italianos. Tal mistura impediu
que Piero seguisse o caminho equivocado de artistas como Antonio
Polaioullo, que, nas palavras de Warburg: “possuía uma retórica de
músculos quase barroca”28.
Ao longo dos quase trinta anos que separam a escritura da tese
de doutorado sobre Botticelli e a publicação do texto de 1914 sobre
o primeiro Renascimento italiano, percebe-se uma mudança sig-
nificativa no foco de interesse de Aby Warburg sobre a questão
da recepção do Antigo no Renascimento. Enquanto que no texto
sobre Botticelli, sua fascinação e interesse intelectual voltavam-se
fundamentalmente para a figura “dionisíaca” da Ninfa e o seu papel
na transmissão da “vivacidade expressiva” clássica ao ambiente do
primeiro Renascimento, com o passar do tempo, seu foco principal
de investigação tornou-se o confronto entre os elementos “apolí-
neo” e “dionisíaco” da cultura clássica, veiculados pelos estilos do
norte e do sul da Itália. Nesse processo, as teorias de Winckelmann
sobre a “nobre simplicidade e a grandeza quieta”, que num pri-
meiro momento serviam de contraponto às suas análises da “fór-
mula do pathos”, foram reincorporadas ao seu campo conceitual,
dando forma, por assim dizer, a uma espécie de “fórmula do ethos”.
O texto sobre Albercht Dürer ocupa nesse processo uma posição
central, pois sua figura poderia ser compreendida como o palco
de confronto e síntese das diferentes vertentes derivadas da cultura
clássica, no norte e no sul.

27  Idem, ibidem.


28  Idem, p.296.

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Dürer e a Antiguidade Italiana

Quando Warburg escreve seu texto sobre o ingresso do estilo


ideal antiquizante na pintura do primeiro Renascimento, fazendo
nele uma síntese de seu longo percurso de pesquisa sobre o tema,
estamos já às portas da Primeira Guerra Mundial. O quanto o
ambiente cultural alemão, no qual vivia Warburg, pode ser evocado
para explicar a retomada de discursos sobre a oposição Norte/Sul
no contexto do pensamento de Warburg, é tema que ainda deverá
ser investigado. Podemos, no entanto, afirmar que foi novamente
sua inquietude intelectual, sua recusa em fixar modelos, que evitou
que esses impulsos fossem fixados em uma teoria conservadora e
nacionalista sobre as relações entre o mediterrâneo e os países seten-
trionais, como ocorreu com vários de seus colegas. A mesma expe-
riência de guerra desencadearia em Warburg uma profunda crise
pessoal e intelectual que o levaria à internação por mais de cinco
anos na clínica psiquiátrica de Kreuzlingen, dirigida por Ludwig
Binswanger. Essa experiência acarretaria uma profunda mudança
de rumos em suas pesquisas, resultando em escritos como o “Ritual
da Serpente”, sobre os índios Hopi, proferido pela primeira vez como
palestra ainda durante sua internação, e seu projeto Mnemosyne —
deixado inacabado — que visava propor uma teoria visual sobre o
caráter mnemônico da imagem e seus processos de migração e cir-
culação entre as culturas, teoria essa que hoje estimula a imaginação
daqueles pesquisadores interessados em uma nova História da Arte.

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O Paragone entre a Pintura
e a Escultura – A Proposição
de Uma Via Conciliatória
Através dos Modelos Plásticos
Alexandre Ragazzi

A
primeira metade do século XVI foi marcada pela escassez
de textos impressos dedicados à pintura ou à escultura.
Entretanto, em 1547 Lodovico Domenichi editou em ita-
liano o De pictura, de Leon Battista Alberti, e a publicação de
um texto que então já contava com mais de cem anos era sinal
de que um grande interesse por esse gênero literário havia res-
surgido. A partir daquele momento diversos tratados artísticos
começaram a ser publicados e, de modo geral, pode-se dizer que
neles havia um elemento comum, que os interligava ao mesmo
tempo em que justificava uma tão repentina fecundidade. Com
efeito, ambicionava-se essencialmente nobilitar a atividade artís-
tica. A intenção de distinguir nitidamente artistas de artesãos, a
necessidade de evidenciar que esses ofícios não mais podiam ser
agrupados em uma mesma agremiação e de demonstrar que o
artista era, na verdade, um homem de corte são todos elementos
que estruturam os discursos artísticos que se desenvolveram na
Itália durante a segunda metade do Quinhentos. Nesse contexto,
foi retomado um tema que já havia algum tempo era alvo das
atenções, e tal emergência acabou por se tornar o centro de uma
série de intensas polêmicas.

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O Paragone entre a Pintura e a Escultura

Depois da Antiguidade, tradicionalmente as artes figurativas


passaram a ser consideradas como artes mecânicas. Se a música
era concebida como arte liberal por conta de sua fundamentação
matemática, pintura e escultura eram compreendidas como ativi-
dades manuais e, por conseguinte, classificadas como artes mecâ-
nicas. Alberti precisou ir buscar na literatura do mundo antigo
exemplos da consideração em que era tida a pintura1, e esse foi
apenas um dos primeiros esforços para que o artista fosse inserido
entre os homens ilustres de sua época.
Ocorre que, na tentativa de se afirmar a atividade artística como
algo nobre, imediatamente sobreveio a disputa acerca de qual
das duas artes — se a pintura ou a escultura — era a mais nobre.
Leonardo da Vinci foi quem primeiro deu vazão a esse conflito, e
em seus escritos finalmente se encontram cristalizadas tais preocu-
pações, as quais, de fato, eram latentes e vinham tomando forma
desde o século XIII. Já com Nicola Pisano e seu Hércules do púl-
pito do Batistério de Pisa — em que comparece um olhar para a
anatomia humana ou, em todo caso, ao menos para os sarcófagos
antigos agrupados ao redor do Campo Santo pisano — é possível
dizer que uma espécie de competição entre a escultura e a pin-
tura estava em andamento. De modo extremamente simplificado,
buscava-se decidir qual das artes era capaz de melhor traduzir
os estímulos provenientes da natureza e do antigo, e não se pode
negar que nesse sentido, apesar dos esforços de Giotto, durante o
Quatrocentos reconhecia-se que a escultura havia atingido resul-

1  Cf. ALBERTI, Leon Battista, Da pintura (trad. Antonio da Silveira Mendonça),


Campinas: Editora da Unicamp, 1999, sobretudo p. 106. O mesmo pode ser
dito para o breve Tractato di pictura de Francesco Lancilotti (Roma, 1509), o
qual pode ser consultado, assim como grande parte dos tratados artísticos uti-
lizados como fonte para este ensaio, In: BAROCCHI, Paola (org.), Scritti d’arte
del Cinquecento, I, Milão, Nápoles: Riccardo Ricciardi, 1971, pp. 742-750 para
Lancilotti, pp. 475-711 para os textos sobre a relação entre pintura e escultura.

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Alexandre Ragazzi

tados mais expressivos2. Leonardo, portanto, deu corpo a uma


complexa e extensa discussão, a qual se prolongava havia bastante
tempo. Ademais, ele propôs simultaneamente uma inversão quanto
à primazia dos termos envolvidos na disputa.
Em seu Libro di pittura, após confrontar a pintura com a poesia
e a música, Leonardo passa a tratar do célebre tema que ficaria
conhecido como o paragone entre a pintura e a escultura, isto é,
da comparação entre essas artes. Nesse embate, ele estabeleceu
alguns dos temas centrais que seriam causa de muitos debates
posteriores. Entre outros assuntos, ele discorreu sobre a questão
da durabilidade das obras, afirmou que a escultura tem apenas
duas vistas — uma frontal e outra posterior —, constatou as afi-
nidades existentes — por conta da perspectiva — entre o relevo
e a pintura, considerou a propriedade do claro-escuro. Sempre
favorável à pintura e declarando-se prático em ambas as artes, ele
ainda versou sobre a iluminação, sobre a perspectiva aérea, sobre
a impossibilidade de se remediar uma escultura em pedra, sobre
a grande fadiga corporal que aflige o escultor — em oposição à
maior fadiga mental predominante na pintura — e sobre o fato
de apenas o pintor poder contrafazer o vento, a chuva, a neblina e

2  É certo que Filippo Villani nomeia apenas pintores entre os homens ilustres
de Florença, mas essa situação não se sustenta século XV adentro. Não seria
por outra razão que mais tarde Vasari, na introdução à segunda parte das suas
biografias, afirmaria que Donatello, apesar de inserido no segundo período de
evolução artística, alcançara um tal patamar de excelência que sua obra legiti-
mamente poderia integrar o terceiro período (VASARI*, Giorgio, Le vite de’ più
eccellenti pittori, scultori e architettori: con i ritratti loro et con l’aggiunta delle vite
de’ vivi e de’ morti dall’anno 1550 insino al 1567, Firenze: Giunti, 1568, III, p. 18).
* Tanto a edição Giunti quanto a Torrentino foram consultadas através do pro-
jeto Signum do Centro di ricerche informatiche per le discipline umanistiche da
Scuola Normale Superiore di Pisa – endereço eletrônico http://biblio.signum.
sns.it/vasari/consultazione/Vasari/indice.html (consultado em 22/07/2010) –,
o qual está alinhado com os volumes e a paginação de VASARI, Giorgio, Le
vite de’ più eccellenti... nelle redazioni del 1550 e 1568, testo a cura di Rosanna
Bettarini, commento secolare a cura di Paola Barocchi, 6v., Firenze: Sansoni /
S.P.E.S., 1966-1987.

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O Paragone entre a Pintura e a Escultura

coisas do gênero3. Desse modo, estavam dados os fundamentos a


partir dos quais seriam desenvolvidas diversas disputas sobre esse
paragone, sendo que tais disputas estavam assentadas sobre uma
questão mais ampla, mais profunda e mais pertinente, qual seja, a
afirmação das duas profissões como artes nobres. Em última ins-
tância, a querela era admitida não porque realmente se quisesse
definir qual das duas artes era a mais nobre, mas antes porque
assim se insistia no tema de que ambas o eram.
Em 1548, o pintor Paolo Pino publicou um Dialogo di pittura
em que os interlocutores, o toscano Fabio e o veneziano Lauro,
retomam o tema do paragone4. Pino insiste na superioridade da
pintura, e o trecho sobre a disputa é arrematado com a lembrança
de uma obra de Giorgione que representaria um São Jorge cuja
imagem era refletida em dois espelhos, sendo portanto visto, a um
só tempo, de frente, de costas e de lado. Embora essa pintura seja
desconhecida, o mestre de Pino — o pintor Giovanni Girolamo
Savoldo — de fato havia realizado uma obra (Fig. 69, p. 483) em que
um semelhante jogo de espelhos é utilizado para demonstrar a
superioridade da pintura em relação à escultura. Ademais, o relato
de Pino é corroborado por Vasari, que em um momento poste-
rior dessa tradição afirma que Giorgione, envolvido ele próprio
em disputas informais sobre o paragone, teria pintado um nu de
costas, o qual tinha a frente de seu corpo refletida em uma fonte, o
lado esquerdo em uma armadura e o direito em um espelho5. Ora,

3  Cf. VINCI, Leonardo da. Libro di pittura. Edizione in facsimile del Codice
Urbinate Lat. 1270 nella Biblioteca Apostolica Vaticana. A cura di Carlo Pedretti,
trascrizione critica di Carlo Vecce. Firenze: Giunti, 1995, pp. 158-168.
4  Cf. PINO, Paolo. Dialogo di pittura. Nuovamente dato in luce. Vinegia: P.
Gherardo, 1548, ff. 24v-28r. O texto de Pino também está disponível em por-
tuguês (PINO, Paolo, Diálogo sobre a pintura – Tradução, apresentação e notas
de Rejane Bernal Ventura, Cadernos de Tradução, n. 8, São Paulo: Humanitas,
FFLCH/USP, 2002 [sobre o paragone, cf. pp. 72-78 e notas correspondentes]).
5  Cf. VASARI, 1568, IV, p. 46 e I, p. 23. Todavia, vale notar que essa passagem
não está presente na edição torrentiniana de 1550. Enfim, relato semelhante
apresenta-se também em LOMAZZO, Giovan Paolo, Idea del tempio della pit-

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Alexandre Ragazzi

mesmo se se considerar as passagens de Pino e Vasari apenas como


alegóricas, o fato é que ao menos nelas ecoa a obra de Savoldo,
o que demonstra que as discussões sobre o paragone não foram
abandonadas depois de Leonardo.
Imediatamente após a publicação do diálogo de Pino, Anton
Francesco Doni — um florentino que se estabelecera em Veneza —
respondeu com outro diálogo, desta vez travado entre as personifi-
cações da Natureza e da Arte e entre Silvio Cosini, um escultor flo-
rentino, e o próprio Pino. A disputa é toda ela estabelecida em torno
do paragone e apenas é resolvida — em favor da escultura — quando
intervém um quinto personagem, o escultor Baccio Bandinelli6.
Entretanto, é a influência de Michelangelo que efetivamente per-
passa todo o texto, e Bandinelli conclui pela superioridade da escul-
tura valendo-se de um tema michelangiano e neoplatônico segundo
o qual a diferença que há entre a pintura e a escultura é a mesma que
há entre a sombra e a verdade7.
Em um dado momento do diálogo, Doni faz Pino dizer que para
se fazer os panejamentos o método mais seguro e cômodo é acomodar
os tecidos sobre modelos de argila ou de madeira com membros arti-
culados8. Ora, sabe-se que os pintores utilizavam modelos lígneos e
modelos plásticos auxiliares — feitos em argila ou cera — ao menos

tura – Edizione commentata e traduzione di Robert Klein, Firenze: Istituto


Nazionale di Studi sul Rinascimento, 1974, I, p. 151.
6  DONI, Anton Francesco. Disegno del Doni, partito in più ragionamenti, ne’
quali si tratta della scoltura et pittura (...) et si termina la nobilità dell’una et
dell’altra professione. Vinegia: Gabriel Giolito de Ferrari, 1549.
7  Tema utilizado também por Cellini em sua resposta a Varchi (VARCHI,
Benedetto, Due lezzioni di M. Benedetto Varchi, nella prima delle quali si dichiara
un Sonetto di M. Michelagnolo Buonarroti, Nella seconda si disputa quale sia più
nobile arte la scultura o la pittura..., Fiorenza: Lorenzo Torrentino, 1549, p. 154) e
revisto pelo próprio Michelangelo em sua réplica à mesma sondagem (VARCHI,
1549, pp. 154-155), ao que retornaremos.
8  DONI, 1549, f. 16r.

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O Paragone entre a Pintura e a Escultura

desde os tempos de Antonio Filarete e Piero della Francesca9, e que a


prática que se valia de modelos plásticos foi disseminada sobretudo
devido à influência de artistas como Lorenzo Ghiberti, Antonio
Pollaiuolo e Leonardo10. Durante o século XVI esse procedimento
foi amplamente utilizado na Itália central e desde aí se propagou,
principalmente entre os artistas da Itália setentrional. O fato novo é
que em Doni os modelos plásticos são utilizados como testemunho
desfavorável à pintura. Com efeito, ele faz com que o personagem
que deveria defender a pintura ofereça ao adversário um argumento
contrário a si, de onde surge até mesmo a afirmação de que a escul-
tura é a mãe da pintura11. Na quarta parte do diálogo, o escultor
Silvio então retoma o tema dos modelos plásticos deste modo:

Sabes, [Pino], que quando quiseres compor uma história,


seja ela grande e copiosa o quanto for, possuindo tu o dese-
nho como convém, [podes] tomar uma ou duas esculturas de
relevo completo e retratá-las de infinitas faces. (…) E se em
tal modo e com tal ordenação operares com a figura, conse-
quentemente operarás ainda com toda espécie de animais,
isto é, de um cavalo farás infinitos, e do mesmo modo de um
touro ou de um cordeiro um rebanho. E a figura de relevo
completo é tão capaz e universal que, uma vez que a fizeres

9  Sobre Filarete, cf. FILARETE, Trattato di architettura, 2 v., Testo a cura di


Anna Maria Finoli e Liliana Grassi, Introduzione e note di Liliana Grassi,
Milão: Edizioni il Polifilo, 1972, pp. 676-677. Quanto a Piero della Francesca, cf.
VASARI, 1568, III, p. 264.
10 Quanto a esses artistas, indicamos apenas como bibliografia inicial: para
Ghiberti, cf. GHIBERTI, Lorenzo, I commentarii, introduzione e cura di Lorenzo
Bartoli, Firenze: Giunti, 1998, p. 97; para Pollaiuolo, cf. FUSCO, Laurie, “The use
of sculptural models by painters in fifteenth-century Italy”. In: The Art Bulletin,
1982, v. 64, n. 2, pp. 175-194; finalmente, para Leonardo, cf. KWAKKELSTEIN,
Michael W., “The use of sculptural models by Italian Renaissance painters:
Leonardo da Vinci’s ‘Madonna of the rocks’ reconsidered in light of his working
procedures”. In: Gazette des Beaux-Arts, n. 1563, 1999, pp. 181-198.
11 DONI, 1549, f. 20r.

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Alexandre Ragazzi

e que esteja pousada sobre o solo, a mesma há de servir-te


ao fazê-la no ar, pois parecerá voar e dela poderás servir-te
em diversos modos. Então vejas o quanto tu, com a pintura,
deves ao relevo, do qual te serves em tantos modos12.

Por hora, apenas vamos notar que Doni não diferencia entre
escultura em mármore, pedra, bronze, gesso, argila ou cera. Para ele,
qualquer que seja o material, o relevo é sempre relativo ao escultor
— embora nesse caso específico, devido à diversidade da utilização,
possa-se presumir que se trate de modelos maleáveis.
No momento em que essas discussões sobre o paragone eram
mantidas em ambiente veneziano, o florentino Benedetto Varchi
fazia publicar o seu parecer sobre a questão13. Varchi, que não
era artista e sim filósofo e historiador, recorreu a uma consulta
entre os próprios pintores e escultores a respeito do assunto. Com
base nas respostas, que lhe foram enviadas no início de 154714,
Varchi então estruturou uma obra na qual ele próprio assumia a
função de árbitro aristotélico da disputa15, e durante a Quaresma
daquele mesmo ano a lezzione foi apresentada na academia flo-
rentina. Efetivamente, muitos conceitos presentes em Doni pare-
cem derivar de Varchi ou das respostas dos artistas consultados, o
que nos faz ter uma noção da repercussão imediata alcançada pela
obra, cujo conteúdo possivelmente já era bastante difundido antes
mesmo da publicação em 1550.

12 DONI, 1549, f. 29r-v.


13 Cf. VARCHI, 1549, pp. 55-155.
14 A dedicatória da obra e algumas das cartas apresentam datas que remontam
ao início de 1546, mas àquela época em Florença ainda se adotava o calendário
ab incarnatione. O mesmo raciocínio deve ser aplicado à data de publicação –
início de 1549 –, pelo que se deve entender 1550.
15 Cf. VARCHI, Benedetto; BORGHINI, Vincenzio. Pittura e scultura nel
Cinquecento. A cura di Paola Barocchi. Livorno: Sillabe, 1998, p. vii.

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O Paragone entre a Pintura e a Escultura

Assim, a partir dos depoimentos dos artistas16, Varchi elaborou


filosoficamente um sistema em que a razão é dividida em superior
e inferior. A razão superior abrangeria o intelecto, a sabedoria e a
ciência. Já a razão inferior, por não ter como fim o conhecimento
e a compreensão, mas sim o fazer e o operar, essa subdividir-se-
ia em praticável e factível17. Ainda segundo a teorização de Varchi,
as artes pertenceriam à categoria do factível, e é preciso lembrar
que domina o esquema uma escala de valores que vai de cima para
baixo. As artes, classificadas portanto na porção menos nobre da
escala, tratariam das coisas não necessárias e seriam tanto mais
nobres quanto mais nobre fosse o seu fim18. Ora, como para Varchi
pintura e escultura têm um mesmo fim — a imitação artificiosa da
natureza —, ele conclui que essas artes na verdade são uma única
arte e, por conseguinte, que elas têm uma igual nobreza19. Como
notou Paola Barocchi20, esse é o ponto culminante do discurso, em
que Varchi procura traduzir em termos filosóficos os argumentos
suscitados pelas respostas dos artistas e pelos tratadistas com os
quais dialoga21.
Outro elemento utilizado por Varchi para estabelecer a equipara-
ção entre as duas artes é o fato de ambas compartilharem o mesmo
princípio, isto é, o desenho22. Com efeito, essa não era uma propo-

16 Varchi consultou, além de Michelangelo, três pintores — Vasari, Agnolo


Bronzino e Jacopo Pontormo — e quatro escultores — Battista Tasso, Francesco
da Sangallo, Niccolò Tribolo e Benvenuto Cellini.
17 Cf. Aristóteles, Ética a Nicômaco, VI (sobretudo 1139b 1) e os conceitos
de noûs, sophía, epistéme, phrónesis e téchne.
18 Razão pela qual Varchi considera a medicina superior à pintura e à escultura
(cf. VARCHI, 1549, pp. 63, 72).
19 VARCHI, 1549, pp. 101, 111.
20 Cf. BAROCCHI, Paola (org.). Trattati d’arte del Cinquecento. Fra manierismo
e Controriforma. I. Bari: Gius. Laterza, 1960, pp. 3–82, 357–385 (p. 44, nota 3).
21 Esses tratadistas são, sobretudo, Alberti e Castiglione (cf. VARCHI, 1549, pp.
90 e ss.), e cabe ressaltar que Castiglione já havia tratado do paragone no livro I
(XLIX-LII) do seu Cortegiano (CASTIGLIONE, Baldassare. Il libro del cortegiano
del conte Baldessar Castiglione. Firenze: Felice Le Monnier, 1854, pp. 65–68.).
22  VARCHI, 1549, p. 101.

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Alexandre Ragazzi

sição nova, pois esse caminho já fora preestabelecido por Petrarca


e Ghiberti23 e estava também presente em Castiglione24. Mas com
Varchi o conceito é retomado e revitalizado a ponto de se conver-
ter, antes de mais nada, em fundamento para uma teoria do dese-
nho que conduziria a uma teoria da ideia e, como logo se verá, na
fonte inspiradora de Vasari. Na própria resposta de Vasari a Varchi
as três artes, pois que se acrescentou a arquitetura, são compreen-
didas como filhas do desenho — tema que, de resto, comparece
ainda na resposta de Pontormo25.
A obra de Varchi é encerrada com Michelangelo, que emitiu seu
parecer depois dos demais artistas consultados e depois de ter lido
o texto de Varchi26. Apesar de o artista considerar a disputa infru-
tífera, ele expressa o pensamento que até então sustentara dizendo
que uma pintura é tanto melhor quanto mais relevo apresenta, e uma
escultura tanto pior quanto mais se aproxima da pintura. Portanto,
seguindo esse raciocínio ele conclui que considerava natural que a
escultura fosse considerada como uma fonte luminosa para a pin-
tura, e todo seu neoplatonismo fica patente nas analogias entre a
escultura e o sol, a pintura e a lua. No entanto, os conceitos filo-
sóficos de Varchi, que igualam as duas artes por terem um mesmo
fim e um mesmo princípio, fazem com que Michelangelo assegure
ter revisto suas ideias e aceite a equiparação, ainda que não sem
demonstrar uma certa indiferença quanto à relevância do tema e
mesmo uma boa dose de ironia.

23 Cf. BARZMAN, Karen-edis. The Florentine Academy and the early modern state:
the discipline of disegno. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p. 148.
24 CASTIGLIONE, 1854, p. 65.
25 VARCHI, 1549, pp. 124–125, 132 – embora Pontormo não integre aí a
arquitetura.
26 VARCHI, 1549, pp. 154–155. Para uma interpretação mais detalhada dessa
carta, veja-se BERBARA, Maria, “A carta de Michelangelo a Benedetto Varchi:
considerações sobre o vínculo entre o epistolário e as concepções artísticas buo-
narrotianas”. In: Concinnitas, n. 8, 2005, pp. 103–109.

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O Paragone entre a Pintura e a Escultura

Mas o fato que aqui mais destaque merece diz respeito a uma
famosíssima afirmação também presente nessa carta, na qual
Michelangelo diz: compreendo por escultura aquilo que se faz por
força do subtrair; aquilo que se faz por meio do adicionar é seme-
lhante à pintura. Com isso, o artista definia como objeto essencial
do escultor apenas o trabalho com o bloco de pedra, excluindo a
modelagem e a atividade da fundição daí decorrente e, portanto,
evidenciando um contraste radical com a corrente de pensamento
apresentada por Doni — segundo a qual todos os ofícios que envol-
vem o relevo estão harmoniosamente subordinados à escultura.
De fato, esse não é um argumento elaborado por Michelangelo,
pelo que, antes de seguirmos adiante, será preciso ainda recordar
que tal conceito, apresentado na carta com o peso da autoridade
de Michelangelo, fora também expresso por Leonardo. Verdade
que os elementos estão desconexos no Libro di pittura e Leonardo,
assim como Doni, considera a escultura em pedra e a modelagem
como atividades do escultor. Mas Leonardo mostra-se igualmente
ciente de que um dos aspectos do trabalho do escultor é o eliminar
o mármore que excede a figura que dentro da pedra se esconde27 —
tema que, de resto, seria caríssimo a Michelangelo, como demons-
tra seu célebre soneto28. Além disso, ele afirma que o escultor ape-
nas retira, ao passo que o pintor sempre adiciona29. E não bastasse
essa notável equiparação com o pensamento expresso na resposta
de Michelangelo, as semelhanças revelam-se ainda maiores quando

27 VINCI, 1995, p. 158.


28 VARCHI, 1549, p. 13: Non ha l’ottimo artista alcun concetto, / Ch’un marmo
solo in se non circonscriva / Col suo soverchio, e solo à quello arriva / La man che
ubbidisce all’intelletto. Para uma visão mais aprofundada sobre essa questão, cf.
os artigos de MIGLIACCIO, L. “Poemas em mármore: Michelangelo escultor e
poeta nas Lezioni de Benedetto Varchi”. In: Revista Brasileira de História, v. 18, n.
35, 1998, pp. 207–216) e de COLLARETA, M. “Le arti sorelle — Teoria e pratica
del paragone”. In: La pittura in Italia — Il Cinquecento, II, Veneza: Electa, 1988,
pp. 569–580).
29 VINCI, 1995, p. 163.

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Alexandre Ragazzi

Leonardo lembra que o escultor, se opera com argila ou cera, pode


também ele retirar ou adicionar30.
Pois bem; o fato é que a reunião de todos esses elementos, rea-
presentados na fórmula sintética de Michelangelo, constitui um
marco inaugural, e a partir deste momento passaremos a conside-
rar seus desdobramentos.
Ao publicar, em 1550, a sua monumental obra com as biografias
de artistas, Vasari fez questão de iniciar justamente com a disputa
sobre o paragone31. Com efeito, a própria ideia para a realização das
biografias parece ter-lhe sido sugerida por Varchi e, apesar de não
aceitar a terminologia conceitual do filósofo, Vasari conclui que pin-
tura e escultura são uma mesma arte por ambas terem no desenho
o princípio. Todavia, o fato para o qual chamamos a atenção aqui é
o de ele mencionar, antes de chegar a essa conclusão e ao enumerar
as razões sustentadas pelos pintores para defender a pintura, que a
plástica, isto é, a modelagem era considerada por alguns membros
desse grupo como a mãe da escultura:

[A modelagem], mediante o seu subtrair e adicionar, não


é menos dos pintores do que de outros; e foi denominada
como plástica pelos gregos e ‘fictoria’ pelos latinos, e por
Praxíteles foi considerada mãe da escultura, da fundição e
do entalhe, o que faz da escultura na verdade sobrinha da

30 VINCI, 1995, p. 162. Também é oportuno ressaltar que o conceito segundo


o qual a escultura em cera e argila — feita por adição — e a escultura em
pedra — feita por subtração — constituem práticas diversas de fato remonta à
Antiguidade (cf. PLÍNIO, Nat. hist., XXXV, 156 e QUINTILIANO, Inst. Or., II,
21, 8–10), sendo que sua renovação possivelmente se deva a Alberti — muito
embora esse autor não concorde com a inserção da pintura entre as ativida-
des aditivas (cf. ALBERTI, Leon Battista, De statua, a cura di Marco Collareta,
Livorno: Sillabe, s/d, p. 5).
31 Cf. VASARI, Giorgio. Le vite de’ più eccellenti architetti, pittori e scultori italiani,
da Cimabue insino a’ tempi nostri. Firenze: Lorenzo Torrentino, 1550, I, pp. 9–27.

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O Paragone entre a Pintura e a Escultura

pintura, de modo que a plástica e a pintura nascem juntas e


imediatamente do desenho32.

De fato, essa afirmação era autorizada por Plínio33 — segundo


quem Varrão exaltara Pasiteles por este considerar a plástica mãe
dos trabalhos em entalhe, metal e pedra —, mas ela também se
ligava a um referencial mais imediato, justamente o pensamento
de Leonardo e Michelangelo segundo o qual pintura e modela-
gem são artes cuja característica primordial deriva dos procedi-
mentos aditivos. Portanto, havia sido encontrado o locus classicus
que, renovado por Michelangelo, o principal artista contemporâ-
neo, formava uma sólida base para a aproximação da pintura e do
relevo completo — ainda que por esse relevo fosse compreendida
somente a modelagem. Mas ocorre que dessa maneira a modela-
gem também se distanciava da escultura, de modo que se abria
uma via que não apenas legitimava a dependência da pintura em
relação aos modelos plásticos como também evidenciava a subor-
dinação da escultura em relação a ambos. E na extravagante gene-
alogia que se elaborava, a pintura assumia então o papel de tia
da escultura! A questão poderia ser negligenciada e vista apenas
como um capricho ou uma excentricidade típicos do maneirismo.
Mas, ao contrário disso, ela é relevante porque expõe uma ver-
tente dessa tradição que encontrou aí uma brecha para justificar
a aliança entre a pintura e o relevo completo, escapando portanto
de uma disputa que começava a se mostrar improdutiva e que
já apresentava os primeiros sinais de esgotamento. Ademais, em
um momento posterior, essa mesma questão seria ainda impor-
tante por fazer com que Giovan Paolo Lomazzo decidisse retomar

32 VASARI, 1550, I, pp. 14–15.


33 Cf. Plínio, Nat. hist., XXXV, 156. No entanto, note-se que Vasari, que cla-
ramente utiliza essa passagem como fonte, confunde Pasiteles — o escultor
contemporâneo de Varrão — com Praxíteles.

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Alexandre Ragazzi

a questão do paragone valendo-se, segundo ele, dos escritos de


Leonardo — o que será tratado a seu tempo.
Na edição de 1568 das Vidas, Vasari faz o seguinte comentário na
biografia de Daniele da Volterra:

Tendo o senhor Giovanni della Casa (…) começado a escre-


ver um tratado sobre a pintura, e querendo esclarecer alguns
detalhes e algumas minúcias com o auxílio dos homens de
tal profissão, encomendou a Daniele [da Volterra], com toda
a diligência que lhe fosse possível, um modelo de argila de
um Davi. Depois fez Daniele pintar, ou melhor, retratar em
um quadro o mesmo Davi — que é belíssimo — de todos os
lados, isto é, de frente e de costas. Esse quadro, coisa capri-
chosa, pertence hoje a Annibale Rucellai34.

Esse tratado de Giovanni della Casa ou foi perdido ou nem


sequer chegou a ser escrito. Todavia, é bastante verossímil que
o literato tenha encomendado a Daniele da Volterra — pintor e
escultor, discípulo de Michelangelo — o modelo de argila e as pin-
turas com a intenção de participar da disputa sobre o paragone35.
Como de costume, o frágil modelo não foi preservado, mas as pin-
turas o foram e encontram-se, desde 2007, no Louvre (Fig. 70, p. 483
e Fig. 71, p. 483). Ao analisá-las, é possível ter ao menos uma vaga
noção do que della Casa pretendia com a encomenda. Não sendo
ele um artista, sentiu a necessidade de confrontar as pinturas com
o modelo plástico do qual derivavam para poder expressar sua opi-
nião com mais propriedade. Munido desses elementos, certamente
ele se deu conta de que, nas pinturas, o artista precisou reposicionar
os braços esquerdos do Davi e do Golias para permitir que a troca

34 VASARI, 1568, V, p. 545.


35 Esse parecer é sustentado por Schlosser (SCHLOSSER, Julius. La literatura
artística — Manual de fuentes de la historia moderna del arte, 4ª ed, Madrid:
Cátedra, 1993, p. 210).

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O Paragone entre a Pintura e a Escultura

de olhares entre eles fosse percebida pelo espectador. Daniele,


para alcançar esses resultados, poderia ter se valido da imaginação
ou de modelos vivos. Entretanto, não fora isso que lhe havia sido
encomendado. Para rigorosamente atender às exigências do comi-
tente, que desejava confrontar a pintura com seu modelo artificial
em relevo completo, o artista não podia utilizar nem a imaginação,
nem modelos vivos e tampouco uma escultura feita com materiais
rígidos — como pedra ou gesso —, a qual não admitiria essa varia-
ção entre a vista frontal e a posterior. Mas, ao contrário disso, o
emprego da argila era pertinente devido à possibilidade de mani-
pulação que lhe é característica. No caso de Daniele da Volterra,
um escultor qualificado, ele poderia rapidamente ter fabricado
dois modelos de argila. No caso de pintores que não contassem
com essa habilidade, então deveria ser utilizada uma fôrma de
gesso — feita a partir de uma escultura de qualidade — para dar a
forma inicial à argila, a qual em seguida seria trabalhada até que se
alcançassem os resultados desejados36. E se o modelo fosse de cera,
então bastaria um único exemplar, pois uma vez que este fosse
reaquecido em água morna recobraria a maleabilidade e poderia
ser reajustado de acordo com a atitude prevista para o segundo
quadro37. Com isso, o artista ganhava liberdade para experimentar
diversos ângulos e posturas. Enfatiza-se, portanto, não a depen-
dência da pintura em relação à escultura, mas sim em relação à
modelagem, isto é, aos modelos plásticos. Nesse ponto é preciso

36 Cf., a esse respeito, a explicação oferecida por Giovan Battista Armenini (De’
veri precetti della pittura, Ravena: Francesco Tebaldini, 1587, pp. 97-98).
37 Cf. ARMENINI (1587, pp. 98-99) sobre o uso que Michelangelo teria feito de
tal procedimento para o Juízo Final da capela Sistina. Cf. ainda o “Parecer sobre
a pintura de Bernardino Campi”. In: LAMO, Alessandro, Discorso intorno alla
scoltura et pittura, dove ragiona della vita e opere in molti luoghi e a diverse pren-
cipi e personaggi fatte dall’eccell. e nobile M. Bernardino Campo, pittore cremonese,
Cremona: Christoforo Draconi, 1584, p. 124 (também disponível em português,
In: RAGAZZI, Alexandre, “Um episódio na história dos modelos plásticos auxi-
liares – o ‘Parecer sobre a pintura’ de Bernardino Campi”. In: Revista de História
da Arte e Arqueologia, n. 8, 2007, pp. 39-49).

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Alexandre Ragazzi

salientar que há uma diferença fundamental, pois que a escultura


não admite uma tal reorganização da forma. Na escultura a esta-
bilidade é total, e para inserir alguma variedade formal nesse jogo
estático o pintor deveria ou se valer da imaginação, ou fazer um
modelo vivo posar em uma atitude semelhante à da escultura, ou
ainda fazer um modelo plástico que a reproduzisse. Em última ins-
tância, a utilização de uma escultura — fosse um mármore, uma
cópia de gesso ou um bronze — ou se destinava aos momentos de
aprendizado e estudo ou — quando de fato se efetuava a inserção
em uma pintura — tinha a função de uma citação, a qual deveria
conferir autoridade à obra nascente. O mais importante nisso, con-
tudo, é que ao confrontarmos questões dessa natureza é possível
perceber que, de alguma forma, extrapolava-se o ponto central do
paragone e validava-se novamente a interação entre a escultura em
seu sentido mais amplo e a pintura.
Com a morte de Michelangelo, em 1564, a questão do paragone
foi uma vez mais reacendida no momento em que se pretendia
decidir sobre a disposição das representações da pintura, escul-
tura, arquitetura e poesia durante as exéquias do divino artista
transcorridas em San Lorenzo. A cerimônia fora preparada pela
recém fundada Accademia del Disegno a partir de um projeto ela-
borado pelo seu lugar-tenente, o filólogo e historiador Vincenzio
Borghini — homem da mais alta importância na hierarquia da aca-
demia, precedido apenas pelo próprio Cosimo I. Determinou-se
então que à pintura caberia o lado direito — considerado o mais
nobre — no aparato elaborado para a cerimônia, e isso foi o que
bastou para provocar a ira do escultor e ourives Benvenuto Cellini.
Ele não apenas não compareceu às exéquias, mas ainda escreveu
um pequeno texto para expor os motivos de sua indignação, insi-
nuando que Borghini tomara partido da pintura devido à afeição
que cultivava por Vasari38. É provável que somente depois desses

38 Sob o título de Sopra la differenza nata tra gli scultori e pittori circa il luogo
destro stato dato alla pittura nelle essequie del gran Michelagnolo Buonarroti,

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O Paragone entre a Pintura e a Escultura

episódios Borghini tenha percebido de modo mais acurado a com-


plexidade do conflito no qual inadvertidamente havia adentrado ao
determinar a execução de seu projeto por Vasari e os demais aca-
dêmicos. Investido da autoridade e ao mesmo tempo pressionado
pela responsabilidade que seu cargo conferia, Borghini precisou
então refletir sobre o paragone. Estudou portanto o assunto e leu a
lezzione de Varchi. Em uma carta endereçada a Vasari, ele diz ter se
divertido muito com as opiniões dos artistas, diz que então se sentia
mezzo dottorato no assunto e que escrevera um livro com o intuito
de participar da disputa. Barocchi identificou esse livro, que não foi
publicado à época, com o manuscrito intitulado Selva di notizie do
Kunsthistorisches Institut de Florença39.
Ao longo desse texto, Borghini aceita a distinção michelangiana
entre escultura em metal e escultura em mármore estabelecida em
termos de adição e subtração e chega mesmo a estendê-la à pintura40.
Mas isso é feito com muita cautela, e Borghini só não refuta de uma
vez por todas tal associação devido à autoridade de Michelangelo.
De fato, apesar de em um primeiro momento ele ter acatado tal

o ensaio foi publicado em 1564 como anexo à oração fúnebre de Tarsia em


homenagem a Michelangelo (Oratione o vero discorso di M. Giovan Maria Tarsia
fatto nell’essequie del divino Michelagnolo Buonarroti — Con alcuni sonetti e
prose latine e volgari di diversi circa il disparere occorso tra gli scultori e pittori,
Fiorenza: Sermartelli, 1564) e reeditado na edição dos tratados de Cellini de
Carlo Milanesi (CELLINI, Benvenuto, I trattati dell’oreficeria e della scultura —
Novamente messi alle stampe secondo la originale dettatura del Codice Marciano
per cura di Carlo Milanesi, Firenze: Felice Le Monnier, 1857, pp. 229–233). Cf.
ainda o Breve discorso intorno all’arte del disegno, dove si conclude che la scultura
prevaglia alla pittura e che migliori architetti diveranno quegli che più perfetti scul-
tori saranno, texto publicado por Cellini em 1568 (CELLINI, Benvenuto, Due
trattati, uno intorno alle otto principali arti dell’oreficeria, l’altro in materia dell’arte
della scultura…, Fiorenza: Valente Panizzii e Marco Peri, 1568, ff. 60r-61v).
39  Manuscrito do KHI de Florença, K 783 (16), número do inventário 60765.
In: VARCHI-BORGHINI, 1998, pp. 85–142.
40  VARCHI-BORGHINI, 1998, pp. 93 e 90. Borghini, ademais, está ciente de
que a escultura em metal e a escultura em pedra já eram distinguidas desde a
Antiguidade, razão pela qual ele falará em estátuas e esculturas.

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Alexandre Ragazzi

diferenciação conceitual, ele prefere antes sustentar a proximidade


entre escultores e modeladores do que entre pintores e modelado-
res41. Quando se refere ao emprego de modelos esculturais por parte
dos pintores, Borghini então exclui o uso da modelagem tal qual se
verificou no caso de Daniele da Volterra e della Casa, pois que as
esculturas agora seriam utilizadas pelo pintor com a intenção de se
obter algo de universal, o que faz alusão, por conseguinte, a modelos
de origem clássica. Além disso, nesse mesmo trecho ele afirma que
quando os pintores utilizam modelos, fazem-no por comodidade,
para não precisar dispor do modelo nu durante longos períodos,
sobretudo durante o frio do inverno ou com o desconforto infligido
pelas moscas durante o verão42. Borghini, enfim, resolve a disputa ao
asseverar que a pintura não extrai o relevo da escultura, mas sim da
natureza43. Para ele, as esculturas têm apenas uma função didática,
inicial, e sempre que o pintor almejasse um acabamento mais per-
feito ele então deveria recorrer ao modelo vivo. Com efeito, ele cen-
sura a utilização de esculturas nos estágios mais avançados: quem
quer que retrate sempre das estátuas e esculturas jamais será perfeito
e sempre se verá nas suas figuras uma certa aspereza e dureza, pois
o macio e suave é dado pela figura viva e não pela pedra44. Portanto,
desse modo Borghini desviava o foco principal da polêmica ao evi-
denciar que tanto a pintura quanto a escultura dependiam do relevo
que se extrai da natureza. O próprio Vasari criticaria — na edição
de 1568, então em vias de finalização — a atitude de artistas como
Niccolò Soggi e Battista Franco justamente devido ao excessivo uso
de modelos plásticos ou esculturas sem que um posterior confronto

41 VARCHI-BORGHINI, 1998, p. 107.


42 VARCHI-BORGHINI, 1998, p. 97.
43 Argumento que, por sua vez, remonta a Leonardo: Mas o pintor precisa com-
preender sempre a escultura, isto é, o natural, o qual possui o relevo que produz os
escorços e o claro-escuro (VINCI, 1995, p. 163).
44 VARCHI-BORGHINI, 1998, p. 97. Agradeço aqui ao professor Luciano
Migliaccio pelas sempre pontuais sugestões de tradução.

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O Paragone entre a Pintura e a Escultura

com o modelo vivo fosse efetuado; segundo Vasari, essa seria a causa
da maneira fraca, dura e seca desses pintores45.
Vinte anos mais tarde, o sobrinho de Vincenzio Borghini publicou
um extenso diálogo dedicado à pintura e à escultura46. Em Il riposo,
Raffaello Borghini ambienta em uma villa o colóquio mantido entre
quatro interlocutores: Bernardo Vecchietti — proprietário da villa
e mecenas de Giambologna —, Baccio Valori, Girolamo Michelozzi
e o escultor Ridolfo Sirigatti. Em tempos dominados pela Contra-
Reforma, Raffaello voltava a tratar do tema do paragone, mas limi-
tando-se a compendiar os tópicos abordados por seus antecessores47.
Logo na sequência desse trecho dedicado à nossa questão, quando
Raffaello se propõe a definir a pintura e a escultura, ele retoma o
enunciado leonardiano e michelangiano segundo o qual a pintura
é associada a procedimentos aditivos e a escultura a subtrativos48, o
que é notável tanto por evidenciar a sobrevivência desses conceitos
quanto por sutilmente indicar as instáveis e, de certo modo, incô-
modas funções a que fatalmente acabavam sendo atrelados a mode-
lagem e os modelos plásticos. Essa categoria demonstrava toda a sua
inconstância quando ora era reivindicada pela escultura — como
tradicionalmente o fora — e quando ora era relacionada à pintura
— caso que ainda se percebe em Raffaello.
Também é digna de nota em Raffaello Borghini a passagem em
que é explicado o motivo pelo qual, no monumento funerário de
Michelangelo em Santa Croce, a representação da pintura ostenta
na mão direita um modelo — o qual, por sua vez, remete ao Escravo
agonizante do Louvre —, enquanto os apetrechos mais diretamente

45  Para Niccolò Soggi, cf. VASARI, 1568, V, pp. 189–192; para Battista Franco,
cf. VASARI, 1568, V, pp. 460–461.
46  BORGHINI, Raffaello. Il riposo di Raffaello Borghini, in cui della pittura e
della scultura si favella, de’ più illustri pittori e scultori e delle più famose opere loro
si fa mentione; e le cose principali appartenenti à dette arti s’insegnano. Firenze:
Giorgio Marescotti, 1584.
47  Cf. BORGHINI, 1584, pp. 25–46.
48  BORGHINI, 1584, p. 51.

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Alexandre Ragazzi

relacionados a esse ofício quase passam despercebidos sob outra


mão. Não seria descabido pensar que se tratasse de uma alusão ao
que Michelangelo escrevera na carta a Varchi, isto é, que uma pin-
tura é tanto melhor quanto mais se aproxima do relevo. Todavia,
segundo Raffaello49, o verdadeiro motivo foi de ordem muito mais
prática. Com efeito, havia sido encomendada ao escultor Battista
Lorenzi não a representação da pintura, mas a da escultura, e havia-
lhe sido indicado que a obra ocuparia o canto esquerdo do monu-
mento projetado por Vasari. Mas como os escultores julgavam que
a figura da escultura deveria ser colocada no centro do túmulo —
uma vez que essa era a atividade principal de Michelangelo —,
solicitaram a Vincenzio Borghini que aquele posto lhes fosse des-
tinado. Então, segundo Raffaello, Vincenzio Borghini atendeu ao
pedido dos escultores e Lorenzi precisou adaptar a sua escultura, a
qual estava em um estágio tão avançado que não mais podia ocupar
outro local que não o da esquerda50. Se essa informação do sobrinho
de Vincenzio realmente for verdadeira ela demonstraria uma ten-
tativa do lugar-tenente da academia de apaziguar os ânimos e por
fim às disputas sobre o paragone, o que, de resto, teria efetivamente
ocorrido não fossem casos de certo modo isolados e sem grandes
desdobramentos como os de Federico Zuccaro51 e Galileu Galilei52.

49 BORGHINI, 1584, pp. 108–109.


50 Por sua vez, a escultura que personifica a própria escultura e que foi colocada
no centro do monumento foi realizada por Valerio Cioli.
51 Cf. ZUCCARO, Federico, L’Idea de’ Pittori, Scultori, et Architetti, del Cavalier
Federico Zuccaro — Divisa in due Libri, Torino: Agostino Disserolio, 1607, II,
pp. 34–42, In: Scritti d’arte di Federico Zuccaro, Firenze: Leo S. Olschki, 1961,
pp. 254–262. Também Zuccaro alude aos procedimentos aditivos da pintura e
subtrativos da escultura, a partir do que ele deduz que a pintura está mais pró-
xima da natureza do que a escultura (1607, II, p. 35). Contudo, vale notar que,
nos relatos sobre as sessões da academia romana, conta-se que havia sido proi-
bido que se discutisse sobre a primazia das três artes (cf. ZUCCARO, Federico,
ALBERTI, Romano, Origine, et progresso dell’Academia del Dissegno, de’ Pittori,
Scultori, e Architetti di Roma, Pavia: Pietro Bartoli, 1604, p. 13, In: Scritti, 1961,
p. 25).
52 Cf. BAROCCHI, 1971, pp. 707–711.

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O Paragone entre a Pintura e a Escultura

O fato é que os embates em torno do paragone jamais voltaram a


atingir a intensidade dos tempos de Varchi ou Vincenzio Borghini.
Embora pintura e escultura ainda não tivessem alcançado de
maneira incontestável o elevado patamar de nobreza que se ambi-
cionava, ao menos já se tinha a certeza de que o caminho estava
sendo trilhado. E foi nesse contexto que o pintor milanês Giovan
Paolo Lomazzo, tendo perdido a visão aos 33 anos de idade, pas-
sou a se dedicar à literatura artística. Segundo Schlosser, Lomazzo
foi o responsável pelo maior e mais amplo tratado do maneirismo,
a sua verdadeira bíblia53, e não há exagero em tal afirmação, uma
vez que esse tratado54 gozou de certa fortuna não apenas na Itália,
mas também na França, Espanha e Inglaterra. No que se refere ao
paragone, Lomazzo deixa claro ter amplo conhecimento da disputa
promovida por Varchi55 e já na sua introdução demonstra compac-
tuar com a definição filosófica do florentino. Portanto, ele avalia que
a pintura e a escultura têm um fim comum, que é o de apresentar
aos nossos olhos as substâncias individuais, sempre com a intenção
de retratar as coisas naturais do modo mais semelhante possível 56.
Trata-se, de fato, de uma derivação direta da imitação artificiosa da
natureza concebida por Varchi.
Apesar disso, no entanto, Lomazzo considera a pintura como uma
arte superior à escultura e, no intuito de esclarecer seu posiciona-
mento, ele afirma recorrer a um livro de Leonardo sobre o assunto
escrito a pedido de Lodovico Sforza57. Assim, ele volta a insistir na
questão da fadiga corporal inerente à escultura em oposição à fadiga
mental característica da pintura. Logo em seguida, Lomazzo retoma
o tema da modelagem como a irmã da pintura e mãe da escultura

53  SCHLOSSER, 1993, p. 340.


54  LOMAZZO, Gio. Paolo. Trattato dell’arte della pittura. Diviso in sette libri. Ne’
quali si contiene tutta la theorica e la prattica d’essa pittura. Milão: Paolo Gottardo
Pontio, 1584.
55  LOMAZZO, 1584, p. 331. Cf. ainda LOMAZZO, 1974, I, p. 51.
56  LOMAZZO, 1584, p. 8.
57  LOMAZZO, 1584, pp. 158–160.

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Alexandre Ragazzi

— o que havia sido apenas mencionado por Vasari — para, a partir


disso, renovar sua convicção na superioridade da pintura em rela-
ção à escultura. Para ele, além de a modelagem e a pintura compar-
tilharem o mesmo princípio aditivo, ambas excluem as fadigas físi-
cas. Lomazzo considera portanto que a escultura não é mais do que
uma extenuante imitação da modelagem. O curioso nesse ponto é
ele ter afirmado, apesar de ciente de que o argumento remonta à
Antiguidade, que se baseou em escritos de Leonardo. De fato, ele
parece estar parafraseando Leonardo, e o trecho é arrematado nos
seguintes termos: e essas são, de modo geral, as próprias palavras
escritas por Leonardo. Assim sendo, apresentam-se algumas alterna-
tivas para se compreender a passagem, sobretudo no que se refere
à modelagem. Lomazzo poderia arbitrariamente ter introduzido
o tema da modelagem como mãe da escultura entre as afirmações
autorizadas por Leonardo simplesmente porque conhecia a fonte
antiga; poderia também ter chegado a isso através de Vasari; mas,
aparentemente, nada impede que ele o tenha feito a partir de um
manuscrito de Leonardo que não nos chegou. Carlo Pedretti alu-
diu a essa última possibilidade em duas ocasiões, convencido de
que toda a passagem tivesse sido extraída de Leonardo, inclusive
o trecho com a genealogia das três atividades — o qual não consta
em nenhum escrito remanescente de Leonardo58. Efetivamente, há
diversos indícios que apontam ao menos para a verossimilhança
de tal proposição. Primeiramente, Lomazzo, ao que parece citando
Leonardo e sempre na mesma passagem, escreve:

(…) portanto a pintura vem a ser tia da escultura e irmã


da modelagem, da qual eu sempre me deleitei e ainda me
deleito, como demonstram diversos cavalos inteiros, pernas e

58 Cf. PEDRETTI, Carlo. “Studi vinciani — Documenti, analisi e inediti leo-


nardeschi”. In: appendice: Saggio di una cronologia dei fogli del ‘Codice Atlantico’,
Genève: Librairie E. Droz, 1957, pp. 64, 66, n. 8; cf. ainda VINCI, 1995, pp.
54–55.

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O Paragone entre a Pintura e a Escultura

cabeças que fiz, e ainda cabeças humanas de Nossa Senhora,


jovens Cristos inteiros e em partes, e cabeças de velhos em
bom número (…).

Ora, a obra de Lomazzo é pouquíssimo conhecida e não há notí-


cias de que ele tenha sido também um modelador, mas, ao con-
trário, sabe-se que Leonardo o foi e que se serviu desses modelos
plásticos para seus estudos e suas pinturas59. O próprio Lomazzo
assegura que possuía um modelo de um jovem Cristo de argila feito
por Leonardo60, o qual ele poderia ter obtido através de Francesco
Melzi, o famoso discípulo e herdeiro de Leonardo. Melzi, por sua
vez, é mencionado por Vasari como o detentor dos desenhos de
anatomia do mestre, e logo depois de apresentar essa notícia o bió-
grafo informa-nos deste modo:

Assim como estão nas mãos de (…), pintor milanês, alguns


escritos de Leonardo, também com caracteres escritos ao
contrário, que tratam da pintura e dos modos do desenho e
do colorir. Esse pintor não faz muito veio me ver em Florença
com a intenção de imprimir essa obra, e conduziu-a a Roma
para tal fim, mas não sei o que se sucedeu quanto a isso61.

Como Vasari acabara de citar Melzi, não é de se descartar a hipó-


tese de que essa lacuna quanto ao nome do pintor milanês possa
ser preenchida por Lomazzo — que, como se sabe por sua autobio-

59  Sobre o uso de modelos plásticos auxiliares por parte de Leonardo, cf.
KWAKKELSTEIN, 1999, pp. 181–198; sobre um modelo anatômico feito e utili-
zado por Leonardo, cf. KWAKKELSTEIN, Michael W., “New copies by Leonardo
after Pollaiuolo and Verrocchio and his use of an ‘écorché’ model — Some notes
on his working method as an anatomist”. In: Apollo, January, 2004, pp. 21–29.
60  LOMAZZO, 1584, p. 127. Pedretti tentou identificar esse modelo com a ter-
racota da antiga coleção Gallaudt (PEDRETTI, 1957, pp. 62–67).
61  VASARI, 1568, IV, p. 28.

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Alexandre Ragazzi

grafia, de fato visitou Roma62, provavelmente entre 1559 e 1565 —,


de modo que ele poderia sim ter conhecido um texto de Leonardo
com mais elementos sobre o paragone. Mas ocorre que essa passa-
gem somente aparece da edição de 1568 das Vidas, enquanto que
Vasari já mencionava a bizarra genealogia das três atividades em
1550, quando Lomazzo tinha apenas doze anos. Assim, se por um
lado se pode aceitar a hipótese de que Lomazzo seja esse pintor
milanês ao qual se refere Vasari63, por outro é pouco provável que o
texto de Leonardo que Lomazzo conhecia contivesse um trecho em
que a pintura é considerada tia da escultura. E embora seja possível
que a sequência da passagem, com a referência às peças modeladas,
refira-se a um manuscrito de Leonardo que se perdeu, é igualmente
plausível que Lomazzo tenha mesclado à sua fonte leonardiana con-
tribuições de outro autor, o qual propomos identificar com Vasari.
Seja como for, o mais surpreendente nessas particularidades são as
implicações que Lomazzo delas extrai. Ele não apenas daí deduz que
a pintura é superior à escultura, mas também encontra nesse argu-
mento uma via para legitimar a dependência da pintura em rela-
ção ao relevo completo, porquanto este seria uma propriedade da
modelagem, a irmã da pintura.
Ideia do templo da pintura — texto que somente foi publicado
em 1590 — a princípio deveria constituir o primeiro capítulo, ou
melhor, a introdução do tratado de 158464. Lomazzo ambicionava
apresentar em termos universais e conceituais o que fora minucio-
samente exposto no tratado, de modo que Ideia seria uma espé-

62  A autobiografia de Lomazzo foi anexada às suas Rime (1587, pp. 528–542) e
pode ser consultada in: LOMAZZO, 1974, II, p. 444 quanto à viagem a Roma.
63 Gaetano Milanesi, na edição de 1906 das Vidas de Vasari (IV, p. 37, n. 1),
sugeriu Aurelio Luini como hipótese sem, no entanto, apresentar argumentos
que pudessem comprovar tal suposição.
64 Argumento proposto por Robert Klein (cf. publicação póstuma in:
LOMAZZO, 1974, II, sobretudo pp. 473, 503 e ss.) e retomado em 1964 por
Gerald M. Ackerman em sua tese de doutorado (cf. ACKERMAN, Gerald M.,
“Lomazzo’s treatise on painting”. In: The Art Bulletin, v. 49, n. 4, Dec. 1967, pp.
317–326).

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O Paragone entre a Pintura e a Escultura

cie de guia sintético destinado a auxiliar o leitor a melhor com-


preender a imensa obra prática. Em dois momentos desse texto
Lomazzo remete o pintor ao uso de modelos plásticos. Primeiro,
referindo-se a Michelangelo:

Mas porque a Pintura, como já afirmou Michelangelo, tanto


mais relevo mostra quanto mais se aproxima e assemelha-se
ao modelo vivo65, (…) faz-se necessário, para tornar mais
fácil e adequado esse método de trabalho, ter um conheci-
mento da prática [da modelagem] ao menos o suficiente
para poder fabricar modelos de argila ou cera, a partir dos
quais possam mais facilmente ser reconhecidas as sombras
e as luzes dos corpos distribuídas em seus devidos lugares,
assim como fizeram os melhores dessa arte66.

E depois ao falar sobre o método empregado por Tiziano:

Tiziano, nessa parte, colocava-se sob os modelos feitos de


madeira, argila e cera e deles extraía as posturas; fazia isso a
uma distância curta e obtusa, pelo que as figuras se tornam
maiores e terríveis, enquanto que as que estão mais atrás se
tornam muito curtas, criando um ângulo não somente reto,
mas pouco menos que obtuso67.

Apesar disso, no tratado Lomazzo não considera as coisas com


a mesma constância. Se em alguns momentos ele reconhece a legi-

65 Note-se que Michelangelo afirmara na carta a Varchi não exatamente isso,


mas sim que a pintura será tanto melhor quanto mais relevo tiver, e a escultura
tanto pior quanto mais se aproximar da pintura (cf. VARCHI, 1549, p. 154).
66 LOMAZZO, 1974, I, p. 93. Paolo Pino também já havia aludido ao quão
importante era para o pintor o saber modelar: “É preciso que o nosso pintor (…)
tenha noções de escultura, o que também é oportuno ao fazer modelos para ver
as poses e acomodar os tecidos” (PINO, 1548, f. 29r-v).
67 LOMAZZO, 1974, I, p. 137.

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Alexandre Ragazzi

timidade do uso de modelos plásticos68, em outros ele se mostra


contrário à prática. E quando argumenta sobre o uso articulado da
modelagem e da quadrícula para a realização de escorços, ele afirma:

De modo algum essas vias são adequadas para se fazer os


escorços, porquanto, além do embuste do fazer empirica-
mente, não podem ser vistas a profundidade e as partes pos-
teriores do modelo — sem as quais se equivoca quem pre-
tende fazer bons escorços. E enganam-se enormemente os
pintores que acreditam que Michelangelo fazia os seus escor-
ços retratando-os a partir de modelos69.

Na sequência, remexendo uma vez mais na questão do paragone,


Lomazzo polemiza com os escultores e diz que os pintores talentosos
não utilizam esculturas como modelo. E novamente comparece o
tema pliniano e, por que não dizer, vasariano da genealogia das três
atividades: quanto a isso não devem pensar os escultores que a pin-
tura tenha de se servir em alguma parte da arte deles para alcançar
bons resultados, porque ainda que ela se servisse de modelos, todavia
esses provêm da plástica e não da escultura70. Enfim, no sexto livro
do tratado, Lomazzo ainda insiste na questão e abertamente diz:

A arte da estatuária, da plástica ou, se se preferir, a arte do


fazer figuras em relevo — a qual tem muita familiaridade
com a pintura por adicionar e subtrair com discernimento
— teve origem muitíssimos anos antes da arte da escultura,
com a qual são entalhados os mármores e outros materiais

68 LOMAZZO, 1584, pp. 321, 457.


69 LOMAZZO, 1584, p. 252, e isso não obstante a passagem de Ideia sobre
Michelangelo que acabamos de reproduzir. Quanto ao uso que Michelangelo
teria feito de modelos plásticos auxiliares para a realização de escorços,
cf. VARCHI, 1549, p. 152; CELLINI, 1857, p. 365; VASARI, 1568, I, p. 122;
ARMENINI, 1587, pp. 98–99.
70 LOMAZZO, 1584, p. 253.

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O Paragone entre a Pintura e a Escultura

semelhantes. Por isso pode ser considerada, com razão, mãe


da escultura e irmã da pintura71.

Ora, o diálogo com Leonardo, Michelangelo, Plínio e Vasari não


poderia estar mais explícito.
Para concluir, podemos dizer que essas ambiguidades em
Lomazzo serão mais facilmente compreendidas se se lançar um
olhar simultâneo para o passado e para o futuro. Nesse caso, con-
siderar o passado significa ter presente a tradição quanto ao uso
de modelos plásticos como aparato acessório para a pintura assim
como a extensa disputa sobre o paragone — a qual, de certo modo,
criou um empecilho para a aplicação de tal tradição. Quanto ao
futuro, esses mesmos modelos plásticos começaram a ser enten-
didos como algo extremamente mecânico e que não mais cor-
respondia à imagem nobilitada do pintor que se havia fabricado.
Pressionado por essas forças, Lomazzo foi impelido, em certos
momentos, a negar um procedimento que efetivamente fazia parte
da prática habitual dos pintores, o que demonstra que nem sempre
teoria e prática artística caminham juntas72. E é fascinante perceber
como durante esse breve período de pouco mais de trinta anos uma
fonte proveniente da Antiguidade foi articulada ao parecer daquele
que era considerado a maior autoridade em pintura e escultura. A
definição de Michelangelo de pintura como a atividade que adi-
ciona e escultura como atividade que retira — em que comparece
de modo subjacente o pensamento de Leonardo — foi amparada
pela fonte pliniana, e então estavam dados os elementos que pos-
sibilitavam, não obstante a disputa sobre o paragone, a interação
entre a pintura e o relevo completo.

71 LOMAZZO, 1584, p. 328.


72 Por razões alinhadas a essas, artistas-teóricos como Carlo Urbino da Crema
acabariam por refutar — ao menos na teoria — o uso de modelos plásticos para
a pintura (cf. ff. 111r-112v do Codex Huygens, In: PANOFSKY, Erwin, Le Codex
Huygens et la théorie de l’art de Léonard de Vinci, Traduit de l’anglais et présenté
par Daniel Arasse, Paris: Flammarion, 1996).

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Alexandre Ragazzi

Em pouco tempo os ânimos seriam aplacados e a prática de se


desenhar a partir de esculturas clássicas acabaria por se tornar
um dos pilares metodológicos do ensino nas nascentes academias
de arte. Quanto à função dos modelos plásticos auxiliares para a
pintura depois de Lomazzo, Armenini e Bernardino Campi, esse é
um aspecto da história da arte que ainda está por ser considerado
com mais atenção73.

73 Sobre esse tema, já reunimos um notável número de passagens da litera-


tura artística dos séculos XVII e XVIII, o que, de fato, contraria nossas expec-
tativas. Em breve esperamos poder apresentar resultados que nos permitam
melhor compreender o posto desses modelos plásticos entre o rigor das aca-
demias de arte e a obsessão pela vivacidade característica do barroco. Até o
momento, a principal fonte continua sendo o artigo de Schlosser (SCHLOSSER,
Julius von, Aus der bildnerwerkstatt der Renaissance: Fragmente zur Geschichte
der Renaissanceplastik. In: Jahrbuch der Kunsthistorischen Sammlungens des
Allerhöchsten Kaiserhauses [Jahrbuch der Kunsthistorischen Sammlungen in
Wien], XXXI, 1913/4, pp. 67–135, sobretudo pp. 111–118).

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Traduções

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Vida de Giulio Romano,
pintor, de Giorgio Vasari 1
Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

C
inco anos antes de falecer, Giulio Romano conhecera pes-
soalmente Giorgio Vasari, que então passava por Mântua a
recolher dados e histórias para a finalização de seu livro de
biografias. Da Vida de Giulio, entendemos o impacto que esse con-
tato produziu em Vasari. O aretino encantou-se com o artista e com
o homem de bons costumes. Dedicou uma biografia compacta a um
“Giulio Romano, pintor e arquiteto”, com um preâmbulo emprestado
a um elogio que dedicara Pietro Aretino ao artista. Giulio é apre-
sentado num nível que poderíamos dizer semelhante àquele em
que figurava também seu mestre, ou até — há quem veja — mais
elevado, como se a linha contínua e ascendente da história da arte
tivesse colocado Giulio Romano na superação de seu mestre.
Dezoito anos mais tarde, Vasari apresentou ao público a segunda
edição de seu livro, revista e ampliada, onde Giulio Romano é ape-
nas “pintor”. Desaparece o arquiteto. E não é sem surpresa que nos
deparamos com mudanças significativas: cortes violentos — como
a supressão do preâmbulo —, a alteração da epígrafe, inserção de
longos trechos descritivos. Compreende-se que Vasari, ao ampliar

1  Tradução da “Vita di Giulio Romano, pittore”. In: Vasari, G. Le vite de’


piú eccellenti pittori, scultori, e architettori, scritte da M. Giorgio Vasari pittore et
architetto aretino, di nuovo dal medesimo riviste et ampliate con i ritratti loro et
com l’aggiunta delle Vite de’ vivi e de’ morti dall’anno 1550 insino al 1567. Veneza:
Giacopo Giunti, 1568, a partir da edição de Gaetano Milanesi. Florença: Sansoni
Editore (1878–1885) 1906.

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Vida de Giulio Romano, pintor, de Giorgio Vasari

sua edição e publicá-la após quase duas décadas, foi naturalmente


forçado a uma reinterpretação de vários passos. Não se trata de dei-
xar de lado ideias e posturas adotadas anteriormente para substituí-
las simplesmente por outras muitas vezes antitéticas. Trata-se de
uma adaptação do olhar à distância e sob profundas transforma-
ções culturais. Se na primeira edição das Vite Giulio parecia supe-
rar Rafael, isso é agora invertido, não sem razão, mas a custa de
um apagamento deliberado dos traços dessa superação, às vezes
em prejuízo de Giulio. O redimensionamento da inteira Vida de
Giulio Romano, em grande medida, acompanha a justa reavaliação
da Vida de Rafael de Urbino.

Vida de Giulio Romano, pintor

Entre os infinitos discípulos de Rafael de Urbino, dos quais a


maior parte tornou-se valorosa, nenhum o imitou melhor em seu
estilo, invenção e desenho do que Giulio Romano2; nenhum foi
mais fundamentado, audaz, seguro, inventivo, vário, prolífico e uni-
versal. Foi ainda dulcíssimo na conversação, alegre, afável, gracioso
e de ótimos costumes: razões pelas quais Rafael o amou como não
teria amado um filho, empregando-o nas obras mais importantes,
especialmente nas galerias de Leão X3. Porque, tendo Rafael feito
os desenhos da arquitetura, dos ornamentos e das cenas, deixou a
Giulio a execução de muitas daquelas pinturas, entre as quais a da
criação de Adão e Eva, a dos animais, a fabricação da Arca de Noé,

2  De acordo com o texto vasariano, Giulio teria morrido aos 54 anos, no dia
1o de novembro de 1546, o que leva a uma data de nascimento no ano de 1492.
No entanto, o necrológio do Uffizio della Sanità di Mantova, afirma que Giulio
morreu naquela mesma data, porém “na idade de 47 anos”, remetendo seu nas-
cimento ao ano de 1499.
3  As logge do Vaticano.

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

o sacrifício e muitas outras que se reconhecem pelo estilo, como


aquela em que a filha do faraó, com suas damas, encontra Moisés
no caixote lançado ao rio pelos hebreus; obra maravilhosa pela pai-
sagem muito bem feita.
Também ajudou Rafael a colorir muitas coisas no quarto da torre
Borgia4, onde está o Incêndio do Borgo5, particularmente o emba-
samento em cor bronze6, a condessa Matilda7, o rei Pepino8, Carlos
Magno9, Godofredo de Bulhões, rei de Jerusalém10, e outros benfei-
tores da igreja11, todas ótimas figuras. Parte dessa história foi publi-

4  A “torre” ou “apartamento” Borgia é um anexo do palácio Vaticano datado


do pontificado de Alexandre VI (1492–1503). Vasari aqui se refere especifi-
camente à chamada “Stanza dell’Incendio di Borgo”, a terceira e última sala do
apartamento cuja decoração foi terminada por Rafael. Há divergências consi-
deráveis quanto à extensão e natureza da participação de Giulio nessas obras.
Concorda-se geralmente em admitir sua preponderância na execução dos pri-
meiros planos do Incêndio. Os afrescos são: A Batalha de Ostia; A Coroação de
Carlos Magno, O Juramento de Leão III e O Incêndio de Borgo.
5  Afresco que dá nome à terceira e última stanza, foi realizado sobre a parede
Sul, com toda probabilidade entre a metade e o final de 1514
6  Na parte inferior das paredes estão seis figuras pintadas em monocromia
cor de bronze dourado, como falsas estátuas: Constantino, o Grande; Carlos
Magno, Etelbaldo da Inglaterra; Godofredo de Bulhões; Lotário I e Ferdinando,
o Católico. Essas pinturas, colocadas entre as primeiras obras conhecidas de
Giulio Romano, datam da primeira metade de 1517. A atribuição a Giulio
Romano não gerou muita discussão.
7  Essa figura não se encontra mais na sala. A Condessa Matilda de Canossa
(1046–1114) foi protetora do papa Gregório VII, tendo doado à Igreja, em 1077
muitos de seus domínios e contribuído com doações em prata e ouro e com a
colocação de seu exército a serviço da Igreja.
8  Também esta figura pintada não se encontra hoje na sala. Trata-se de Pepino,
o Breve (714–768).
9  A figura de Carlos Magno encontra-se pintada abaixo do afresco que repre-
senta sua coroação.
10  Godofredo de Bulhões (1060–1100), duque da Baixa Lorena e primeiro rei de
Jerusalém, é representado no embasamento abaixo do Incêndio de Borgo, à esquerda.
11  Outros quatro soberanos benfeitores, promotores ou protetores da Igreja são
omitidos por Vasari. Constantino é aquele ao qual não se dá nome; os demais
são Astolfo, Lotário e Fernando, o Católico.

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Vida de Giulio Romano, pintor, de Giorgio Vasari

cada em gravura não faz muito tempo, tirada de um desenho do


próprio Giulio. Este trabalhou ainda a maioria das cenas afresca-
das na galeria de Agostino Chigi12. Colaborou na execução de um
belíssimo quadro de Santa Isabel13, a óleo, que foi mandado ao Rei
Francisco da França14 junto com uma Santa Margarida que ele exe-
cutou quase inteiramente com desenho do mestre15. Rafael enviou
ao mesmo rei um retrato da vice-rainha de Nápoles16 no qual não
fez nada além de representar a cabeça do natural, e o restante ter-
minou Giulio17. Essas obras, que muito agradaram àquele rei, ainda
estão na França, na capela real de Fontainebleau.
Assim, trabalhando com Rafael, Giulio aprendeu as coisas mais
difíceis da arte, ensinadas com incrível afeto. E não levou muito para

12  Ou seja, na galeria de Psiquê na villa Farnesina, em Roma, propriedade do


banqueiro sienês Agostino Chigi, comerciante e banqueiro dos mais importan-
tes da Europa em sua época. Giulio pintou ali, em afresco, junto com outros
alunos de Rafael, as cenas da história de Amor e Psiquê.
13  Trata-se da chamada “Sagrada Família de Francisco I”: pintura a óleo sobre
madeira transposta para tela em 1777; 207 x 140cm. Paris, Museu do Louvre, inv.
1498. Encomendada por Leão X, a pintura é executada entre março e abril de 1518
Giulio Romano seria o responsável pela execução da Santa Isabel e do São João.
14  Francisco I (1494–1547), rei francês entre 1515–1547, soberano apaixonado
pela arte italiana, levou à França vários artistas italianos, entre eles Leonardo da
Vinci, Serlio, Primaticcio, Cellini e Rosso Fiorentino.
15  Há duas versões da Santa Margarida (1518). Vasari aqui se refere à do Museu
do Louvre (1518). Uma variação do tema está em Viena, no Kunsthistorisches
Museum (1519–1520; óleo sobre madeira; 192 x 122cm), e é atribuída geral-
mente a Giulio Romano.
16  A vice-rainha de Nápoles (1518; óleo sobre madeira passada à tela; 120 x
95cm. Paris, Museu do Louvre, inv. 612.). Tradicionalmente essa personagem foi
identificada com Joana de Aragão (Giovanna d’Aragona), princesa de Nápoles.
Um estudo de 1997, no entanto, confirmou que Vasari estava certo, que a retra-
tada é doña Isabel de Requesens i Enríquez de Cardona-Anglesola, esposa do
catalão Ramon Folch III de Cardona-Anglesola (1467–1522), vice-rei da Sicília
(1507–1509) e vice-rei de Nápoles (1509–1522). A pintura é datada de 1518.
17  Em se tratando de uma encomenda oficial para personagens ilustres, acre-
dita-se que Rafael não teria deixado o trabalho totalmente nas mãos de Giulio
Romano, e a crítica confirma a colocação vasariana do feitio da cabeça por
Rafael e do restante por Giulio Romano.

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

aprender a representar muito bem em perspectiva, medir os edifí-


cios e traçar plantas. Às vezes, Rafael esboçava suas ideias e deixava a
Giulio sua representação ampliada e mensurada, para servir-se delas
nas coisas da arquitetura. Giulio, deleitando-se com esse trabalho,
aplicou-se e exercitou-se de tal modo que se tornou excelente mestre.
À morte de Rafael18, Giulio e Giovanfrancesco, dito o Fattore19,
foram feitos seus herdeiros e, ficando com o encargo de terminar as
obras começadas pelo mestre, concluíram honradamente a maior
parte com perfeição.
A seguir, tendo o cardeal Giulio de’ Medici, futuro Clemente
Sétimo20, adquirido uma localidade em Roma, na vertente do
Monte Mario, onde além de uma bela vista havia nascentes de água,
alguma boscagem na orla e uma bela planície que corria ao longo
do Tibre até a Ponte Molle, ladeada de prados que se estendiam
quase até a porta de São Pedro, planejou construir no topo, sobre
uma campina, um palácio com todo o conforto e comodidade de
quartos, galerias, jardins, fontes, bosques e o que de mais belo e
melhor se pudesse desejar; e deu o encargo inteiramente a Giulio,
que o tomou prontamente e, tendo começado, terminou aquele
palácio, que então se chamou vinha dos Medici e hoje Madama21,
com a perfeição da qual se falará abaixo.
Ajustando-se então às características do lugar e à vontade do
Cardeal, fez a fachada da frente em forma de semicírculo, como um
teatro, com uma divisão de nichos e janelas de ordem jônica tão elo-

18  Rafael faleceu aos 37 anos, no dia seis de abril de 1520.


19  Ou seja, o artista florentino Giovanfrancesco Penni, il Fattore (c.1496–1528).
Ao lado de Giulio Romano, foi aluno e fiel colaborador, acolhido por Rafael em
sua casa. Acompanhou o mestre a Roma em 1508 e participou de suas obras
mais importantes.
20  Giulio de’ Medici (1478–1534). Filho natural de Giuliano de’ Medici e primo
de Giovanni de’ Medici, Leão X. Foi eleito papa em 18 de novembro de 1523,
com o nome de Clemente VII.
21  Apesar das contradições de Vasari, hoje não há dúvidas de que a enco-
menda foi dirigida a Rafael e que este começara a obra, concluída por Giulio
Romano e Sangallo.

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Vida de Giulio Romano, pintor, de Giorgio Vasari

giada, que muitos creem que tenha feito Rafael o primeiro esboço22
e que depois a obra tenha sido continuada e concluída por Giulio.
Este fez ali muitas pinturas, nos quartos e em outros lugares e, parti-
cularmente, passado o primeiro vestíbulo da entrada, em uma gale-
ria belíssima23, ornada de nichos grandes e pequenos ao seu redor,
nos quais há grande quantidade de estátuas antigas: entre outras,
havia um Júpiter24, coisa rara, que depois foi enviado pelos Farneses
ao rei Francisco da França junto com muitas outras estátuas belís-
simas. Além desses nichos, é a dita galeria trabalhada em estuque e
inteiramente pintada, paredes e abóbadas, com muitas grotescas da
mão de Giovanni da Udine25.
Na extremidade dessa galeria, Giulio fez um Polifemo grandís-
simo, com infinito número de crianças e satirozinhos que brincam
ao seu redor26, o que lhe trouxe muito louvor, assim como trouxe-
ram ainda todas as obras e desenhos que fez para aquele lugar, o
qual adornou de viveiros de peixes, pavimentos, fontes rústicas27,
bosques e outras coisas similares, todas belíssimas, feitas com bela

22  O texto vasariano dá a entender que houve um projeto para a fachada tal e
qual ela se apresenta, nessa forma semicircular quando, na realidade, a fachada
em semicírculo é resultante da interrupção das obras do pátio circular presente
no projeto U 314 A (Uffizi), interrupção que fez com que o que deveria ser um
círculo permanecesse como metade dele.
23  É a chamada “galeria do jardim”, na fachada Norte.
24  A referida estátua de Júpiter é a que hoje integra o acervo do Museu do
Louvre, conhecida como Júpiter de Versalhes, descoberta em Roma em 1525 e
considerada uma das maiores e mais belas já encontradas ali. Vasari está enga-
nado quanto ao destino da escultura, que foi enviada por Margherita Farnese a
Perrenot de Granvelle, em Besançon, e não a Francisco I.
25  Giovanni Francesco de’ Ricamatori (1487–1561).
26  O Polifemo, seguramente obra de Giulio Romano, ainda existe, mas muito
deteriorado, pintado em afresco numa luneta da galeria do jardim.
27  Vasari refere-se aqui à chamada fonte do Elefante, que Giovanni da Udine
executa em 1526, preservada ainda hoje no jardim da villa ao lado da galeria.
Uma cabeça de elefante domina o centro da fonte, e o animal é cercado por
plantas aquáticas.

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

ordenação e juízo.É bem verdade que, sobrevindo a morte de Leão28,


não foi de outro modo continuada essa obra; porque, criado novo
pontífice, Adriano29, e tendo retornado a Florença o cardeal dos
Medicis, ficaram para trás, junto com essa, todas as obras públicas
começadas pelo seu antecessor.
Giulio e Giovanfrancesco, entretanto, terminaram muitas coisas
de Rafael que haviam permanecido incompletas e preparavam-se
para realizar parte dos cartões que ele fizera30 para as pinturas da
sala grande do palácio31, na qual começara a pintar quatro histó-
rias do imperador Constantino e havia, quando morreu, coberto
uma parede com um preparado para se trabalhar a óleo, quando
perceberam que Adriano nem pintura, escultura ou outra coisa boa
apreciava e não cuidou que fosse terminada. Portanto, desespera-
dos Giulio e Giovanfrancesco e, junto com eles, Perino del Vaga,
Giovanni da Udine, Bastiano Veneziano e outros artistas excelentes
estiveram prestes (vivendo Adriano) a morrer de fome.
Mas, como quis Deus (enquanto a corte, afeita às grandezas de
Leão, esmorecera completamente, e todos os melhores artistas iam
pensando onde se abrigar, não vendo mais qualquer talento ser valo-
rizado), morreu Adriano32, e foi feito sumo pontífice Giulio, car-
deal dos Medicis, que foi chamado Clemente Sétimo33, com o qual
ressuscitaram em um dia, juntamente com outras virtudes, todas

28-Leão X morre em 1º de dezembro de 1521.


29-É o chamado “papa holandês”. Adriano Florensz (1459–1523), um dos úni-
cos papas modernos a manter seu nome de batismo, sucede Leão X de 9 de
janeiro de 1522 a 14 de setembro de 1523.
30-Não se conhece qualquer cartão de Rafael para a sala de Constantino.
31-O ambiente que Vasari chama de “sala grande do palácio” é a Sala de
Constantino, no palácio Vaticano. À época da realização dos afrescos, o apo-
sento é chamado de “sala de Pontefici”.
32-Adriano VI morre em 14 de setembro de 1523. Seu pontificado dura ape-
nas vinte meses.
33-Giulio de’ Medici, com o nome de Clemente VII, é feito papa em 19 de
novembro de 1523. Ele respeita e confirma a “decisão” de Leão X sobre os artis-
tas que trabalham na Sala de Constantino, mantendo Giulio e Penni.

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Vida de Giulio Romano, pintor, de Giorgio Vasari

as artes do desenho. E Giulio e Giovanfrancesco, logo que tiveram


ordem do papa, colocaram-se a acabar, alegres, a chamada Sala de
Constantino, e desmancharam toda a parede coberta com o prepa-
rado para ser trabalhada a óleo, porém deixando ali, como estavam,
duas figuras que eles tinham anteriormente pintado a óleo e que
servem de ornamento ao redor de alguns papas34: uma Justiça35 e
outra figura similar36.
A divisão dessa sala, porque era baixa, fora desenhada com muito
juízo por Rafael, que havia colocado nos cantos, acima de todas
as portas, alguns nichos grandes, com ornamentação de putti que
seguravam diversos emblemas de Leão: lírios, diamantes, penas e
outras insígnias da casa Medici. E dentro dos nichos sentavam-se
alguns papas em hábito pontifical, com uma sombra para cada um
dentro do nicho. E ao redor dos tais papas havia putti, como anji-
nhos, que seguravam livros e outras coisas apropriadas nas mãos.
Cada papa tinha nas laterais duas Virtudes, colocando-o no meio,
de acordo com o que mais havia merecido. E como Pedro Apóstolo
tinha de um lado a Religião, do outro a Caridade ou a Piedade37,
assim todos os outros tinham virtudes semelhantes. E os ditos
papas eram Dâmaso Primeiro, Alexandre Primeiro, Leão Terceiro,
Gregório, Silvestre e alguns outros38, os quais foram todos muito

34  São oito os papas representados na sala, criando um ciclo paralelo ao das
histórias de Constantino.
35  Essa figura, realizada a óleo juntamente com a representação da Comitas,
que Vasari diz “figura similar”, foram certamente as primeiras a serem pintadas
no conjunto da sala. A Justiça está à direita da Batalha. Ambas datam do perí-
odo posterior à morte de Rafael, mas seriam remanescentes da primeira fase do
programa executivo.
36  Trata-se possivelmente da personificação da Comitas – a Bondade – pin-
tada a óleo.
37  Vasari engana-se duas vezes. Trata-se da personificação da Igreja (Ecclesia),
em vez da Religião. Depois, nem Caridade, nem Piedade, mas sim uma represen-
tação da Eternidade (Aeternitas).
38  Os papas são: o já mencionado Pedro Apóstolo, com Igreja (Ecclesia) e
Eternidade (Aeternitas); Clemente I, com Moderatio (Moderação) e Comitas
(Bondade) e Urbano I, com Caritas e Iustitia.

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

bem arranjados e pintados por Giulio, que nesta obra em afresco fez
os melhores, porque se sabe que ali se esforçou e colocou diligência,
como se pode ver em um desenho de um São Silvestre39 que foi
por ele mesmo muito bem concebido e tem talvez muito mais graça
do que a pintura, embora se possa afirmar que Giulio exprimisse
sempre melhor seus conceitos nos desenhos do que ao trabalhar as
pinturas, vendo-se neles mais vivacidade, vigor e intensidade. E isso
podia talvez acontecer porque um desenho ele fazia em uma hora,
totalmente vigoroso e entusiasmado no trabalho, enquanto nas pin-
turas consumia meses e anos, de modo que, chegando-lhe o fastio e
faltando aquele vivo e ardente amor que se tem quando se começa
alguma coisa, não é surpresa se não lhes dava a completa perfeição
que se vê em seus desenhos.
Mas, voltando às cenas, em uma das paredes Giulio pintou um
discurso que Constantino faz aos soldados40, onde no ar aparece
o símbolo da cruz em um resplendor com alguns putti e letras que
dizem: in hoc signo vinces; e um anão41, colocando um elmo na
cabeça, aos pés de Constantino, é feito com muita arte.
Depois, na parede maior, há uma batalha de cavalos42, feita ao
lado da Ponte Molle, onde Constantino derrotou Maxêncio. Essa
obra, pelos feridos e mortos que nela se veem e pelas diversas e
insólitas posturas dos peões e cavaleiros que combatem agrupa-
dos, feitos vigorosamente, é elogiadíssima, além de que existem
ali muitos retratos do natural43. E se essa cena não fosse excessiva-
mente pintada e tomada por tons negros, dos quais Giulio sempre

39  Giulio Romano. Desenho a pena, aquarela e branco de chumbo; marcas de


reticulado; 31 x 23,5cm. Chatsworth, inv. 139
40  Adlocutio, ou O discurso de Constantino aos soldados, ou A visão da cruz.
Afresco pertencente à parede oriental. 1520–1521.
41  Trata-se de Gradasso Berrettai da Norcia, anão do cardeal Ippolito de’ Medici.
42  A Batalha de Constantino contra Maxêncio ou A batalha de ponte Milvia.
Pintura da parede principal (Sul).
43  Embora Vasari aqui se refira a vários retratos, não se conhece menção ou
identificação de qualquer um deles.

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Vida de Giulio Romano, pintor, de Giorgio Vasari

se deleitou em seus coloridos, seria completamente perfeita; mas


isso lhe tira muita graça e beleza.
Na mesma cena, fez toda a paisagem de Monte Mario e, no rio Tibre,
Maxêncio, que, sobre um cavalo, assustador e altivo, submerge. Em
suma, Giulio portou-se tão bem nessa obra, que foi grande luz para
quem fez batalhas similares depois dele. E Giulio aprendeu muito
das colunas antigas de Trajano e Antonino, em Roma, valendo-se
delas muito para as roupas dos soldados, para as armaduras, insíg-
nias, bastiões, paliçadas, aríetes e para todas as outras coisas da
guerra que estão pintadas por aquela sala. E sob essas cenas pintou
ao redor, em cor bronze, muitas coisas belas e louváveis.
Na outra parede, fez o papa São Silvestre batizando Constantino44,
representando o próprio banho, que está hoje em San Giovanni in
Laterano, feito por aquele imperador, e ali retratou, do natural, o
papa Clemente na figura do São Silvestre que batiza, com alguns
assistentes paramentados e muita gente. E entre muitos amigos do
papa que ali retratou similarmente do natural, retratou o Cavalierino,
que então governava Sua Santidade: senhor Niccolò Vespucci, cava-
leiro de Rodes45. E na parte de baixo dessa parede, no embasamento,
fez, em figuras imitando bronze, Constantino, que faz edificar a
igreja de São Pedro, em Roma, aludindo ao papa Clemente, e nessas
figuras retratou Bramante, arquiteto, e Giuliano Leno46 com o dese-
nho da planta da citada igreja na mão, que é muito bela cena.
Na quarta parede, sobre a lareira da sala, ele representou em
perspectiva a igreja de São Pedro com a residência atual do papa, e
este cantando a Missa pontifical com a ordem dos cardeais e outros
prelados de toda a corte, a capela dos cantores e músicos, e o papa

44  O Batismo de Constantino por São Silvestre. Afresco da terceira parede.


Executado entre a eleição de de Clemente VII, em novembro de 1523, e a fina-
lização da sala, em 1524.
45  Niccolò Vespucci (1474/1475–1535), pertencente à ordem dos cavaleiros
de Rodes.
46  Giuliano Leno. Engenheiro e arquiteto das obras do canteiro de São Pedro,
aluno de Bramante.

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

assente, representado como São Silvestre, tendo Constantino ajoe­


lhado a seus pés47, o qual lhe apresenta uma Roma feita de ouro
como aquelas que estão nas medalhas antigas, querendo com isso
mostrar o dote que o próprio Constantino fez à Igreja Romana.
Nessa cena, Giulio fez muitas mulheres ajoelhadas, belíssimas,
assistindo à cerimônia, e um pobre pedindo esmola, um menino
brincando sobre um cão, e os lanceiros da guarda papal que afas-
tam e mantêm à distância o povo, como é costume. Entre os muitos
retratados nessa obra, ali se vê do natural o próprio Giulio, pintor48,
o conde Baldassare Castiglione, criador d’O Cortesão49 e amicíssimo
seu, o Pontano50, o Marullo51 e muitos outros literatos e cortesões.
Ao redor das janelas e entre elas, Giulio pintou muitas insígnias
e fantasias poéticas belas e caprichosas, donde cada coisa agradou
tanto o papa, que este o recompensou amplamente por tais trabalhos.
Enquanto essa sala era pintada, não podendo satisfazer em parte
nem aos amigos, Giulio e Giovanfrancesco fizeram em um painel
uma ascensão de Nossa Senhora belíssima52, a qual foi enviada
à Perugia e colocada no monastério das monjas de Monteluce. E
depois, Giulio, recolhido a sós, fez em um quadro uma Nossa

47  4a parede: Doação de Constantino (Constantino ajoelhado aos pés do papa


Silvestre). A parede setentrional da sala de Constantino é executada somente
sob Clemente VII, entre o fim de 1523 e 1524.
48  Não se sabe, com certeza, onde estaria o retrato de Giulio Romano, se é que
há um retrato do artista ali.
49  Libro del cortegiano (Veneza, 1528) é a obra-prima de Castiglione, traduzido
em diversas línguas entre 1534 e 1593.
50  Giovanni ou Gioviano Pontano (1429–1503) é um dos maiores expoentes
do humanismo no século XV, figura central na Accademia Napoletana e na
administração do reino.
51  Michele Marullo Tarcaniota (1453–1500). Humanista, filólogo e poeta ita-
liano de origem grega; é um dos poetas mais originais em seus escritos em
língua latina do final do século XV.
52  O painel de Monteluce ou A coroação da Virgem. Óleo sobre madeira; 354 x
230 cm. Vaticano, Pinacoteca Vaticana, n. 359. Monteluce é um convento pró-
ximo à Perugia. A pintura é encomendada a Rafael em 1505, mas este morre
sem ter entregado a obra, que é então concluída por Giulio e Penni, em 1525.

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Vida de Giulio Romano, pintor, de Giorgio Vasari

Senhora com uma gata53, tão natural que parecia vivíssima; donde
foi aquele quadro chamado o quadro da gata. Em outro quadro
grande, fez um Cristo espancado na coluna, que foi colocado sobre
o altar da igreja de Santa Prassede, em Roma54.
Após não muito tempo, o senhor Giovanmatteo Giberti55, que
depois foi bispo de Verona e então era datário56 do papa Clemente,
incumbiu Giulio, seu amigo muito próximo, do projeto de algumas
salas que foram construídas com tijolos perto da porta do palácio
do papa, fronteando a praça de São Pedro, onde soam as trombe-
tas57 quando os cardeais vão ao consistório, e com uma subida de
degraus tão cômodos que se podem galgar a cavalo e a pé.
Para o mesmo senhor Giovanmatteo, fez em um painel um
Apedrejamento de Santo Estevão que enviou para um benefício seu
em Gênova, dedicado ao santo58. Em tal painel, que é, pela invenção,
graça e composição, belíssimo, vê-se, enquanto os judeus apedrejam
Santo Estevão, o jovem Saulo sentar-se sobre as vestes daquele.
Enfim, Giulio nunca fez obra mais bela do que essa, pelas vigo-
rosas posturas dos apedrejadores e pela bem expressa paciência de
Estevão, que parece verdadeiramente ver sentar-se Jesus Cristo à
direita do Pai em um céu pintado divinamente. Essa obra foi dada

53  Madonna della Gatta. Óleo sobre madeira; 172 x 144cm. c. 1523. Museo
Nazionale di Capodimonte, Nápoles, inv. Q.140.
54  Cristo na coluna ou A Flagelação de Santa Prassede, obra realizada antes de
1520. Roma, Santa Prassede.
55  Gian (Giovan) Matteo Giberti, importante figura eclesiástica do século XVI,
um dos preparadores da Contrarreforma, nascido em Palermo, em 1495.
56  “Datário” é o membro da dataria, a repartição da Santa Sé, de onde são expe-
didos os negócios regulados pelo papa fora do consistório.
57  Essa obra realizada por Giberti no Vaticano, conhecida como “Loggia dei
Trombetti”, foi demolida para dar lugar à Scala Regia de Bernini. No entanto, há
vários testemunhos gráficos diferentes.
58  O apedrejamento de Santo Estevão. Óleo sobre madeira; 4,02 x 2, 87m.
Gênova, igreja de Santo Stefano. A data exata da execução da pintura não é
clara, entre 1521 e 1523.

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

pelo senhor Giovan Matteo aos monges de Monte Oliveto junta-


mente com o benefício, que converteram em um monastério.
Fez o próprio Giulio a Jacopo Fugger, alemão59, para uma capela
que está em Santa Maria dell’Anima, em Roma60, um belíssimo
painel a óleo61 no qual estão Nossa Senhora, Sant’Anna, São José,
São Tiago, São João menino ajoelhado e São Marcos Evangelista
com um leão aos pés, o qual, estando deitado com um livro, tem
a pelagem que se modifica conforme sua posição, o que foi difícil
e bela tarefa, além de que o mesmo leão tem curtas asas sobre os
ombros, com penas tão plumosas e macias, que parece quase ina-
creditável que a mão de um artista possa imitar tanto a natureza
(Fig. 14, p. 462).
Ali fez, além disso, um edifício circular como um teatro, com
algumas estátuas tão belas e bem arranjadas, que não se pode ver
melhor. E, entre elas, há uma mulher que, fiando, observa uma gali-
nha e alguns pintinhos, e não pode ser coisa mais natural. E acima
da Nossa Senhora estão alguns putti, muito bem feitos e graciosos,
que sustentam um cortinado. E se também esse painel não tivesse
sido tão carregado de cores escuras, donde se tornou escuríssimo,
certamente teria sido muito melhor. Mas esse preto, ainda que
envernizado, faz com que a maior parte dos trabalhos se perca ou
apague, pois faz perder a qualidade, pela sequidão dada seja pelo
marfim queimado, pelo carvão, pelo negro de fumo62 ou pelo papel
queimado de sua composição.

59  Jakob Fugger (1459–1525), chamado “o Rico”, é o comerciante e banqueiro


alemão, de Augsburg, financiador de Carlos V.
60  Santa Maria dell’Anima é a igreja nacional alemã em Roma.
61  Sagrada Família com São Marcos e São Tiago ou painel Fugger . Óleo sobre
madeira. Roma, igreja de Santa Maria dell’Anima, altar-mor. c. 1523. A pintura
representa uma Sagrada Família com São José e São João Batista menino lade-
ada por São Marcos, com um grande leão aos pés, e São Tiago.
62  O nerofumo ou nero di fumo é um depósito de partículas de carvão, obtido
por combustão incompleta de substâncias orgânicas, usado na fabricação de
resinas, gomas, tintas, vernizes, pigmentos, etc. É um dos principais pigmentos
negros que entram na composição da tinta para gravura.

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Vida de Giulio Romano, pintor, de Giorgio Vasari

Entre os muitos discípulos que teve Giulio quando trabalhou essas


coisas63, os quais foram Bartolomeo da Castiglione64, Tommaso
Paperello cortonense65, Benedetto Pagni da Pescia66, aqueles dos
quais ele mais familiarmente se servia eram Giovanni da Lione67
e Raffaello dal Colle del Borgo San Sepolcro68, um e outro na sala
de Constantino e, nas outras obras, das quais já se tratou, ajuda-
ram a trabalhar muitas coisas; donde não quero omitir que, sendo
eles muito habilidosos ao pintar e tendo bem observado o estilo de
Giulio ao realizar as coisas que este lhes desenhava, coloriram com
seu desenho, próximo à velha Casa da Moeda, em Banchi, um bra-
são do papa Clemente Sétimo ladeado por duas hermas; isto é, cada
um deles coloriu uma metade69. E o dito Raffaello, não muito depois,
com o desenho de um cartão de Giulio, pintou em afresco, num
semicírculo da parte interna da porta do palácio do cardeal Della

63  Muito pouco se sabe a respeito da suposta “escola” de Giulio Romano em Roma.
64  Alguns autores citam um certo Bartolomeo Merlino da Bologna como dis-
cípulo de Giulio no período Romano. Trata-se provavelmente da mesma pessoa,
uma vez que esse artista é citado no testamento de Giulio datado de 1524, ao
lado de Raffaellino del Colle.
65  Trata-se de Tommaso Bernabei (c. 1500–1559), conhecido pelo apelido de
“Papacello”, e não “Paparello”, como escreve Vasari. Foi aluno de Luca Signorelli,
ajudante de Giulio Romano em Roma.
66  Benedetto Pagni da Pescia (c. 1504–1578). É considerado ativo de c. de 1520
em diante. Teria sido treinado no ateliê de Rafael. Assiste Giulio Romano em
Roma e vai com ele, em 1524, para Mântua, onde trabalha na decoração do
Palazzo Te, sobretudo na Sala dos Cavalos, na Loggia di David e na sala de Psiquê.
67  Giovanni del Leone/Lione: é aluno de Rafael e colaborador de Giulio
Romano. É possível que tenha se formado em San Sepolcro, onde nasceu, na
escola de Giovanni di Pietro, lo Spagna, um colaborador de Perugino. Depois
estava entre os auxiliares de Rafael nos trabalhos das stanze.
68  Raffaello di Michelangelo di Luca dal Colle (nasc. c. 1494/1497) proveniente
da localidade de Colle, vizinha a San Sepolcro. Forma-se na tradição umbra,
provavelmente no âmbito de alunos de Perugino. É mencionado nos trabalhos
das logge do Vaticano. É provável que se encontrasse sob a orientação de Giulio
Romano antes de 1520.
69  Trata-se de uma obra desaparecida, realizada num edifício não precisado,
próximo à casa da moeda.

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

Valle, uma Nossa Senhora que cobre com um pano o Menino ador-
mecido, e de um lado está Santo André apóstolo e, do outro, São
Nicolau; obra que foi considerada, com verdade, pintura excelente70.
Giulio, entrementes, sendo muito próximo do senhor Baldassare
Turini da Pescia71, tendo feito o desenho e modelo, construiu para
ele, sobre o Monte Janículo, onde há vinhas de belíssima vista, um
palácio com tanta graça e conforto, por todas as comodidades dese-
jáveis em semelhante lugar, que mais não se pode dizer. E, além
disso, foram os aposentos não somente adornados de estuque, mas
também de pintura, tendo ele próprio pintado ali algumas histórias
de Numa Pompílio72, que teve naquele lugar o seu sepulcro. Na sala
de banhos desse palácio, Giulio pintou, com a ajuda de seus jovens
colaboradores, algumas histórias de Vênus e Amor, e de Apolo e
Jacinto73, todas colocadas em gravura74.
E, tendo se separado completamente de Giovanfrancesco, fez
em Roma diversas obras de arquitetura, como o projeto da casa

70  Esse afresco não sobreviveu, mas pode bem ser imaginado, pela descrição
de Vasari, em composição similar ao tipo da Madona do Diadema, da escola de
Rafael, no Louvre.
71  Baldassare Turini (1486–1543). Clérigo na corte de Leão X, de Clemente VII
e Paulo III. Figura destacada como comitente de pintura e arquitetura, protetor
de artistas, amigo pessoal de Rafael e de Giulio Romano, de quem se torna exe-
cutor testamentário.
72  As histórias de Numa Pompílio originalmente foram pintadas a fresco
na abóbada da sala. As cenas são extraídas de Tito Lívio (História de Roma),
Plutarco e Virgílio ( Éclogas e Eneida). As cenas principais representam: O
encontro de Jano e Saturno; A fuga de Clélia; A libertação de Clélia e A descoberta
do túmulo de Numa Pompílio e os livros sibilinos. As oito cenas secundárias são:
Numa Pompílio sacrifica à Vesta, A construção do templo de Jano, Jano implora à
Paz para destruir as armas; A castração de Urano; Orazio Coclite sobre a ponte;
Muzio Scevola; Fama; e A estátua equestre de Clélia. Essas obras foram transpor-
tadas em 1837.
73  Não há sinais dos afrescos mencionados por Vasari como sendo da mão
de Giulio e seus ajudantes. Entre esses ajudantes deveriam estar Polidoro da
Caravaggio, Maturino Fiorentino e Vincenzo Tamagni.
74  De acordo com o próprio Vasari (Milanesi,1906, vol. V, p. 417), essas gravu-
ras teriam sido feitas por Marcantonio Raimondi.

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Vida de Giulio Romano, pintor, de Giorgio Vasari

dos Alberini, em Banchi75, ainda que alguns acreditem que aquela


ordem viesse de Rafael; e igualmente um palácio, que hoje se vê
na praça da Alfândega76 de Roma, que, por ser de bela ordem, foi
colocado em gravura77. E para si fez em uma esquina do Macello
de’Corbi78, onde estava sua casa, na qual ele nascera, um belo segui-
mento de janelas que, por pouco que seja, é muito gracioso79.
Depois da morte de Rafael, sendo Giulio considerado o melhor
artista da Itália por suas ótimas qualidades, o conde Baldassare
Castiglione, que então era em Roma o embaixador de Federico
Gonzaga, marquês de Mântua80, e amicíssimo de Giulio, como se
disse, tendo sido mandado pelo marquês, seu senhor, que lhe enviasse
um arquiteto do qual se servir nas necessidades de seu palácio e da
cidade, e porque o marquês particularmente estimasse muito Giulio,
tanto se empenhou com súplicas e promessas, que Giulio disse que
iria, desde que fosse com a licença do papa Clemente.
Tal licença obtida, ao partir para Mântua, enviado pelo papa ao
imperador, o conde levou Giulio consigo81; e, ao chegar, apresen-
tou-o ao marquês, que, depois de muitas gentilezas, deu-lhe uma
casa distintamente guarnecida e ordenou provisões e estipêndio

75  O palácio Alberini é o atual Cicciaporci, na via del Banco di Santo Spirito,
n. 12. A obra é realizada para o senhor Giulio degli Alberini, canônico de São
Pedro. Posteriormente, a residência passa aos Cicciaporci.
76  Hoje Piazza Sant’Eustachio.
77  Provavelmente realizada por Antonio Lafréry (1512–1577) para seu
Speculum Romane Magnificentiae, de 1549.
78  A casa paterna de Giulio encontrava-se na imediata vizinhança do Foro
Romano e do Campidoglio e ocupava a esquina da via Macel de’Corvi com via
di Loreto, no Rione Monti. A casa, a rua e o quarteirão onde esta ficava desapa-
receram para dar lugar ao monumento de Vittorio Emmanuel.
79  A data para a reforma da propriedade é sugerida, comumente, entre 1523
e 1524.
80  Federico II Gonzaga (1500–1540) é o quinto marquês e primeiro duque de
Mântua (nomeado em 1530).
81  Numa carta, de 4 de outubro de 1524, Castiglione escreve a Federico que
eles estavam prontos para partir. Outra carta, de 7 de outubro, de Angelo
Germanello a Federico II, indica a partida de ambos no dia 6.

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

para ele, para Benedetto Pagni, seu criado, e para um outro jovem
que o servia. E, o que é mais, enviou-lhe o marquês muitas varas
de veludo e cetim, tecidos refinados e encorpados para vestir-se. E
depois, sabendo que não tinha cavalgadura, fez vir um cavalo favo-
rito seu, chamado Luggieri, e lho deu. E com Giulio montado sobre
ele, foram para fora da porta de San Sebastiano, distante um tiro
de seteira, onde Sua Excelência tinha um terreno e alguns estábu-
los, chamado o T 82, em meio a uma pradaria, onde mantinha sua
criação de cavalos e éguas. E ao chegar ali, disse o marquês que teria
desejado, sem desmanchar a muralha antiga, adaptar um pouco do
terreno, de modo que pudesse ir para lá de vez em quando descan-
sar e ficar para almoçar ou para a ceia.
Giulio, uma vez ouvida a vontade do marquês e levantada a planta
do local, colocou mãos à obra. E servindo-se das paredes velhas, fez
em uma parte maior a primeira sala, que se vê hoje ao entrar, no
centro da sequência de cômodos. E porque o lugar não tem pedras
naturais nem pedreiras que permitam fazer blocos de cantaria e
pedras cinzeladas, como se usa nas muralhas por quem pode fazê-lo,
serviu-se de tijolos e de cerâmica, trabalhando-os depois com estu-
que. E com essa matéria fez colunas, bases, capitéis, cornijas, portas,
janelas e outros trabalhos83 com belíssimas proporções. E com novo
e extravagante estilo fez os ornamentos das abóbadas, com divisões
internas belíssimas e com nichos ricamente ornamentados, o que
foi razão para que, de um princípio humilde, se resolvesse o mar-
quês a fazer depois aquele edifício inteiro como um grande palácio.
Porque Giulio, tendo feito um belíssimo modelo de obra rústica por

82  O nome desse palácio (a palavra “Te”), encontrado em diversas grafias em


todos os tempos e por vários historiadores, é a forma abreviada “Te”, que seria
uma contração do topônimo “Tejeto”, “Teietto”, “Theyeto”, “Tejeto” ou “Teietto”.
“Tegetum” era palavra que indicava localidade rural, suburbana, derivado do
nome das antigas casas de palha dos camponeses (“teze” ou “tezze” cabana).
83  Por falta de pedras para edificação no território mantuano e pela dificuldade
de importá-las em quantidade suficiente, as construções da cidade eram feitas
de tijolos, usando-se a pedra somente para a ornamentação.

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Vida de Giulio Romano, pintor, de Giorgio Vasari

fora e dentro, no pátio interno, agradou tanto àquele senhor que,


tendo sido ordenada boa provisão de dinheiro e por Giulio dirigi-
dos muitos mestres, a obra foi rapidamente concluída84.
Tal é a forma desse palácio: o edifício é quadrado e tem no centro
um pátio aberto85, como um prado ou uma praça, no qual desem-
bocam em cruz quatro entradas86. A primeira delas, em primeira
vista, atravessa uma grandíssima galeria que, por meio de outra87,
desemboca no jardim. Duas outras entradas levam a diversos apar-
tamentos, e estas são ornadas com estuques e pinturas88. E na sala,

84  Entre o final de 1526 e o início de 1527, as obras de estruturação se esten-


diam por todo o edifício. Somente em 1529 aparecerem referências ao trabalho
de acabamento externo; e é essa a terceira fase, na qual são trabalhadas as facha-
das, o que é feito de modo contínuo por volta de 1532 e 1533.
85  Trata-se do “cortile d’onore”, o pátio central quadrangular no espaço interno
formado pelas quatro alas do edifício.
86  Na verdade, as quatro entradas às quais ele se refere podem bem ser enten-
didas como as duas galerias (no corpo Norte e Leste) e os dois vestíbulos (corpo
Sul e Oeste) que permitem o acesso de quem se encontra no pátio aberto ao
interior do edifício, porque o Te não possui quatro entradas a partir do exterior,
nas fachadas externas, mas apenas duas: a entrada Norte, pela galeria das Musas,
que é a entrada atual, e a entrada na fachada ocidental, que corresponde ao
ingresso original do palácio.
87  Vasari parece ter trocado as duas primeiras entradas que menciona.
Entrava-se pelo vestíbulo de ingresso (no lado Oeste) com sua abóbada de
berço, que atravessa o corpo do edifício como um túnel. Imediatamente à frente,
o olho chega à galeria de Davi e, por meio desta, ao jardim. Mas para chegar
à galeria de David é preciso percorrer a largura do pátio central. O que Vasari
chama aqui de “grandíssima galeria” corresponde ao vestíbulo de ingresso, e a
segunda galeria que menciona é a de Davi, pela qual, necessariamente se tem
acesso ao jardim cercado.
88  As primeiras duas entradas às quais Vasari se refere têm de ser identificadas
com as Leste e Oeste, no eixo do direcionamento do edifício. Agora ele cita as
outras duas, que só podem ser, portanto, Norte e Sul, mas as menciona deco-
radas de estuques e pinturas. Ora, as duas “entradas” ornadas de estuques e
pinturas são, de fato, a galeria de Davi, no corpo Leste, e a galeria das Musas, no
corpo Norte, que é precedida de um pequeno vestíbulo sem decoração.

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

a que é introduzida pela primeira entrada89, é pintada em afresco


a abóbada feita em várias divisões90. Nas paredes, estão retratados
do natural, com seus nomes, os cavalos mais belos e favoritos da
criação do marquês e, junto com eles, os cães91, feitos da mesma
pelagem e manchas, todos desenhados por Giulio e coloridos a
fresco por Benedetto Pagni e Rinaldo Mantovano92, pintores e seus
criados, e, em verdade, tão bem no figurar o real que parecem vivos.
Dessa sala, caminha-se para outra, no canto do palácio93, que
tem a abóbada feita com belíssima divisão de estuques e varia-
das cornijas tocadas de ouro em alguns lugares. E estas formam
quatro octógonos94 que levam a um quadrado no ponto mais alto,
onde Cupido desposa Psiquê diante de Júpiter (ofuscado por uma
luz celeste) e de todos os deuses. De tal história, não é possível
ver coisa feita com mais graça e desenho, porque Giulio escorçou
tão bem aquelas figuras de baixo para cima, que algumas delas,

89  A sala – dos cavalos – “que é introduzida pela primeira entrada”, diz Vasari,
confirmando seu engano em relação à disposição das entradas e galerias no
trecho acima. É o maior aposento do palácio, comumente chamada de “salotto”
nos documentos. Sua função era a de abrigar as festas e banquetes de Federico.
90  Diferentemente do que nos conta Vasari, a sala dos Cavalos não tem cober-
tura abobadada, mas um pesado teto plano trabalhado em madeira a lacunário
e inteiramente decorado.
91  Aqui não há cães representados junto com os cavalos, nem em qualquer
outra parte dessa sala.
92  Rinaldo Mantovano foi o mais destacado colaborador de Giulio. Não se
conhece a data de seu nascimento, mas seu período de atividade está entre
c. 1527 e 1539, sempre em Mântua. É correta a afirmação sobre o trabalho de
Pagni e Rinaldo nessa sala: os documentos permitem dizer que cada um traba-
lhou ali 263 dias. Porém, outros auxiliares de Giulio operaram na sala, o que é
atestado pelos mesmos documentos. São citados: um certo Bozino, que traba-
lha 240 dias; Fermo, 62 dias; e Girolamo (da Pontremoli), somente 6. Fermo
trabalha 240 dias a 12 soldi por dia e pode ser o pintor das arquiteturas.
93  Ou seja, a Sala de Psiquê. O canto referido é o que se volta para o Nordeste.
94  Vasari chama “octógonos” aos semi-octógonos. Em número de quatro são
apenas os semi-octógonos que emolduram o quadrado central no ponto mais
elevado da abóbada. Os octógonos são em número de oito.

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Vida de Giulio Romano, pintor, de Giorgio Vasari

dificilmente maiores que uma braça95, mostram-se, vistas do chão,


com três braças de altura. Na realidade, são feitas com admiráveis
arte e engenho, tendo Giulio sabido fazer de modo que, além de
parecerem vivas (de tanto relevo que têm), enganam com agradá-
vel visão o olho humano.
Depois, nos octógonos estão todas as primeiras histórias de Psiquê,
das adversidades que lhe aconteceram por causa do desprezo de
Vênus, realizadas com a mesma beleza e perfeição. E nos ângulos
estão muitos Amores, como também nas janelas, produzindo efei-
tos variados de acordo com os espaçamentos. Essa abóbada é toda
colorida a óleo, pelas mãos de Benedetto e Rinaldo, supracitados.
Portanto, o restante da história de Psiquê está nas paredes de
baixo, que são as maiores. Numa, em afresco, Psiquê está no
banho96 e os Amores a lavam e enxugam com belíssimos gestos.
Em outra parte, enquanto se prepara o banquete oferecido por
Mercúrio, Psiquê se lava, as Bacantes tocam, as Graças espargem
flores sobre a mesa com belíssima maneira. Sileno, com seu burro,
é sustentado por sátiros. Sentado sobre uma cabra que tem dois
meninos sugando-lhe as tetas97, ele está em companhia de Baco,
que tem dois tigres aos pés e apoia um braço num guarda-louça
ladeado por um camelo e um elefante.
Esse guarda-louça, semicircular como um tonel, é recoberto de
festões de verduras e flores, e repleto de videiras carregadas de cachos
de uva e de pâmpanos. Sob os festões, há três fileiras de vasos bizar-
ros, bacias, jarros, xícaras, taças e outras coisas de formas variadas
e fantásticas, tão brilhantes, que parecem prata e ouro verdadeiros,

95  A braccia é uma unidade de medida de comprimento, variável entre 58cm


e 68cm, usada sobretudo na Itália centro setentrional. Ainda havia a possibili-
dade de variações regionais, como a braccia mantuana. Cfr. o glossário.
96  A figura feminina na parede setentrional da sala é Vênus, que está no banho
acompanhada por Marte e Cupido, numa passagem extraída da Hynerotomachia
Poliphili, de Francesco Colonna (1499).
97  Trata-se não de meninos, mas de pequenos sátiros, e estes estão a sugar as
tetas da cabra, porém não daquela sobre a qual está montado Sileno.

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

e tão bem imitados com uma simples tinta amarela, que mostram
o engenho, o talento e a arte de Giulio, que aqui mostrou-se vário,
rico e copioso de invenção e de artifício.
Pouco adiante, vê-se Psiquê, que, rodeada por muitas mulheres
que a servem e presenteiam98, vê, na distância, entre as colinas,
despontar Febo com seu carro solar guiado por quatro cavalos99.
Sobre as nuvens, Zéfiro, deitado e totalmente nu, sopra, por um
chifre que tem na boca, suavíssimas aragens, que tornam aprazível
e sereno o ar que envolve Psiquê.
Essas histórias foram recentemente gravadas com desenho do
veneziano Battista Franco, que as copiou exatamente100 como
foram pintadas, a partir dos cartões grandes de Giulio, por
Benedetto da Pescia e por Rinaldo Mantovano, os quais realizaram
todas essas cenas101, exceto o Baco, o Sileno e os dois meninos que
mamam na cabra. É verdade que a obra foi depois quase inteira-
mente retocada por Giulio, donde é como se tivesse sido toda feita
por ele. Tal método, que ele aprendeu com Rafael, seu preceptor, é
muito útil para os jovens que nele se exercitam, porque se tornam,
geralmente, excelentes mestres. E apesar de alguns se convence-
rem de ser mais do que quem os dirige, logo percebem que, por ter
abandonado o guia antes de chegar ao fim ou por ter trabalhado

98  A imagem mencionada não existe no afresco. Psiquê aparece deitada sobre
um triclínio juntamente com Cupido e a pequena Volúpia, sua filha. Um putto
coloca em suas cabeças uma grinalda, duas servas versam a água numa bacia;
nenhuma, contudo, serve especificamente a Psiquê, nem ela se encontra distante.
99  Tal representação não existe na sala de Psiquê. Vasari parece ter empre-
gado como fonte imagens gravadas, provavelmente as de Battista Franco, que
somente traduzem os afrescos (nas paredes). Possivelmente, ele não conse-
guiu visitar o Te em sua segunda estadia em Mântua em 1566 para refrescar
sua memória.
100  São duas as gravuras de Battista Franco relativas às cenas das paredes,
ambas denominadas “O concílio dos deuses”. Há divergências observadas no
confronto com a pintura, sobretudo no agrupamento numa mesma composição
das cenas da preparação do banquete e do banho de Marte e Vênus.
101  Ali trabalharam: Rinaldo Mantovano, Benedetto Pagni, Fermo da Cara­
vaggio e Luca da Faenza, na decoração das paredes.

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Vida de Giulio Romano, pintor, de Giorgio Vasari

sem desenho e sem ordem, perderam tempo e encontram-se como


cegos em um mar de infinitos erros.
Mas, voltando aos aposentos do T, passa-se dessa sala de Psiquê
a um outro aposento todo decorado com frisos duplos de figu-
ras em baixo-relevo trabalhadas em estuque102, com desenho de
Giulio, pelo jovem bolonhês Francesco Primaticcio103 e por Giovan
Battista Mantovano104. Nesses frisos está toda a ordem de solda-
dos da Coluna Trajana, em Roma, trabalhados com belo estilo.
No teto de uma antecâmera, é pintado a óleo o momento em
que Ícaro, ensinado pelo pai, Dédalo, por querer voar alto demais,
e tendo visto o signo de Câncer e o carro do Sol puxado por
quatro cavalos em escorço próximo ao signo de Leão, perde as
asas, sendo, pelo calor do sol, destruída a cera105. Depois, vê-se
Ícaro, precipitando-se no ar, quase cair em cima do observador,
todo pintado no rosto com cor de morte. Tal invenção foi tão
bem pensada e realizada por Giulio, que parece real: vê-se o calor
do sol, frigindo, queimar as asas do mísero jovem, o fogo aceso
fazer fumaça, e quase se escuta o crepitar das penas que ardem,
enquanto se vê esculpida a morte no rosto de Ícaro e, em Dédalo,
a paixão e a dor vivíssima. No nosso Livro de desenhos de diver-
sos pintores há o desenho autêntico dessa belíssima cena, de mão

102  Da sala de Psiquê, passa-se à “camera dei Venti”. Os frisos aos quais Vasari
se refere nesta passagem estão na sala dos Estuques. Logo a seguir, ele dirá que
pinturas pertencentes à “sala do Ventos” estão na “camera delle aquile” (ou de
Faetonte).
103  Francesco Primaticcio (1504–1570). Artista bolonhês de importante papel
na escola de Fontainebleau. Entre 1526 e 1531 trabalha sob a direção de Giulio
Romano em Mântua, formando-se ali. Francisco I escrevera a Federico II solici-
tando um artista que pudesse realizar para ele trabalhos de arquitetura, pintura
e estuque similares aos do Te, e Primaticcio é enviado.
104  Giovan Battista Scultori (1503–1575), artista mantuano estucador e grava-
dor. Um dos melhores estucadores de Giulio, chega a Mântua aos 21 anos e o
acompanha em suas principais empreitadas.
105  A imagem pintada no teto da sala não representa a queda de Ícaro, mas a
de Faetonte (Ovídio. Metamorfoses, livro II), e o erro vasariano foi repetido
por vários séculos.

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

do próprio Giulio. No mesmo lugar106, ele representou as histó-


rias dos doze meses do ano com suas principais ocupações e artes.
Tal pintura não é menos caprichosa, e de bela e agradável inven-
ção, feita com juízo e diligência.
Passada aquela grande galeria trabalhada com estuques, muitos
brasões e vários outros ornamentos bizarros107, chega-se a alguns
aposentos cheios de fantasias tão variadas, que ofuscam o inte-
lecto. Giulio, que era caprichosíssimo e engenhoso, para mostrar
o quanto valia, em um canto do palácio similar àquele da supraci-
tada sala de Psiquê, planejou uma sala cuja parede tivesse corres-
pondência com a pintura, para enganar ao máximo quem a visse108.
Aquele lado, que estava em lugar pantanoso, Giulio mandou
alicerçar com fundações profundas e espessas, para que os qua-
tro cantos externos fossem mais fortes109 e pudessem suportar o
grande aposento circular110, de paredes muito grossas e abóbada
dupla e redonda como um forno. Isso feito, como a sala possu-
ísse cantos, dispôs, em toda sua volta e em seus lugares, as portas,
as janelas e a lareira de pedras rústicas, desparelhadas ao acaso,
e de um modo meio desconjuntado e torto, que pareciam real-
mente pender para um lado e de fato desabar111. E edificado esse

106  As pinturas a que se refere não estão no mesmo local que as anteriores, mas
pertencem, à chamada “Sala dos Ventos”, ou “do Zodíaco”.
107  A grande galeria mencionada é a de Davi, o maior ambiente do palácio,
passagem obrigatória entre os dois apartamentos principais – o de Psiquê e
o dos Gigantes – e, ao mesmo tempo, com dupla saída: ao pátio interno e ao
jardim.
108  Trata-se da Sala do Gigantes, no ângulo Sudeste do palácio
109  O resultado das escavações arqueológicas no local desmente a afirmação
de Vasari sobre o emprego de fundações mais profundas e duplas, além de
esclarecer que as paredes externas desse lado do edifício têm a mesma espes-
sura das do restante.
110  A sala dos Gigantes possui planta quadrada.
111  Depois de afirmar que a sala era de planta circular, Vasari diz que a sala
possui cantos, o que significa o encontro de dois planos comumente em 90º,
expondo a contradição.

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Vida de Giulio Romano, pintor, de Giorgio Vasari

aposento112, tão estranhamente, colocou-se a pintar nele a mais


caprichosa invenção que se pudesse encontrar, Júpiter fulmi-
nando os gigantes.
E assim representado o céu, no mais alto da abóbada, fez o trono
de Júpiter com sua águia, escorçando-o de baixo para cima e de
frente, dentro de um templo circular sustentado por uma colunata
jônica aberta e com o dossel centralizado acima do assento113: tudo
colocado sobre as nuvens. Embaixo, fez Júpiter irado, fulminando os
soberbos gigantes, e, mais embaixo, Juno, que lhe ajuda. Ao redor, os
ventos, com rostos estranhos, sopram na direção da terra, enquanto
a deusa Ops114 e seus leões voltam-se, ao terrível barulho dos raios.
Assim também fazem os outros deuses e deusas, e sobretudo Vênus,
ao lado de Marte, e Momo115, que, com os braços abertos, parece
duvidar que não desabe o céu, e, não obstante, está imóvel. As
Graças estão cheias de temor, e as Horas116, perto delas, do mesmo
modo. Enfim, cada uma das divindades põe-se a fugir em seus car-
ros. A Lua, Saturno e Jano vão em direção ao ponto mais claro das
nuvens, para afastar-se daquela fúria e pavor horríveis. Netuno, com
seus golfinhos, faz o mesmo e parece tentar parar sobre o tridente.
Palas e as nove Musas estão olhando que coisa horrível é aquela. E
Pan, abraçado a uma ninfa que treme de medo, parece querer salvá-
la daquele incêndio e daqueles clarões de raios de que o céu está
cheio. Apolo está sobre o carro solar, e algumas das Horas parecem
querer deter o curso dos cavalos. Baco e Sileno, com sátiros e ninfas,
demonstram grandíssimo medo. Vulcano, com seu pesado martelo

112  Não há problemas de datação nessa sala. Sabe-se que a execução dos afres-
cos é iniciada em primeiro de março de 1532. De março de 1532 a julho de 1534,
a cúpula é concluída e as paredes Leste e Sul da sala estão sendo afrescadas.
113  O pequeno templo é pintura realizada por Fermo da Caravaggio, de acordo
com documento datado de 11 de outubro de 1532. Esse tempietto pintado evoca
Bramante em San Pietro in Montorio.
114  Ops (ou Ope) é a deusa romana da Abundância.
115  Momo é a personificação do Sarcasmo e, comumente, uma figura feminina.
116  As Horas estão junto de Apolo e seus cavalos, no lado oposto.

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

sobre um ombro, olha na direção de Hércules, que fala daquele caso


com Mercúrio, que está ao lado de Pomona, toda medrosa, como
também está Vertuno e todos os outros deuses espalhados pelo céu,
onde são tão bem expressos os efeitos do medo, tanto naqueles que
ficam como naqueles que fogem, que não é possível, a não ser vendo,
imaginar mais bela fantasia do que essa em pintura.
Nas partes inferiores, isto é, nas paredes retas sob o restante da
abóbada, estão os gigantes. Alguns deles, embaixo de Júpiter, têm
montanhas sobre si, e, às costas, grandíssimas pedras que supor-
tam nos fortes ombros, para fazer altura e subida ao céu, quando se
prepara sua ruína. Porque Júpiter fulminando, e todo o céu encole-
rizado contra eles, parece não somente espantar sua temerária ousa-
dia, derrubando os montes às suas costas, mas estar o mundo inteiro
revirado e perto de seu momento derradeiro. E nesta parte Giulio
fez Briareu117 em uma caverna escura, quase coberto por pedaços
de altíssimos montes, alguns gigantes completamente despedaçados
e outros mortos sob as ruínas das montanhas. Por uma abertura no
escuro de uma gruta, mostrando uma paisagem distante feita com
bom juízo, veem-se muitos gigantes fugirem, atravessados pelos
raios de Júpiter, para logo serem oprimidos pelos destroços dos
montes, como os outros.
Em outra parte, Giulio representou outros gigantes, sobre os
quais caem templos, colunas e pedaços de muralhas, fazendo des-
ses soberbos um enorme massacre. E nesse lugar, entre as muralhas
que desabam, estão a lareira118 do aposento, que parece mostrar os
gigantes ardendo quando ali se acende o fogo, e Plutão, com seu
carro puxado por cavalos magros e acompanhado pelas Fúrias infer-
nais, fugindo para o centro. Assim, não se afastando Giulio, com

117  O gigante que Vasari identifica com Briareu pode ser Tifeu, que, punido
por Júpiter por desejar subir ao Olimpo, é aprisionado na Sicília, fazendo tre-
mer a terra e assim surgir o vulcão Etna (Livro V das Metamorfoses de Ovídio).
118  A lareira mencionada não existe mais; foi retirada em 1781 porque teria
coberto de fuligem as pinturas acima. A parede foi então fechada e pintada,
imitando o estilo da pintura da sala na representação de pedras.

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Vida de Giulio Romano, pintor, de Giorgio Vasari

essa invenção do fogo, do propósito da cena, faz da lareira orna-


mento belíssimo. Além disso, Giulio, nessa obra, para torná-la mais
apavorante e terrível, fez com que os gigantes de enorme e estranha
estatura (perseguidos de diversos modos pelos clarões e raios) caís-
sem por terra: uns na frente, outros atrás, um morto, outro ferido,
um coberto por montes e por ruínas de edifícios. Então jamais
alguém pense ver obra de pincel mais hórrida e medonha, e mais
natural do que essa. E quem entra naquela sala, vendo as janelas, as
portas e outras coisas semelhantes torcendo-se e prestes a desabar,
e os montes e os edifícios a cair, não pode deixar de temer que cada
coisa lhe despenque sobre as costas, vendo sobretudo naquele céu
todos os deuses irem fugindo, um aqui, outro ali. O que é mara-
vilhoso nessa obra é ver a pintura inteira não ter princípio nem
fim, e toda unida e tão bem continuada no conjunto, sem limite
ou entremeio de ornamento, que as coisas que estão próximas às
construções parecem grandíssimas e aquelas que se afastam, onde
estão as paisagens, vão-se perdendo no infinito. Então, a sala, que
não tem mais de quinze braças de comprimento, parece um campo
aberto, além de que, sendo o pavimento feito de pedras redondas e
pequenas, rejuntadas em nervuras, e o início das paredes pintado
para imitar as mesmas pedras, não aparece canto vivo119, parecendo
ampliar sobremaneira o local. E isso foi feito com muito juízo e bela
arte por Giulio, a quem, por semelhantes invenções, devem muito
os nossos artistas. Aqui, tornou-se perfeito colorista o mencionado
Rinaldo Mantovano, porque, trabalhando com os cartões de Giulio,
concluiu toda essa sala e outros aposentos com perfeição. E se não

119  Ou seja, não apareceriam os ângulos de 90 graus no encontro das pare-


des verticais com o pavimento, o que reforçaria a impressão de continuidade.
Contudo, o pavimento original não existe mais. A sala dos Gigantes foi muito
danificada durante ocupações militares nos séculos XVII e XVIII. Em 1781 o
palácio começou a ser restaurado, ocasião em que o piso foi substituído pelo
atual, concebido por Paolo Pozzo (1784–1785). Não há confirmação da existên-
cia do piso mencionado por Vasari.

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

tivesse sido levado do mundo tão jovem, teria continuado a honrar


Giulio depois de sua morte.
Além desse palácio, no qual fez Giulio muitas coisas dignas
de serem louvadas, as quais são omitidas, para evitar excessiva
demora, ele reformou diversos aposentos do castelo ducal em
Mântua (Fig. 18, p. 464), onde construiu duas escadas em caracol
muito grandes120 e apartamentos ricamente ornados de estuque121.
Em uma sala, pintou toda a história e guerra troianas e, em uma
antecâmera122, doze cenas a óleo123, sob as cabeças dos doze impe-
radores que tinham sido pintadas antes por Tiziano Vecellio, con-
sideradas raras124.
Igualmente, em Marmirolo, lugar distante de Mântua cinco
milhas, foram feitas, com ordem e desenho de Giulio, uma con-
fortabilíssima construção e grandes pinturas, não menos belas que
aquelas do castelo e do palácio do T125.

120  Nas plantas do apartamento de Troia traçadas por Paolo Pozzo em 1786,
pode-se ver uma escada em caracol – e não duas, como diz Vasari – ligando o
pavimento térreo do apartamento ao pavimento superior, e próxima da abside
da igreja de Santa Bárbara.
121  Vasari provavelmente se refere ao apartamento de Troia, realizado por
Giulio 1536 e 1539, aproveitando partes da estrutura já existente. Trata-se não
de “apartamentos”, mas de um único, que abriga a sala homônima, a mais notá-
vel do conjunto.
122  É o chamado Camerino dei Cesari, que deveria abrigar os doze retratos de
imperadores encomendados por Federico II Gonzaga a Tiziano. O pequeno
gabinetto precede a Sala delle Teste, que, por sua vez, introduz a Sala di Troia.
123  Essas cenas, que se localizavam imediatamente abaixo dos retratos, são
concebidas por Giulio. Vêm de Ippolito Andreasi os desenhos que testemu-
nham a colocação das obras junto dos retratos de Tiziano. Algumas foram
identificadas: A infância de Augusto, A modéstia de Tibério; Presságio do poder
imperial de Cláudio, O incêndio de Roma, O triunfo de Tito e Vespasiano, O sacri-
fício de uma cabra a Júpiter.
124  A encomenda a Tiziano data de 1536, mas somente em 1538 o conjunto
estará completo e em seu lugar.
125  O grande complexo arquitetônico gonzaguesco localizado em Marmirolo,
ao norte de Mântua, era a morada original dos Gonzagas na Idade Média e foi
completamente demolido em 1798.

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Vida de Giulio Romano, pintor, de Giorgio Vasari

Em Sant’Andrea de Mântua, na capela da senhora Isabella


Boschetti126, Giulio fez um quadro a óleo representando uma Nossa
Senhora adorando o menino Jesus jacente, com José, o burro e o boi,
próximos de um presépio, e São João Evangelista de um lado e São
Longino do outro: figuras de tamanho natural127. Nas paredes dessa
capela, Rinaldo pintou, com desenhos do mestre, duas cenas belíssi-
mas: uma Crucificação de Jesus Cristo, com os ladrões, alguns anjos
no ar e, embaixo, os crucificadores, as Marias, muitos cavalos, com
os quais se deleitou sempre, belíssimos à maravilha, e muitos solda-
dos em várias posições128. Na outra cena, fez a descoberta do sangue
de Cristo no tempo da condessa Matilda, obra belíssima129.
Depois, Giulio fez para o duque Federico, de sua própria mão, um
quadro de Nossa Senhora banhando o Menino Jesus, que está de
pé dentro de uma bacia, enquanto São João joga fora a água de um
vaso130. Ambas as figuras, de tamanho natural, são belíssimas. Na
parte inferior, à distância, estão figuras pequenas de damas que vão
visitá-la131. Tal quadro foi depois doado pelo duque à senhora Isabella

126  Isabella Boschetti (nascida em 1500), sobrinha de Baldassare Castiglione e


neta de Luigia Gonzaga, é a “favorita” de Federico II Gonzaga, a amante à qual
o senhor de Mântua permanecerá ligado até o fim da vida e com quem tem
um filho natural, Alessandro. Isabella era casada com Francesco Cauzzi, que
desposou aos 14 anos.
127  A Natividade com São Longino e João Evangelista. Pintura a óleo sobre
madeira; 275 x 212cm. Paris, Museu do Louvre, Inv. 421. Pintada para a capela
de Isabella Boschetti dedicada ao Santo sangue de Cristo em Sant’Andrea.
128  A crucificação. Esse afresco subsiste in situ. Realizado por Rinaldo
Mantovano a partir de projeto de Giulio Romano, em c. 1531. A criação da
composição é original e elogiada, a despeito da crítica negativa à qualidade da
pintura executada por Rinaldo.
129  O encontro do sangue de Cristo. Como o afresco anterior, encontra-se in
situ, na capela de Polissena Castiglione, em Sant’Andrea de Mântua (parede
esquerda). Não há contestação sobre a atribuição a Rinaldo Mantovano.
130  Trata-se da Madonna della Catina. Óleo sobre madeira; 1,61 x 1,45m.
Dresden, Gemäldegalerie, inv. 103. Proveniência: Federico II Gonzaga. Em
1746, estava na galeria de Modena.
131  Vasari aqui parece confundir duas cenas, misturando o fundo do suposto
retrato de Isabella d’Este, em Hampton Court, com as damas que vêm visitar a

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

Boschetti. Mais tarde, Giulio fez o retrato desta senhora, e belíssimo,


em um quadrinho de uma Natividade de Cristo132, de altura de uma
braça, que está hoje com o senhor Vespasiano Gonzaga133, a quem
Federico doou também outro quadro de mão de Giulio: neste, há um
jovem e uma jovem abraçados, trocando carícias sobre uma cama,
enquanto uma velha secretamente os observa atrás da porta134. Tais
figuras, pouco menores que o natural, são muito graciosas. Na casa
do mesmo senhor, há outro quadro excelente, também de mão de
Giulio, representando um São Jerônimo belíssimo135. Com o conde
Nicola Maffei136, há um quadro de um Alexandre Magno com uma
Vitória na mão, de tamanho natural, reproduzido de uma medalha
antiga, que é coisa muito bela137.
Depois dessas obras, Giulio pintou a fresco sobre uma lareira, para
seu amigo o senhor Girolamo, organista da Catedral de Mântua138,
um Vulcano que traz numa mão os foles e, na outra, com um par
de tenazes, segura o ferro de uma flecha que fabrica. Enquanto isso,
Vênus esfria em um vaso algumas já feitas e as coloca na aljava de

Virgem no presente quadro.


132  Deste quadro, não se tem notícia, nem há desenhos ou descrições dele.
Supõe-se que pudesse ser o original a partir do qual Agostino Veneziano gravou
uma Adoração dos pastores em 1531.
133  Vespasiano Gonzaga (1531–1591). Filho de Luigi e neto de Ludovico
Gonzaga, senhor de Sabioneta, Bozzolo, Rivarolo e Ostiano.
134  Os dois amantes. Pintura a óleo sobre madeira, transferida à tela; 163 x
337cm. São Petersburgo, Hermitage, inv. 223.
135  O inventário inglês do palácio Ducal, feito após o saque de Mântua, men-
ciona um São Jerônimo de mão de Giulio, obra que não foi precisamente iden-
tificada. Não há, contudo, qualquer notícia sobre o destino da obra nem sobre
suas características.
136  Conde Nicola Maffei (1487–1536), conselheiro e embaixador de Federico
II, foi personagem destacado na administração do estado gonzaguesco, em
negócios do Estado ou em missões diplomáticas, e dos mais influentes durante
as décadas de 1520 e 1530. É comitente de Tiziano e de Giulio Romano.
137  Alexandre Magno. Pintura a óleo sobre madeira, está em Genebra, no
Musée des Beaux-Arts, proveniente da Coleção Dr. Erich Lederer, de Viena.
138  Entre 1521 e 1536, o organista da catedral era Girolamo di Araldis.

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Vida de Giulio Romano, pintor, de Giorgio Vasari

Cupido139. Essa é uma das mais belas obras que Giulio já fez. E
pouca outra coisa de sua mão se vê em afresco.
Em San Domenico, fez para o senhor Ludovico da Fermo, um pai-
nel com um Cristo morto, que José e Nicodemos preparam-se para
colocar no sepulcro. Perto, estão a Mãe, as outras Marias e São João
Evangelista140. Um quadrinho, no qual Giulio fez também um Cristo
morto141, está em Veneza, na casa de Tommaso da Empoli, florentino.
Enquanto trabalhava esta e outras pinturas, aconteceu que o
senhor Giovanni de’ Medici, tendo sido ferido por um mosquete,
foi levado a Mântua, onde morreu142. O senhor Pietro Aretino,
afeiçoadíssimo servidor daquele senhor e amicíssimo de Giulio,
quis que Giulio, de sua mão, lhe fizesse a máscara mortuária. E,
depois de fazer um molde sobre o morto143, fez-lhe o retrato144,
que permaneceu por muitos anos junto ao dito Aretino.

139  Não se conhece, em Mântua, afresco desse tema. O Museu do Louvre pos-
sui um quadro a óleo, atribuído ao ateliê de Giulio Romano, e dois desenhos
atribuídos ao mestre. Um dos desenhos é pontilhado para a transposição em
outro suporte, o que pode indicar ser o original do afresco perdido. Uma gra-
vura de Agostino Veneziano, datada de 1530, traz exatamente o mesmo tema
descrito por Vasari e que se vê na pintura do Louvre e uma inscrição que iden-
tifica Rafael como o criador da composição.
140  Trata-se de uma pintura não localizada.
141  Como a pintura anterior, de mesmo tema, esta não foi localizada. Dois esbo-
ços a pena de Giulio Romano – Sepultamento de Cristo, dos Uffizi, e Sepultamento
de Cristo; New Haven, Yale University Art Gallery, Ascher M. Huntigton, B.A.
Fund in Exchange, 1973.1. – podem estar vinculados à obra perdida.
142  Desse retrato não se sabe nada. Giovanni delle Bande Nere, comandante
das forças papais, morreu em Mântua, em 30 de novembro de 1526, depois da
amputação de uma das pernas.
143  Vasari volta a falar desse molde do rosto de Giovanni feito por Giulio na Vida
de Tiziano, quando afirma que o mesmo foi doado ao duque Cosimo de’ Medici.
Dois documentos confirmam a execução dessa máscara. O primeiro é a carta
escrita pelo próprio Aretino à Maria Salviati, esposa de Giovanni, após sua morte;
o segundo, uma carta de Federico II a Giovanni Borromeo, embaixador mantuano.
144  Do suposto retrato que Giulio Romano teria feito a partir do molde do
rosto de Giovanni, nada se sabe.

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

À vinda do imperador Carlos V à Mântua145, Giulio, por ordem


do duque, fez muitos e belíssimos aparatos de arcos, cenários em
perspectiva para comédias e várias outras coisas em cujas inven-
ções não tinha rival. Nunca foi mais inventivo nas mascaradas e
ao fazer extravagantes roupas para as justas, festas e torneios como
então se viu146, com estupor e maravilha do imperador Carlos e de
quantos ali compareceram.
Forneceu, além disso, para toda a cidade de Mântua, em diversos
tempos, tantos desenhos de capelas, casas, jardins e fachadas147, e
tanto se deleitou em embelezá-la e ornamentá-la, tanto a transfor-
mou, que onde era antes colocada sobre o charco e cheia de água
estagnada em certos períodos, e quase inabitável, é hoje, por enge-
nho seu, seca, sã e completamente bonita e agradável148.
Enquanto Giulio servia àquele duque, rompendo um ano o Pó
os seus diques, alagou de tal modo Mântua, que em certos lugares
baixos da cidade a água elevou-se cerca de quatro braças de altura,
de modo que por muito tempo ali estavam quase o ano inteiro as
rãs. Por essa razão, pensando Giulio de que modo poder-se-ia a isso
remediar, empenhou-se de tal maneira, que ela voltou a ser o que era.
E para que outra vez não acontecesse o mesmo, fez com que as ruas,
por ordem do duque, se erguessem tanto daquele lado, que, ultra-
passada a altura das águas, as construções permaneceram acima. E

145  Vasari se refere à primeira visita de Carlos V à Mântua, ocorrida em março


de 1530. Uma segunda visita aconteceu em novembro de 1532.
146  Dois desenhos de Giulio estão vinculados ao aparato para a recepção
de Carlos V. Um deles, na Albertina, em Viena (inv. 332), representa uma
Vitória alada, segurando uma coroa de louro. Trata-se, provavelmente, do
projeto para a figura executada em bronze dourado e colocada no topo da
coluna de cristal de rocha erguida em Mântua na ocasião. O segundo dese-
nho, nos Uffizi (U 1492), representa uma Vitória sentada, escrevendo o nome
de Carlos V dentro de um escudo.
147  Poucas habitações mantuanas mostram hoje traços do estilo de Giulio.
Permanecem a porta della Cittadella e o mercado do peixe, muito restaurado,
mas que ainda preserva as linhas gerais do projeto.
148  Os trabalhos empreendidos por Giulio são datados por volta do ano de 1539.

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Vida de Giulio Romano, pintor, de Giorgio Vasari

porque daquela parte havia casebres pequenos e fracos, e de não


muita importância, deu ordem que se reformassem em melhores
termos, derrubando aqueles para elevar as ruas e reedificando-os
acima, maiores e mais belos, para proveito e conveniência da cidade.
A tal coisa opondo-se muitos, dizendo ao duque que Giulio fazia
dano grande demais, ele não quis ouvir ninguém. Antes fazendo
de Giulio mestre das ruas149, ordenou que não se pudesse construir
naquela cidade sem sua ordem. Por tal coisa muitos se lamentando
e alguns ameaçando Giulio, chegou isso aos ouvidos do duque, que
usou palavras tais a favor daquele, que fez saber que o quanto se
fizesse em seu prejuízo ou dano, consideraria feito a si próprio, e
disso faria demonstração.
Amou tanto aquele duque a virtude de Giulio, que não sabia
viver sem ele. E, por sua vez, Giulio teve para com aquele senhor
tanta reverência, que mais não se pode imaginar. Donde nunca
pediu para si ou para outros favor que não obtivesse. E julgava-se,
quando morreu, pelas coisas obtidas daquele duque, ter de renda
mais de mil ducados.
Construiu Giulio para si uma casa em Mântua150, em frente a São
Barnabé, para a qual fez uma fachada externa fantástica, toda traba-
lhada em estuque colorido. E dentro fê-la inteiramente pintar e tra-
balhar igualmente em estuque, adaptando ali muitas antigualhas tra-
zidas de Roma, e obtidas pelo duque, ao qual deu muitas das suas151.

149  Giulio Romano teria sido nomeado superintendente geral das obras do
estado muito antes disso, com um decreto datado de 20 de novembro de 1526,
através do qual o então marquês entregava a seus cuidados a tarefa de cuidar da
pavimentação de todas as ruas da cidade.
150  A casa de Giulio, concluída em 1544, sofreu ampliação realizada por Paolo
Pozzo em 1800, perdendo as proporções originalmente concebidas pelo artista.
O imóvel, situado na Via Poma, n. 18, ficava na antiga contrada do Unicórnio.
Conserva os afrescos do salão e alguns relevos em estuque.
151  Giulio possuía em Roma uma notável coleção de obras de arte, tendo
adquirido em 1520, junto com Penni, a coleção de Giovanni Ciampollini,
uma das maiores da cidade. Ao partir para Mântua, desfaz-se de muitas
peças e acaba doando parte da coleção a Federico, como atesta uma carta de

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

Desenhava tanto Giulio, para fora e para Mântua, que é coisa


inacreditável. Porque, como se disse, não se podia construir, sobre-
tudo na cidade, palácio ou outras coisas de importância senão com
desenhos dele.
Giulio reconstruiu sobre as antigas paredes a igreja de San
Benedetto de Mântua, junto ao Pó152, lugar grandíssimo e rico
dos monges negros. Com seus desenhos foi embelezada toda a
igreja de pinturas e painéis belíssimos. E porque estavam em sumo
apreço as coisas suas na Lombardia, quis Gian Matteo Giberti,
bispo daquela cidade, que a tribuna da Catedral de Verona, como
se disse alhures, fosse inteiramente pintada por Moro Veronese153
com os desenhos de Giulio154.
Ao duque de Ferrara155, Giulio fez muitos desenhos para tape-
çarias156, que depois foram passados em seda e ouro pelo mestre
Nicolò e por Giovan Batistta Rosso, flamengos, e editados em gra-
vura por Giovan Batistta Mantovano, que gravou infinitas coisas
desenhadas por Giulio, e particularmente, além de três desenhos

seu primo, Francesco Gonzaga, de 22 de março de 1525, em que discute o


meio de transporte das antiguidades.
152  Trata-se da igreja medieval de San Benedetto Pò (1246), que Giulio recons-
trói a convite do abade Fra Gregorio da Modena. O trabalho de Giulio ali
começa por volta da morte de Federico II.
153  Francesco Torbido, dito il Moro (c.1482–1562). Pintor veneziano que atuou
em Verona. Os citados afrescos, que ainda existem, têm como tema as histórias
da Virgem. Eles foram pintados em 1534, no coro do Duomo, a partir de car-
tões de Giulio Romano. No século XIX, sofreram restauros que os alteraram.
154  Para essa obra Giulio cria o desenho e fornece o cartão.
155  Esse duque é Ercole d’Este (Ercole II). Giulio é chamado a Ferrara em
1535. Ercole tinha a intenção de fazer com que o artista reformasse o seu
lugar de lazer, conhecido como a “delizia di Belvedere”, e o castelo de Ferrara,
danificado por um incêndio.
156  Giulio executa cartões para tapeçarias, em Ferrara, nos anos de 1537 e
1538. Há um cartão representando “jogos de putti”, executado por Giovanni e
Nicola Carcher a partir de desenho de Giulio, que se encontra no Museu Poldi
Pezzoli, de Milão; no Victoria and Albert Museum, Londres, um desenho de
Giulio para tapeçaria da mesma série de jogos de putti.

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Vida de Giulio Romano, pintor, de Giorgio Vasari

de batalhas já gravados por outros, um médico colocando ventosas


sobre os ombros de uma mulher157; uma Nossa Senhora a cami-
nho do Egito, com José segurando o burro pelo cabresto e alguns
anjos vergando uma tamareira para que o Cristo lhe colha os fru-
tos. Giovan Battista Mantovano também gravou, com desenho de
Giulio, uma loba sobre o Tibre aleitando Remo e Rômulo158, qua-
tro cenas de Plutão, Júpiter e Netuno dividindo ao acaso o céu, a
terra e o mar159; a cabra Alfea, segura por Melissa e alimentando
Júpiter160 e, em um papel grande, fez muitos homens em uma pri-
são, exasperados por diversos tormentos161. Foi ainda gravado,
com invenção de Giulio, o discurso que fizeram Cipião e Aníbal
às margens do rio para seu exército162, a natividade de São João
Batista, gravada por Sebastiano da Reggio, e muitas outras grava-
das e editadas na Itália.

157  Mulher doente com ventosas: cena concebida para integrar o conjunto de
afrescos da galeria da Grotta, ambiente inteiramente omitido por Vasari em sua
narrativa sobre o palácio do Te. A imagem foi gravada.
158  Loba aleitando Rômulo e Remo: imagem gravada por Battista del Moro
em c. 1540–1550 Vasari atribui a gravura a Giovan Battista Scultori. O
modelo é reconhecido num desenho de Giulio Romano hoje perdido, mas
inspirado na Loba capitolina.
159  Plutão, Júpiter e Netuno dividindo o céu, a terra e o mar: imagem gravada
por Giulio Bonasone em c. 1546–1550. Faz parte de uma série que ilustra a
divisão do universo entre as divindades. Teriam sido tiradas diretamente de
desenhos de Giulio Romano.
160  Júpiter alimentado por Amalteia: Trata-se de “Amalteia”, em vez de “Alfea”. A
obra foi gravada por Pietro Santi Bartoli. Descrições de inventários, desenhos
e pinturas indicam que Giulio deve ter executado um ciclo de doze pinturas
ilustrando a infância de Júpiter e sua família. Seis dessas pinturas ainda existem,
todas em coleções inglesas, todas mencionadas no inventário Gonzaga de 1627.
161  Homens na prisão: gravura realizada por Giovan Battista Scultori a partir
da pintura de uma cena da sala dos Ventos, para a qual existe um desenho ori-
ginal de Giulio Romano em Windsor.
162  Cipião: esse desenho foi gravado por Giorgio Ghisi. As tapeçarias desse
tema, criadas para o rei Francisco I da França, são obras nas quais Giulio teria
querido competir com os Triunfi de Andrea Mantegna.

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

Em Flandres, igualmente, e na França foram editados infinitos


desenhos de Giulio que, ainda que sejam belíssimos, não me vêm
à memória, assim como nem todos os seus desenhos, tendo ele os
feito, a modo de dizer, em massa. E basta que lhe foi tão fácil cada
coisa da arte, e particularmente o desenhar, que não há lembrança
de alguém que tenha feito mais que ele.
Giulio, que foi muito universal, soube analisar cada coisa, mas
sobretudo as medalhas, nas quais gastou dinheiro demais e muito
tempo para conhecer. E se bem foi empregado quase sempre em
grandes coisas, não é, porém, que também não pusesse a mão às
vezes em coisas mínimas, a serviço de seu senhor e de seus amigos:
mal havia alguém aberto a boca para manifestar uma ideia, que ele
já a havia entendido e desenhado.
Entre as muitas coisas raras que tinha em sua casa, havia uma tela
de cambraia fina com o autorretrato de Albrecht Dürer, que o man-
dou, como alhures se disse, a Rafael de Urbino163. Tal retrato era
coisa rara, porque, sendo colorido a guache com muita diligência
e aquarelado, Albrecht o acabara sem empregar alvaiade. Em lugar
disso, serviu-se do branco da tela, dos fios da qual, sutilíssimos,
havia feito tão bem os pelos da barba, que era coisa em que não se
podia crer nem fazer; e à luz transparecia de todo lado. Tal retrato,
que a Giulio era caríssimo, mostrou-me ele próprio por milagre
quando eu fui por necessidade a Mântua.
Morto o duque Federico164, pelo qual, mais do que se pode crer,
foi amado Giulio, sofreu tanto com isso, que teria partido de Mântua

163  Provavelmente não se trata de um retrato de Dürer, mas do “quadro com


a imagem de Santo Antônio, de mão de Albrecht Dürer”, conforme o relato de
Virginia, filha de Giulio, na redação do inventário dos bens presentes na casa de
Giulio após a morte de seu marido, Ercole Malatesta, em 1573.
164  Federico II Gonzaga morre de repente, em 28 de junho de 1540, aos qua-
renta anos de idade. Sua morte traz consequências para a arte de Giulio: aca-
bam-se os pedidos para os suntuosos palácios decorados com alegorias triunfais
ou com mitos antigos. Com poucas exceções, somente edifícios religiosos conti-
nuam. O clima intelectual de Mântua sob o Cardeal é muito diverso daquele sob
Federico, e isso pode ser inferido a partir dos trabalhos de Giulio.

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Vida de Giulio Romano, pintor, de Giorgio Vasari

se o cardeal, irmão do duque, a quem tinha sido deixado o governo


do Estado165, por serem os filhos de Federico pequeníssimos, não o
tivesse retido naquela cidade onde tinha esposa, filhos, casas, pro-
priedades e todos os outros confortos que a abastado cavalheiro são
exigidos. E isso fez o cardeal, além das ditas razões, para servir-se
do conselho e da ajuda de Giulio em renovar e quase refazer toda a
Catedral daquela cidade, que, uma vez iniciada, Giulio levou muito
adiante com belíssima forma166.
Nesta época, Giorgio Vasari, que era amicíssimo de Giulio, ape-
sar de não se conhecerem senão de nome e por cartas, ao ir a
Veneza, fez o caminho por Mântua para ver Giulio e suas obras167.
E assim chegado àquela cidade, indo encontrar o amigo sem
nunca terem se visto, encontrando-se um e outro, se reconhece-
ram como se mil vezes tivessem estado juntos pessoalmente. Do
que teve Giulio tanto contentamento e alegria, que por quatro
dias não o deixou nunca, mostrando-lhe todas as obras suas e
particularmente todas as plantas dos edifícios antigos de Roma,
de Nápoles, de Pozzuoli, da Campânia e de todas as outras melho-
res antiguidades de que se têm memória, desenhadas em parte
por ele e em parte por outros.
Depois, tendo aberto um grandíssimo armário, lhe mostrou
as plantas de todos os edifícios que tinham sido feitos com seus
desenhos e ordem, não somente em Mântua e em Roma, mas por
toda a Lombardia, e tão belos, que eu, por mim, não creio que se
possa ver nem mais novas, nem mais belas fantasias de constru-
ções, nem melhor arranjadas.

165  Ou seja, o cardeal Ercole Gonzaga (1505–1563).


166  As obras de reestruturação e renovação da catedral de Mântua são inicia-
das em 1544–1545. No entanto, Giulio, embora as tenha adiantado bastante,
não pôde concluí-las, tendo falecido antes disso. Giulio confere ao edifício o
aspecto de uma basílica paleocristã, com as ordens canônicas e decoração faus-
tosa. A obra foi concluída por Giovambatista Bertani.
167  Vasari vai a Mântua pela primeira vez em 1544. Depois, voltará à cidade
em 1566.

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

Perguntando depois o cardeal a Giorgio o que achava das obras de


Giulio, respondeu-lhe (o próprio Giulio estando presente) que elas
eram tais que em cada canto daquela cidade merecia que fosse colo-
cada sua estátua, e que, por tê-la renovado, a metade daquele Estado
não teria sido bastante para remunerar os trabalhos e as virtudes de
Giulio. A que respondeu o cardeal ser Giulio mais senhor daquele
Estado do que ele. E porque era Giulio amabilíssimo, e especial-
mente com os amigos, não há qualquer sinal de amor e de carinho
que Giorgio não recebesse dele.
Vasari, tendo partido de Mântua para Veneza e, de lá, voltado
a Roma naquela época justamente em que Michelangelo tinha
descoberto na capela o seu “Juízo”, mandou a Giulio, pelo senhor
Nino Nini da Cortona, secretário do dito cardeal de Mântua, três
desenhos dos sete pecados capitais representados no mencionado
Juízo de Michelangelo que a Giulio foram extremamente caros,
tanto por serem o que eram e também porque, tendo que fazer ao
cardeal uma capela no palácio, isso foi para ele um despertar de
ânimo para maiores coisas do que aquelas que tinha em mente.
Colocando, portanto, toda extrema diligência em fazer um car-
tão belíssimo, ali fez com bela fantasia quando Pedro e André,
chamados por Cristo, abandonam as redes para segui-lo, e de pes-
cadores de peixes transformam-se em pescadores de homens. Tal
cartão, que resultou o mais belo que Giulio já havia feito168, foi
depois realizado por Fermo Guisoni, pintor e criado de Giulio,
hoje excelente mestre.
Não muito depois, estando os superintendentes do canteiro de
São Petrônio de Bolonha desejosos de dar início à fachada daquela
igreja, com grandíssima labuta levaram Giulio para lá169 em com-
panhia de um arquiteto milanês chamado Tofano Lombardino,

168  A edição Milanesi (1906. vol. V, pp. 553–554, n. 2) diz que o original desse
cartão encontrava-se no Museu do Louvre desde 1797, acrescentando que, no
“Duomo di Mantova”, onde então teria estado, foi colocada, em seu lugar, uma
cópia feita por Felice Campi.
169  A estadia bolonhesa de Giulio é mais comumente datada no ano de 1546.

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Vida de Giulio Romano, pintor, de Giorgio Vasari

homem então muito considerado na Lombardia pelas muitas cons-


truções que ali se via de sua mão170.
Estes, portanto, tendo feito mais desenhos, e estando perdidos
aqueles de Baldassare Peruzzi, sienês, um, entre outros que Giulio
fez, era tão belo e bem ordenado171, que ele mereceu receber daquele
povo grandíssimo louvor, e com generosíssimas homenagens ser
reconhecido em seu retorno a Mântua.
No entanto, tendo morrido por aqueles dias Antonio Sangallo172
em Roma, e permanecido por isso em não pequeno transtorno
os encarregados do canteiro de São Pedro, não sabendo a quem
se voltar para dar o encargo de conduzir ao fim, com a ordem
começada, tão grande construção, pensaram ninguém poder ser
mais apto a isso que Giulio Romano, do qual todos sabiam quanta
excelência possuía e o valor.
E assim, aconselhando que devia tal encargo aceitar mais que
prontamente, para repatriar-se honradamente e com volumoso
salário, fizeram-no tentar por meio de alguns amigos seus. Mas em
vão, pois, se bem que de boníssima vontade teria ido, duas coisas
o detiveram: o cardeal, que de modo algum quis que partisse, e a
esposa, os amigos e parentes, que por todos os meios o dissuadiram.
Mas porventura não teria sido impossibilitado por nenhuma des-
sas coisas, se não se encontrasse naquele tempo muito bem de saúde.
Porque, considerando ele de quanta honra e proveito teria sido para
si e para seus filhos aceitar tão honrado partido, estava inteiramente

170  Cristoforo Lombardi/Lombardini. Cristofano Lombardi é chamado


às vezes de “Tofano”, outras de “Lombardino”. Vasari fala dele na Vida de
Benvenuto Garofalo. Escultor e arquiteto, trabalha em Milão de 1510 a 1555. O
Giornale della Fabbrica di San Petronio de 1545–47, menciona juntos Giulio e
Cristoforo. O desenho de Giulio para a fachada da igreja encontra-se mencio-
nado em São Petrônio.
171  A exata extensão da participação de Giulio no desenho da fachada de São
Petrônio, bem como a natureza precisa de suas ideias a propósito, é muito difícil
de determinar. Um desenho, conservado no museu de São Petrônio é identifi-
cado com a mão de Giulio e combina elementos góticos e renascentistas.
172  Antonio da Sangallo morre em 28 de setembro de 1546.

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

voltado, quando começou a ir piorando do mal, a querer fazer todo


esforço para isso, não fosse pelo cardeal impedido.
Mas porque estava de antemão estabelecido que não fosse mais
para Roma, e porque aquele era o fim de sua vida, entre o desgosto e
o mal morreu em poucos dias em Mântua, que não podia permitir-
lhe que, assim como a tinha embelezado, também adornasse e hon-
rasse a sua pátria, Roma.
Giulio morreu com 54 anos, deixando um único filho homem, ao
qual, pela memória que tinha de seu mestre, tinha posto o nome
de Rafael. Tal jovenzinho, tendo aprendido com labor os primei-
ros princípios da arte, na esperança de tornar-se distinto, morreu
também ele, não muitos anos depois173, junto com a mãe, esposa
de Giulio174. Donde não restou dele senão uma filha175 chamada
Virgínia176, que ainda vive em Mântua, casada com Ercole Malatesta.
A Giulio foi dada sepultura em San Barnabà177, com a intenção
de que se fizesse depois uma lembrança que melhor o honrasse.
Mas o que doeu imensamente a quem quer que o tenha conhe-
cido foi que os filhos e a esposa, mandando a coisa de hoje para
amanhã, nada mais fizeram. E também foi um pecado que daquele
homem, que tanto honrou aquela cidade, não houve quem tenha
se lembrado, salvo aqueles que dele se serviam, os quais sempre se

173  Raffaello Pippi, filho (1530–1562). O vínculo pessoal entre Giulio e o


Rafael é que deve tê-lo impelido a dar ao filho o nome do mestre. O necrológio
de Mântua atesta sua morte em 17 de março de 1562, por tuberculose.
174  A esposa de Giulio é Elena Guazzi-Landi. Casam-se em 1529, ocasião em
que Giulio recebe um dote de setecentos ducados de ouro.
175  Giulio teria tido duas, não uma filha. A segunda chamava-se Griseide e
também teria sobrevivido ao pai muito pouco tempo; é citada por um cronista
modenense, Lancillotto, que fala de seu casamento em 1550 com um filho do
senhor Alberto degli Erri, de Modena.
176  Um dos filhos de Virginia e Ercole recebeu o nome de Giulio em home-
nagem ao avô, mas, assim como os outros, morreu cedo, e a descendência de
Giulio Romano acaba.
177  Giulio foi sepultado na igreja de San Barnabà, vizinha à sua casa. O seu
desejo de ser sepultado ali é registrado no testamento que faz em 23 de outubro
de 1546, seis dias antes de morrer.

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Vida de Giulio Romano, pintor, de Giorgio Vasari

recordaram dele em suas necessidades. Mas sua própria virtude,


que tanto o honrou em vida, fez-lhe, mediante suas obras, eterna
sepultura após a morte, que nem o tempo, nem os anos consumirão.
Giulio era, de estatura, nem grande nem pequeno; mais pesado
que leve de carne, moreno de pele, de belo rosto, com olho preto e
vivaz, amabilíssimo, educado em todas as suas ações, moderado no
comer e gracioso no vestir e viver honradamente.
Teve discípulos demais, mas os melhores foram Gian dal
Lione, Raffaello dal Colle, borguese,178 Benedetto Pagni da Pescia,
Figurino da Faenza179, Rinaldo e Giovan Batista, mantuanos, e
Fermo Guisoni, que está em Mântua e lhe faz honra, sendo pintor
excelente; assim como fez ainda Benedetto, que trabalhou muitas
coisas em Pescia, sua pátria, e, no Duomo de Pisa, fez um painel
que está na Obra180 e, igualmente, um quadro de Nossa Senhora
com bela e delicada poesia, nele tendo feito uma Florença que lhe
apresenta as dignidades da casa Medici181. Tal quadro está hoje com
o senhor Mondragone182, espanhol, favoritíssimo do ilustríssimo
senhor príncipe de Florença183.

178  Isso é, proveniente de Borgo San Sepolcro.


179  Luca da Faenza, o chamado “Figurino da Faenza”, não é mencionado pelos
documentos antes de 1531; é identificado com Luca Scaletti, pintor da cidade de
Faenza, ajudante de Giulio diversas vezes entre os anos de 1531 a 1538. Morre
por volta de 1554.
180  Trata-se de Santo André, São João Evangelista, Santo Estevão, São Bartolomeu
e São Miguel Arcanjo. Óleo sobre madeira; 309 x 223cm. 1552–1553. Pisa, Museo
Nazionale di San Matteo. Esse painel foi destruído parcialmente. Apenas um
trecho foi preservado.
181  Florença apresentando as honras da casa Medici à Madona ou Madonna
Medici. Óleo sobre madeira; 173,5 x 141,3cm. Sarasota, The John & Mable
Ringling Museum of Art, SN 34.
182  Esse senhor Mondragone era espanhol e favorito de Cosimo I. Deve ter
chegado na comitiva de Eleonora de Toledo, quando ela foi a Florença, em 1539,
para casar-se com o duque.
183  Ou seja, Cosimo I.

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

Giulio morreu no ano de 1546, no dia de Todos os Santos. E sobre


a sua sepultura184 foi colocado este epitáfio:

Romanus moriens secum tres Julius arteis


Abstulit (haud mirum), quatror unus erat.

184  A família o sepultou, conforme um manifesto desejo do artista, na igreja


de San Barnabà. Em 1712, sob o comando do arquiteto Doriciglio Moscatelli
Battaglia, a igreja passou por uma radical reestruturação e, durante as obras,
o sepulcro de Giulio foi perdido. Hoje não há, portanto, nenhuma memória
de sua sepultura.

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Vida de Pietro Perugino,
pintor, de Giorgio Vasari 1
Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

P
ietro Perugino, o artista que, por meio do seu trabalho e do
de seus alunos, deu corpo e fama à escola umbra renascen-
tista de pintura, recebeu de Vasari, lado a lado, o elogio à obra
e a reprovação ao homem. Seu retrato vasariano não é dos mais
generosos: ultrapassa em muito o tom elogioso feito à obra, aquele
reprovador dedicado ao sujeito ambicioso, sem religião, blasfema-
dor, mesquinho, medroso, cabeça-dura… É o artista que venceu a
extrema miséria e morreu rico e famoso mais pelo trabalho contí-
nuo e incansável a que se entregou do que por seu talento.
A leitura desse retrato do artista, contudo, não parece se encai-
xar na leitura do seu trabalho pictórico. A biografia vasariana
de Perugino nos faz esperar o encontro com uma obra correta e
nada medíocre, mas árida e insípida. Mestre da composição que
bem maneja a profundidade espacial — a perspectiva —, soube
povoar suas paisagens de sonho de belas e elegantes arquiteturas
e de belas e elegantes figuras, às quais tolheu o movimento e todo
drama. Contraditoriamente, surgiram das mãos do ateu sovina
imagens capazes de despertar no observador um elevado senso

1  Tradução da “Vita di Pietro Perugino, pittore”. In: Vasari, G. Le vite de’ piú
eccellenti pittori, scultori, e architettori, scritte da M. Giorgio Vasari pittore et
architetto aretino, di nuovo dal medesimo riviste et ampliate con i ritratti loro et
com l’aggiunta delle Vite de’ vivi e de’ morti dall’anno 1550 insino al 1567. Veneza:
Giacopo Giunti, 1568, a partir da edição de Gaetano Milanesi. Florença: Sansoni
Editore (1878–1885) 1906.

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

religioso e uma profunda admiração da serenidade e da graça.


Há quem compare o resultado à harmonia da música; há quem o
elogie pelo silêncio apaziguador.

Vida de Pietro Perugino, pintor

Pode-se ver muito claramente nas ações de Pietro Perugino


quão benéfica é, às vezes, a pobreza aos talentos, o quanto ela é
razão poderosa de torná-los perfeitos e excelentes em qualquer
aptidão. Afastando-se das calamidades extremas de Perúgia e
dirigindo-se a Florença, Perugino desejou, por meio da virtude,
conquistar seu lugar. Passou muitos meses dormindo pobremente
em um caixote, transformando a noite em dia, dedicando-se con-
tinuamente, com muito entusiasmo, ao estudo de sua profissão. E
uma vez tendo criado o hábito, não conheceu outro prazer a não
ser o de empenhar-se nessa arte e sempre pintar. Porque, tendo
constantemente diante dos olhos o terror da pobreza, fazia coisas
para ganhar dinheiro que talvez não considerasse se tivesse como
se manter. E, porventura, a riqueza lhe teria fechado o caminho de
tornar-se excelente por seu talento tanto quanto a pobreza o abriu e
quanto o incitou a necessidade, desejando chegar, de tão miserável
e baixo nível, se não àquele sumo e supremo, ao menos a um em
que pudesse sustentar-se. Por isso, nunca se importou com o frio, a
fome, o desconforto, os incômodos, o cansaço, e nem com a vergo-
nha, para poder viver um dia com conforto e alento, dizendo sem-
pre, quase como um provérbio, que depois do mau tempo é preciso
que venha o bom: e quando faz bom tempo, fabricam-se casas para
que se possa estar abrigado na necessidade.
Mas, para que se compreenda melhor o progresso desse artista,
começando do princípio, digo que, de acordo com a fama pública,
nasceu na cidade de Perúgia, de um pobre homem de Castello della

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Vida de Pietro Perugino, pintor, de Giorgio Vasari

Pieve chamado Cristofano2, um menino que foi batizado como


Pietro3. Este, criado entre a miséria e as privações, foi entregue
por seu pai como ajudante a um pintor de Perúgia4 que não era
muito bom em seu mister, mas tinha em grande veneração a arte
e os homens que nela eram excelentes. Este não fazia mais do que
repetir a Pietro de quanto proveito e honra era a pintura a quem
bem a exercesse. E contando-lhe das recompensas dos antigos e
modernos, encorajava Pietro em seu estudo. Daí acendeu-lhe tanto
o espírito que lhe veio o desejo, se a sorte o ajudasse, de ser um
deles. E costumava perguntar a qualquer um que se soubesse ter
estado pelo mundo, e particularmente a seu mestre, em que parte os
homens exerciam melhor aquele mister. Este lhe respondeu sempre
do mesmo modo, isto é, que em Florença, mais que em qualquer
outro lugar, estavam os homens perfeitos em todas as artes e, espe-
cialmente, na pintura, dado que naquela cidade os homens são inci-
tados por três coisas: pela crítica que muitos fazem, e muito, porque
aquele ar torna os espíritos livres por natureza e universalmente
descontentes com as obras medíocres, julgando-as mais por mérito
de qualidade e beleza do que por seu autor. Depois, que para querer
viver ali é preciso ser industrioso, o que quer dizer apenas empregar
continuamente o talento e o juízo, estar atento e ser rápido nas coisas

2  Cristoforo di Pietro di Giovanni, ou Vanni, ou Vanucci, casado com Lucia Betti.


3  “Pertus Cristoferi Vannucioli”, Pietro Vannuci, é chamado o artista. Sua data
de nascimento não é precisa e, a julgar pelas informações dadas por Vasari, esta-
ria entre os anos de 1445 e 1446, mas vem sendo diferentemente considerada
pelos historiadores no arco de 1445 e 1452 (segundo se presume da indicação
de Giovanni Santi, em sua Cronaca Rimata, de que Pietro teria a mesma idade
de Leonardo da Vinci). Também o local de nascimento é colocado em questão.
Vasari menciona Perúgia já na primeira edição das Vite, em 1550, mas na bio-
grafia de Piero della Francesca a menção é feita a Città della Pieve. De qualquer
modo, Pietro é lembrado em Perúgia no ano de 1469, embora se considere que
vivesse ali desde 1466.
4  Perdidas obras e documentação, pouco se sabe de preciso a respeito do exór-
dio artístico de Pietro. A identidade do pintor de Perúgia mencionado por
Vasari é discutível, estando entre os prováveis nomes o de B. Bonfigli, Niccolò
di Liberatores, dito o Alunno, Fiorenzo di Lorenzo, entre outros.

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

e, finalmente, saber lucrar, não tendo Florença um território amplo


e abundante que pudesse oferecer barato as despesas de quem está
ali, como acontece onde há abundância. A terceira coisa, que talvez
não possa menos que as outras, é uma imensa avidez de glória e
honra que aquele ar gera naqueles de qualquer especialidade; o que,
em todas as pessoas de espírito, não permite que os homens quei-
ram igualar-se e nem ficar atrás de quem se vê ser como eles, ainda
que os reconheçam como mestres. Esforçam-se tanto em desejar
a própria grandeza, que, se não são bons ou sábios por natureza,
tornam-se maledicentes e ingratos. É bem verdade que, quando a
gente já aprendeu ali o suficiente, querendo fazer outra coisa além
de viver como os animais dia após dia e desejando enriquecer, pre-
cisa partir e vender para fora suas obras e a reputação dessa cidade,
como fazem os doutores à reputação de seu estudo. Porque Florença
faz a seus artistas aquilo que o tempo faz às coisas que cria: se fei-
tas, as desfaz, e as consome pouco a pouco. Portanto, movido por
esses conselhos e pela persuasão de muitos outros, Pietro chegou a
Florença com a disposição de tornar-se excelente5; e saiu-se bem,
uma vez que as coisas de seu estilo foram então muito prestigiadas.
Estudou sob a disciplina de Andrea Verrochio6 e fez suas primei-
ras figuras fora do portão do Prato em San Martino das monjas,
hoje arruinado pela guerra. Em Camaldoli, fez um São Jerônimo na
parede então muito considerado pelos florentinos, e, com louvor,
foi impulsionado por ter feito aquele santo velho, magro e seco, com
os olhos no crucifixo, e tão gasto que parece um esqueleto, como

5  Pietro está inscrito na Compagnia di San Luca, em Florença, em 1472, mas


pode ter chegado na cidade um ano antes.
6  A referência é dada também na Vida de Verrochio. No entanto, o Anonimo
Magliabechiano fala de “Pietro Perugino, discípulo de Botticelli”, hipótese con-
siderada por Camesasca, que entrevê ainda a possibilidade de influência de D.
Ghirlandaio. É, contudo, excluída, em ambas as versões das Vite, a menção ao
aprendizado junto de Piero della Francesca: “Foi também seu discípulo Piero
da Castel della Pieve…” Tal influência é mais notória por volta de 1473, nas
Histórias de San Bernardino.

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Vida de Pietro Perugino, pintor, de Giorgio Vasari

se pode ver numa cópia do então chamado Bartolomeo Gondi. Em


poucos anos alcançou tanto crédito que de seus trabalhos se enche-
ram não só Florença e a Itália, mas a França, a Espanha e muitos
outros países onde foram enviadas. Por isso, estando suas obras em
altíssima reputação e consideração, os comerciantes começaram a
monopolizá-las e enviá-las para vários países, com grande lucro.
Para as freiras de Santa Chiara, Perugino trabalhou em painel um
Cristo morto7 com um colorido tão bonito e novo que fez com que os
artistas o acreditassem maravilhoso e excelente. Veem-se nessa obra
algumas belíssimas cabeças de velhos e igualmente certas Marias que,
parando de chorar, observam o morto com admiração e extraordi-
nário amor. Além disso, fez uma paisagem que foi considerada belís-
sima, porque ainda não se tinha visto o verdadeiro modo de fazê-las,
como depois se viu. Diz-se que Francesco del Pugliese quis dar às
monjas três vezes o valor que haviam pago e ainda mandar-lhes o
próprio Pietro fazer uma pintura similar, o que elas não puderam
permitir, porque Pietro dissera acreditar não poder igualar aquela.
Fora do portão dos Pintis, no convento dos frades da ordem de
São Jerônimo8, havia também muitas coisas da mão de Pietro; mas
porque hoje tal igreja e convento estão arruinados9, não quero, nesta
ocasião, que pareça monótono dizer umas poucas coisas a respeito
antes que eu avance nesta Vida10. Essa igreja, que foi arquitetura

7  O Cristo morto mencionado por Vasari como tendo sido feito para as freiras
de Santa Chiara está hoje em Florença, na Galeria do Palácio Pitti. A obra (óleo
sobre madeira, 214 x 195cm), é assinada datada de 1495 pelo próprio Perugino:
PETRVS PERVSINVS / PINXIT A. D. M. CCCC / LXXXXV. É uma referência
segura para a Deposição Borghese, de Rafael (1507), pelo colorido, disposição
das figuras e pelo ritmo que o aluno irá depurar.
8  Em italiano, “gesuati”, ou na grafia variante “ingesuati”, sem correspondente
preciso em português.
9  Trata-se da igreja de San Giusto alle Mura, que foi abandonada e demolida
em 1529, quando o príncipe Filiberto de Orange ameaçava sitiar Florença. O
convento foi demolido em 1668.
10  A respeito da igreja de San Giusto, Vasari faz aqui uma longa digressão,
ausente na edição de 1550.

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

de Antonio di Giorgio da Settignano, tinha quarenta braças11 de


comprimento e vinte de largura. Por quatro degraus subia-se a uma
plataforma de seis braças de altura sobre a qual estava o altar-mor,
com muitos ornamentos de pedra entalhada. No altar ficava um pai-
nel com rica ornamentação, da mão de Domenico Ghirlandaio. No
meio da igreja tinha uma parede divisória com uma porta vazada do
meio para cima, ladeada por dois altares; e em cada um deles, como
se dirá, havia um painel de Pietro Perugino, e, acima da porta, um
belíssimo Crucifixo da mão de Benedetto da Maiano colocado entre
uma Nossa Senhora e um São João em relevo. Diante da plataforma
do altar-mor, apoiando-se na divisória, havia um coro de nogueira
muito bem trabalhado em ordem dórica. Sobre a porta principal
da igreja havia um outro coro, que se apoiava sobre uma armação
de madeira, como um palco, ou teto visto de baixo, com belíssima
divisão e uma ordem de balaústres que contornava a frente, olhando
para o altar-mor. Esse coro à noite era muito confortável para os
frades daquele convento, para fazerem suas orações particulares e
também para os dias da semana. Acima da porta principal da igreja,
feita com belíssima ornamentação de pedra e que possuía um pór-
tico adiante, havia, em um semicírculo, um São Justo bispo muito
belo, ladeado por dois anjos, feito pelo miniaturista Gherardo; isso
porque a igreja era dedicada a São Justo e lá dentro era conservado
pelos frades um braço do santo.
À entrada do convento havia um pequeno claustro com as mes-
mas medidas que as da igreja, ou seja, quarenta braças de compri-
mento por vinte de largura. Os arcos e as abóbadas que o contorna-
vam apoiavam-se sobre colunas de pedra que criavam uma ampla
e confortável galeria ao seu redor. No meio do pátio desse claustro,
que era inteiramente pavimentado de pedras quadradas, havia um
belíssimo poço sob uma galeria que também se apoiava sobre colu-
nas de pedra e criava uma rica e bela ornamentação. E neste claustro
havia o capítulo dos frades, a porta lateral da igreja, as escadas que

11  Cfr. o glossário.

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Vida de Pietro Perugino, pintor, de Giorgio Vasari

subiam para os dormitórios e outros quartos feitos para o conforto


dos frades. Do claustro diretamente à porta principal do convento,
havia um vestíbulo do mesmo comprimento que o capítulo e a sala
do camerlengado, e que se abria a um outro claustro maior e mais
belo que o anterior. E toda essa extensão, ou seja, as quarenta braças
da galeria do primeiro claustro, o vestíbulo e a extensão do segundo,
fazia um prolongamento longuíssimo e belo, principalmente por
estar fora do último claustro e na mesma direção, de uma vereda do
jardim de duzentas braças de comprimento. E tudo isso, vindo da
porta principal do convento, criava uma vista maravilhosa.
No segundo claustro havia um refeitório de sessenta braças de
comprimento e dezoito de largura, com todos os cômodos adequa-
dos e oficinas que, como dizem os frades, são necessárias ao con-
vento. Acima, havia um dormitório em forma de T do qual uma
parte, a principal e reta, de sessenta braças de comprimento, era
dupla, ou seja, possuía celas em cada um dos lados. Na extremidade,
num espaço de quinze braças, havia um oratório cujo altar possuía
um painel de Pietro Perugino. Sobre a porta desse oratório, em
afresco, havia outra obra do mesmo pintor. No mesmo pavimento,
isto é, sobre o capítulo, existia uma sala grande, onde os padres
faziam janelas de vidro, com fornos e outras utilidades necessárias
a tal exercício. Enquanto viveu, Pietro fez para eles os cartões de
muitas obras, e os trabalhos que fez em seu tempo foram excelentes.
O jardim desse convento era tão belo e tão bem conservado, e as
videiras em torno do claustro tão bem arranjadas, que no entorno
de Florença não se podia ver melhor. Também a sala onde se desti-
lavam, segundo o costume dos frades, águas aromáticas e produtos
medicinais possuía todas as maiores e melhores comodidades ima-
gináveis. Em suma, aquele convento era dos mais belos e confor-
táveis no estado de Florença, e por isso eu quis fazer-lhe esta lem-
brança, principalmente por ser de mão do nosso Pietro Perugino a
maior parte das pinturas que ali estavam.
Voltando a Pietro, digo que das obras que fez nesse convento não
foram conservados senão os painéis, porque aquelas trabalhadas em

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

afresco foram, pelo cerco de Florença, junto com toda a construção,


lançadas por terra. Os painéis foram levados para o portão de San
Piergattolini, onde deram lugar aos frades na igreja e no convento
de San Giovannino12. Portanto, os dois painéis que ficavam acima
da mencionada divisória, eram da mão de Pietro. Em um deles havia
um Cristo no horto e os apóstolos dormindo13, onde Pietro mostrou
o quanto vale o sono contra as preocupações e as tristezas, tendo-os
representado em posturas muito cômodas. No outro painel fez uma
Pietà14, ou seja, Cristo no colo de Nossa Senhora com quatro figuras
ao redor não inferiores às outras de seu estilo. Entre outras coisas, fez
o Cristo morto tão enrijecido, como se houvesse permanecido tanto
tempo na cruz que a demora e o frio tivessem-no deixado assim, daí
o fez sustentado por São João e por Madalena, aflitos e lastimosos.
Em outro painel, Pietro trabalhou com infinita diligência uma
Crucificação com Madalena e, aos pés da cruz, São Jerônimo, São
João Batista e o beato Giovanni Colombini, fundador daquela
ordem15. Estes três painéis sofreram muito e estão inteiramente
rachados nos tons escuros e nas sombras. E isso acontece porque
quando se trabalha a primeira cor sobre o preparado (porque são
dadas três demãos de tinta sobre ele), este ainda não está bem seco e,
depois, com o tempo, ao secar, essas se contraem em sua espessura e

12  Trata-se do convento de San Giovanni Battista della Calza, para onde os frades
de São Jerônimo se transferiram em 1531.
13  Essa obra, intitulada A oração no horto (176 x 166cm, 1495), passou do con-
vento de São Giusto ao de San Giovannino e depois, no início do século XIX, à
Galleria dell’ Accademia de Florença. Hoje se encontra na Galleria degli Uffizi.
14  A Pietà (168 x 176cm, 1494–1495) esteve no convento de San Giovannino
até 1609–1621, quando passou à villa Imperiale. Depois passou ao Pitti, foi con-
fiscada pelos franceses e devolvida em 1815. Encontra-se atualmente na Galleria
degli Uffizi, em Florença, constando de seus inventários desde 1819 (n. 8365). A
obra sofreu muitos danos e restauros inábeis.
15  Hoje na Galleria degli Uffizi (n. 3254), a pintura mostra um estilo diverso das
outras duas mencionadas por Vasari no mesmo convento. Por isso, há variações
consideráveis na datação da obra pela crítica, tendo sido já considerada como
obra dos anos 1480 ou posterior, por volta de 1500. O beato Giovanni Colombini
fundou a ordem dos frades de São Jerônimo por volta de 1360.

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Vida de Pietro Perugino, pintor, de Giorgio Vasari

conseguem fazer as rachaduras, o que Pietro não pôde saber porque


justamente no seu tempo é que se começou a pintar bem a óleo.
Portanto, sendo as obras de Pietro muito louvadas pelos floren-
tinos, um prior do mesmo convento da ordem de São Jerônimo
que gostava de arte empregou-o para a pintura de uma Natividade
com os Magos, de estilo minucioso, sobre uma parede do primeiro
claustro. Essa pintura foi realizada por ele com grande beleza e aca-
bamento, e nela havia um número infinito de cabeças variadas e
não poucos retratos do natural, entre os quais a cabeça de seu mes-
tre Andrea Verrochio. No mesmo pátio, sobre os arcos das colu-
nas, fez um friso de cabeças de tamanho natural muito bem exe-
cutadas. Entre elas, estava a do prior, realizada em estilo tão bom e
vivo que foi considerada por artistas muito competentes a melhor
coisa que Pietro já tinha realizado. Assim lhe foi dada, no outro
claustro, sobre a porta que conduzia ao refeitório, a pintura de uma
cena em que o papa Bonifácio confirma o hábito ao beato Giovanni
Colombini, onde retratou oito dos ditos frades e fez uma perspec-
tiva belíssima, em fuga, que foi muito elogiada, e devidamente,
porque Pietro professava muito bem este particular. Sob esta, em
outra cena, começava a Natividade de Cristo, com alguns anjos e
pastores, trabalhada com colorido de muito frescor. Sobre a porta
do oratório, no tímpano, fez três meias figuras: Nossa Senhora, São
Jerônimo e o beato Giovanni, e com tão belo estilo que foi conside-
rado um dos melhores afrescos já feitos por Pietro.
De acordo com o que eu já ouvi contar, o prior era muito bom em
preparar os azuis ultramarinos. Como os possuísse em boa quanti-
dade, quis que Pietro os empregasse bastante naquelas obras, mas
era tão miserável e desconfiado que, por não se fiar em Pietro, que-
ria estar sempre presente quando este trabalhava com o azul. Por
isso, Pietro, que era de natureza íntegra e boa, e nada desejava dos
outros que não conseguisse por seu trabalho, levava a mal a des-
confiança daquele prior, donde pensou em fazê-lo passar vergonha.
Como havia uns panejamentos ou outra coisa que queria pintar
de azul e branco, Pietro, pegando uma baciazinha, fazia com que

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

o prior colocasse o ultramarino de punhado em punhado no godê


em que diluía a tinta, voltando com avareza ao saquinho. E depois,
começando a trabalhar com a tinta, enxaguava o pincel na baciazi-
nha a cada duas pinceladas, de modo que havia mais tinta ali do que
aquela que já tinha empregado. E o prior, que via esvaziar o saqui-
nho e não aparecer a obra, dizia a todo instante: “Quanto ultrama-
rino gasta este reboco!” “O senhor vê…”, respondia Pietro. Depois
que o prior foi-se embora, Pietro tirou o ultramarino do fundo da
baciazinha e, quando lhe pareceu propício, devolvendo-o ao prior,
disse-lhe: “Padre, isto é seu; aprenda a confiar nos homens de bem,
que nunca enganam quem desconfia, mas saberiam enganar muito
bem, quando quisessem, os desconfiados como o senhor.”
Por essas e muitas outras obras Pietro alcançou tanta fama que
foi quase forçado a ir para Siena, onde, em San Francesco, pintou
um grande painel considerado belíssimo16 e, em Santo Agostino,
um outro painel representando uma Crucificação com alguns
santos17. Pouco depois, na igreja de San Gallo, em Florença, pin-
tou um painel com um São Jerônimo penitente que hoje está em
San Jacopo tra’ Fossi, próximo à esquina dos Albertis, onde tais
frades residem. Foi empregado depois para fazer um Cristo morto
com São João e Nossa Senhora sobre as escadas da porta lateral
de San Pietro Maggiore, e trabalhou-o de tal modo que, mesmo
estando exposto à água e ao vento, conservou-se com frescor,
como se tivesse acabado de sair da mão de Pietro18. E Pietro cer-

16  O painel de San Francesco era uma Nossa Senhora com santos, pintado em
torno de 1506–1508, destruído por um incêndio em 1655.
17  Trata-se da Crucificação com Nossa Senhora, sete santos e anjos (400 x 289cm),
também chamada de Pala Chigi, pela encomenda feita por Mariano Chigi. Esta
obra ainda se encontra na igreja de Santo Agostino em Siena, tendo sofrido
numerosos e infelizes restauros. Foi encomendada a Pietro em 4 de agosto de
1502 e concluída em junho de 1506. O primeiro pagamento é documentado em
agosto de 1503.
18  Em 1785, a pintura foi transferida ao palácio Albizi. Em 1880 foi passada à
tela e vendida para fora do país, perdendo-se em seguida. Existe, contudo, uma
gravura que a representa, realizada em 1787 por Johannes Ottaviani.

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Vida de Pietro Perugino, pintor, de Giorgio Vasari

tamente conhecia as cores, tanto na pintura a fresco quanto a óleo,


de modo que muitos ótimos artistas lhe devem o conhecimento
das luzes que se veem em suas obras.
Em Santa Croce, em Florença, Pietro fez em afresco uma Pietà
com o Cristo morto no colo e duas figuras, obra que maravilha não
pela qualidade, mas pela vivacidade e novidade do colorido. Foi-
lhe encomendado, pelo cidadão florentino Bernardino de’ Rossi,
um São Sebastião para ser enviado à França; e concordaram com o
preço de cem escudos de ouro. Essa obra foi vendida por Bernardino
ao rei da França por quatrocentos ducados de ouro.
Em Valle Ombrosa, Pietro pintou um painel para o altar-mor19,
e na cartuxa de Pavia trabalhou igualmente um painel àqueles
frades20. Pintou para o cardeal Caraffa, de Nápoles, no altar-mor
da diocese, uma Assunção de Nossa Senhora, com os apóstolos
admirados em volta do sepulcro21. Em Borgo San Sepolcro, rea-
lizou para o abade Simoni de’ Graziani um painel grande22, feito
em Florença e levado nos ombros dos carregadores, com muito
custo, para San Gilio del Borgo.

19  Esse painel encontra-se hoje na Galleria degli Uffizi (n. 8366). Trata-se de
uma Ascensão da Virgem com os santos Giovanni Gualberto, Bernardo degli Uberti,
Benedito e Miguel (415 x 246cm). Foi pintado em 1500, assinado e datado:
“PETRVS PERVSINVS PINXIT AD MCCCCC”. Encontra-se em bom estado
de conservação, depois dos modernos restauros.
20  Esse painel foi encomendado a Perugino, em 1496, sob o conselho de
Ludovico, il Moro. Do políptico, existe ainda na cartuxa o Eterno em Glória,
enquanto que a parte central, com a Madona e o Menino, São Rafael, Tobias e
São Miguel, está agora na National Gallery, em Londres (n. 288). Perderam-se
dois painéis com as figuras da Anunciação durante o espólio napoleônico.
21  A Assunção da Virgem (500 x 300cm) encontra-se ainda hoje na catedral
de Nápoles, datada de cerca de 1506. A obra sofreu muitas restaurações, mas
aquela realizada em 1960 trouxe à luz o colorido original, confirmando a auto-
ria da obra a Perugino.
22  A Ascensão (400 x 250cm) também se encontra atualmente em seu lugar
original, na Catedral de Borgo San Sepolcro. A obra vem datada de cerca de 1510.
A mão de Perugino seria mais reconhecível nas cabeças das figuras principais. A
predela traz uma Anunciação e uma Adoração do Menino.

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

Enviou a Bolonha, a San Giovanni in Monte, um painel com


algumas figuras em pé e uma Nossa Senhora no ar23, por causa
do qual se espalhou de tal forma a fama de Pietro pela Itália e
fora dela, que este foi conduzido a Roma por Sisto IV para tra-
balhar na capela24 em companhia de outros excelentes artistas25.
Ali fez a história de Cristo entregando as chaves a São Pedro26,
em companhia de Bartolomeo della Gatta, abade de São Clemente
de Arezzo27, e fez igualmente a Natividade e o Batismo de Cristo,
e o Nascimento de Moisés, quando este é recolhido do cestinho
pela filha do faraó28. Na mesma parede onde está o altar, fez um
painel29 com a Assunção de Nossa Senhora, onde retratou o papa

23  Trata-se da Nossa Senhora com o Menino em glória e os santos Miguel Arcanjo,
Catarina de Alexandria, Apolônia e João Evangelista (152 x 124cm), que, enviada a
San Giovanni in Monte, em Bolonha, permaneceu na capela Vizzani até o confisco
napoleônico, tendo sido restituída em 1815. Hoje é conservada na Pinacoteca
Nazionale di Bologna. A obra é assinada PETRVS PERVSINVS PINXIT, mas a
datação é discutível, variando de 1493 a 1500.
24  Na capela Sistina, Vaticano.
25  Pietro trabalhou na capela Sistina por um ano. Sua estadia é lembrada também
pelo Anonimo Magliabechiano e vem colocada entre 27 de outubro de 1481 e 5
de outubro de 1482. Vasari fala mais a respeito dos afrescos quatrocentistas da
Sistina na Vida de Cosimo Rosselli. Trabalharam então nessas pinturas, além de
Perugino e Cosimo Rosselli, Botticelli e Ghirlandaio, e, num segundo momento,
Signorelli, Pinturicchio, Piero di Cosimo e Rocco Zoppo.
26  O afresco representando A Entrega das chaves a São Pedro (335 x 550cm) é
uma das pinturas remanescentes de Perugino na capela Sistina e a melhor con-
servada entre as deste artista no local. A organização espacial, o ritmo compo-
sitivo e a interpretação da luz atmosférica fazem desta pintura um dos pontos
altos da carreira do artista.
27  A mão de Bartolommeo della Gatta neste afresco é vista nas figuras dos dois
apóstolos que vêm logo atrás de Cristo.
28  Destas três últimas composições mencionadas por Vasari, apenas uma ainda
existe: O batismo de Cristo (no início da parede direita; 335 x 540cm). Vasari,
contudo, deixa de mencionar, no mesmo ciclo, a Viagem de Moisés ao Egito
(fronteando O Batismo de Cristo, na parede esquerda; 335 x 540cm). A Natividade
de Cristo e o Moisés salvo das águas estavam representados na parede do altar.
29  Vasari escreve: “fece la tavola in muro”, instaurando a dúvida quanto à
natureza da técnica empregada pelo pintor, se afresco ou óleo sobre madeira.

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Vida de Pietro Perugino, pintor, de Giorgio Vasari

Sisto30. Mas essas obras foram destruídas, no tempo do papa Paulo


III, para dar lugar à fachada do Juízo do divino Michelangelo31.
Na torre Borgia do palácio do papa, Pietro trabalhou numa abó-
bada algumas histórias de Cristo e folhames em claro-escuro que,
em seu tempo, tiveram extraordinária fama de serem excelentes32.
Ainda em Roma, em San Marco, próximo ao Sacramento, Pietro
fez a história de dois mártires, uma das boas obras que fez na
cidade33. Realizou ainda, para Sciarra Colonna, no palácio di San
Apostolo, uma galeria e outros cômodos34. Essas obras colocaram-
lhe nas mãos uma grandíssima quantidade de dinheiro. E assim,
decidido a não ficar mais em Roma, partiu dali com o alto favor da
corte, retornando a Perúgia, sua pátria.
Em muitos lugares de Perúgia Pietro acabou painéis e afrescos,
particularmente no palácio, onde, na capela dos senhores, fez um
painel a óleo com uma Nossa senhora e outros santos35. Em San

O Anonimo Magliabechiano já mencionava essa pintura central descrita por


Vasari. A Natividade de Cristo e o Moisés salvo das águas ladeavam esta Assunção
de Nossa Senhora.
30  Desta obra há um desenho aquarelado conservado na Albertina, em Viena.
31  Refere-se Vasari ao grande afresco do Juízo Final, iniciado por Michelangelo
em maio de 1536.
32  A Torre Borgia passou a ser chamada de Stanza dell’Incendio di Borgo após
a intervenção de Rafael e seus alunos, recebendo o nome do afresco mais
conhecido então ali realizado. Na abóbada dessa Stanza ainda se encontram
as pinturas executadas por Perugino por volta de 1507–1508. São quatro com-
posições circulares (diâmetro de 240cm) em afresco, distribuídas nos quatros
panos da partição da abóbada: O Eterno e anjos, História Sacra, A Trindade e
os apóstolos e Cristo em glória. Os folhames mencionados por Vasari são os
elementos decorativos que acompanham as nervuras da abóbada, reunidos ao
centro pelo emblema pontifício.
33  Obra destruída, foi lembrada também por Mancini, c.1620.
34  Esses trabalhos não foram mencionados na edição de 1550.
35  Essas pinturas da capela do Palácio Público de Perúgia, conhecidas como
Pala dei decemviri, tinham sido encomendadas, em 1479, a Pietro di Galeotto,
morto em 1483. O encargo foi repassado então a Pietro Perugino, que não mexeu
nessas obras antes de 1495. O conjunto consiste de duas pinturas em painel: Cristo
no sarcófago (em Perúgia, Galleria Nazionale dell’Umbria; 87 x 82cm) e a peça

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

Francesco del Monte, pintou duas capelas em afresco: uma com


a história dos Magos que levam oferendas a Cristo e outra com o
martírio de alguns frades franciscanos que foram mortos ao irem
ter com o sultão de Babilônia36. Em São Francisco do Convento37,
também pintou dois painéis a óleo: um com uma ressurreição de
Cristo38 e outro com São João Batista e outros santos39. Na igreja dei
Servi40 fez igualmente dois painéis: um com uma Transfiguração
do Nosso Senhor e outro, ao lado da sacristia, com a história dos
Magos41. Mas como estas obras não são da mesma qualidade das

principal: uma Nossa Senhora entronada com o Menino e os santos Herculano


e Constancio, Lourenço diácono e Ludovico de Toulouse (193 x 165cm), que foi
restituída à Itália em 1815, após o espólio napoleônico, ocasião em que foi para o
Vaticano, conservando-se hoje na Pinacoteca Vaticana, separada do outro painel.
36  Os afrescos de San Francesco al Monte, em Perúgia, encomendados em 1502,
eram possivelmente cinco, em vez de dois, como enuncia Vasari: três numa das
capelas mencionadas, dois na outra: O Presépio, A anunciação aos pastores, A
Epifania, O martírio dos franciscanos e Fra Michele Lombardo. A única composição
remanescente é o Presépio citado pelo biógrafo como Adoração dos Magos. Esta
obra foi transferida à tela (246 x 356cm) e encontra-se na Pinacoteca Nazionale
dell’Umbria desde 1895. A segunda composição citada por Vasari, O Martírio dos
franciscanos, existia ainda no início do século XIX, lembrado por Orsini.
37  San Francesco al Prato, Perúgia.
38  A Ressurreição (233 x 165cm) foi encomendada a Perugino em 2 de março
de 1499 para o altar da família de Bernardino di Giovanni da Corneto na igreja
de San Francesco al Prato, em Perúgia, onde permaneceu até ser levada à França,
em 1497. Restituída em 1815, foi entregue ao papa, entrando para a coleção da
Pinacoteca do Vaticano, onde hoje se encontra. É datada entre 1499 e 1510.
39  O São João Batista entre São Francisco e São Jerônimo (205 x 173cm) encontra-se
na Pinacoteca Nazionale dell’Umbria, em Perúgia. Datado de cerca de 1500–1505.
40  Santa Maria dei Servi, em Città della Pieve, Perúgia. Perugino realizou para
essa igreja um ciclo de afrescos não mais existentes (na capela de Santa Maria
della Stella), além do painel citado por Vasari.
41  Vasari menciona dois painéis independentes, mas trata-se de um painel único,
a Pala della Trasfigurazione, e sua predela. A Transfiguração (têmpera sobre
madeira; 277 x 178cm) é a cena principal; o Presépio (16,5 x 36,5) é uma das três
cenas da predela (que inclui ainda uma cena de Anunciação e um Batismo de
Cristo). De Santa Maria dei Servi passou, em 1543, a Santa Maria Nuova. Hoje se
encontra na Pinacoteca de Perúgia

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Vida de Pietro Perugino, pintor, de Giorgio Vasari

outras de Pietro, tem-se por certo que sejam de suas primeiras obras
na cidade. Em San Lorenzo, a catedral da mesma cidade, é de mão
de Pietro, na capela do Crucifixo, a Nossa Senhora, São João e outras
Marias, São Lourenço, São Tiago e outros santos42. Pintou ainda, no
altar da sacristia, onde está colocado o anel com que a Virgem Maria
foi desposada, as bodas dessa Virgem43.
Depois, fez em afresco toda sala de audiência do Cambio44, isto
é, no compartimento da abóbada fez os sete planetas sobre carros
puxados por diversos animais45, segundo o costume antigo, e na
parede diante da porta de entrada fez a natividade46 e a ressurrei-
ção de Cristo47. Em um painel fez um São João Batista em meio a
outros santos. Depois, nas paredes laterais, pintou, à sua maneira,
Fabio Massimo, Sócrates, Numa Pompílio, F. Camilo, Pitágoras,
Trajano, L. Sicinio, Leônidas espartano, Horácio Cocle, Fábio
Simprônio, Péricles ateniense e Cincinato48. Na outra parede fez
os profetas Isaías, Moisés, Daniel, Davi, Jeremias, Salomão, as sibi-

42  Afrescos perdidos, mencionados também por Crispolti (1648), G. B. Morelli


(1683) e Orsini, que, escrevendo em 1804 , os declara perdidos desde 1795.
43  A pintura mencionada por Vasari é identificada com os Esposais da Virgem
(234 x 185cm) do Musée de Beaux-Arts de Caen. Essa obra foi primeiramente
encomendada (1485) a Pinturicchio, que não pôde executá-la, passando então
ao Perugino em 1499. É datada entre 1500 e 1504. Levada por Napoleão para a
França, jamais foi devolvida à Itália.
44  Trata-se da sala de audiências do Collegio del Cambio, em Perúgia, que
funcionava como tribunal. A encomenda a Perugino foi decidida em 1496 e o
último pagamento data de 1507. Embora a data de 1500 inscrita na sala confirme a
ocasião do término dos trabalhos, a maior parte do complexo esquema figurativo
devia estar já concluída por volta de 1497.
45  São pintados em composições circulares no espaço entre as velas dos arcos: a
Lua, Mercúrio, Apolo, Marte, Júpiter, Saturno e Vênus.
46  A Natividade (264 x 225cm), datada 1498.
47  Trata-se não de uma Ressurreição, mas de uma Transfiguração (226 x 229
cm), datada 1498.
48  Esses personagens estão distribuídos em duas composições independentes:
Prudência e Justiça entre seis sábios antigos (293 x 418cm), datada de 1497, e A
Força e a Temperança entre seis heróis antigos (291 x 400cm), datada do mesmo ano.

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

las Eritreia, Líbica, Tiburtina, Délfica e outras49. E acima de cada


uma das figuras escreveu, como moto, algumas coisas apropriadas
àquele lugar. E em um ornamento fez o seu retrato50, que parece
vivíssimo, escrevendo assim sob seu nome: “Petrus Perusinus egre-
gius pictor. Perdita si fuerat, pingendo hic retulit artem: Si nunquam;
inventa esser hactenus, ipse dedit. Anno Domini 1500.” Esta obra,
belíssima e mais elogiada que qualquer outra que Pietro tenha tra-
balhado em Perúgia, é hoje muito considerada pela gente da cidade,
em memória de tão louvado artista conterrâneo.
Depois, na capela maior da igreja de Santo Agostino, Pietro fez
na parte da frente de um painel grande e isolado, contornado de
rico ornamento51, um São João que batiza Cristo52 e, na de trás,
ou seja, do lado que confronta o coro, fez a Natividade de Cristo53;
na parte superior fez alguns santos e na predela, com muita dili-
gência, fez várias cenas com figuras pequenas. E nesta igreja, na
capela de São Nicolau, fez um painel para o senhor Benedetto
Calera. Depois, tendo voltado à Florença, Pietro fez para os mon-
ges de Cestello54 um painel com São Bernardo; e no capítulo fez
uma Crucificação, Nossa Senhora, São Benedito, São Bernardo e
São João55. E em San Domenico, em Fiesole, na segunda capela à

49  A composição é O Eterno com sibilas e profetas (229 x 370cm), datada de 1500.
50  O pequeno autorretrato de Perugino (40 x 30,5cm) é acompanhado da
inscrição ditada a seguir por Vasari, na qual o pintor é elogiado pelo colorido de
sua obra.
51  Trata-se do chamado Políptico de Santo Agostino: um conjunto pictórico
complexo, composto por 24 cenas independentes, hoje disperso. A estrutura
de madeira foi encomendada a Mattia di Tommaso da Reggio em 1495 e estava
pronta em 1500. Perugino foi encarregado da pintura em 1502, e o trabalho
pictórico deve ter sido realizado entre os anos de 1503 e 1512, com interrupções.
52  O Batismo de Cristo (261 x 146cm) conserva-se na Galleria Nazionale
dell’Umbria, em Perúgia.
53  A Natividade (óleo sobre madeira; 263 x 147cm), é datada entre 1506–1510 e
é conservada igualmente na Galleria Nazionale dell’Umbria.
54  Isto é, Santa Maria Maddalena de’ Pazzi.
55  Esta obra em afresco é conhecida como a Crucificação dei Pazzi (480 x
812cm). Foi encomendada em novembro de 1493 e concluída até abril de 1496.

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Vida de Pietro Perugino, pintor, de Giorgio Vasari

direita, fez um painel com Nossa Senhora e três figuras, entre as


quais um São Sebastião muito elogiado56.
Pietro tinha trabalhado tanto e tinha sempre tanto trabalho a
fazer, que fazia com frequência as mesmas coisas; e de tal forma
reduzia ao estilo a doutrina de sua arte, que dava a todas as figuras
um mesmo ar. Quando, já em seu tempo, apareceu Michelangelo
Buonarrotti, Pietro desejou imensamente ver as suas figuras, pela
reputação que os artistas lhe davam. E vendo encobrir-se a grandeza
do nome que conquistara por tudo com tanto critério, tentou ofen-
der com palavras muito mordazes aqueles que trabalhavam. E por
isso, além de certas abjeções que lhe fizeram alguns artistas, mere-
ceu que Michelangelo lhe dissesse em público que era inepto para
a arte. Sem poder aguentar tanta infâmia, foram os dois ao magis-
trado dos Oito, onde Pietro acabou com muito pouca honra.
Entrementes, os frades dos Servi de Florença, almejando o pai-
nel do altar-mor feito por uma pessoa famosa, entregaram-no a
Filippino, uma vez que Leonardo da Vinci havia partido para a
França. Mas Filippino morreu quando tinha feito a metade de um
dos dois painéis que havia ali57. Por isso os frades, pela confiança que
tinham em Pietro, encomendaram-lhe todo o trabalho58. No painel
onde fazia o Cristo deposto da cruz, Filippino tinha terminado o
Nicodemos que o depõe, e Pietro continuou embaixo o desfaleci-
mento de Nossa Senhora e outras figuras. E porque nessa obra iam
dois painéis, um voltado para o coro dos frades e outro, no sentido

Encontra-se em bom estado em seu local de origem, em Florença, na igreja de


Santa Maria Maddalena de’ Pazzi.
56  Vasari menciona Nossa Senhora, São Sebastião e outras três figuras. Contudo,
a identificação é feita com a Nossa Senhora com São Sebastião e São João Batista
(óleo sobre madeira; 178 x 164cm) da Galleria degli Uffizi, assinada e datada de
1493. A figura de São Sebastião conhece uma imensa fortuna, exatamente como
apontado por Vasari no trecho em questão.
57  Filippino Lippi recebeu a encomenda do políptico em 15 de setembro de
1503. Já havia realizado a metade de um dos painéis maiores quando faleceu,
em 15 de abril de 1504.
58  A encomenda a Pietro Perugino data de 15 de agosto de 1505.

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

inverso, para o corpo da igreja, atrás do coro era para se colocar a


Deposição e diante dele, a Assunção de Nossa Senhora59. Mas Pietro
a fez tão extraordinária que o Cristo deposto foi colocado diante do
coro e a Assunção atrás. Hoje estes painéis foram ambos retirados,
para se colocar ali o tabernáculo do Sacramento; e foram postos em
outros altares da igreja, restando da obra apenas seis quadros, onde
estão alguns santos pintados por Pietro dentro de nichos60. Diz-se
que quando tal obra foi exposta, foi muito reprovada por todos os
artistas novos, particularmente porque Pietro serviu-se de figuras
que outras vezes costumara empregar, de modo que seus amigos,
provocando-o, diziam que cansado não estava e que tinha negligen-
ciado o bom modo de trabalhar ou por avareza, ou para não perder
tempo. E Pietro lhes respondia: “Eu empreguei as mesmas figu-
ras que vocês elogiaram outras vezes e que então lhes agradaram
imensamente. Se agora lhes desagradam e não as elogiam, o que
eu posso fazer?” Mas aqueles, com sonetos e descortesias públicas,
asperamente o flechavam. Ele, então já velho, partindo de Florença
e voltando à Perúgia, realizou algumas obras a fresco na igreja de
San Severo, mosteiro da ordem de Camaldoli, onde o jovem Rafael
de Urbino, seu discípulo, tinha feito algumas figuras, conforme se
dirá em sua Vida61.

59  O grande conjunto pictórico é chamado Políptico dell’Annunziata, e foi rea-


lizado para a igreja da Santissima Annunziata em Florença. De acordo com as
fontes, o políptico se desenvolvia em quatro faces, duas das quais pintadas. A
Deposição da cruz (333 x 218cm) e a Assunção de Nossa Senhora (333 x 218cm)
compunham as partes principais do complexo. Ambos os painéis podem ser
datados entre 1506 e 1507, mas a Deposição encontra-se hoje exposta na Galleria
dell’Accademia, em Florença, enquanto que a Assunção permanece na igreja da
Santissima Annunziata.
60  O desmembramento do políptico começou em 1546, quando os painéis
principais foram retirados para dar lugar ao tabernáculo. As figuras de santos
remanescentes são cinco, distribuídas pela Europa e Estados Unidos.
61  Trata-se de um afresco que inclui uma composição maior, na parte superior,
representando a Trindade, e seis santos (Escolástica, Jerônimo, João Evangelista,
Gregório Magno, Bonifácio e Marta), ladeando, três a três, um nicho que abriga
um grupo em terracota representando Nossa Senhora com o Menino. Uma ins-

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Vida de Pietro Perugino, pintor, de Giorgio Vasari

Pietro trabalhou também em Montone, em La Fratta e em muitos


outros lugares do território de Perúgia, particularmente em Assis,
na igreja de Santa Maria degli Angeli, onde fez em afresco, na parede
detrás da capela da Nossa Senhora, que confronta o coro dos frades,
um Cristo na cruz com muitas outras figuras62. E na igreja de San
Pietro, abadia dos monges negros em Perúgia, pintou no altar-mor
um grande painel com a Ascensão e os apóstolos embaixo olhando
para o céu. Na predela deste painel, há três cenas trabalhadas com
muita diligência: os Magos, o Batismo e a Ressurreição de Cristo,
obra que se vê repleta de belos trabalhos, tanto que, das de Pietro
que estão em Perúgia, é a melhor trabalhada a óleo63.
Pietro começou um trabalho de não pouca importância em
Castello della Pieve, mas não o terminou. Assim como quem não
confia em ninguém, ao ir e vir de tal castelo em Perúgia, Pietro
costumava levar sempre consigo a quantia de dinheiro que pos-
suía. Alguns, esperando-o numa passagem, roubaram-no; mas ele,
de tanto implorar, conseguiu, por Deus, que lhe deixassem a vida.
Depois, empregando meios e amigos, que também os possuía bas-
tante, recuperou grande parte do dinheiro que lhe tinham levado.
Mas, apesar disso, quase morreu, pela dor.

crição na pintura indica a presença de Rafael na porção superior da composi-


ção, a da Trindade, datando-a de 1505. Outra inscrição atesta a mão de Pietro
Perugino nas figuras dos santos e traz a data de 1521. Há concordância da crí-
tica quanto ao fato de Perugino ter dado sequência, em seus últimos anos, ao
trabalho deixado interrompido por seu aluno.
62  A Crucificação é um afresco realizado na parede posterior da Porziuncola,
na parte externa da igreja de Santa Maria degli Angeli, em Assis. Muito alterado
por um recorte na parte superior (ainda no séc. XVI) e por uma repintura quase
total executada em 1832, o afresco teve a atribuição a Perugino colocada em
dúvida e vem sendo considerado como obra ilegível.
63  A Ascensão (324 x 263) permaneceu no coro da igreja de San Pietro em Perúgia
até 1751, passando à capela do Sacramento em 1763. Levada depois à França, foi
exposta no Louvre, passando à cidade de Lyon em 1811, onde se é conservada no
Musée Municipal des Beaux-Arts. É datada de cerca de 1496.

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

Pietro foi pessoa de muito pouca religião e nunca conseguiu


acreditar na imortalidade da alma. Antes, com palavras adequa-
das ao seu cérebro de pórfiro64, recusou obstinadamente qualquer
bom caminho. Tinha toda sua esperança nos bens da sorte, e por
dinheiro teria feito todo mau contrato. Obteve muitas riquezas, e
em Florença construiu e comprou casas, e em Perúgia e Castello
della Pieve adquiriu muitos bens imóveis. Tomou por esposa uma
belíssima jovem e teve filhos com ela, e se deliciou tanto com seus
penteados bonitos, dentro e fora de casa, que se diz que frequente-
mente os arrumava com as mãos. Velho, aos 78 anos, Pietro final-
mente concluiu o curso de sua vida em Castello dellla Pieve, onde
foi honradamente sepultado no ano de 1524.
Pietro formou muitos mestres naquele estilo, e um entre os
outros foi verdadeiramente excelente, o qual se devotando intei-
ramente aos honrosos estudos da pintura ultrapassou em grande
medida seu mestre: e este foi o prodigioso Rafael Sanzio de
Urbino, que muitos anos trabalhou com Pietro em companhia de
Giovanni Santi, seu pai. Foi também seu discípulo o Pinturicchio,
pintor de Perúgia que, como se disse em sua Vida, conservou sem-
pre o estilo de Pietro. Foi também seu discípulo Rocco Zoppo,
pintor florentino, da mão do qual Filippo Salviati possui um tondo
com uma Nossa Senhora muito bela; mas é bem verdade que ela
foi acabada inteiramente por Pietro. O mesmo Rocco trabalhou
muitos quadros de Nossas Senhoras e fez muitos retratos, a pro-
pósito dos quais não é necessário discorrer. Direi que retratou em
Roma, na capela de Sisto, Girolamo Riario e Francesco Piero, car-
deal de San Sisto. Foi também discípulo de Pietro o Montevarchi,
que em San Giovanni di Valdarno pintou muitas obras, e na Nossa
Senhora, particularmente, as histórias do milagre do leite. Deixou
ainda muitas obras em Montevarchi, sua pátria. Da mesma forma,
aprendeu de Pietro e esteve muito tempo com ele Gerino da
Pistoia, de quem se falou na Vida de Pinturicchio; e assim também

64  Um tipo de rocha de coloração vermelha.

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Vida de Pietro Perugino, pintor, de Giorgio Vasari

o florentino Baccio Ubertino, muito diligente tanto no colorido


quanto no desenho, daí ter sido muito empregado por Pietro. De
sua mão há em nosso livro o desenho de um Cristo flagelado na
coluna, feito a pena, coisa muito bonita.
Deste Baccio era irmão, e também discípulo de Pietro,
Francesco, que foi apelidado de Il Bacchiacca, que foi diligen-
tíssimo mestre de figuras pequenas, como se pode ver em mui-
tas obras trabalhadas por ele em Florença, sobretudo na casa de
Giovanmaria Benintendi e na casa de Pierfrancesco Borgherini.
O Bacchiacca gostava de fazer grotescas, e para o senhor duque
Cosimo fez um pequeno gabinete cheio de animais e de ervas
raras, pintados do natural, que são consideradas coisas belíssi-
mas. Além disso, fez os cartões de muitas tapeçarias para salas
do palácio de sua excelência, depois tecidas em seda pelo mestre
flamengo Giovanni Rosto.
Foi ainda discípulo de Pietro, Giovanni Spagnuolo, apelidado lo
Spagna, aquele que coloriu melhor que nenhum outro que Pietro
deixou após a morte. Este Giovanni, depois de Pietro, teria perma-
necido em Perúgia se a inveja dos pintores daquela cidade, muito
inimiga de estrangeiros, não o tivesse perseguido, de modo que
se viu forçado a retirar-se a Spoleto, onde por suas qualidades e
virtude, lhe foi dada uma esposa de bom sangue e feito cidadão
daquela pátria. Naquele lugar fez muitas obras, assim como em
todas as outras cidades da Úmbria. Em Assis, pintou um painel da
capela de Santa Catarina na igreja acima de San Francesco, para o
cardeal Egidio Spagnuolo, e também um painel em San Damiano.
Em Santa Maria degli Angeli, pintou na capela pequena, onde mor-
reu São Francisco, algumas figuras a meio corpo, de tamanho natu-
ral: alguns companheiros de São Francisco e outros santos muito
vivazes ladeando um São Francisco em relevo.
Mas entre os ditos discípulos de Pietro, o melhor mestre de
todos foi Andrea Luigi de Assis, chamado L´Ingegno, que em sua
primeira juventude concorreu com Rafael de Urbino sob a disci-
plina de Pietro, que lhe empregou sempre nas mais importantes

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Tradução e notas: Letícia Martins de Andrade

pinturas: como foi na audiência do Cambio de Perúgia, onde há


belíssimas figuras de sua mão, naquelas que trabalhou em Assis e
finalmente, em Roma, na capela do papa Sisto. Em todas as suas
obras, Andrea deu tal prova de si que se esperava que ultrapas-
sasse seu mestre em grande medida. E certamente assim teria
sido. Mas a fortuna, que quase sempre se opõe de boa vontade aos
altos princípios, não deixou L´Ingegno chegar à perfeição, porque
lhe caindo nos olhos um transbordo de catarro, o pobre tornou-
se, com a dor infinita de quem quer que o conhecesse, totalmente
cego. Sabendo desse caso muito digno de compaixão, o papa Sisto
(como sempre amou os virtuosos), ordenou que fosse paga uma
provisão anual, durante a vida de Andrea, por quem lhe contro-
lava a renda em Assis. E assim foi feito até que ele morreu, com
oitenta e seis anos.
Foram igualmente discípulos de Pietro, e de Perúgia também
esses, Eusébio S. Giorgio, que pintou em Sant’Agostino o painel dos
Magos; Domenico de Paris, que fez muitas obras em Perúgia e em
seu território, seguido por seu irmão Orazio. Também Giannicola,
que em San Francesco pintou um painel com um cristo no Horto
e o painel de Todos os Santos em San Domenico, na capela dos
Baglionis; e na capela do Cambio, pintou histórias de São João
Batista em afresco. Giovanni Caporali, conhecido por Bitti, foi,
também ele, discípulo de Pietro, e de sua mão há muitas pinturas
em Perúgia, sua pátria. E na arquitetura exercitou-se de tal modo
que não apenas fez muitas obras, mas comentou Vitrúvio daquele
modo que todos podem ver impresso. E nesses estudos seguiu-
o Giulio, seu filho, pintor de Perúgia. Mas nenhum entre tantos
discípulos jamais igualou a diligência de Pietro, nem a graça que
possuía ao colorir naquele seu estilo, que agradou tanto em seu
tempo, que muitos vieram da França, da Espanha, da Alemanha
e de outras províncias para aprendê-lo. E de suas obras, como se
disse, muitos fizeram comércio, enviando-as a diversos lugares,
antes que viesse o estilo de Michelangelo, que tendo mostrado o
verdadeiro e bom caminho a estas artes, conduziu-o àquela per-

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Vida de Pietro Perugino, pintor, de Giorgio Vasari

feição que na seguinte Terceira Parte se verá. Nesta se tratará da


excelência e perfeição da arte e se mostrará aos artistas que quem
trabalha e estuda continuamente, não à fantasia e a caprichos,
deixa obras e adquire nome, capacidade e amigos.

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A “Villa Madama” em uma
carta de Rafael de Urbino a
Baldassare Castiglione 1
Tradução e notas: Letícia Martíns de Andrade

A
pós quase cinco séculos de sua projetação e parcial constru-
ção, e depois de vários outros séculos de contribuições de
estudiosos ao seu entendimento, a villa que se estende nas
encostas do Monte Mario e dali parece contemplar Roma em silên-
cio permanece uma imagem fugidia, cujos contornos mais se des-
vanecem e confundem na imprecisão do inacabado que confronta
os testemunhos de sua idealização. A villa Madama é, portanto, um
sonho; um sonho criado nas letras de Rafael de Urbino.
Dois projetos arquitetônicos e o texto de uma carta são os três tes-
temunhos essenciais dessa idealização. Os dois projetos são conser-
vados em Florença, nos Uffizi, e constituem o testemunho gráfico de
ideias que Rafael estava desenvolvendo para a construção da villa.
Os dois projetos arquitetônicos são tratados aqui pela designação
oficialmente adotada: U 273 A e U 314 A; a letra U referindo-se a
“Uffizi”; a letra A a “Architettura”, sendo mais antigo o projeto 273.
De um projeto a outro, como se dirá, várias mudanças são intro-
duzidas. O terceiro testemunho é uma carta, datada da primavera

1  Tradução da cópia anônima da carta de Rafael de Urbino a Baldassare


Castiglione, a partir da apresentação feita por Frommel [1984, pp. 325–326]
da transcrição estabelecida por Lefevre em 1969. Foram estudadas ainda
a posterior transcrição de Lefevre [1973–1984, pp. 52–60] e a de Dewez
[1993, pp. 21–31].

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A “Villa Madama”

de 15192 e endereçada ao literato Baldassare Castiglione3, que vem


trazer os esclarecimentos a respeito dessas alterações. Ela foi escrita
entre a execução de um e outro projeto, quando as principais carac-
terísticas apresentadas em U 314 A já estavam concebidas, mas nem
todas adequadas. Mas não apenas: é essa carta um texto fundamen-
tal — ao lado daquela dirigida por Rafael a Leão X — sobre a forma
de pensar e projetar de Rafael, inspirada nos antigos.
Descoberta na década de 1960 por Philip Foster, a carta de Rafael
foi então publicada no Römisches Jahrbuch für Kunstgeschichte
(1967–1968), vindo selar definitivamente a autenticidade da pater-
nidade rafaelesca da impostação arquitetônica da villa. Tal paterni-
dade há muito tinha sido colocada em debate pelos contraditórios
escritos de Giorgio Vasari — que atribui a ideação da villa a Giulio
Romano4, aluno de Rafael, com a ressalva da contribuição de dese-
nhos do mestre — e pelas plantas remanescentes, oriundas da “setta
sangalesca”, notadamente da mão de Antonio da Sangallo, o jovem.

2  A carta pertence ao Archivio di Stato Firenze. Tinta marrom; 29,5 x 21,5cm.


Esta é a data comumente aceita para a carta. FROMMEL, 1984, pp. 324–325.
3  Baldassare Castiglione (1478–1529), intelectual e literato, amigo de Rafael, é o
autor do Il Cortegiano. A ele é atribuída a redação da carta de Rafael, endereçada
ao papa Leão X, sobre seu trabalho na reconstituição da Roma antiga. A propósito
dessa carta, veja-se o extenso trabalho de DI TEODORO, 1994. A carta a
Leão X pode ser, em algumas passagens, cotejada com a carta que descreve a villa
Madama, aqui tratada. O fato de ser Castiglione o destinatário da carta de Rafael é
reforçado (embora não seja possível confirmar), por sua longa ausência de Roma
entre 1516 e 1519, exatamente nos anos de projetação da villa. Além disso, sugere
FROMMEL [1984, p. 324], a presença do vocativo “Vostra Signoria” indicaria
justamente “um personagem nobre e mundano do tipo de Castiglione”.
4  E esta afirmação vasariana torna-se mais relevante quando se lê, na própria
Vida de Giulio Romano, a narração que Vasari faz de seu encontro pessoal com
o artista em Mântua [VASARI, 1906, V, pp. 552–553]. Ou seja, Vasari tivera a
oportunidade de estar com Giulio Romano por alguns dias e de recolher do artista
em primeira mão as notícias que desejava, e isso parece conferir credibilidade
indiscutível ao seu discurso. Porém, é preciso lembrar o hábito vasariano de
manipulação dos fatos, de forma a moldar e estruturar suas ideias.

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Tradução e notas: Letícia Martíns de Andrade

A primeira menção conhecida a essa carta é também epistolar:


em 13 de agosto de 1522, dois anos após a morte de Rafael, uma
carta de Baldassare Castiglione endereçada a Francesco Maria della
Rovere (1490–1538) tratava justamente de responder ao duque de
Urbino sobre um pedido de cópia do texto de Rafael sobre a villa5. O
interesse desse homem de armas pela descrição da villa papal feita
por seu arquiteto ia além da admiração e sensibilização pela beleza
do projeto e pela fama do artista. O duque de Urbino desejava refor-
mar e ampliar a antiga villa Imperiale (Sforza) de seus predecesso-
res, em Pesaro, sob o modelo da arquitetura renovada pelo urbinate.
De toda forma, é importante saber que a carta de Rafael circu-
lava pela Itália por meio de cópias, num testemunho do considerável
interesse pelo texto e pelo projeto6. O documento conservado pelo
Archivio di Stato florentino é, na realidade, uma dessas cópias, mas
anônima, plena de incorreções e, evidentemente, sem o nome do
destinatário e qualquer assinatura. Essa cópia — considerada ante-
rior a 1536–1537 — foi identificada por Foster no inventário em que
figura simplesmente indicada como Descrizione di una villa situata a
Monte Mario a Roma7, sem nenhuma referência a Rafael e sem data.

5  O original dessa carta de Castiglione ao duque de Urbino encontra-se na


Biblioteca Oliveriana (vol. 429, XVII, c. 91). O texto foi publicado primeiramente
por PUNGILEONI, 1829, pp. 181–182. Diz Castiglione, de Roma, ao duque:
“Recebi de Vossa Excelência, dia 3 do presente mês, uma missiva na qual me pede
que lhe escreva algo de novo e que lhe envie a carta de Rafael (boa lembrança)
onde ele descreve a casa que o Reverendíssimo dos Medicis mandou edificar: não
posso enviá-la porque ficou em Mântua com muitas outras coisas minhas. Mas
estes dias partiu daqui o senhor Hieronimo [Girolamo Vagnini], primo-irmão
de Rafael, que presumo ter uma cópia dessa carta, e Vossa Excelência poderá ser
satisfeita por ele, porque vai para Urbino”.
6  LEFEVRE, 1973–1984, p. 47.
7  A Descrizione corresponde ao n. 162 (c. 294–299), XCIV, do Archivio Mediceo
avanti il Principato e foi publicada pelo Ministero dell’interno-Publicazzioni degli
Archivi di Stato, vol. XXVII: Archivio Mediceo avanti il principato. Inventario, vol.
III, Roma, 1957, p. 402.

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A “Villa Madama”

A villa é colocada no meio da encosta do Monte Mario8, que se


volta em linha reta para grego9. E porque o monte faz uma curva, da

8  O Monte Mario – Monte Maris, Montemalo (Dante), ou Monte Mare – é uma


barreira natural situada na zona noroeste de Roma. Atingindo a altitude de 139m,
é o relevo mais imponente do sistema de colinas chamado Montes da Farnesina.
Trata-se de uma área de grande valor cultural e ambiental para Roma. É uma região
frequentada desde a Antiguidade, considerada especialmente salutar pela área verde
e pela altitude. O monte abriga ville históricas (villa Mellini e villa Mazzanti) e marca
o último braço da via Romea (via Francigena) – uma rota de peregrinação medieval
em direção ao norte. O lugar era apreciado por Goethe por causa da bela paisagem.
Do monte, avista-se um vasto panorama da cidade de Roma que chega até Colli
Albani. O terreno sobre o qual se construiu a villa, na encosta do Monte, pertencente
ao Capitolo di San Pietro no início do século XVI, ficava “in pratis Neroni”, um topo-
nímico que lembra ter sido propriedade da família imperial domiciana [ROMANO,
p. 388]. Um segundo topônimo vinculado através de documentos ao terreno da
villa é “monti falconiani”, em uso pelo menos desde 1484 – “in loco quondam domini
Falconi” [LANCIANI, p. 72]. Também a villa in Tusci de Plínio encontrava-se nas
encostas de uma colina que, embora não muito elevada, vislumbrava o vale do Tibre.
9  Empregaremos a nomenclatura dos ventos de acordo com o original rafae-
lesco, apenas as passando à sua tradução ao português (quando possível e neces-
sário). Expomos aqui, contudo, sua correspondência com os pontos cardeais, de
modo que não seja necessário voltar a tais referências no correr do texto: grecco-
grego corresponde ao NE; tramontana (N), levante (L), syrocco-siroco (SE), hos-
tro-austro (S), lybicco-líbico (SO), ponente-poente (O) e maestro-mestre (NO).
Rafael retoma neste ponto a questão da orientação conforme o tratamento de
Vitrúvio, Livro I, Cap. XI, e Livro VI, cap. VI. Vitrúvio [Livro I, VI, 1, 4–5]:
“Dirigentur haec autem recte, si exclusi erunt ex angiportis venti prudenter. Qui si
frigidi sunt, laedunt; si calidi, vitiant; si umidi, nocent (…) Nonnullis placuit esse
ventos quattuor: ab oriente aequinoctiali solanum, a meridie austrum, ab occidente
aequinoctiali favonium, ab septentrionali septentrionem. Sed qui diligentius perqui-
sierunt, tradiderunt eos esse octo, maxime quidem Andronicus Cyrrestes, qui etiam
exemplum conlocavit Athenis turrem marmoream octagonon et in singulis lateri-
bus octagoni singulorum ventorum imagines excalptas contra suos cuiusque flatus
designavit, supraque eam turrim metam marmoream perfecit et insuper Tritonem
aereum conlocavit dextra manu virgam porrigentem, et ita est machinatus, uti
vento circumageretur et semper contra flatum consisteret supraque imaginem flan-
tis venti in dicem virgam teneret. Itaque sunt conlocati inter solanum et austrum ab
oriente hiberno eurus, inter austrum et favonium ab occidente hiberno africus, inter
favonium et septentrionem caurus, quem plures vocant corum, inter septentrionem
et solanum aquilo. Hoc modo videtur esse expressum, uti capiat numerus et nomina

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Tradução e notas: Letícia Martíns de Andrade

parte que defronta Roma divisa o mezodj10, do oposto divisa mes-


tre, e nas costas do monte ficam líbico e poente, de modo que essa
villa tem, de oito ventos, seis que a tocam, e são estes: austro, siroco,
levante, grego, tramontana e mestre11. Assim V. Senhoria pode con-
siderar como é circundado o lugar. Mas para colocar a villa a ventos
mais sãos, voltei seu comprimento em linha reta para siroco e mes-
tre, com a advertência de que para siroco não haja janelas nem quais-
quer cômodos, a não ser aqueles que tenham necessidade de calor12.

et partes, unde flatus certi ventorum spirent. Quod cum ita exploratum habeatur, ut
inveniantur regiones et ortus eorum, sic erit ratiocinandum.” Outra lembrança do
antigo é entrevista aqui por RAY [1974, p. 152], ao sugerir que um dos pontos
de referência seguidos por Rafael na disposição da villa sobre o monte talvez
possa ser encontrado em Varrão, a partir do cotejo do trecho inicial da carta
de Rafael – “ La villa esposta a mezo la costa di Monte Mario che guarda per linea
recta a greco…” – com um trecho do De re rustica [I, 12]: “Danda opera ut potis-
simum sub radicibus montis silvestris villam ponat, ubi pastiones sint laxae, item ut
contra ventos, qui saluberrimi in agro flabunt. Quae posita est ad exortos aequinoc-
tiales, aptissima, quod aestate habet umbram, hieme solem” [“Tu deve fare in modo
che la villa si trovi specialmente sulle falde di un monte selvaggio ove i pascoli siano
estesi e che sia esposta ai venti più sani. La villa migliore è quella esposta all’oriente
equinoziale, perché nell’estate gode l’ombra e nell’inverno il sole.”].
10  Rafael chama de “mezodj” (ou “mezo dì”) o vento austro, ou seja, o sul. A
nomenclatura “ostro” é empregada apenas uma vez em toda a carta, neste mesmo
parágrafo, quando são enumerados os ventos que tocam a vila. Prevalece em
todo o texto original a palavra mezodj para indicar a orientação sul. Por questões
de eufonia, ora mantivemos o termo mezodj em sua forma original, ora o
traduzimos por “sul”.
11  Os outros dois ventos são líbico (SO) e poente (L).
12  Nessa descrição do projeto para a villa Madama, Rafael tem seu modo de
projetar, entre outras razões, aproximado do dos antigos por sua preocupação
com a disposição de cada ambiente em particular, sempre considerando sua
função, suas vistas, etc. Tal preocupação aparece também na carta redigida por B.
Castiglione ao papa Leão X. Veja-se Di TEODORO, 1994. Essa preocupação com
a impostação dos ambientes em relação aos ventos é uma constante nas cartas de
Plínio, o Jovem, em especial naquela dedicada à descrição do Laurentinum.

364

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A “Villa Madama”

A villa tem duas entradas principais, uma por uma rua que vem
do Palácio13, pelos prados14, e outra, nova, que vai em linha reta até
a Ponte Molle15, ambas com a largura de 5 varas16; e diríeis verda-
deiramente Ponte Molle ser feita para essa villa, porque a rua chega
justo na ponte17. E na extremidade dessa rua há uma grande porta
colocada no meio do edifício.
Mas para não confundir V. S., ao narrar-vos suas partes, come-
çarei pela entrada da rua que vem do Palácio e dos prados, que é
a entrada principal — e não na costa do monte —, mais alta que

13  O “Palácio” a que se refere aqui Rafael é o do Vaticano.


14  Rafael chama de “prados” a área de terreno de aluvião formada pela mar-
gem direita do rio Tibre na extensão entre o Vaticano e o Monte Mario. Como
salienta DEWEZ [1993, p. 22, nota 2, 1], este é o mesmo nome pelo qual a área
é ainda hoje conhecida, embora esteja inteiramente tomada por construções.
VASARI [1906, V, p.525] retoma essa imagem: “…uma bela planície que corria
ao longo do Tibre até a Ponte Molle, ladeada de prados que se estendiam quase
até a porta de São Pedro.”
15  Ponte Molle, i.e. Ponte Milvio. Essa ponte sobre o rio Tibre é das mais
antigas de Roma e historicamente das mais importantes, sendo uma das cinco
pontes remanescentes da antiguidade em Roma. Inicialmente feita em madeira,
remonta aos séculos IV-III a.C. Em 109 a.C., diz-se, teria sido reconstruída em
pedra por Marco Emilio Scauro, e daí, segundo alguns, teria tomado o nome
“Milvio”. Diz-se também que o nome viria do magistrado que autorizou sua
construção, um certo Molvius, daí, “Molvio” e depois “Milvio”. A ponte, contudo,
ainda é conhecida pelo nome de “Molle”, antes “Mollo”: uma denominação que
seria derivada do fato que se conta que, antigamente, a ponte “molleggiava”
(balançava). A Ponte Milvio foi reconstruída novamente em 1849, por Pio
VII, depois de ter sido parcialmente destruída por Garibaldi, na tentativa de
evitar que as tropas francesas entrassem na cidade. Sua estrutura, com os vãos
em arcos, é uma obra exemplar da habilidade da engenharia romana. Possui à
entrada uma torre antiga reconstituída em forma de porta por Valadier.
16  Uma das unidades de medida de comprimento empregadas por Rafael
nesta carta é a “canna” (vara), antigamente em uso em várias regiões italianas;
equivale a uma medida variável entre 2,0 e 2,60 metros. A outra medida é o
“palmo”. A canna romana é igual a 10 palmos, e um palmo é igual a 0,223422m.
17  Na realidade, o caminho mencionado por Rafael vai encontrar a Ponte Molle
num ângulo reto. A narração de Rafael sugere, em vez disso, que o caminho leva
diretamente à ponte.

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Tradução e notas: Letícia Martíns de Andrade

aquela de Ponte Molle em oito metros18; e sobe tão docemente que


não parece subir19, mas tendo chegado à villa, não se dá conta de
estar no alto e de dominar toda a região.
E mostram-se primeiramente, de lá e de cá dessa entrada, dois tor-
reões20 redondos que, além da beleza e soberba que dão à entrada,
também servem um pouco como defesa em caso de necessidade.
Entre eles, uma belíssima porta dórica21 introduz um pátio de 22

18  Esse esclarecimento de Rafael, de que a entrada principal de villa Madama


destinava-se originalmente ao lado mais elevado, é importante para a compre-
ensão da planta U.273 A.
19  Esta frase “sobe tão docemente que não parece subir” é ressaltada por
FROMMEL [1984, p. 324] como sendo uma remissão quase literal a Plínio,
o Jovem. De fato, Rafael retoma Plínio, o Jovem, na carta dirigida a Domitius
Apollinaris, na qual descreve sua villa in Tuscis (Tusculum) [V, VI, 14]: “Villa in
colle imo sita prospicit quasi ex summo: ita leniter et sensim clivo fallente consurgit,
ut cum ascendere te non putes, sentias ascendisse”. DEWEZ [1993, p. 22, nota 3, 2]
observa que, na realidade, essa facilidade de subida louvada por Rafael é apenas
algo desejável, porque um caminho que levasse diretamente dos prados a essa
entrada principal exigiria uma escalada mais árdua. Isso talvez indique a von-
tade, em Rafael, de fazer coincidir seu projeto com as fórmulas antigas.
20  Aqui a grafia empregada é “torrioni”, no plural. No entanto, aparecerá ao
longo do texto original preferencialmente a grafia “turrione”. Dewez [1993,
p. 22, nota 4, 1] distingue significados diversos para as duas grafias. Segundo este
autor, “torrione” diz respeito a uma torre ampla, enquanto “turrione” seria refe-
rente apenas à parte inferior de um bastião. Em português, a palavra “torreão”
sugere uma torre larga e não muito alta, integrada ao corpo do edifício. Já a pala-
vra “bastião”, ou “baluarte”, toma um sentido próximo, mas é relacionada a um
maior destaque do corpo do edifício e denota um uso defensivo [ALBERNAZ
/ LIMA, 2003, pp. 80 e 630–631]. Optamos pela tradução de ambas as grafias
por “torreão” por causa dos vários usos que Rafael pretendia dar-lhes (dieta e
capela, por exemplo), deixando de lado uma função exclusivamente defensiva.
Contudo, esta função é sublinhada por DEWEZ [1993, fig. 55], que retraça a ele-
vação do edifício neste ponto, dotando-o de amplas torres ameadas, justamente
para “corresponder à intenção de Rafael (…) de prover uma aparência de defesa”
[p. 154]. As torres estão presentes no Laurentinum de Plínio [II, XVII, 12–13].
BURNS [1984, p. 387] sugere que Rafael possa ter-se inspirado neste texto.
21  Um “portal ladeado por semi-colunas de ordem dórica”. Cf. FROMMEL
[1984, p. 326].

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A “Villa Madama”

varas de comprimento e 11 de largura22. Na extremidade desse


pátio, há um vestíbulo de modo e costume antigos, com seis colunas
redondas jônicas23 e com suas antae, como requer sua ordem24.
Desse vestíbulo entra-se no átrio25 feito à grega26, como aquele
que os toscanos chamam de adro27, por meio do qual se vai a
um pátio redondo, cujo horaculo28 deixo, para não confundir,

22  As medidas indicadas neste passo por Rafael coincidem com aquelas da
planta U 273 A [DEWEZ, 1993, p. 22, nota 4, 2].
23  A planta U 273 A mostra, em vez disso, apenas quatro colunas. De acordo
com FROMMEL [1984, p. 324], o vestibulum de três naves tinha sido reconstitu-
ído pelos Sangallos a partir da descrição vitruviana do átrio de quatro colunas.
24  A ordem jônica domina o edifício e foi bastante elogiada por Vasari na Vida
de Giulio Romano. Mas, no edifício, é feito uso da ordem jônica em uma dis-
posição ambígua, segundo FROMMEL [1984], porque a definição do primeiro
pavimento é dada pelas pilastras de ordem dórica, e a galeria, em si, define-se,
no conjunto, como segundo pavimento: de acordo com a regra tratadística da
sobreposição das ordens, a jônica destina-se ao segundo nível, mas aqui essa
resolução será entendida como ‘licença’, uma vez que a ordem jônica alcança o
segundo pavimento nos pilares da galeria e as pilastras trazem a ordem dórica,
mas pilares e pilastras possuem uma mesma base dórica. Quanto aos capitéis
jônicos da galeria, estes não derivariam do antigo, mas daqueles bramantescos
do cortile do Belvedere.
25  Tanto este átrio quanto o vestíbulo supracitado são tidos por FROMMEL
[1984, p.324] como inspirados nos Tusci de Plínio.
26  DEWEZ [1993, p. 23, nota 5, 1] afirma que a referência a um átrio em estilo
grego derivaria de uma interpretação errônea de Vitrúvio, no Livro VI, cap. IX.
27  O androne-andrione, aqui traduzido por “adro”, é um ambiente de passagem
que conduz da entrada de um edifício, ou de sua parte externa, a um pátio interno.
A palavra é de origem grega e significa literalmente “ambiente dos homens
(destinados aos homens)”.
28  FROMMEL [1984, p.324] lembra que Rafael, ao fazer uso da palavra
“horaculo”, “emprega uma expressão em uso, sobretudo na linguagem medieval,
para “cella, capela ou sacrário” e acrescenta que, desta forma, Rafael “quer nomear
evidentemente o centro mais íntimo do edifício…” Diferente é a interpretação
de DEWEZ [1993, p. 23, nota 5, 2]: este autor acredita que a palavra, em sua
acepção de “parte mais interna de um santuário”, fica desprovida de sentido
neste texto. Para Dewez, o horaculo de Rafael derivaria do orbiculus latino,
que significa “disco”, o que seria “obviamente um discurso sobre o significado
esotérico da forma circular”.

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Tradução e notas: Letícia Martíns de Andrade

e volto a citar as partes e cômodos do primeiro pátio. E porque


este tem o siroco e o mezodj, ali está a cozinha, a despensa e a
copa coletiva29. E depois há uma adega, escavada no monte, que
serve a tais lugares coletivos, mas suas luzes são voltadas para
tramontana: lugar muito fresco, como V. S. pode imaginar. Essas
coisas estão todas entre o vestíbulo e o monte, do lado esquerdo
da entrada. À direita, há um belo jardim de laranjas30 de 11 varas
de comprimento e de 5 1/2 de largura, e entre essas laranjas há,
no meio, uma bela fonte de água que por diversos caminhos ali
chega, impelida e tomada de sua viva veia31.
Sobre o torreão que está do lado direito da entrada, no canto,
é colocada uma belíssima dieta32, como chamam os antigos, cuja

29  Esses cômodos vêm citados por Rafael em conformidade com a planta U 273 A.
30  “Melangholi”, no original. Melangolo – Citrus Bigaradia – é um tipo de laranja
ácida muito empregada no feitio de doces. Essas árvores crescem entre 3,0 e 3,5
m de altura, o que é de se considerar em relação à sua disposição num jardim
murado como este. A planta U 273 A mostra com clareza esse jardim de laranjas
com a fonte central.
31  Ou seja, a água dessa fonte chegaria até ali através de vários condutores,
mas impelida por sua própria pressão. Dewez [1994, p. 23, nota 6, 2] acredita
que essa entrada de água possa ser a mesma representada por H. J. E Bénard
em sua reprodução do plano principal de villa Madama (de 1871) conservada na
biblioteca da École Nationale Supérieure des Beaux-Arts, em Paris. O desenho de
Bénard é reproduzido, entre outros, por DEWEZ, 1993, p. 37.
32  A dieta é um ambiente reservado a reuniões e conversações; uma espé-
cie de assembleia. LEFEVRE [1973–1984, p. 48] a define pela palavra italiana
“soggiorno”, ou seja, uma espécie de sala de estar. FROMMEL [1984, p.324]
lembra que a dieta situada numa torre redonda remete a Plínio, o Jovem, pre-
cisamente ao seu Laurentinum [II, XVII, 12–13]: “Hinc turris erigitur, sub qua
diaetae duae (…) Est et alia turris. In hac cubiculum, in quo sol nascitur conditur-
que…” . Também Coffin [1967, p.120] recorda Plínio e repete que a palavra
latina diaeta, que significa “um pequeno aposento separado ou um pavilhão de
jardim”, aparece nas duas cartas de Plínio que já citamos aqui. DEWEZ [1993,
p. 23, nota 7, 1] igualmente menciona a provável origem do termo em Plínio, o
Jovem, com o significado de uma estrutura destacada ou semi-destacada, que
ocuparia uma posição privilegiada dentro do complexo de uma villa e abrange-
ria um quarto ou uma série de quartos. Segundo o mesmo autor, esta definição
seria bastante pertinente para a passagem da carta em questão, mas não tão

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A “Villa Madama”

forma é redonda e tem 6 varas de diâmetro33, com um corredor


de acesso — como ao seu lugar tratarei — que protege o dito jar-
dim do vento grego34; três partes do edifício protegem-no de tra-
montana e mestre.
Como eu disse, a dieta é circular. Ao seu redor há janelas envidra-
çadas que, uma hora ou outra, do nascente ao poente, serão tocadas
pelo sol, e transluzem, de modo que o lugar será muito alegre, pelo
contínuo sol35 e pela vista de Roma e da região, porque, como V. S.
sabe, o vidro plano não cobrirá parte alguma36. Este lugar será real-
mente muito agradável para se estar no inverno a discutir com os
senhores, que é o uso que costumeiramente se dá à dieta. E isto é
quanto se faz numa extremidade do jardim e em seu canto.
Na outra extremidade, no lado de habitação37, há uma galeria
também de uso para o inverno, que se volta a siroco e a mezodj, e
daí se entra na habitação, e não pelo primeiro pátio, ainda que esteja
ao lado. Diante desse pátio, não se pode ver a galeria nem o jardim,

adequada a outras que se seguirão, uma vez que Rafael, nestas, pareceria estar
descrevendo “comodidades” do bloco principal do edifício.
33  De acordo com DEWEZ [1993, p. 23, nota 7, 2], esse diâmetro mencio-
nado por Rafael não corresponde ao indicado pelas plantas U 273 A e U 314
A, que é menor.
34  Esse corredor fechado de acesso à dieta do torreão é indicado tanto na planta
U 273 A quanto na U 314 A.
35  A ideia de um cômodo tocado continuamente pelo sol, chamado
“heliocaminus”, é comum nas ville romanas. A palavra é rara, equiparada a
“solarium” em Ulpiano. A lei romana proibia que construções ou plantações de
terceiros se elevassem e tolhessem o sol desses ambientes. Encontramos uma
dieta iluminada continuamente pelo sol novamente em Plínio [Laurentinum, II,
XVII, 20], que, ademais, a menciona como seu ambiente predileto: “In capite xysti,
deinceps cryptoporticus horti, diaeta est amores mei, re vera amores: ipse posui. In
hac heliocaminus quidem alia xystum, alia mare, utraque solem, cubiculum autem
valvis cryptoporticum, fenestra prospicit mare”.
36  O vidro plano era então uma novidade.
37  “habitatione” – Traduzimos por “habitação”, mas ressaltamos o sentido
particular que a palavra, em português, toma no texto: não o de “casa” como um
todo, mas aquele que evoca os aposentos, ou o conjunto de ambientes de moradia
efetiva, como os apartamentos.

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Tradução e notas: Letícia Martíns de Andrade

nem a dieta, por causa de uma parede interposta, que pertence ao


lado direito do primeiro pátio. E isso é o que há nos quatro lados
do primeiro pátio. O segundo pátio, que está no meio do edifício,
é circular38, e seu diâmetro é de 15 varas39. Do seu lado direito, há

38  Este trecho da carta é de importância fundamental para a compreensão do


desenvolvimento do projeto. Vê-se já, nesta passagem, a decisão de Rafael pelo pátio
circular, conforme a apresentação da planta U 314 A. No projeto U 273 A, o pátio
central possui formato retangular. Tal decisão acarreta a modificação das medidas e
a redistribuição dos ambientes dos apartamentos de inverno e de verão em relação
ao que havia sido previsto pelo projeto U 273 A. Se a carta de Rafael fala do pátio
circular, que tem de esperar a versão U 314 A, posterior, a descrição dos ambien-
tes dos apartamentos, no entanto, corresponde ainda ao projeto precedente. Com a
interrupção dos trabalhos de construção da villa, o pátio permaneceu pela metade,
o que levou Vasari, na vida de Giulio Romano [1568-Milanesi, V, p. 526], de certa
forma a imortalizá-lo como uma “fachada (…) em forma de semicírculo, como
um teatro, com uma divisão de nichos e janelas de ordem jônica tão elogiada, que
muitos creem que tenha feito Rafael o primeiro esboço e que depois a obra tenha
sido continuada e concluída por Giulio.” Aqui, quase se vê uma nova contradição de
Vasari: o autor faz a atribuição da villa “inteiramente a Giulio Romano” e depois fala
da fachada em semicírculo, afirmando que muitos acreditam que Rafael tenha feito
seu primeiro esboço. O mais importante a ressaltar, porém, é o fato de que o texto
vasariano dá a entender – erroneamente – que houve um projeto para a fachada
tal e qual ela se apresenta, nessa forma semicircular. Em realidade, a “fachada” em
semicírculo é resultante da interrupção das obras do pátio circular presente no pro-
jeto U 314 A, interrupção que fez com que o que deveria ser um círculo permane-
cesse como metade dele. Um detalhe do afresco da Batalha de Ponte Milvia realizado
por Giulio Romano na Sala de Constantino mostra uma vista de Monte Mario com
villa Madama: aí se pode ver claramente o edifício em obras e o pátio deixado pela
metade, num estado aproximado ao que se apresenta hoje. O pátio de planta circular
também teria sido inspirado na arquitetura romana antiga. Entretanto, não foram
encontradas referências mais precisas nas palavras de Rafael. A hipótese de que esse
pátio de villa Madama seria uma recuperação do pórtico em forma de letra ‘D’ do
Laurentinum [villa Laurentina], de Plínio, o Jovem [Frommel, 1984, p. 322], é dei-
xada de lado, uma vez que seria resultado de uma leitura renascentista errônea do
autor antigo, na qual o pátio em forma de ‘D’ é entendido como tendo a forma de
um ‘O’ [Coffin, 1967, pp. 119–120; id., 1979, p. 248]. De Plínio, no Laurentinum,
carta a Gallus [II, XVII, 4]: “Cuius in prima parte atrium frugi, nec tamen sordidum;
deinde porticus in D litterae similitudinem circumactae, quibus parvola sed festiva area
includitur. Egregium hac adversus tempestates receptaculum; nam specularibus ac multo
magis imminentibus rectis muniuntur” (Continua na p. 384).
39  Tanto no projeto U 314 A quanto na obra executada o diâmetro do pátio
circular é ligeiramente menor do que a medida narrada por Rafael. Segundo

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A “Villa Madama”

uma grande porta dirigida a grego, similar àquela de sua entrada e


que, de cada lado, encontra uma escada triangular40, com largura de
11 palmos, cuja subida parte de um adro que tem por comprimento
o dobro da largura dos lanços das escadas, e este leva ao meio de
uma belíssima galeria que se volta direto para grego e tem o compri-
mento de 14 varas, largura de três e altura de 5.

Em cada extremidade desta galeria há um belíssimo nicho41. A


frente é dividida em três arcadas. O arco do meio é todo aberto e
avança ligeiramente42 sobre um torreão quadrado com parapeitos43
em volta, que é porta de baixo. Desse lugar, pode-se ver em linha
reta a rua que vai da villa à Ponte Molle, a bela paisagem, o Tibre e
Roma. Os outros dois arcos da galeria têm seu vão dividido por duas
colunas redondas dóricas44.
Ao pé desta galeria estende-se o hipódromo45, como V. S. enten-
derá, que terá de comprimento tanto quanto a villa se estende

Frommel [1984, p. 319], esse fragmento do pátio circular que Vasari chama
de “fachada” teria sido realizado após a morte de Rafael, recebendo seu aspecto
definitivo tanto por Giulio Romano quanto por Antonio da Sangallo.
40  Rafael aqui descreve um par de escadas triangulares. No entanto, enquanto o
projeto U 273 A apresenta essas escadas em formato retangular, o projeto U 314
A mostra uma escada em caracol e apenas uma triangular, como pensado pelo
artista. A modificação do formato das escadas deve-se, evidentemente, a uma
adaptação à mudança de formato do pátio central. Para Burns [1984, p. 388] as
escadas circulares seriam uma citação de elementos do Panteão.
41  Dewez [1993, p. 25, nota 11, 1] acredita ser mais adequada a tradução de
“nichio” por “recesso absidal”.
42  Essa projeção é bastante evidenciada na planta U 273 A. Já na planta U 314
A, a projeção é praticamente abolida, limitando-se ao avanço das semi-colunas
embebidas à pilastra.
43  Ou “balaustrada”.
44  No texto original, esta frase é inserida mais adiante, distanciando-se da
referência primeira ao vão central da galeria, que lhe explicita o sentido. Rafael
retoma a expressão pleonástica “colonne tonde”, que já empregara acima, como
que mostrando ter necessidade de diferenciar o uso de colunas e o de pilastras.
45  “Hipódromo” (hypodromo) é um termo que não se refere necessariamente a
pista para corridas de cavalo, mas a um local para sua guarda, cuidado e exercícios,
eventualmente relacionado a torneios. O hipódromo é bem marcado na planta U
314 A (não aparecendo na planta U 273 A), em sua porção inferior.

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Tradução e notas: Letícia Martíns de Andrade

a siroco e mestre. De uma das extremidades da galeria, do lado


direito, voltado a siroco, por uma parte que está no meio do nicho,
entra-se em uma belíssima e ampla sala que tem cinco janelas vol-
tadas a grego, descortinando o hipódromo. Essa sala tem 8 varas de
comprimento e 5 de largura. Quatro arcos a contornam em forma
quadrada, criando no centro uma cobertura redonda em forma de
cúpula e com altura de 7 varas46.
Desta sala vai-se a cinco quartos, dois que se voltam para grego,
um para o monte, e tem a luz do primeiro pátio; outro para siroco,
igualmente respondendo sobre o primeiro pátio; outro para mestre,
que responde sobre o pátio redondo47. Destes quartos, três são de
bom tamanho; os outros dois, um pouco menores. Os três primeiros
são de 4 varas. No fim desses quartos, há uma escada secreta para
aos cômodos de baixo e os de cima, feitos para a família48. Daqui se
vai ainda à dita galeria, voltada para o sul, ao jardinzinho das laran-
jas e à dieta, por um corredor, como já vos disse acima.
Agora, retornando à galeria voltada para grego, do lado dirigido
a mestre há, no outro nicho, uma porta, de frente para a que leva à
sala que vos foi descrita. Por meio desta, adentra-se um salãozinho
de 4 varas e meia de largura e tão comprido quanto a diagonal de
seu quadrado49, com as luzes voltadas a grego, e com três quartos:
dois que se voltam para mestre e o outro para o pátio redondo50.
Ambos são da proporção de quatro para três: quartos de verão que

46  Esta sala coberta por cúpula – assim como o teatro que será descrito – pode
ter sido inspirada na villa Adriana e na chamada villa di Bruto. Tanto o teatro
quanto a sala coberta por cúpula são elementos ausentes das ville plinianas. Cf.
Frommel [1984, p. 324]. A cúpula aparece marcada na planta U 273 A.
47  A sequência dos cinco quartos narrados por Rafael corresponde precisa-
mente à distribuição dos ambientes da planta U 273 A.
48  Como observa Dewez [1993, p. 25, nota 13, 1], essa escada, que desaparece
no projeto U 314 A, seria o único meio de comunicação direta entre os três
níveis da villa.
49  Ou seja, cujo comprimento equivale à diagonal do quadrado formado por
sua largura.
50  Pode-se acompanhar essa descrição na planta U 314 A.

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A “Villa Madama”

nunca terão sol, porque o monte lhes tolhe o poente51. E estes se

51  ZUCCARI [1986, p. 26] fala de dois salões que apresentam decorações exe-
cutadas ainda no tempo do cardinalato de Giulio de’ Medici. São dois salões
com teto a lacunário e com frisos pintados na parte mais alta das paredes. A
decoração ali utiliza as insígnias heráldicas do cardeal e de sua família. Hartt
[1958, I, p. 59], baseado na decoração, acredita que certamente estavam prontas
antes da eleição de Giulio ao papado, em dezembro de 1523, “pois os brasões
dos Medicis aparecem, por tudo, coroados pelo chapéu de cardeal”. Frommel
[1984, p.319–320] remete-se à correspondência de Sperulo, o capelão do papa,
homem “bem informado sobre os planos da villa”, que, em 1519, a menciona
numa descrição de fausto. Segundo Frommel, a decoração prevalentemente
ornamental do apartamento de verão não corresponde à visão de Sperulo em
1519. De sua escrita, entende-se que Rafael devia ter projetado ciclos mais
amplos de pintura parietal e que o programa decorativo devia compreender
também ciclos de afrescos representando as façanhas dos Medicis. Uma des-
sas salas é chamada “sala de Giulio Romano”, porque de Giulio seria a criação
dos afrescos que a ornamentam. A decoração aqui é bem mais simplificada
se comparada àquela da galeria. Domina a pintura numa decoração dedicada
a exaltar Giulio de’ Medici. Um friso de fundo azul vibrante corre sob toda a
abóbada, formando uma barra que parece ser “a edição pictórica da arquitrave
escultória de um templo romano: com um andamento quase dançante, desen-
rolam-se festões carregados, sustentados por candelabros e por figuras aladas,
como vitórias clássicas libertas de sua rígida pose. Ao redor, movem-se puttini
brincalhões, que se divertem entre si ou com animais e com flores.”[Zuccari,
1986, p. 26]. A abóbada, emoldurada por uma cornija saliente, é dividida em
duas faixas separadas por gregas e por desenhos geométricos: a externa é divi-
dida perpendicularmente em diversos requadros onde estão pintadas quatorze
cenas com dançarinas e outros motivos extraídos da pintura parietal romana.
A faixa interna é dedicada à impresa pessoal de Giulio de’ Medici: a esfera de
cristal que repele os raios do sol e faz queimar uma árvore: oito vezes a impresa
é repetida, duplicada em cada um dos cantos dessa partição da abóbada e
seguida do moto “Candor illesus”. O chapéu vermelho do cardeal é suspenso
por ramos de oliveira, e falcões trazem nas garras o anel com o diamante dos
Medicis. No centro da abóbada, um retângulo mostra o brasão da família, com
as seis esferas, coroado pelo chapéu cardinalício, emoldurado por um festão
de flores e frutos que remete, sem dúvida, à decoração da galeria de Psiquê na
Farnesina, nos festões elaborados por Giovanni da Udine. Ladeando o brasão,
representa-se Apolo e Diana, o Sol e a Lua, num motivo que Giulio retomará no
palácio Te, na chamada sala do Sol e da Lua [cf. Zuccari, 1986, pp. 26–27].
Em diversos outros aspectos, sobretudo pelo friso decorado com os motivos

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Tradução e notas: Letícia Martíns de Andrade

voltam para um belo viveiro. Daqui se entra depois em uma outra


galeria, como V. S. entenderá.
Descrevi a V. S. duas portas no pátio redondo: uma que é a entrada
do átrio, outra que introduz a galeria voltada para grego. De frente
à porta do átrio, há outra porta, dirigida a mestre, e que leva a uma
belíssima galeria52 de 14 varas de comprimento e três vãos: a entrada

antigos e de putti, e pelo uso de imprese, pode-se aproximar essa sala da camera
dell’Imprese, também no Te.
52  Trata-se da chamada “galeria do jardim”, o ambiente mais conhecido de toda
a villa Madama, tanto pela arquitetura quanto pela exuberante decoração. Pela
planta e por suas proporções, essa galeria pode ser aproximada das termas; já a
sequência pátio redondo-galeria é similar àquela formada pelo calidário e pelos
grandes nichos da natatio das termas de Caracala [cf. Burns, 1984, p. 388].
Essa galeria está presente nas plantas U 273 A e U 314 A, com medidas que cor-
respondem àquelas executadas e à narração de Rafael. Sobre o destaque desse
ambiente, escreve Henry James em 1873: “The “feature” [de todo o edifcío] is
the contents of the loggia: a vaulted roof decorated by Giulio Romano; exquisite
stucco-work and still brilliant frescoes; arabesques and figurini, nymphs and fauns,
animals and flowers – gracefully lavish designs of every sort. Much of the colour
– especially the blues – still almost vivid, and all the work wonderfully ingenious,
elegant and charming. Apartments so decorated can have been meant only for the
recreation of people greater than any we know, people for whom life was impudent
ease and success”. Serlio, no Terceiro Livro, atribui sua concepção a Rafael. Essa
ampla área, que se abre para o “xisto” em três grandes arcadas, possui uma
cobertura abobadada e êxedras repletas de nichos previstos para abrigar escul-
tura antiga: tudo inteiramente recoberto por pinturas e estuques. Vasari destaca
da galeria do jardim sobretudo a decoração a grotesca “da mão de Giovanni da
Udine” [1568-Milanesi, V, p. 526], outro aluno dileto de Rafael. Trata-se, sem
dúvida, do ponto alto da decoração da villa Madama, uma decoração tornada
complexa em função da própria complexidade arquitetônica, como se pode
melhor entender a partir da observação da planta. A galeria é tripartida, e ao
espaço que desemboca no arco central corresponde uma cobertura em cúpula;
já os espaços correspondentes aos arcos laterais recebem cobertura em abóbada
de aresta, e cada um deles termina em uma êxedra interna – que avança para
o corpo do edifício – disposta de frente para o arco de saída, com cobertura
em meia cúpula. A partição localizada a oeste é a mais complexa: ao lado da
êxedra interna é criada, apontando para o monte, uma segunda êxedra, que
serve de arremate para toda a galeria, ampliando suas dimensões, como des-
taca Rafael, e se fazendo de abside. A cúpula da galeria mostra, na parte mais

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A “Villa Madama”

alta, o brasão do cardeal envolvido por relevos em estuque que representam as


quatro estações personificadas por quatro divindades: Prosérpina, Ceres, Baco
e Vulcano. As cenas pintadas estão em quatro afrescos pentagonais que figuram
outras quatro divindades, Júpiter, Juno, Netuno e Plutão, e essas representam
os quatro elementos. Abaixo, um anel decorativo mostra, em pequenos ovais,
oito figuras de musas e oito divindades do panteão romano. As outras duas
coberturas são abóbadas de aresta, e nelas os medalhões, agora ovais, estão
pendurados entre grotescas. A abóbada situada a oeste mostra, no centro, a
figura de Netuno, e as quatro cenas principais são tiradas de Filostrato: Dédalo
construindo a vaca de madeira para Pasifae (um desenho de Peruzzi para essa
cena é conservado) e cenas de putti brincando com cisnes, bolas e maçãs (em
provável referência às esferas do brasão mediciano). O semidomo da êxedra
interior mostra deuses-rios, putti e figuras de Vênus. A decoração do semidomo
da êxedra final, próxima ao monte, não foi preservada, mantendo do conjunto
original apenas o chapéu de cardeal de Giulio de’ Medici no alto. A abóbada
de aresta oriental, voltada para o rio, traz uma figura de Anfitrite em estuque
(em correspondência ao Netuno da outra abóbada). Duas cenas representam
Aquiles entre as filhas de Licomedes, enquanto uma terceira cena mostra Pan
encontrando Baco, e a quarta, ao que parece [cf. Coffin, 1979, p. 248], prova-
velmente representa Salmacis e Hermafrodita. O semidomo da êxedra interior
é decorado com relevos em estuque figurando cenas da história de Polifemo e
Galateia. Na luneta da parede oriental no fim da galeria Giulio Romano pin-
tou a fresco um grande Polifemo, do qual se falará adiante. O intradorso do
arco de entrada apresenta decorações muito fantasiosas: perspectivas arquite-
tônicas em profundidade miniaturizadas, arcos bramantescos decorados com
medalhões no estilo de algumas das menores porções do palácio Te, ou mesmo
pequenos domos de lacunário. Coffin [1979, p. 248] observa que não há
um programa unificado para a decoração da galeria, onde imperam, é fato, as
cenas extraídas de Ovídio (as de Aquiles vêm de Statius, e há as de Filostrato)
e a temática amorosa, sobretudo a que ressaltaria a força do amor. Quanto às
características de estilo, se, no dizer de Hartt [1958, I, p. 60], até não muito
tempo as diferenças entre os trabalhos realizados por Giulio Romano e por
Giovanni da Udine eram imperceptíveis, o mesmo não se dá hoje. Esse autor
já sublinha a discrepância de estilo entre a decoração da cobertura e aquela das
paredes, nichos e pilares: as abóbadas teriam uma graça aérea e um sistema for-
malizado, ao passo que os elementos das paredes e nichos pareceriam “cheios
de tensões não resolvidas e de contrastes estranhos”. As ideias impetuosas de
Giulio para a decoração da villa são muito diferentes, em sua própria essência,
das de Giovanni. Enquanto este “é mais delicado, trabalha coisas miúdas, com
colorido e cintilação de caixa de joia (…) Giulio trabalha entusiasticamente
sobre as massas tridimensionais”, de modo que “na presença de tais formas,

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Tradução e notas: Letícia Martíns de Andrade

fica no vão central. Os outros dois vãos têm à frente, cada um, um
semicírculo53, de modo que a galeria é ampliada a 5 varas de vão. Na

as grotescas, que criam um véu sobre os umbrais do arco da entrada, parecem


pateticamente finas e delicadas”. Frommel [1989, p. 103] crê que a decora-
ção dessa galeria poderia ser muito mais homogênea e vigorosa se tivesse sido
executada somente sob a direção de Giulio. Mas, além da contribuição de dese-
nhos de Peruzzi, grande parte é projetada e realizada por Giovanni da Udine.
Mais tarde, em Mântua, Giulio Romano retomará o sistema de meias-cúpulas
que aparece aqui na galeria, aproximando-se muito dela na articulação empre-
gada na sala delle Aquile, no Te. A lição da galeria do jardim de villa Madama
Giulio reempregará ainda “até o detalhe” Frommel [1996, p. 20] no deambu-
latório de San Bendetto Polirone.
53  Na verdade, trata-se de amplos nichos, êxedras ou recessos absidais, como
acontece na galeria anteriormente narrada. Os nichos passam ao vocabulário
arquitetônico rafaelesco como herança de Bramante; e de Rafael vão passar a
Giulio Romano, que ainda se utiliza deles, de modo dominante nesta galeria,
como elementos decorativos. Giulio Romano insere nichos dentro dos nichos
maiores que são as êxedras, coloca um nicho pequeno dentro de outro maior,
assim como pendura pequenos quadros dentro de amplas palas de altar. Para
Hartt [1958, I, p. 4, 62], eles não seriam apenas uma herança bramantesca,
mas um dispositivo que Giulio Romano amava: “É um truque que ele emprega
na villa Madama e que usará espetacularmente na grotta do Te”. Nas êxedras
da galeria do jardim, as pilastras parecem apertar os cinco nichos entre elas,
que são muito estreitos, para ocupar mais da metade dos campos longitudi-
nais então deixados quase sem umbral. Sobre os nichos, três painéis horizontais
oblongos se alternam a dois verticais. As pilastras sem capitéis convencionais,
que aparecem ladeando os nichos das êxedras, são um dos motivos mais impor-
tantes do vocabulário arquitetônico rafaelesco, e seria derivado de Perugino e
de Francesco di Giorgio, embora se encontrem precedentes antigos nos áticos
do arco de Septimio Severo e de Constantino e no interior do arco de Tito, onde
as pilastras não têm capitéis. Para o emprego dos nichos e de êxedras e sua rela-
ção com a fachada tripartida pelos arcos, pode-se pensar que Rafael tenha-se
inspirado num monumento antigo como a Basílica de Constantino-Maxêncio,
em estado bem mais impressionante àquela época do que se encontra hoje. Os
nichos da galeria do jardim foram concebidos para abrigar estátuas antigas, que
constituíam efetivamente parte da decoração da villa Madama. Frommel
[1984, p.320], mencionando a escrita de Sperulo, datada de março de 1519,
lembra que, nesta data, já estavam prontas as estátuas e as colunas antigas para
a villa, sendo que as últimas provinham dos jardins de Lucullo e talvez fossem
destinadas ao vestibulum ou às galerias. Sperulo menciona, além de uma está-

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A “Villa Madama”

direção do monte, esta galeria faz um semicírculo com seus bancos


concebidos como assentos almofadados54. E em seu centro há uma

tua de Júpiter (que talvez seja o Júpiter Ciampolini), um Sileno. Uma carta de
Giulio de’ Medici a Maffei, de 1520, fala da decisão de deixar as estátuas tem-
porariamente no depósito. Ainda sob o pontificado de Leão X, acrescentam-se
as Musas da villa Adriana e, em 1525, o Júpiter de Versalhes. Alguns desenhos
de Heemskerck, que estava em Roma entre 1532 e 1535, representam está-
tuas que se encontravam na villa naquele momento. Um dos desenhos mostra
parte da êxedra voltada ao monte, e ali se pode ver duas esculturas dentro dos
nichos: Euterpe e Diana. A escultura de Euterpe encontra-se hoje em Nápoles
[Coffin, 1979, p. 253] e a de Diana acredita-se perdida. De um segundo dese-
nho de Heemskerck, representando quatro das Musas provenientes de villa
Adriana, em Tivoli, identifica-se a figura sentada de Erato, hoje no Museu do
Prado, em Madri. De Pirro Ligorio sabe-se que estas esculturas foram encontra-
das em Tivoli na época de Alexandre VI (1492–1503) e enviadas, mais tarde, a
Clemente VII. Passaram à rainha Cristina da Suécia no século XVII, ao Palazzo
Riario, em Roma, a Livio Odescalchi, em 1704, também em Roma, e a Felipe V
da Espanha, em c. 1724 (em La Granja até 1840), e depois passaram ao Prado.
Outra escultura proveniente da villa Madama é o chamado Genius ou Lare, do
Museo Archeologico Nazionale, em Nápoles. Trata-se de uma estátua colossal,
de quase quatro metros de altura, que já se encontrava em Roma antes de inte-
grar a coleção de villa Madama, proveniente talvez de algum grande complexo
público urbano romano. Estava instalada num dos nichos do jardim da villa
Madama, conforme se observa no supracitado desenho de Heemskerck, no pri-
meiro nicho, mais próximo do Júpiter. Esta peça foi para Nápoles, no século
XVIII, junto com a coleção Farnese. Um desenho atribuído a Rafael a retoma.
Uma escultura representando Júpiter entronado igualmente encontrava-se na
coleção da villa Madama. Esta escultura foi adquirida por Giulio Romano da
família Ciampolini. Depois da morte de Giovanni Ciampolini (antes de 1518) e
da de seu herdeiro Michele. O Júpiter entronado é representado em alguns dese-
nhos do século XVI, a partir dos quais é possível verificar que a figura dividia-se
em duas metades, reunidas mais tarde. Entretanto, hoje resta apenas a metade
inferior, que se encontra no Museu Archeologico Nazionale, em Nápoles.

54  A expressão “assentos almofadados” traduz aqui a palavra “pulmini”


empregada por Rafael no texto original. Dewez [1993, p. 27, nota 15, 3] observa
que a palavra deveria ser, em vez disso, “pulvini”: palavra latina para “almofadas”,
“travesseiros” ou “assentos almofadados, estofados”.

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Tradução e notas: Letícia Martíns de Andrade

belíssima fonte55. Esta é uma dieta de verão, muito agradável porque


nunca terá sol, e as águas e o verde fazem-na bela.
Desta galeria chega-se a um xisto56, assim chamado pelos antigos,
lugar cheio de árvores dispostas em ordem, que é do comprimento
e da largura do primeiro pátio, de modo que a villa fica dividida
em três57, como V. S. entendeu. O xisto possui orlas que defron-
tam, quatro varas abaixo, um viveiro tão longo quanto ele58 e de

55  A planta U 273 A mostra a fonte mencionada por Rafael, mas exclui os bancos.
Já a planta U 314 A não apresenta nem os bancos nem a fonte.
56  O xisto é um dos espaços da villa Madama que remete diretamente aos anti-
gos, uma vez que é um elemento que não aparece nas ville renascentistas ante-
riores. Nesta frase, pode-se pensar na correspondência com o passo de Plínio,
in Tusci [V, VI, 16]: “Ante porticum xystus”, ressaltando o posicionamento dos
dois ambientes. A palavra “xystus” é de origem grega, como explicita o próprio
Vitrúvio [Livro V, cap. XI]. Na Grécia antiga, indicava uma espécie de pór-
tico coberto onde os atletas se exercitavam. Já em Roma, na época de Plínio,
o Jovem, designava um jardim plantado comumente associado a um pórtico.
Este é o caso a que se remete Rafael. Assim, o “xisto” da villa Madama seria
um terraço arborizado que faz as vezes de jardim, tanto que Rafael refere-se
à galeria que o precede como a “galeria do jardim”. Lefevre [1973–1984,
p. 48] define o xisto simplesmente como um “terraço arborizado”. Em todos os
casos, desde Vitrúvio, há a conexão do xisto propriamente com uma galeria ou
pórtico. Vitrúvio ainda menciona a inclusão de um espaço aberto, com árvores
e plantas, caminho para passeio e bancos para repouso: “Haec autem porticus
xystos apud Graecos vocitatur, quod athletae per hiberna tempora in tectis stadiis
exercentur. Proxime autem xystum et duplicem porticum designentur hypaethroe
ambulationes, quas Graeci paradromidas, nostri xysta appellant, in quas per hie-
mem ex xysto sereno caelo athletae prodeuntes exercentur. Faciunda autem xysta
sic videntur, ut sint inter duas porticus silvae aut platanones, et in his perficiantur
inter arbores ambulationes ibique ex opere signino stationes.”

57  No projeto U 273 A, o xisto, embora de maior comprimento que o primeiro


pátio, deveria ser equivalente a “uma terceira parte de uma sequência de pátios
internos de planta retangular”, o que se perde com a alteração levada ao projeto
U 314 A, que transforma o pátio central em circular [Cf. Frommel, 1984,
p.329]. Uma série de três pátios internos sucessivos alinhados num mesmo eixo
aparece na carta de Plínio, o Jovem a Gallus, que é a descrição do Laurentinum.
58  Nas plantas U 273 A e U 314 A, bem como na obra executada, o viveiro é
mais curto que o xisto.

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A “Villa Madama”

cinquenta e cinco palmos de largura, com alguns degraus para se


sentar e se estender até o fundo. Duas largas escadas, uma em cada
extremidade, permitem o acesso ao viveiro a partir do xisto59. No
fim da escada voltada para mestre há, à beira da água, um terraço
para refeições60 muito agradável, pela frescura e pela vista.
Na extremidade do xisto há outro torreão, no canto de tramon-
tana, que acompanha aquele da dieta de inverno. E sobre este tor-
reão há um templo redondo, da altura e largura da dieta, que serve
como capela. Igualmente, no outro canto do xisto, junto ao monte,
há outro torreão, para a fortaleza do lugar. No meio dos dois torre-
ões há uma belíssima porta que dá saída do xisto61. E este é todo o
comprimento do edifício da villa.
No pátio circular, descrevi a V. S. três portas: por uma entra-se em
uma parte do edifício dirigida a siroco; por outra, na galeria a grego;
por outra, a mestre, onde está o xisto. Agora resta a parte do edifício
voltada ao monte. Em frente à porta da galeria a grego, no meio, há
um espaço tão largo quanto o das escadas que sobem para o teatro
de que falarei depois. Em frente a esta porta e entre as escadas, há
uma bela fonte que escava no monte um semicírculo formado por
diversos compartimentos adornados de conchas marinhas e con-
creções62 de água, de acordo com o gosto do artista, e com bancos
ao redor. E esta é outra dieta, feita para a hora dos calores extremos.

59  As escadas de acesso ao viveiro e os degraus que o contornam aparecem


apenas na planta U 273 A. Doravante Rafael substituirá a grafia “xystus” por “sito”.
60  A palavra “cenatione” refere-se a um terraço para refeições ao ar livre. No
projeto U 273 A não há indícios desse terraço. Porém, no projeto U 314 A, há
duas áreas como essa, uma em cada extremidade do viveiro.
61  A belíssima porta é obra executada por Giulio Romano.
62  No original, “tartari d’acqua”. A palavra refere-se a solidificações ou agrega-
ções de depósitos residuais formados em pontos de passagem contínua de água
rica em bicarbonatos e cálcio. Burns [1984, p. 388] sugere que esse semicír-
culo escavado no monte, adornado de conchas marinhas e de concreções de
água retomem a decoração de ninfeus antigos, de um tipo que Rafael pode ter
visto em Albano, e em Tivoli, na villa Adriana e na de Bruto.

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Tradução e notas: Letícia Martíns de Andrade

Desta dieta, sobe-se em direção a siroco e mestre por três ram-


pas por lado, tão confortáveis, que sem degraus e sem bastões vai-
se muito comodamente. E no fim destas rampas nascem outras
duas que, reunidas, formam um semicírculo63. Estas se ligam a um
caminho voltado a grego e líbico, o qual termina de subir o monte
e alcança a estrada de Monte Mario que vai de Viterbo a Roma, de
modo que, da estrada de Monte Mario àquela da Ponte Molle, há um
caminho reto em prumo que passa justamente pelo meio da villa64.
Agora, no vão plano entre as duas rampas que formam o semicír-
culo há um belo teatro65, feito com essa medida e ordem: primeira-
mente é feito um círculo tão grande quanto aquele com que se há de

63  Segundo Dewez [1993, p. 28, nota 19, 1], trata-se de um sistema “clara-
mente concebido como um circuito de subida e de descida para cavalos e mulas,
de extensão de aproximadamente 123m”. Para o mesmo autor, uma das rampas
curvas deveria ser necessariamente murada e de subida não tão confortável,
além de que a duplicação das rampas atrás do palco exigiria um considerável
aumento na profundidade da área exigida pelo nível da orquestra, sendo neces-
sário soerguer toda a estrutura na encosta.
64  A estrada que vai a Viterbo – chamada Via Cassia – bifurca-se por volta de
7 km antes de alcançar a via Flaminia. Esse braço da bifurcação sobe o Monte
Mario pelo lado norte, passando atrás da villa Madama e depois desce serpen-
teando em direção ao Vaticano. Esse atual caminho, portanto, não cruza exa-
tamente o centro da villa, como sugere a escrita de Rafael [cf. Dewez, 1993,
p. 29, nota 19, 2]. Revela-se aqui a preocupação de Rafael com o eixo que corta
a villa, integrando-a à paisagem (mesmo que de forma diversa e menos precisa
daquela que ele pretendia). É esse tipo de preocupação, mais que os aspectos de
simetria que dominaram a construção das ville quatrocentistas, que caracteriza
este projeto arquitetônico “à antiga”.
65  O teatro é um dos elementos que não aparecem nas descrições das ville pli-
nianas, sugerindo que Rafael tenha-se inspirado em monumentos remanescen-
tes como os que pode ter visto em villa Adriana, em Tivoli, ou na villa de Bruto
[Frommel, 1984, p. 324]. A descrição do teatro aqui feita por Rafael apro-
xima-se apenas ligeiramente do projeto U 273 A, onde este se apresenta mais
simplificado. Já na planta U 314 A, a disposição do teatro é mais próxima àquela
narrada. A estrutura, porém, será sensivelmente afastada do corpo do edifício.
Ao planejar o teatro no declive do monte, e isolando-o por meio da parede de
fundo do pátio, Rafael o excluía da perspectiva cênica total. Esse teatro seria o
cenário adequado e arqueologicamente correto do estilo romano para as apre-

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A “Villa Madama”

fazer o teatro, no qual são desenhados quatro triângulos equiláteros


que, com as suas pontas, tocam a circunferência. O lado do triân-
gulo que se volta para grego, formando um ângulo dirigido a siroco
e outro a mestre, faz a frente da cena66. E daquele lugar, traça-se
uma paralela67 pelo centro do círculo que separa e divide o púlpito
do proscênio e da região da orquestra. Dividida a área com estas
medidas, são feitos os degraus, a cena, o púlpito68 e a orquestra. Ali
são colocados os quartos de vestir dos atores69, para não cobrir a
vista da região, que se fechará somente com coisas pintadas ao se
recitarem as comédias, a fim de ajudar a voz a chegar aos espectado-
res. E este teatro é colocado de forma que não pode ter sol depois do
meio-dia, que é hora costumeira para tais recreações70.

sentações de comédias humanistas escritas para a corte papal. Essas comédias


rivalizariam com as de Terêncio e de Plauto [Lotz, 1998, p. 30].
66  Trata-se da parede de fundo da scaena dos antigos teatros romanos.
67  O texto original do Archivio di Stato florentino traz a palavra “parabella”, em
vez de “paralella” (correção indicada por Lefevre, 1973–1984, p. 59 e reali-
zada por Dewez, 1993, p. 29).
68  “pulpito”: uma saliência central na cena.
69  Na planta U 314 A, os quartos de vestir são dispostos em pares em ambas
as extremidades de um pórtico duplo que ladeia o púlpito. Essa disposição, de
acordo com Dewez [1993, p. 29, nota 20, 3] é completamente estranha à prá-
tica romana antiga. As divisões mencionadas por Rafael têm um arranjo abso-
lutamente diverso na planta U 273 A.
70  Como bem observara Frommel [1984, p.324], a descrição que Rafael faz
do teatro é, extraída “quase literalmente das traduções efetuadas em sua casa
por Fabio Calvo”, ou seja, traduções de Vitrúvio. É no Livro V, Capítulo VI
que o autor latino fornece uma definição do teatro Romano que certamente foi
retomada por Rafael, como se pode ver: “Ipsius autem theatri conformatio sic est
facienda, uti, quam magna futura est perimetros imi, centro medio conlocato circu-
magatur linea rutundationis, in eaque quattuor scribantur trigona paribus lateri-
bus; intervallis extremam lineam circinationis, tangant, quibus etiam in duodecim
signorum caelestium astrologia ex musica convenientia astrorum ratiocinantur. Ex
his trigonis cuius latus fuerit proximum scaenae, ea regione, qua praecidit curva-
turam circinationis, ibi finiatur scaenae frons, et ab eo loco per centrum parallelos
linea ducatur, quae disiungat proscaenii pulpitum et orchestrae regionem”.

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Tradução e notas: Letícia Martíns de Andrade

E este é todo o plano de cima. E todos os aposentos desta villa


são afastados do monte, para a saúde de seus habitantes; e entre
os quartos e o monte estão os pátios, como V. S. entendeu. Estes
pátios não estão sobre abóbadas, mas sobre aposentos, e embaixo
deles há quartos da altura de 4 varas, que são adequamentos da
altura que um plano tem a mais que o outro, como eu disse acima.
Estes quartos de baixo são distribuídos e organizados como V. S.
entenderá depois.
A rua que vem da Ponte Molle e que faz a entrada no meio da
villa, chega antes ao hipódromo, que tem 200 varas de compri-
mento e 10 de largura. Este hipódromo tem, de um lado, todo o
edifício de comprimento e, do outro, estábulos para 400 cavalos.
Os estábulos formam diques e contrafortes para sustentar o plano
e toda a extensão do hipódromo, e os cavalos voltam a cabeça para
levante e para grego, como o outro edifício71. E a água pode ser
levada a todos os alimentadores72.
Do hipódromo, à direita da estrada de Ponte Molle, há uma bela
porta dórica que eu já mencionei como torreão. Esta porta introduz
o que os antigos chamavam de criptopórtico. Este, para o nosso
uso, é um pórtico subterrâneo. E ainda que existam mais tipos de
criptopórtico, este, porém, serve de vestíbulo73. Em frente à dita

71  Ou seja, o corpo da villa propriamente, diante do hipódromo.


72  Frommel [1984, p.329] esclarece que os estábulos seriam construções
bastante leves, próximas da forma de barracas, e compostos de baias ordena-
das em uma fila única, providas de água de uma única fonte. Dewez [1993,
p. 30, nota 22, 3] acredita que seria realmente necessário, como denota a escrita
de Rafael, fazer a distribuição do hipódromo em dois níveis, uma vez que um
único nível não acomodaria muito mais que 180 baias. Essa disposição, ainda
de acordo com Dewez, estaria presente na planta U 273 A, mas não na planta U
314 A, onde os estábulos são colocados diante de pórticos.
73  Rafael mostra aqui o seu conhecimento da arquitetura romana antiga ao
mencionar os diversos tipos de criptopórtico e explicitar aquele ao qual se
refere. O termo “criptoportico” é tido como criação do próprio Plínio. Contudo,
o termo reaparece em Sidonio: “Quia nihil ipsa prospectat etsi non hypodromus
saltem criptoporticus meo mihi iure vocitabitur”.

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A “Villa Madama”

porta, há um nicho com uma fonte em cujos lados se encontram


duas escadas triangulares que sobem ao pátio e à galeria voltada a
grego, como acima se disse.
À esquerda, entrando neste criptopórtico dirigido para o sul,
chega-se aos banhos, também acessíveis74 pela escada secreta que
leva acima; e assim são ordenados: há dois quartos de vestir e depois
um lugar tépido, aberto, para ungir-se quando se está aquecido após
o banho. E há uma estufa de temperatura quente e seca e um banho
quente, com bancos de altura variável, onde se pode permanecer, de
acordo com as partes do corpo que se deseja banhar. E, sob a janela,
há um lugar onde se pode permanecer na água e ser lavado por um
criado sem que este lhe faça sombra. Depois há um banho morno e,
a seguir, um frio, e de tamanho tal, que se poderia nadar quando se
desejasse. E a sala de onde se esquentam esses lugares é acomodada
com o reservatório, a água e a caldeira distribuídos de modo que a
fria vai na morna e a morna na quente, e quando entra um tanto de
uma, o mesmo tanto retorna da outra.
Estes são os aposentos de um lado do criptopórtico. Do outro
lado do criptopórtico estão a cozinha secreta, os aposentos do
cozinheiro e uma escada secreta para conduzir acima75. No topo
deste edifício, entre as abóbadas e o telhado, há uma altura de duas
varas para as acomodações dos domésticos, que são muito nume-
rosos. Como V. S. pode imaginar, os campos desta villa são abun-
dantes de árvores, como convém a tal edifício, mas me pouparei o
cansaço de escrever.

74  No original “dove anchora ve se può vedere [sic] per la schala secreta per le
parti de sopra”. A transcrição de Dewez [1993, p. 31] traz “andare” em vez de
“vedere”; o mesmo para a de Lefevre [1973–1984, p. 59].
75  Essa distribuição mencionada por Rafael coincide exatamente com o pro-
jeto executado [cf. Dewez, 1993, p. 31].

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Tradução e notas: Letícia Martíns de Andrade

(Continuação nota 38, p. 370)  Para FROMMEL [1984, p. 319], um prece-


dente do pátio circular da villa Madama poderia ser o ambiente circular
do “piccolo palazzo” da villa Adriana, em Tivoli, uma estrutura recons-
tituída por Francesco di Giorgio – e isso Rafael poderia ter conhecido,
através de seu pai, Giovanni –, Pirro Ligorio e Palladio. Há ainda asso-
ciações ao teatro Maritimo de Villa Adriana. Contudo, em meio a tantas
associações, parece permanecer apenas a ideia de que esse pátio retoma
uma tradição que vai de Plínio aos Sangallo, a Bramante, a Francesco di
Giorgio, à casa de Mantegna em Mântua, etc.

384

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Carta de Francesco Petrarca
a Giovanni Colonna di
San Vito (Fam. VI, 2) 1
Tradução e notas: Maria Berbara

F
rancesco Petrarca nasceu em Arezzo em 1304 e morreu
em 1374 em Arquà (atualmente Arquà Petrarca). Em 1312
mudou-se, juntamente com seus pais e irmão, a Carpentras,
pequena cidade próxima a Avignon2. Em 1316 seu pai enviou-lhe a
Montepellier a fim de que iniciasse seus estudos em direito, os quais
o jovem decidiria finalizar em Bolonha quatro anos mais tarde.
Em 1326, Francesco regressa a Avignon, e, em 6 de abril de 1327 —
como ele próprio relata em um poema3 — na igreja de Santa Clara,
pela primeira vez vê e se apaixona pela mulher que chamaria Laura,
musa e tema recorrente de seu vasto canzoniere. Em 1330 o bispo de
Lombez, Giacomo Colonna, recomenda-lhe a seu irmão, o cardeal
Giovanni Colonna; a seu serviço Petrarca pôde viajar a Paris, Liège,

1  Tradução realizada a partir da edição latina de Vittorio Rossi (Florença:


Sansoni, 1934, vol. II, pp. 55–60).
2  Recorde-se que o papa Clemente V havia estabelecido a cúria em Avignon
em 1309.
3  Mille trecento ventisette, a punto
Su l’ora prima il dì sesto d’aprile,
Nel laberinto entrai; né veggio ond’esca.
(Em mil trezentos e vinte e sete, precisamente,
Na primeira hora do dia seis de abril
Entrei no labirinto; não vejo a saída)
(211. 12–14)

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Tradução e notas: Maria Berbara

Aix-la-Chapelle, Colônia e Lyon. Em 1336, Francesco pela primeira


vez visita Roma, de onde envia diversas cartas a Colonna. Após seu
regresso a Avignon inicia De viris illustribus, um tratado sobre a
biografia de grandes homens, e Africa, um longo épico em versos
sobre Cipião Africano; compõe, ainda, diversos poemas. Em 1341
é coroado “poeta laureado” no Capitólio, ao modo dos antigos poe-
tas romanos. A sua descoberta das epístolas de Cícero a Ático em
Verona, em 1345, deu-lhe a ideia de guardar e preparar para publi-
cação suas próprias cartas, as quais organizaria em quatro grupos:
as epistolae familiares (24 livros sobre questões familiares); seniles
(17 livros escritos em sua maturidade); sine nomine (“sem nome”; 19
cartas) e epistolae metricae (3 “cartas métricas”). As familiares foram
escritas entre 1325 e 1366 e organizadas entre 1345 e 1366.
Que Petrarca tenha sido o “pai do humanismo” é uma asserção
difundida já na primeira metade do século XV. Leonardo Bruni, em
sua Vida de Petrarca, escreve: “Petrarca foi o primeiro a ter um espí-
rito suficientemente refinado para reconhecer a graça da perdida
maniera antiga e para trazê-la de volta à vida”4. Em muitas de suas
cartas, o poeta expressa sua reverência pelos remanescentes retó-
ricos, poéticos e visuais da antiguidade clássica, assim como sua
convicção de que Roma poderia ressurgir e transformar-se, uma
vez mais, em caput mundi. O olhar que Petrarca lança ao passado
clássico, cheio de amor e melancolia, mas também de uma intensa
vontade de fazê-lo renascer, haveria de influenciar profundamente
as seguintes gerações de humanistas, artistas, filósofos e poetas.

4  Apud Aldo S. Bernardo (org.), Petrarca, F. Rerum familiarium libri I-VIII.


Nova York: New York University Press, 1975, p. XVII.

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Carta de Francesco Petrarca a Giovanni Colonna

A Giovanni Colonna da ordem dos predicadores. Deve-se


amar não escolas, mas a verdade, e sobre lugares notáveis na
cidade de Roma.
Deambulávamos sós por Roma. Tu bem conheces meu costume
peripatético, e o quanto ele convém à minha natureza e às minhas
inclinações. De resto, as opiniões dos peripatéticos ora me agra-
dam, ora não; eu não sigo escolas, mas somente a verdade. Assim,
às vezes sou peripatético, outras estoico, outras acadêmico, e outras
ainda não sou nada disso, sobretudo quando em seus escritos
aparece algo que se opõe ou parece opor-se à nossa verdadeira e
santa fé. Somente dentro desses limites nos é lícito amar e apro-
var as escolas filosóficas, isso é, desde que elas não nos afastem do
nosso fim último. Se chegássemos a correr esse risco, quer de Platão,
Aristóteles, Varrão ou Cícero, de todos deveríamos livremente
afastar-nos com desdém. Nem a argúcia nas disputas, nem a suavi-
dade das palavras, nem a autoridade dos nomes deve demover-nos
do nosso propósito. Foram homens, e, embora tenham tido — na
medida das possibilidades humanas — conhecimento das coisas,
clareza de expressão e afortunado engenho, eram miseráveis em
sua ignorância do mais elevado e sumo bem, assim como aqueles
que, confiando em suas próprias forças, não buscam a verdadeira
luz e com frequência tropeçam em uma inamovível rocha, como
cegos. Admiremos seu engenho de modo a venerar o criador desse
engenho; apiedemo-nos dos seus erros quando nos deleitamos em
nossa graça, e recordemos que, sem mérito algum, nós fomos mais
honrados e favorecidos do que esses grandes homens por Ele, que se
dignou a revelar-nos a crianças como nós o que manteve oculto aos
sábios5. Em suma, filosofemos de acordo com o próprio significado
da palavra filosofia, isso é, por amor ao conhecimento — e, como o
verdadeiro conhecimento de Deus é Jesus Cristo, para sermos bons
filósofos devemos acima de tudo amá-Lo e adorá-Lo. Em tudo e
para tudo sejamos de tal forma, que acima de todas as outras coi-

5  Referência a Lucas, 10:21.

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Tradução e notas: Maria Berbara

sas possamos ser cristãos. Leiamos filosofia, poesia e história, mas


que o Evangelho de Cristo soe sempre em nossos corações, pois
com ele somente já poderíamos ser suficientemente felizes e dou-
tos, enquanto sem ele, não importando o quanto aprendêssemos,
tornar-nos-íamos ignorantes e miseráveis. Todas as coisas devem
referir-se a ele como ao supremo bastião da verdade; sobre esse fun-
damento de todas as verdades literárias devemos esforçar-nos em
construir o edifício do labor humano. Não devemos privar-nos de
cultivar com diligência outros ensinamentos que não lhe sejam con-
trários, pois, ainda que ganhemos pouco em relação ao que maxi-
mamente importa, isso parecerá acrescentar conforto à nossa alma
e cultivar a vida. Disse essas coisas incidentalmente, na medida em
que me parecia que se ajustavam a uma carta como esta. Procederei.
Costumávamos vagar juntos nesta grande cidade que, embora
por causa da sua vastidão, parecesse vazia, contava com uma grande
população. Não apenas na cidade, mas também em suas redonde-
zas vagávamos, e a cada passo apresentava-se algo que nos excitava
a língua e a mente6: aqui o palácio de Evandro7, ali a morada de

6  Aqui Petrarca dá início a sua longa enumeração de episódios da história


romana vinculados às ruínas dos antigos monumentos – muitos dos quais não
chegaram aos nossos dias. Observe-se que o passeio de Petrarca pela história e
arquitetura romanas obedece uma progressão cronológica, começando com as
origens míticas de Roma e passando pelos seus seis reis, os heróis que defenderam
a república, os césares, e finalmente os apóstolos e santos martirizados na urbe.
7  Mítico fundador de Pallantium – de onde, posteriormente, Palatino – pequena
cidade sucessivamente englobada por Roma. Proveniente da Arcádia, teria se
estabelecido na margem esquerda do Tibre antes do reinado de Rômulo e entrado
em amistoso contato com Faunus, rei da tribo local. Segundo a tradição, teria
ensinado aos habitantes locais o alfabeto e o panteão gregos.

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Carta de Francesco Petrarca a Giovanni Colonna

Carmenta8, a gruta de Caco9, a loba nutriz e a figueira de Rumina10


— a qual seria mais apropriado chamar de Rômulo — , a passagem
de Remo, os jogos circenses e o rapto das Sabinas, o pântano de
Capri e o local onde desapareceu Rômulo11, aqui12 as conversas de
Numa e Egéria13, ali a arena dos trigêmeos14. Aqui Túlio Hostílio15,
o vencedor de inimigos e restaurador de milícias que foi, por sua vez,
vencido por um raio; ali o rei arquiteto Anco Márcio16; mais além
habitava Prisco Tarquíneo17, organizador das classes cidadãs. Ali
ardeu a cabeça de Sérvio18, e aqui passou em sua carruagem a feroz

8  Deusa romana associada ao parto; segundo algumas fontes, mãe de Evandro.


9  Segundo a tradição, Caco, filho de Vulcano, era um gigante monstruoso
que habitava uma gruta no monte Aventino. Teria sido morto por Hércules
(recorde-se o grupo escultórico Hércules e Caco, de Baccio Bandinelli, na praça
da Signoria em Florença).
10  O templo de Rumina, deusa protetora das mulheres que amamentam,
ficava ao lado do assim chamado ficus ruminalis mencionado por Petrarca,
isso é, a figueira sob a qual, segundo a lenda, Rômulo e Remo foram ama-
mentados pela loba.
11  Rômulo e Remo são os lendários fundadores de Roma, e Rômulo, seu pri-
meiro governante. Tito Lívio (Ab urbe condita, 1:9) e Plutarco (Romulus, 14)
relatam como os romanos raptaram as sabinas, i.e. mulheres pertencentes à
tribo itálica que povoava os Apeninos centrais e o Lácio, no século VIII a.C.,
com o objetivo de povoar a cidade recém-fundada.
12  Em latim é comum ocultar o verbo principal, quando o significado da
frase é claro. Nessa passagem da carta Petrarca omite o verbo repetidamente,
característica que optamos por manter na tradução; assim, por exemplo, em “aqui
as conversas de Numa e Egéria”, subentende-se “ocorriam”, “tinham lugar”.
13  Egéria foi a segunda esposa de Numa Ponfílio, segundo rei de Roma.
14  Referência aos Horácios e Curiácios.
15  Sucessor de Numa Ponfílio, e portanto terceiro rei de Roma. De acordo
com Tito Lívio (op.cit., 1:31), Túlio morre ao ser atingido por um raio lan-
çado por Júpiter.
16  Sucessor de Túlio. Realizou várias obras arquitetônicas importantes na urbe,
como a ponte Sublícia e o porto de Óstia.
17  Sucessor de Anco Márcio, e portanto quinto rei de Roma. Segundo Tito Lívio
(op.cit., 1:35), Prisco Tarquíneo adicionou cem cidadãos provenientes de famílias
menores ao Senado.
18  Segundo a lenda, quando Sérvio Túlio, sexto rei de Roma, era um bebê, sua
cabeça ardeu milagrosamente enquanto dormia (Tito Lívio, op.cit., 1: 39).

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Tradução e notas: Maria Berbara

Túlia, infamando para sempre a rua por causa do seu crime19. Ali,
porém, está a Via Sacra e as colinas do Esquilino, Viminal, Quirinal
e Célio20; ali o Campo Márcio e as papoulas cortadas pela mão do
Soberbo21. Aqui se pode ver ainda a infeliz Lucrécia caída sobre
sua espada e o adúltero escapando à morte, assim como Brutus, o
vingador da castidade violada22. Ali ameaça Porsena, e o exército
etrusco, e Múcio ferindo agressivo sua própria mão direita, e o filho
do tirano competindo com a liberdade, e o cônsul perseguindo até o
próprio inferno o inimigo expulso da cidade23, e a ponte sublícia que
se rompe atrás dos valentes, e Horácio nadando, e Clélia retornando

19  Túlia Menor, filha mais jovem de Sérvio Túlio, teria tramado juntamente
com seu marido, Tarquínio, o assassinato do próprio pai; segundo Tito Lívio
(op.cit., 1:48), ela teria passado com sua carruagem sobre o cadáver de Sérvio
em uma rua que, desde então, teria ficado conhecida como Vicus Sceleratus, i.e.
“rua da infâmia”.
20  Essas são quatro das assim chamadas sete colinas de Roma. As outras três são
o Palatino, Capitolino e Aventino.
21  Referência a Lúcio Tarquínio, chamado Soberbo, que, segundo Tito Lívio (op.
cit., 1: 53), teria cortado as papoulas mais altas de seu jardim para dar a entender a
seu filho que, para fortalecer o poder sobre uma cidade recentemente conquistada,
é preciso executar seus cidadãos mais destacados.
22  Segundo Tito Lívio (op.cit. 1: 56), Lucrécia, uma jovem nobre romana,
suicidara-se após ter sido violada por Sexto Tarquínio; Lucius Junius Brutus,
irmão de Lucrécia, exibe publicamente seu corpo, o que acaba por fazer eclodir a
rebelião popular que exila Tarquínio e estabelece a república romana.
23  O cônsul Marcus Valerius morre durante sua perseguição a Titus Tarquinius
(Dionísio, Das Antiguidades Romanas, 6:12, e Tito Lívio, op. cit., 2:20).

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Carta de Francesco Petrarca a Giovanni Colonna

ao Tibre24. Aqui ficava a casa de Publicola, injustamente suspeita25,


ali Quinctius arava a terra quando o arador mereceu ser nomeado

24  Petrarca enumera aqui diversos célebres heróis do patriotismo romano.


Quando, em 510 a.C., a república romana é fundada, Tarquínio, de origem
etrusca, recorre ao monarca etrusco Lars Porsena, quem concorda em apoiar
militarmente a retomada monárquica da urbe, declarando-lhe guerra. Durante o
assédio etrusco a Roma, Gaius Mucius, jovem nobre romano, entra furtivamente
no acampamento inimigo com o objetivo de assassinar Porsena. Capturado sem
conseguir atingir seu objetivo, porém, Porsena ameaça Mucius de morrer pelas
chamas caso não revele o plano que tramara contra ele; Mucius, no entanto,
como prova de seu desdém pela dor e pela morte, voluntariamente coloca sua
mão direita no fogo. Assombrado por sua coragem, Porsena ordena libertá-lo,
e o jovem seria posteriormente conhecido por Scaevola, isso é, “canhoto” (Tito
Lívio, op. cit., II-12). Ainda durante o assédio etrusco, o nobre romano Horácio
Cocles, juntamente com dois outros oficiais, foi encarregado de guardar a ponte
sublícia, impedindo a entrada na urbe dos etruscos, que haviam, já, tomado
o Janícolo; de acordo com Tito Lívio, se todos os outros soldados, em pânico,
desertavam, abandonando as armas, Cocles foi o único a permanecer lutando
e encorajando os demais a resistir (op.cit., 2:10). Segundo Dionísio, Horácio,
muito ferido, escuta um estampido e percebe que a ponte está por desabar;
nesse momento salta no rio e atinge a margem sem perder nenhuma das suas
armas (Das Antiguidades Romanas, V, 24). Clélia é uma das heroínas, ainda, na
guerra contra Porsena: como parte de um acordo com os etruscos, Roma envia
a Porsena reféns em troca da sua retirada do Janícolo. Segundo Tito Lívio (op.
cit., 2: 13), Clélia, uma das reféns, consegue furtar-se à vigilância dos guardas
e, guiando outras jovens, foge para Roma atravessando o Tibre a nado. Tito
Lívio conta que, uma vez estabelecida a paz, os romanos honraram-na com uma
estátua equestre na Via Sacra.
25  Publius Valerius Publicola foi cônsul, juntamente com Lucius Junius Brutus,
em 509 a.C., isso é, no primeiro ano da república romana. Após a morte de Brutus
na batalha contra os etruscos reunidos por Tarquínio, Publicola tornou-se o único
cônsul de Roma; nessa ocasião, começa a construção de uma residência palaciana
na colina Vélia. Quando a população romana, em vista do esplendor da casa,
começa a recear que Publicola secretamente almejasse restaurar a monarquia, ele
ordena que a casa seja imediatamente demolida e reconstruída abaixo da colina
(Tito Lívio, op.cit., 2: 7).

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Tradução e notas: Maria Berbara

ditador26, daqui Serrano foi levado ao consulado27. Esse é o Janícolo,


este o Aventino, aquele o Monte Sacro28, no qual a plebe, irada, rene-
gou três vezes seus pais. Aqui erguia-se o libidinoso tribunal de Ápio,
onde Virgínia foi salva da injúria pela espada de seu pai; ali as luxú-
rias dos decemviri encontraram um digno fim29. Daqui Coriolano, a
ponto talvez de vencer pelas armas, vencido pela caridade dos seus,
partiu30. Aquela rocha defendeu Manlius, e do seu cume precipi-
tou-se; ali Camilo repeliu os gauleses maravilhados pelo inesperado

26  De acordo com Tito Lívio (op. cit., III, 26), Lucius Quinctius Cincinnatus foi
avisado por um grupo de senadores que havia sido nomeado dictactor enquanto
arava a terra, em sua fazenda situada ao outro lado do Tibre em um local
conhecido como pradeira de Quinctius.
27  Atílio Serrano, cônsul em 170 a.C.
28  Os primeiros anos da república foram marcados por disputas acirradas
entre plebeus e patrícios relativas aos direitos e deveres dos primeiros. Segundo
a tradição, em 494 a.C. os plebeus recusaram-se a servir no exército e estabele-
ceram um assentamento no assim chamado mons sacrum, por alguns identifi-
cado com o próprio Aventino. No local, ergueram um santuário próprio, oposto
ao Capitólio, dedicado a Ceres, Liber e Libera.
29  Decemviri significa, literalmente, dez homens, designando uma comissão
oficial de dez (o termo é análogo, por exemplo, a triumviri, comissão de 3, de
onde triumvirato). Petrarca faz referência aqui aos decemviri legibus scribundis,
isso é, uma comissão legislativa temporária nomeada em 451 a.C. com a missão
de reelaborar o código de leis de forma a solucionar as tensões entre patrícios
e plebeus. Ápio Cláudio pertencia ao segundo decenvirato, instituído em 450
a.C., mais violento e autoritário que o anterior. Quando o seu mandato expirou,
os decemviri recusaram-se a permitir que fossem designados sucessores. Ápio
teria tomado uma decisão injusta e arbitrária ao condenar uma jovem, Virgínia,
à prostituição, o que levou seu pai a matá-la; essa injustiça teria precipitado a
revolta contra os decemviri e a sua renúncia, em 449 a.C.
30  A história de Coriolano, herói que seria da tragédia shakesperiana, é con-
tada por Tito Lívio (op.cit., 2:33 e seg.) e Plutarco (Alcebíades e Coriolano).
Pertencente a uma família abastada, o general Coriolano comandou a vitória
romana contra os volcianos (século V a.C.), tribo itálica inimiga. De volta à
urbe, no entanto, Coriolano envolveu-se em disputas políticas com podero-
sos inimigos, os quais, por sua vez, conseguiram decretar seu exílio de Roma.
Inconformado, Coriolano alia-se com Tulo Aufídio, nobre pertencente à mesma
tribo volciana que o general conseguira derrotar, propondo-lhe juntar forças e
atacar Roma. Quando Coriolano e as tropas volcianas estavam prestes a atacar

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Carta de Francesco Petrarca a Giovanni Colonna

ouro, ensinando os desesperados cidadãos a recuperar sua pátria


pela espada, não pelo ouro31. Aqui Cúrcio, armado, descendeu32; ali
foi encontrada, sob a terra, a cabeça impassível de um homem, a qual
foi considerada um presságio do mais alto e firme império33. Ali a
virgem falaz caiu sob as armas da sua própria falácia; aqui a rocha
tarpeia, e a riqueza do povo romano recebida em todo o mundo34.
Aqui o ganso prateado35, aqui Jano, guardião das armas, ali o templo

a cidade, no entanto, mulheres romanas, incluindo sua esposa e mãe, consegui-


ram persuadi-lo a retroceder.
31  O soldado romano e, posteriormente, dictactor Marco Fúrio Camilo teria
encorajado seus concidadãos a revidar o ataque dos gauleses, que assediaram e
tomaram Roma em 387 a.C., durante a noite, alegando que então eles estariam
distraídos pela riqueza do espólio.
32  Segundo Tito Lívio (op.cit., 7: 6), em 362 a.C. o solo cedeu em pleno foro
romano, abrindo um imenso abismo que não se fechava apesar da terra com a
qual todos constantemente procuravam cobri-lo. Os sacerdotes previram que,
para fechar o abismo e garantir a sobrevivência da república romana, seria
preciso oferecer em sacrifício, naquele mesmo local, o que os romanos tives-
sem de mais nobre. Ouvindo isso, Marco Cúrcio, um jovem soldado romano,
solenemente monta em seu cavalo e, totalmente armado, lança-se no abismo,
salvando Roma e a república. Cúrcio, assim como Horácio Cocles e Múcio
Scaevola, outros heróis romanos citados por Petrarca nesta carta, encontram-se
entre os mais célebres exemplos de auto sacrifício cívico do mundo romano.
33  Por ocasião da construção do templo a Júpiter, no Capitolino, teria sido
encontrada uma enorme escultura de uma cabeça masculina.
34  Segundo a tradição (Tito Lívio, op. cit., 1:11; Plutarco, Rômulo, 17–18), a
vestal Tarpeia teria traído os romanos, abrindo as portas da cidade aos sabinos
em troca, segundo acreditava, de seus braceletes de ouro (“o que eles usavam
em seus braços esquerdos”). Os sabinos, no entanto, atiraram-lhe seus escudos,
que também seguravam com o braço esquerdo, esmagando-a e matando-a. Seu
corpo foi lançado do alto de uma rocha, próxima ao Capitólio, que a partir de
então teria ficado conhecida como “rocha tarpeia”. A rocha, posteriormente,
seria o local de execução de traidores.
35  Virgílio (Eneida, VIII, 645–651) faz menção a essa importante lenda romana:
“No cimo, a rocha a vigiar Tarpeia, / Manlio o templo defende e o Capitolio; /
Colmo romúleo o paço novo encrespa. /Argênteo ganso ao pórtico dourado
/ A esvoaçar dos Gallos dá rebate, / Que entre o mato, a favor da opaca noite,
/ Vinham-se aproximando à fortaleza” (tradução: Odorico Mendes). Durante
o ataque gaulês à urbe, em 390 a.C., o herói Marius Manlius, encarregado de

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Tradução e notas: Maria Berbara

de Júpiter Stator e Feretrio; ali teve Júpiter sua morada, lar de todos
os triunfos. Aqui Perseu36 foi trazido, ali foi expulso Aníbal37, aqui
foi destruído Jugurta, como creem alguns (segundo outros, faleceu
no cárcere)38. Aqui triunfou César; aqui pereceu39. Neste templo
Augusto viu prostrados reis e todo o mundo aos seus pés; aqui o
arco de Pompeu, ali o pórtico, mais além o arco címbrio de Mário.
Ali a coluna de Trajano, onde ele — o único entre os imperadores,
segundo Eusébio40 — foi enterrado dentro das muralhas da cidade,
aqui a ponte que, mais tarde, chamar-se-ia São Pedro, e a fortaleza
de Adriano, na qual ele próprio foi sepultado, e que agora chamam
Castel Sant’Angelo. Esta é a rocha de admirável magnitude sobre a
qual há dois leões brônzeos que eram sagrados para os divos impe-
radores, em cujo topo, diz-se, descansam os ossos de Júlio César.
Aqui o santuário de Telos41, ali o templo da Fortuna, o templo da
Paz, justamente destruído quando da vinda do rei da paz42. Ali está a

defender o Capitólio, teria sido alertado pelo alarido dos gansos da aproxima-
ção sorrateira dos gauleses.
36  Filho de Felipe da Macedônia. Ao final da terceira guerra macedônia, foi
localizado, foragido, na Samotrácia, e levado a Roma em triunfo.
37  General cartaginês célebre por ter atravessado os Pirineus e os Alpes liderando
seu impressionante exército, o qual incluía elefantes de guerra, com o objetivo de
conquistar Roma (segunda guerra púnica). Apesar de ter permanecido 16 anos
em solo italiano, Aníbal jamais tomou Roma.
38  Referência ao rei numídio que, capturado pelos romanos, provavelmente
morreu encarcerado em 104 a.C.
39  No original: Hic triumphavit Cesar, hic periit. Essa frase corresponde talvez
ao zênite da enumeração petrarqueana de monumentos e feitos romanos, expri-
mindo, com extraordinário poder sintético, a grandeza e ao mesmo tempo a
fragilidade do passado clássico.
40  Chronikon, s.a. 2132.
41  O Aedes Telluris, templo de Telos Mater, foi erigido no Esquilino, provavel-
mente, em 268 a.C.
42  O episódio é relatado na Legenda Aurea de Jacopo da Voragine: em Roma
havia sido construído um templo da Paz, em cujo interior colocara-se uma
estátua de Rômulo. O oráculo de Apolo, consultado, declarara que essa está-
tua e o templo permaneceriam de pé até o dia em que uma virgem desse à
luz. Como os romanos consideravam que isso seria impossível, inscreveram no

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Carta de Francesco Petrarca a Giovanni Colonna

obra de Agripa, subtraída da mãe dos falsos deuses e dado à mãe do


verdadeiro Deus43. Aqui nevou em 5 de agosto44; daqui um córrego
de óleo fluiu ao Tibre45; dali, dizem, um ancião Augusto, seguindo o
conselho da sibila, viu o menino Jesus46. Aqui a insolência de Nero
e a extravagância flamante dos seus edifícios; ali a casa de Augusto,
na rua Flaminia, onde, segundo alguns, está a tumba do próprio
imperador; aqui a coluna de Antonino, mais além o palácio de Ápio;
este é o que tu chamas morada do sol, e eu, segundo o que leio em
livros de história, chamo septizonium de Severo Africano47. Nestes
mármores sobrevive, mesmo depois de tantos séculos, a grande

frontão: “templo eterno da Paz”. No dia do nascimento de Cristo, esse templo


e a estátua de Rômulo desmoronaram (cfr. a ed. francesa da casa Diane de
Selliers, Paris, 2000, p. 60).
43  Refere-se ao Pantheon, convertido em igreja pelo papa Bonifácio IV em 609.
44  Segundo a tradição, durante o pontificado do papa Libério (352–366) um
casal de patrícios romanos, tendo decidido doar sua fortuna à construção de uma
igreja, rezou à virgem pedindo que lhes enviasse algum sinal indicando o local
onde se deveria erigir o edifício. Nessa noite – de 4 para 5 de agosto, portanto
pleno verão no hemisfério norte – teria nevado no cume do Esquilino, tendo
assim nesse local sido erguida a primeira Santa Maria Maggiore. O milagre é
festivamente celebrado em Roma até os dias de hoje.
45  Acontecimento milagroso que igualmente teria ocorrido no momento em
que Cristo nasce (Legenda Aurea, op. cit., p. 62).
46  Refere-se ao encontro mítico, relatado, ainda na Legenda Aurea (op.cit.,
p. 62), entre o ancião Augusto e a sibila: segundo o papa Inocêncio III, o senado
quisera recompensar Augusto por ter estabelecido a paz no mundo, adorando-
o como a um deus. O imperador, no entanto, não quis aceitar o título antes de
perguntar à sibila (tiburtina?) se o mundo veria nascer, algum dia, um homem
maior do que ele. No dia da Natividade, estando a sibila a sós com o imperador,
viu aparecer, em pleno meio-dia, um círculo de ouro ao redor do sol, em cujo
centro uma virgem de extraordinária beleza levava uma criança em seu colo. A
sibila mostrou o prodígio a César, e nesse momento escutou-se uma voz que
dizia: “Esta mulher é o altar do céu (ara coeli)”. A sibila, então, disse a ele: “Esta
criança será maior que tu”.
47  O septizonium era um edifício romano construído por Septímio Severo
em 203 d.C. Sua demolição foi iniciada em 1588; atualmente, nada resta dele.
Petrarca se refere ao imperador como Severo Africano porque nasceu na atual
Líbia, que então era parte da província africana do império.

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Tradução e notas: Maria Berbara

rivalidade em engenho e arte entre Praxíteles e Fídias48. Aqui Cristo


apareceu a seu fugitivo vicário49; aqui foi crucificado Pedro50, aqui
foi decapitado Paulo51; aqui foi queimado Lourenço, quem, sepul-
tado, foi logo sucedido por Estéfano52. Aqui João desprezou o azeite
fervente53; ali Agnes54, após sua morte, vivente proibiu aos seus
que a chorassem; aqui escondeu-se Silvestre55, aqui curou-se da
lepra Constantino56, aqui Calixto encontrou gloriosa morte57. Mas
aonde vou? Posso eu nesse pequeno papel descrever-te Roma? Na
verdade, mesmo que eu pudesse, não deveria; tu conheces todas
essas coisas, não por ser cidadão romano, mas porque desde a tua
juventude foste curiosíssimo, sobretudo no tocante a esses assuntos.
Hoje, quem é mais ignorante das coisas romanas do que os cidadãos

48  Referência aos dióscoros, no Quirinal.


49  Referência à aparição de Cristo a São Pedro, no momento em que este
abandonava Roma passando pela Via Appia. O episódio é narrado nos Atos de
Pedro (apócrifo).
50  São Pedro, segundo tradições muito antigas (Orígenes), foi crucificado em
Roma, de cabeça para baixo, na época do imperador Nero (c. 64 d.C.).
51  São Paulo teria sido decapitado (Tertuliano), também em Roma, em c. 66 d.C.
Segundo Eusébio, São Paulo e São Pedro teriam sido executados simultanea-
mente, em 67 d.C.
52  Um dos sete diáconos de Roma, São Lourenço, nascido, segundo a tradição,
em Huesca (Espanha), teria sofrido martírio em Roma em 258, durante a
perseguição de Valeriano aos cristãos. Condenado à grelha, teria suportado
a dor com enorme contenção, avisando o verdugo, a certa altura, que poderia
girá-lo, uma vez que estava já suficientemente queimado em um dos lados. Santo
Stéfano, ou Estevão, é comumente considerado o primeiro mártir cristão. Sob o
pontificado de Pelágio os restos mortais de Lourenço teriam sido transportados a
Constantinopla em troca dos de Stéfano, que teriam ocupado seu lugar em Roma.
53  Segundo uma tradição transmitida por São Jerônimo e Tertuliano, São João,
condenado por Domiciano ao martírio, teria desprezado o azeite fervente ao qual
seria atirado, e do qual teria sido retirado, miraculosamente, ileso.
54  Santa Agnes, virgem romana martirizada em c. 304.
55  São Silvestre, papa entre 314 e 335, teria, segundo a lenda, batizado o impe-
rador Constantino.
56  O imperador Constantino teria sido curado de lepra pelo papa Silvestre.
57  Calixto, nascido escravo, torna-se papa em 217; acredita-se que morreu
durante uma revolta popular, em 222.

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Carta de Francesco Petrarca a Giovanni Colonna

romanos? Seguro digo: em nenhum lugar Roma é menos conhecida


do que em Roma. Não lamento somente a ignorância — no entanto,
o que é pior que a ignorância? — mas a fuga e exílio de muitas vir-
tudes. Pois quem pode duvidar que Roma ressuscitaria de imediato
se começasse a conhecer-se a si mesma58? Mas esse lamento deixo
para outra ocasião.
Costumávamos deter-nos com frequência nas termas de
Diocleciano após a fadiga que nos provocavam nossas caminhadas
pela imensa urbe, e muitas vezes subíamos ao telhado daquele edifí-
cio, antigamente uma casa, pois somente ali podíamos desfrutar do
ar puro, da vista desimpedida e da desejada solidão. Ali não faláva-
mos de negócios, problemas domésticos ou públicos, dos quais já nos
havíamos previamente liberado. E, assim como em nossos passeios
pela cidade decaída, também ali, sentados, tínhamos sob os olhos os
fragmentos das ruínas. O que resta a dizer? Falávamos longamente
sobre história, a qual parecíamos ter dividido de tal maneira que tu
eras o especialista na parte moderna, e eu, na antiga, sendo que por
antiga entendíamos a época que precede o culto e a adoração do
nome de Cristo em Roma, e por moderna, o período sucessivo, até
o nossos dias. Também falávamos muito sobre aquela parte da filo-
sofia que lida com os costumes, de onde deriva seu nome; algumas
vezes discutíamos também as artes, seus autores e seus princípios. E,
um dia em que havíamos tocado nesse último assunto, tu me pediste
que te explicasse claramente onde julgava eu que tivessem as artes
mecânicas e liberais sua origem, pois me havias ouvido falar nesse
tema algumas vezes. Respondi com agilidade, pois a hora, a ausência
de preocupações triviais, e o próprio local encorajavam-me a falar
longamente, e porque a tua atenção demonstrava que o tema te agra-

58  Petrarca retoma o antigo topos do nosce te, conhece-te a ti mesmo, aqui apli-
cado a Roma e concebido como condição do seu renascimento. Sylvie Deswarte
observou a ressonância dessas palavras na gravura de Francisco de Holanda
reproduzida nesse volume, na qual a inscrição Nosce Te aparece na lousa de um
sepulcro portada por dois gênios alados (Ideias e Imagens em Portugal na época dos
Descobrimentos. Francisco de Holanda e a teoria da arte. Lisboa: Difel, 1992, p. 73).

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Tradução e notas: Maria Berbara

dava. Assegurei-te, contudo, que não diria nada novo, nada que fosse
realmente meu, e no entanto nada que me fosse alheio: tudo o que
dizemos é sempre nosso, desde que o olvido não nos lho arrebate
talvez. Pedes-me agora que eu repita o que disse naquele dia, e que o
escreva em uma carta. Confesso-te que disse muitas coisas que posso
somente repetir com diferentes palavras. Devolve-me aquele lugar,
aquela tranquilidade, aquele dia, aquela atenção tua, aquela veia do
meu engenho, e poderia fazer o que fiz então. Mas tudo mudou; o
lugar não está aqui, o dia passou, a tranquilidade perdeu-se, e ao
invés da tua face vejo uma carta muda. Meu espírito está perturbado
pelo rumor dos negócios que deixei atrás, negócios que até pouco
atrás bramiam em meus ouvidos, apesar de que eu tenha escapado
assim que pude para responder-te mais livremente59. Obedecer-te-ei,
contudo, como melhor puder. Poderia enviar-te alguns textos de
antigos e de modernos nos quais encontrarias o que buscas, mas me
pediste expressamente para não fazê-lo quando me rogaste que dis-
sesse o que quer que tenha a dizer sobre o assunto com minhas pró-
prias palavras, já que, como observaste, tudo o que eu digo parece-te
agradável e claro. Agradeço-te por essa opinião, seja ela verdadeira,
ou seja um modo de estimular-me o espírito. Eis aqui o que te disse
então, talvez com outras palavras, mas certamente com o mesmo
sentido. Mas, realmente, o que fazemos? Esse tema certamente não
é pequeno, essa carta está já muito longa, e nem sequer começamos,
apesar de que o fim deste dia esteja já próximo. Não deveríamos dar
um pouco de repouso aos meus dedos e aos teus olhos? Retomemos
o restante amanhã; dividamos o labor e a carta, e não tratemos em
um mesmo papel de assuntos diversíssimos. Mas, o que tenho eu em
mente? O que te prometo, quando te falo de outra carta amanhã?
Este não é nem um assunto para um único dia, nem um labor epis-
tolar, mas exige um livro, o qual iniciarei — se, entretanto, cuidados
maiores não me impedirem e perturbarem — quando a fortuna me
restituir minha solidão. Somente ali, e não em outro lugar, sou meu;

59  Petrarca faz referência, seguramente, a sua mudança de Avignon a Vaucluse.

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Carta de Francesco Petrarca a Giovanni Colonna

ali repousa minha pluma, a qual agora rebela-se em todos os lugares


aonde vou e desobedece minhas ordens, ocupado que estou com
meus assuntos molestíssimos. Assim, enquanto está constantemente
ocupada em meu ócio, prefere descansar quando me ocupo dos
negócios, e, quase como um servo desobediente e insolente, parece
transformar o labor do seu senhor em descanso. No entanto, assim
que voltar para casa haverei de obrigá-la a assumir suas obrigações
e escreverei sobre o que buscas em um livro a parte, indicando o
que foi escrito por outros e quais são as minhas próprias ideias. Pois,
assim como estou acostumado a escrever essas cartas familiares
quase como um jogo, durante conversas e viagens, necessito a paz
solitária e a doce tranquilidade e absoluto e ininterrupto silêncio
para escrever livros. Adeus.

 30 de novembro, em trânsito

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Vida de Leonardo da
Vinci, Michelangelo e
Rafael, de Paolo Giovio 1
Tradução e notas: Fernanda Marinho

P
aolo Giovio (Como, 1483 – Florença, 1552) envolveu-se com
as ciências literárias incentivado pelo seu irmão Benedetto
Giovio. Este, por sua vez, era historiador e participou de pro-
jetos como a tradução e anotação do De architectura, de Vitrúvio,
em 1521, com Cesare Cesariano. Paolo estudou física nas cidades
de Pavia e Pádua, quando conheceu Leonardo da Vinci que traba-
lhava nas ilustrações do livro de Marco Antônio della Torre, com
quem estudara na universidade. Trabalhou em Roma para os papas
Júlio II, Leão X, Clemente VII e Paulo III.
No mundo das artes exerceu uma importância não relacionada à
produção artística, mas sim ao distinto interesse em salvaguardá-las,
fazendo-o exercitar a prática do colecionismo, especificamente de
retratos, e a preocupação em registrar os artistas de destaque histó-
rico. Entende-se este registro como uma forma de manutenção da
memória, legitimando artistas selecionados através de curtas bio-
grafias que ilustrassem seus processos criativos.

1  Tradução realizada a partir da versão italiana. In: Scritti d’arte del Cinquecento
– Volume I (org. Barocchi, Paola). Turim: Giulio Einaudi Editore, 1977;
pp. 7-18. (1ª edição: Milão: Riccardo Ricciardini editore, 1971 – Tradução de
Paola Barocchi a partir do original em latim).

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Vida de Leonardo da Vinci, Michelangelo e Rafael, de Paolo Giovio

Vasari, em uma passagem de sua autobiografia, relata ter sido este


trabalho de Giovio o primeiro passo para a elaboração de suas Vidas.
O motivo que o levou a iniciar esta pesquisa justifica-se tanto pelo
encantamento com a ideia do projeto elaborado por Giovio quanto
pela decepção com aquilo que o mesmo vinha desenvolvendo:

“…quando falava destes artistas trocava seus nomes, sobre-


nomes, pátria, obras e não dizia coisa com coisa, não falava
com cuidado, mas grosso modo”2.

Desta maneira, com consentimento de Giovio, Vasari assumiria a


autoria da obra tratando de desenvolver uma apurada gama de bio-
grafias de Cimabue até então, e estabelecendo desta maneira uma
substancial importância documental na história da arte.

Vida de Leonardo da Vinci

Nascido em Vinci, vila toscana desconhecida, Leonardo juntou-se


com grande esplendor à pintura com o argumento de que não pode
exercitá-la atentamente quem já não tenha aprendido as ciências e
artes liberais prioritárias à mesma. Preferia a escultura ao desenho
como modelo das imagens para representar em relevo sobre o plano.
E cogita nada ser mais importante que as regras da ótica, das quais
se serve para observar com exatidão e agilidade as regras da luz e
das sombras. Também estudou na escola de medicina como disse-
car, com fadiga desumana e repugnante, os cadáveres dos marginais,
com o propósito de conseguir pintar as diversas flexões e tensões
dos membros pelas forças dos nervos e das articulações respeitando
fielmente a ordem da natureza. Desta maneira, representava em tela,

2  VASARI, 1568, II, p. 996.

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Tradução e notas: Fernanda Marinho

com admirável dedicação, a forma de todos os pequenos órgãos, até


as veias mais grossas e as partes mais secretas do esqueleto, a fim
de que, daquele duradouro esforço, se gravasse em metal infinitas
cópias em benefício da arte.
Mas, por exercer com excessiva meticulosidade a pesquisa de
novos meios e técnicas de uma arte refinada, termina pouquís-
simas obras, descartando sempre as primeiras ideias devido à
inconstância do seu caráter e natural impaciência3. Contempla-se,
todavia, em Milão, pintada sobre uma parede, a Ceia de Cristo com
os discípulos4, obra que o rei Luis [XII] — como era conhecido —
desejava, pedindo ardentemente com insistência a quem por perto
estava enquanto contemplava, extraí-la, recortando-a em partes da
parede para transferi-la à França ainda que sob o custo de destruir
aquele célebre refeitório. Resta de Leonardo também uma pintura
com Menino Jesus que brinca juntamente com a Madona e a Santa
Ana5, que o rei Francisco da França comprou e colocou na sua
capela; e na sala florentina do Consiglio della Signoria resta uma
Batalha6 da vitória sobre os pisanos, magnífica, mas infelizmente
incompleta devido a um defeito do reboco da parede que rejeitava
com singular obstinação as cores dissolvidas em óleo de noz. Mas

3  Tal inconstância que Giovio menciona relaciona-se à técnica criativa do


artista, distanciada do objetivo de alcançar uma precisão imediata da linha na
composição pictórica. Leonardo faz surgir a forma em meio ao emaranhando
linear conquistado pelas exaustivas tentativas compositivas. Segundo Gombrich
(GOMBRICH, E. ET WOODFIELD, R. (org.) The essential Gombrich: selected
writings on art and culture. London: Phaidon , 1996, p. 217), tem-se cada vez mais
percebido que os rascunhos para Santa Ana (Louvre, Paris) suscitaram novas
ideias para a criação de Madona com Menino e gato (British Museum, Londres),
assim como nas nuvens disformes reconhecem-se figuras.
4  Última Ceia. Santa Maria delle Grazie (Milão) / 1498.
5  Virgem com Menino e Santa Ana. Museu do Louvre (Paris) / 1510.
6  Faz-se referência à Batalha de Anghiari, cujo original foi perdido por conta
da incompatibilidade da composição usada na pintura e o suporte da parede.
Restam-nos hoje em dia diversas cópias desta composição. Uma das mais famosas
é de autoria de Peter Paul Rubens, datada dos primeiros anos do século XVII e
atualmente conservada no Museu do Louvre.

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Vida de Leonardo da Vinci, Michelangelo e Rafael, de Paolo Giovio

o desgosto causado pelo dano imprevisto parece ter extraordina-


riamente acrescentado o fascínio da obra inacabada. Modelou tam-
bém em argila um cavalo de proporções colossais para Ludovico
Sforza, e executou outro igual em bronze, montado com a figura
do pai Francesco7, ilustre condottiere. Na postura impetuosa e par-
ticular do animal percebe-se juntamente um estudo cuidadoso da
arte estatuária e da natureza.
Foi de índole afável, brilhante, generosa, de aparência extraordi-
nariamente bela; e por ser um maravilhoso exemplo e inventor de
diversos estilos e, sobretudo de espetáculos teatrais, e saber cantar
excelentemente acompanhado da lira, teria grande aceitação de
todos os príncipes de seu tempo. Morreu na França com sessenta
e sete anos, entristecendo seus amigos, pelo fato de que, além de
sua perda, entre os jovens que aglomeravam seu estúdio não tenha
restado nenhum discípulo de grande fama.

Vida de Michelangelo

Tanto na pintura quanto na escultura o toscano Michelangelo


Buonarroti é tão aproximado — pela constante fama e pelo senso
comum — à excelência dos artistas antigos que os mais famosos
representantes de uma ou outra arte lhe atribuiriam com justo reco-
nhecimento as merecidas palmas. Chamado por Júlio II ao Vaticano
com a oferta de uma grande recompensa, lá terminou uma imensa
obra em curto tempo, deixando na Capela Sistina8 o testemunho
de uma arte perfeita. Não obstante, pintando por necessidade em
posição deitada, distanciou e quase ocultou algumas figuras reser-
vadas da luz em esmaecimento, como a decapitação de Holofernes.

7  A escultura equestre foi destruída com a invasão francesa, mas conhece-se seu
estudo, datado entre 1488 e 1499 e conservado hoje na Royal Library, em Windsor.
8  A pintura do teto da Capela Sistina, no Vaticano, foi executada entre 1508 e
1512 sob a encomenda do papa Júlio II, enquanto que o Juízo Final foi realizado
entre 1535 e 1541, encomendado pelo papa Paulo III.

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Tradução e notas: Fernanda Marinho

Mas em outros casos, como na crucifixão de Haman, exaltou tão


felizmente a mesma luz através do contraste das sombras que inclu-
sive os artistas mais entendidos ignoravam com seus estupores o
entendimento de como através do efeito plano criava a realidade da
representação da solidez dos corpos. Pôs ao centro do arco, entre as
mais importantes figuras do homem, aquela de um velho que voa
no céu. Esta, calculadamente desenhada para quem a observar de
pontos diversos da capela, parece por ilusão ótica girar constante-
mente e mudar o próprio gesto.
Conseguiu também alta fama na escultura quando fez um Cupido
de mármore9. Depois de tê-lo enterrado por certo tempo, resgatou-
o à luz, de modo que a sujeira e outros pequenos danos oportu-
namente aplicados a ele simulassem o aspecto antigo, vendendo-
o por alto preço, através de um intermediário, ao cardial Riario.
Ainda muito felizmente empenhado trabalhou em um bloco de
mármore abandonado o Gigante que ameaça com a atiradeira, que
se vê na entrada do Palazzo della Signoria em Florença10. Foi-lhe
finalmente encomendada a tumba do papa Júlio II11 pela qual rece-
beu milhares de florins de ouro. Para esta encomenda fez diversas
estátuas enormes, as quais arrecadaram tantas admirações de levar
a pensar que ninguém depois dos antigos havia esculpido o már-
more com tanta arte e agilidade como ele, nem havia pintado com
tanta harmonia e beleza.
Mas por outro lado deste tão grande gênio encontramos um
caráter um tanto rude e selvagem, transformando a sua vida pes-
soal em uma inacreditável avareza e privando as gerações seguintes

9  Esta escultura é o famoso Cupido adormecido – obra perdida – que Michelangelo


executou em 1496 e que foi vendida ao Cardeal Raffaelo Riario (o referido
intermediário foi Baldassare Del Milanese) de Roma como uma obra antiga, de
preço correspondente.
10  Este gigante, finalizado em 1504, é o Davi, hoje conservado na Galleria
dell’Accademia de Florença.
11  Compõe esta tumba o Moisés, executado em 1515. A tumba foi finalizada em
1545 e encontra-se em San Pietro in Vincoli (Roma).

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Vida de Leonardo da Vinci, Michelangelo e Rafael, de Paolo Giovio

de discípulos que pudessem continuar a sua arte. Rogou inclusive


aos príncipes que não o induzissem a cumprir com a função de
mestre ou mesmo acolher alguém no seu estúdio como espectador
e observador. Depois dele, mas ainda muito distantes, com reco-
nhecimentos particularmente merecidos e muito apreciados são:
Sansovino, nascido no condado de Arezzo, autor daquele grupo de
Ana com a filha Maria e o neto Jesus, que foi esplendidamente cele-
brado com muitos versos quando Corizio di Treviri, patrono dos
poetas, o dedicou com um pomposo banquete; e Baccio Fiorentino,
elogiado mais pelo seu seguro talento do que pela execução pre-
cisa. Este esculpiu Orfeu que acalma Cérbero com a lira, grupo
que o papa Clemente antes de seu pontificado colocou no pátio do
Palazzo Medici. Baccio Fiorentino também copiou com elegância
o Laocoonte dos jardins do Vaticano, saído dos tempos antigos e
resgatado pela genialidade destes três grandes artistas. Este grupo
escultórico também foi tomado por Clemente que o colocou não
distante daquele de Orfeu, já que a nativa cidade de Florença tam-
bém já possuía seu próprio Laocoonte para admirar. Obteve fama,
além destes, Gobbo Lombardo, que fartou o Duomo de Milão com
estátuas de vários santos.

Vida de Rafael de Urbino

Rafael de Urbino alcançou o terceiro posto na pintura graças à


maravilhosa doçura e agilidade de um talento pronto a produzir. A
grande intimidade com os poderosos, conquistada com uma con-
duta muito civil e cortesã, trouxe-lhe uma fama não menor que a
excelência de suas obras, nunca lhe faltando ocasião de manifestar
a sua esplêndida arte. No Vaticano, com o encargo ainda não muito
definido, pintou dois quartos12 com a ordem do papa Júlio: em um

12  Os primeiros quartos (stanze) foram a Stanza della Segnatura (executada


entre 1508 e 1511) e a Stanza d’Eliodoro (entre 1512 e 1514).

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Tradução e notas: Fernanda Marinho

as nove Musas aplaudem Apolo que canta com sua lira13; no outro
os soldados em guarda no sepulcro de Cristo, reluzem com pouca
luz na sombra da noite14. Em um quarto mais interno, o refeitó-
rio de Leão X, representava a ferocidade de Totila, as desventuras
e perigos de Roma incendiada15; e com igual elegância, mas com o
pincel caprichado, preenche a loggia de Leão com uma maravilhosa
variedade de flores e animais. Sua última obra foi a Batalha e der-
rota de Massenzio16, a qual foi iniciada em um refeitório bastante
grande e finalizada mais tarde pelos discípulos. Mas feliz foi a sua
tela que o papa Clemente dedicou a Gianicolo no altar de São Pedro
em Montorio: nesta vê-se uma criança corrompida pelo espírito
maligno, cujos olhos fixos e inquietos denunciam o ânimo agitado17.
Em todos os gêneros da pintura, de resto, suas obras nunca mos-
traram pouco daquela beleza particular que chamamos graça; apesar
de, às vezes, ter sido excessivo no revelar dos músculos das pernas,
mostrando muito ambiciosamente antepor a força da arte à natu-
reza. Nem parece ter observado exatamente as regras da perspectiva,
mas na representação das linhas de contorno junto com o preenchi-
mento entre as diversas zonas cromáticas, atenuando e solidificando
a aspereza das cores mais vivas era o que o fazia ser admirado, des-
prezado apenas por Buonarroti, unindo a pintura sabiamente dese-
nhada ao ornamento luminoso e resistente das cores a óleo.

13  Nesta parede aprecia-se a referida pintura Parnassus representando a casa de


Apolo junto com demais poetas modernos, como Petrarca, Boccaccio e Dante
Alighieri. Este quarto faz conviver harmoniosamente temáticas cristãs e pagãs
e cada pintura relaciona-se com um dos elementos fundamentais da cultura
humanista: Parnassus – Poesia; A Disputa – Teologia; Escola de Atenas – Filosofia;
As Virtudes Cardeais – Justiça
14  Presente na Stanza d’Eliodoro, trata-se da Liberação de São Pedro, executada
em 1514.
15  Incêndio em Borgo. Stanza dell’incendio de Borgo. (Vaticano) / 1514.
16  Batalha em Pons Milvius. Stanza di Constantino. (Vaticano) / 1520 – 1524.
17  Esta pintura – Transfiguração – executada entre 1518 e 1520, esteve na
igreja de San Pietro em Montorio (Roma) até 1797. Hoje se encontra na
Pinacoteca do Vaticano.

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Vida de Leonardo da Vinci, Michelangelo e Rafael, de Paolo Giovio

Morreu na flor da idade enquanto por amor à arquitetura calcu-


lava os restos dos edifícios da Roma antiga com uma nova e admi-
rável invenção, com o objetivo de apresentar aos olhos dos arquite-
tos, depois de tê-la estudado atentamente, uma Roma reintegrada.
E assim, executava com facilidade, desenhando sobre um plano
do tamanho de um pé o lugar e as linhas dos ventos, avançando
assim nos fundamentos e induzindo com cálculo seguro a forma
dos lados e dos ângulos, assim como as normas usadas pelos mari-
nheiros através do mapa náutico e da bússola para identificarem as
zonas marítimas e terrestres.
Falecido Rafael, vários artistas competiram quase igualmente por
herdar sua arte, entre os quais os discípulos Francesco e Giulio, exce-
lentes, sobretudo por um mesmo talento de emular com cuidado
e intensidade excessivos a mão do mestre. Mas no retrato supera
sem confronto a todos os outros o vêneto Sebastiano, que é também
único no modo extraordinário de reavivar as pinturas com uma
maravilhosa ligeireza do tratamento, utilizando assim uma agradá-
vel gama de cores. Mesmo nas obras acabadas do vêneto Tiziano
reluzem as múltiplas virtudes de uma arte refinada, que somente os
artistas, se não vulgares, compreendem. O mantuano Costa pinta
com cores doces homens de aspecto benevolente e de gestos com-
postos e dignos, o que nos faz pensar que ninguém possa produzir
mais prazerosamente figuras vestidas e armadas do que ele. Mas
críticos especialistas exigem dele figuras veladas ou realmente nuas,
que ele não tinha condições de fazer sem risco porque não conse-
guiu por a serviço da sua pintura doutrinas e técnicas mais segu-
ras, contentando-se com uma preparação modesta. O verceliense
Sodoma, muito conhecido na cidade de Siena por ter uma mente
geniosa e inconstante, beirando a afetação da loucura, quando con-
voca à arte seu espírito agitado faz obras maravilhosas, e, mesmo
com as mãos impetuosas — coisa estranhíssima — ninguém parece
ter pintado com mais calma e prudência do que ele. De Dosso ferra-
rense elogia-se, ao contrário, a polidez do engenho tanto nas obras
como um todo quanto, sobretudo, nos seus detalhes. Enfrenta com

407

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Tradução e notas: Fernanda Marinho

delicioso prazer os vagos caminhos da pintura, retratou profusos e


alegres rochedos escoceses, bosques verdejantes, margens sombrias
dos rios, floridos aparatos rústicos, alegres e fervorosos trabalhos de
agricultores, além das distantes vistas terrestres e marinhas, navios,
caças e tantos outros espetáculos igualmente festivos.

408

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Vida de Leonardo da Vinci,
de Giorgio Vasari 1
Tradução e notas: Fernanda Marinho

V
asari abre a terceira parte de sua série de biografias (a “ter-
ceira idade”) com a vida de Leonardo da Vinci (1452–1519).
Relata sua trajetória produtiva iniciada com o apoio forne-
cido pelo seu pai até a calorosa morte nos braços do rei da França.
Analisa obras que hoje em dia são muito conhecidas e outras de que
não temos mais notícias. A partir desta biografia, Vasari contribui
para a grande fama de Leonardo da Vinci como um dos maiores
artistas e inventores do Renascimento.

Os maiores dons chegam naturalmente aos homens através das


chuvas celestes, mas muitas vezes de maneira sobrenatural vemos
em uma só pessoa amontoarem-se beleza, graça e virtude de tal
maneira que, independentemente de qualquer coisa, todas as suas
ações serão tão divinas que superarão todos os homens, aproxi-
mando-se mais a uma dádiva de Deus do que à arte humana. Isto

1  Tradução da “Vida de Leonardo da Vinci, pintor e escultor florentino”. In:


VASARI, Giorgio. Le Vite di più eccellenti pittori, scultori e architettori, nelle
redazione del 1550 e 1568 (ed. Rosanna Bettarini e Paola Barocchi) Florença:
Studio per Edizione Scelte, 1966 – 1987.

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Tradução e notas: Fernanda Marinho

foi visto por todos em Leonardo da Vinci, no qual além da beleza


do corpo, nunca tão exaltada, havia a graça mais que infinita em
todas as suas ações; e sua virtude era tão grandiosa que mesmo as
coisas mais difíceis mostravam-se com facilidade absoluta. A sua
força foi muita e conjunta com a habilidade, ânimo e valor sem-
pre régio e magnífico. A fama do seu nome tanto se dissipou que
não apenas no seu tempo foi estimado, mas ainda permaneceu por
muito mais depois da sua morte. Verdadeiramente admirável e
divino foi Leonardo, filho do senhor Piero da Vinci; e na erudição
e princípios das letras teria feito grande benefício se não tivesse
sido tão variado e instável, pois se dispunha a aprender muitas
coisas, mas as começava e depois as abandonava.
Assim na aritmética, nos poucos meses que estudou, aprendeu
tanto, que apresentou contínuas dúvidas e dificuldades ao mestre
que o ensinava, muitas vezes confundindo-o. Deu certa atenção
à música e logo resolveu aprender a tocar a lira, e como aquele
que da natureza tinha o espírito mais elevado e cheio de harmo-
nia, tocou de improviso divinamente este instrumento. Todavia,
embora muitas coisas o interessassem, nunca deixou de desenhar
e de fazer relevo, pois eram as coisas que o agradavam mais que
qualquer outra. Visto isso e considerando a elevação daquela
mente, senhor Piero um dia tomou alguns de seus desenhos e os
levou a Andrea Verrocchio, que era muito seu amigo, e o ques-
tionou diretamente se Leonardo, dedicando-se ao desenho, teria
alguma utilidade. Admirado ao ver o grande talento de Leonardo,
Andrea sugeriu ao senhor Piero que o encorajasse a esta dedica-
ção, ordenando que fosse ao seu ateliê. Leonardo fez tudo com
muito prazer, e não apenas exercitou uma profissão, mas todas
aquelas onde o desenho intervinha. E possuindo um intelecto tão
divino e maravilhoso, e sendo muito bom geômetra, não traba-
lhou apenas com escultura, fazendo em terra cabeças femininas
sorridentes, que ainda servem de modelo em gesso, e cabeças de
anjos que pareciam saídos das mãos de um mestre, mas na arqui-
tetura fez também muitos desenhos de plantas e de outros edifí-

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Vida de Leonardo da Vinci, de Giorgio Vasari

cios, e foi o primeiro, ainda que jovem, a estudar o rio Arno para
transcorrê-lo de Pisa à Florença2.
Fez desenhos de moinhos, pisões, dispositivos que pudessem
mover-se pela força da água. E, escolhendo como profissão a pin-
tura, estudou muito como copiar do natural. Fez modelos de figu-
ras em argila e por cima deles colocava panos molhados e depois
com paciência os desenhava em tela de linho ou de pano usado, e
os trabalhava em preto e branco com a ponta do pincel, o que era
maravilhoso, como ainda pode-se ver em algumas que tenho de sua
autoria em nosso livro de desenho. Além destas, desenhou em papel
com tanta exatidão, que ninguém nunca se igualou a ele em tal refi-
namento, como na divina cabeça que executou com delicado estilo
o efeito do claro escuro. E naquela capacidade infusa de tanta graça
divina e de demonstração assim extraordinária, conciliada com seu
intelecto e memória e com a habilidade de desenhar, sabia assim tão
bem exprimir seu conceito que com a reflexão vencia e com a razão
perturbava cada mente vigorosa.
E todo dia fazia modelos e desenhos para poder desmoronar mon-
tanhas com facilidade, perfurando-as de um plano a outro através
de cabrestantes e roscas que levantavam e moviam grandes pesos,
assim como meios de turbinar a água para lugares necessitados, coi-
sas que este gênio nunca deixava de fantasiar. Estes planejamentos
e trabalhos estão em demasia entre nossa arte, mas eu não vi mui-
tos. Dedicou-se extensamente a um grupo de cordas executadas em
ordem, de uma ponta à outra, até que se enchesse um círculo, onde

2  Leonardo possui alguns estudos relativos ao desvio do rio Arno (como


aquele conservado na Royal Collection, datado de 1503). Tal projeto teve
apoio de Maquiavel, o que constata o viés político militar deste feito, justifi-
cado primeiramente pela guerra entre Pisa e Florença (como bem retratada na
Batalha de Anghiari, executada por Leonardo no Pallazo Vecchio de Florença),
uma vez que o corte da água dos pisanos facilitaria a rendição dos mesmos.
Outros motivos eram acrescidos a este, como o controle das enchentes e assim
um maior cuidado da agricultura. (Para mais informações a este respeito cfr.
MASTERS, Roger. Da Vinci e Maquiavel, um sonho renascentista. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1999).

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Tradução e notas: Fernanda Marinho

se vê uma acurada e bela estampa e no meio as seguintes palavras:


LEONARDUS VINCI ACCADEMIA.
E entre estes modelos e desenhos havia um, que diversas vezes
mostrou a muitos cidadãos habilidosos que naquele momento
governavam Florença, como uma maneira de construir o templo
de São Giovanni de Florença e implantar uma escada sem arruiná-
lo. Argumentou com tanta eloquência que até a sua partida fez que
acreditassem ser possível tal construção.
Era tão agradável na conversa que conquistava a todos, e mesmo
não possuindo nada e trabalhando pouco, manteve servos e cavalos,
pelos quais possuía admiração, e muitos outros animais, dos quais
cuidava com amor e paciência. Quando passava por lugares onde
se vendiam pássaros, retirava-os da gaiola, pagava o preço pedido e
deixava-os no ar a voar, restituindo-lhes sua liberdade perdida.
A natureza tanto o favoreceu que em quaisquer pensamentos
de sua mente mostrava incomparável divindade, vigor, vivacidade,
excelência, beleza e graça. Por inteligência artística não termi-
nou muitas coisas que começou, como se não pudesse alcançar a
perfeição das formas que imaginava criando tantas dificuldades
e concepções maravilhosas que suas mãos, por mais habilidosas
que fossem nunca as expressariam. Interessava-se por tantas coi-
sas, que envolvido pelos fenômenos naturais estudou a proprie-
dade das ervas, observou os movimentos dos céus, a órbita da lua
e o andamento do sol.
Como dito, Leonardo uniu-se a Andrea del Verrocchio na sua
infância através do senhor Piero, quando na pintura São Giovanni
batizando Cristo que seu mestre executava, inseriu um anjo e
algumas vestes3. E, mesmo sendo jovem, criou-o de tal maneira
que obteve mais destaque que as figuras de Andrea, o que fez este
último decidir nunca mais tocar nas cores, irritando-se com um
jovem que sabia mais do que ele.

3  Tal pintura foi executada entre 1472 e 1475 e hoje encontra-se na Galleria
degli Uffizi, em Florença.

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Vida de Leonardo da Vinci, de Giorgio Vasari

Foi-lhe encomendado um cartão de tapeçaria, em ouro e seda,


retratando a expulsão de Adão e Eva, para uma porta em Flandres
que foi enviada ao rei de Portugal. Trabalhou o pincel com claro e
escuro, irradiando de branco um campo de ervas infinitas e alguns
animais. Pode-se dizer que, certamente, em diligência e naturali-
dade nenhum divino intelecto possa igualar-se a este.
Há uma figueira, folhas e ramos executados com muito cui-
dado que a mente se deslumbra só de pensar como um homem
pode ter tanta paciência. Há também uma palmeira executada
cada dia com mais grandiosidade e maravilhosa arte, impossível
de se fazer se não fosse a paciência e a mente de Leonardo. Esta
obra não foi terminada e seu cartão se encontra hoje em Florença,
na afortunada casa do magnífico Ottaviano Medici, doado não
muito tempo depois pelo tio de Leonardo.
Diz-se que o senhor Piero da Vinci, quando estava em sua
cidade, foi procurado por um camponês que pediu que fosse pin-
tado em Florença um pedaço de madeira que havia cortado de
uma figueira de sua fazenda. Muito contente o consentiu, uma vez
que o camponês era muito habilidoso nas atividades de caça de
pássaros e pesca, exercícios dos quais Piero se ocupava grande-
mente. Conduziu, portanto, a madeira a Florença, e sem dizer a
Leonardo de quem era, pediu-lhe que pintasse alguma coisa sobre
a mesma. Leonardo um dia a tomou nas mãos e, percebendo sua
superfície grossa, mal trabalhada e áspera, colocou-a sobre o
fogo e em um torneador, e da sua aspereza e falta de acabamento
transformou-a em delicado e liso suporte. Depois de engessado e
arrumado a seu modo, começou a pensar no que poderia pintar,
representando a cabeça da Medusa, aterrorizando aqueles que a
olhassem. Levou a um quarto, ao qual apenas o próprio Leonardo
tinha acesso, com lagartos, folhas, grilos, serpente, borboletas,
gafanhotos, morcegos e outras estranhas espécies de semelhan-
tes animais. Transformou esta multiplicidade de animais em ape-
nas um, horripilante, monstruoso e venenoso. Saía de uma pedra
escura e quebrada, cuspia veneno da garganta aberta e soltava fogo

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Tradução e notas: Fernanda Marinho

dos olhos e fumaça do nariz. Era de tal maneira estranho, que


parecia algo verdadeiramente monstruoso e horrível. Penou tanto
ao executá-lo, que devido ao seu grande amor pela arte não perce-
beu naquele quarto o fedor dos animais muito cruelmente mortos.
Acabada esta obra, nem o camponês e nem seu pai perguntavam
mais por ela. Leonardo pediu a seu pai que, depois que a termi-
nasse, para sua comodidade a enviasse ao encomendante. Em uma
manhã, senhor Piero foi até o quarto para buscá-la, e, batendo
à porta, Leonardo a abriu pedindo que esperasse um pouco.
Retornou ao quarto acomodando a pintura à luz de sua estante e
à penumbra da janela; depois fez seu pai entrar para vê-la. Senhor
Piero, não sabendo o que esperar, subitamente assustou-se, não
acreditando que aquele fosse o mesmo pedaço de madeira, nem
aquilo que a pintura figurava. Dando um passo à frente, Leonardo
segura-o dizendo: “Esta obra tem este propósito. Tome-a e leve-a,
já que produziu a finalidade esperada”. Senhor Piero julgou a obra
mais que milagrosa e aprovou o caprichado discurso de Leonardo.
Senhor Piero comprou depois de um mercador um outro tondo
pintado com um coração flechado, e doou-o ao camponês, que
lhe agradecia sempre que o via. Em seguida, vendeu secretamente
o tondo de Leonardo em Florença a alguns mercadores por cem
ducados; este logo depois apareceu nas mãos do duque de Milão,
vendido por trezentos ducados pelos mercadores.
Leonardo depois pintou uma excelente Madona em um quadro
que logo pertenceu ao papa Clemente VII, e, dentre outras coisas
que criava, representou uma garrafa cheia de água com algumas
flores dentro, onde para além da maravilhosa vivacidade, havia imi-
tado o orvalho por cima da água de tal forma que ela parecia mais
viva que a própria vida. Para Antonio Segni, seu grande amigo, exe-
cutou Netuno4, tão bem desenhado e com tanto cuidado que pare-
cia vivo. Via-se o mar turbulento e seu carro puxado por cavalos-
marinhos, com fantasmas, baleias e algumas cabeças dos belíssimos

4  Desenho datado de 1504 e conservado na Royal Collection, de Londres.

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Vida de Leonardo da Vinci, de Giorgio Vasari

deuses marinhos. Este desenho foi doado pelo seu filho Fabio ao
mestre Giovanni Gaddi, com o seguinte epigrama:

VIRGÍLIO E HOMERO MOSTRARAM-NOS


AS DIREÇÕES DE NETUNO SEUS CAVALOS
ENTRE RUGIDOS NAS ÁGUAS DO OCEANO.

ESTES POETAS, ENTRETANTO, ENXERGAM-NO


COM OLHOS MENTAIS ENQUANTO QUE
LEONARDO, COM VISÃO REAL.

UMA VERDADE QUE SAÚDA VINCI


COMO VENCEDOR.

Teve a vontade de pintar em um quadro a óleo uma cabeça de


Medusa com o penteado de um agrupado de serpentes, a mais
estranha e extravagante invenção que nunca se pode imaginar; mas
por ser uma obra que levava tempo, permaneceu inacabada como
quase todas as suas obras. Esta é uma das coisas mais belas entre os
tesouros do palácio do duque Cosimo, junto com uma cabeça de
um anjo que estica o braço no ar, encurtado do ombro ao cotovelo,
enquanto o outro repousa sobre seu peito.
Era admirável como a mente de Leonardo, objetivando criar
relevo às coisas que inventava, procurava com as sombras escu-
ras encontrar a maior escuridão. Investigava as cores negras que
fizessem sombra e fossem as mais escuras de todas, para fazer
com que o claro, mediante o contraste, fosse o mais lúcido. E,
enfim, acabava desta maneira usando muita tinta, não utilizando
tons claros para contrastar a noite com a delicadeza da luz do dia:
mas tudo era com a intenção de obter maior relevo, de encontrar
o objetivo e a perfeição da arte.
Leonardo ficava tão encantado quando via feições bizarras, bar-
budos ou cabeludos, que teria seguido por mais de um dia inteiro
qualquer um que atraísse sua atenção. E gravava tais feições para

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Tradução e notas: Fernanda Marinho

quando chegasse em casa poder desenhá-las como se estivessem


presentes. Desta forma desenhou muitas cabeças de homens e
mulheres, e eu tenho muitos destes feitos à pluma no livro de dese-
nhos tantas vezes citado, como foi aquele de Américo Vespúcio,
que é uma cabeça belíssima, desenhada com carvão, e também
aquela de Scaramuccia, capitão de Zingani, que depois pertenceu
ao mestre Donato Valdanbrini de Arezzo, cânone de São Lourenço,
deixado a ele por Giambullari. Começou uma tela da Adoração dos
Magos5, que possui muitas coisas belas, principalmente as cabeças;
esta estava na casa de Américo Benci, do outro lado do pórtico dos
Peruzzi, a qual também deixou inacabada como outras obras suas.
Com a morte de Giovanne Galeazzo, duque de Milão, e a ascensão
de Lodovico Sforza no mesmo ano de 1494, Leonardo foi convidado
a tocar a lira em grande cerimônia em Milão a convite do duque, a
quem muito agradava o som. Levou seu instrumento, feito de prata
pelas suas próprias mãos, com o formato de uma cabeça de cavalo,
algo estranho e novo, para que a harmonia fosse mais alta e sonora,
tendo superado todos os músicos que participavam do concurso.
Além disso, era o melhor declamador de rimas de improviso
de seu tempo. Conhecendo, o duque, a admirável mente de
Leonardo, apaixonou-se pelas suas virtudes, que eram algo inacre-
ditável. Implorou-lhe que pintasse em um retábulo a Natividade6
que foi presenteada pelo duque ao imperador. Fez também em
Milão a Última Ceia7 para os frades de São Domênico e para a
Santa Maria delle Grazie. Esta última é belíssima e maravilhosa,

5  Pintura inacabada executada entre 1481 e 1482 e conservada hoje na Galleria


degli Uffizi, em Florença.
6  São conhecidos hoje estudos para a Natividade, conservados no Metropolitan
Museum of Art, de Nova York, sem datação específica. Consistem em uma
folha de desenhos que apresentam estreita familiaridade com a composição da
Virgem das Rochas, devido principalmente à figura ajoelhada de Maria e o gesto
de seus braços abertos.
7  Este é o famoso afresco do refeitório da Santa Maria delle Grazie, que já pas-
sou por diversas restaurações, tendo a última sido finalizada em 1999.

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Vida de Leonardo da Vinci, de Giorgio Vasari

e as cabeças dos apóstolos executadas com tanta majestade e


beleza que aquela de Cristo foi deixada inacabada, não acredi-
tando poder criar a divindade celeste que a imagem de Cristo
merece. Tal obra, deixada nestas condições, foi continuamente
venerada pelos milaneses e também por estrangeiros, uma vez
que Leonardo procurou representar o momento que os apóstolos
estavam ansiosos para descobrir quem entre eles havia traído seu
mestre. Vê-se em suas feições o amor, o medo e a ira, isto é, a dor
de não poder entender o pensamento de Cristo, em contrapar-
tida com a obstinação, o ódio e a traição de Judas. Cada detalhe
da obra mostra uma inacreditável diligência, até mesmo a toalha
é imitação de trabalho de tecido, de tal maneira que a renda de
verdade não poderia ser mais real.
Diz-se que o prior daquele lugar solicitava muito importuna-
mente que Leonardo terminasse a obra, parecendo-lhe estranho
vê-lo permanecer durante a metade do dia absorto em seus pen-
samentos. E havia desejado, como fazia com as obras esculpidas
no jardim, que ele nunca parasse o pincel. E não lhe bastando tal
pressão, recorreu ao duque, e tanto o instigou que foi obrigado a
recorrer a Leonardo e solicitar-lhe diretamente a obra, mostrando
com bons modos que fazia tudo pela vontade do prior. Leonardo,
conhecendo a inteligência discreta e sutil daquele príncipe (aquela
que nunca havia encontrado no prior), discorreu longamente com
o duque sobre tal obra. Argumentou sobre arte e o fez entender
como os gênios, quanto menos fazem, mais se empenham no tra-
balho, estudando as invenções e criando as mais perfeitas ideias,
exprimindo com as mãos aquilo que foi concebido no intelecto.
Disse ainda que lhe faltavam duas cabeças a serem feitas, a de
Cristo, que não gostaria de procurar na terra nenhum modelo,
e nem sua imaginação parecia poder conceber tal beleza e graça
celeste que deveria ter aquela Divindade encarnada. E faltava tam-
bém a cabeça de Judas, que era igualmente difícil, não acreditando
que pudesse imaginar uma forma de retratá-lo, pois depois de
tanto benefício recebido, traiu seu Senhor e o Criador do mundo.

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Tradução e notas: Fernanda Marinho

Mas, para esta segunda, pesquisaria menos e, caso nada achasse,


faria o rosto do indiscreto e inoportuno prior, o que fez o duque
rir e dizer que ele tinha mil razões para isso. E assim o pobre prior,
confuso, atendeu o pedido da obra do jardim e deixou Leonardo,
que terminou em paz a cabeça do Judas, fazendo-o parecer o ver-
dadeiro retrato da traição e crueldade. A de Cristo ficou, como dito,
inacabada. A nobreza dessa pintura, seja pela sua composição, seja
pelo seu acabamento de incomparável diligência, despertou no rei
da França a vontade de conduzi-la ao seu reino. Tentou de várias
formas fazer com que seus arquitetos a colocassem em moldura de
madeira e ferro, de forma que a pintura pudesse ser transportada
a salvo, sem considerar nenhum gasto, de tanto que ele a desejava.
Mas o fato de ter sido pintada na parede privou o rei de cumprir a
sua vontade, deixando a obra com os milaneses.
Retratou Ludovico e Maximiliano, seu irmão mais velho, no topo
do mesmo refeitório enquanto trabalhava na Última Ceia, onde há
uma Paixão à velha maneira. Do outro lado, a duquesa Beatriz com
Francesco, seu outro filho, que depois foram ambos duques de Milão,
são retratados divinamente. Enquanto fazia esta obra, propôs ao
duque esculpir um cavalo de bronze de maravilhosa grandeza para
deixar em memória da sua imagem. Mas começou a executá-la tão
enorme que nunca poderia concluí-la. Houve opiniões (como mui-
tas e diversas vezes por inveja maligna) que diziam que Leonardo,
como muitos de seus trabalhos, começou este sem a intenção de
terminá-lo, pois sendo tão colossal, teria inacreditável dificuldade
em transformá-lo em uma peça única. E tal juízo deve-se ao fato de
ter deixado diversas coisas inacabadas.
Mas podemos acreditar que seu grande e extraordinário talento
sofreu um teste pela sua ganância devido à incessante vontade de
alcançar excelência sobre excelência e perfeição sobre perfeição,
fazendo com que a finalização da obra fosse prorrogada para seguir
seu desejo, como dizia nosso Petrarca. Na verdade, aqueles que
viram o grande modelo que Leonardo fez em argila, dizem nunca

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Vida de Leonardo da Vinci, de Giorgio Vasari

terem visto coisa mais bela e mais soberba8. Tal obra durou até os
franceses chegarem em Milão com o rei da França Ludovico; estes
a destruíram por inteiro. Havia também um modelo pequeno de
cera, considerado perfeito, que, junto com um livro de anatomia de
cavalos feito para seu ateliê, foi perdido.
Posteriormente dedicou-se com afinco à anatomia humana, aju-
dando e sendo ajudado por Marco Antônio della Torre, um exce-
lente filósofo que ensinava em Pádua e escreveu sobre tal assunto.
E ouvi dizer que foi também, através da doutrina de Galeno, o pri-
meiro a ilustrar as coisas médicas e a dar verdadeira importância à
anatomia, até então mergulhada em obscura ignorância. E, neste
aspecto, estava muito bem servido com o trabalho e as mãos de
Leonardo, que fez um livro sobre anatomia em lápis vermelho e
delineado à pluma, gravado com suas mãos com grande maestria,
retratando todo o esqueleto, pondo em ordem os seus respectivos
nervos e músculos, o primeiro estruturado com ossos, os segun-
dos bem firmes e os terceiros em movimento. E, em diversas partes,
escreveu notas em estranhas letras, usando sua mão esquerda e da
direita para a esquerda, assim não poderia ser lido sem prática e
espelho.
Grande parte destes desenhos anatômicos são de autoria de
Francesco Melzi, nobre homem milanês, que era ainda uma criança
na época de Leonardo e que gostava muito dele. Sendo hoje um
homem belo e cortês, deixou como relíquia tais desenhos junto a
um retrato de Leonardo9. E a quem lê aqueles escritos parece impos-
sível que tal espírito divino fosse capaz de representar tão bem a arte,
músculos, nervos e veias, sempre de maneira tão exata.

8  O legado atual desta obra está reduzido a alguns estudos e manuscritos dei-
xados por Leonardo, como aquele hoje conservado na Royal Library, da coleção
Windsor, datado de 1488–1489, e uma miniatura em bronze datada de 1516–
1519 encontrada no Museu de Belas Artes de Budapeste.
9  Royal Library, Windsor. Data posterior a 1510.

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Tradução e notas: Fernanda Marinho

Também estão nas mãos de […]10, pintor milanês, alguns escritos


de Leonardo feitos de trás para frente, os quais tratam de pintura e
dos métodos de desenho e colorido. Não faz muito tempo que veio
a Florença me ver, desejando imprimir esta obra. Depois foi a Roma
para executá-la, mas não sei o que dela se fez depois.
Voltando às obras de Leonardo, o rei da França apareceu em Milão
quando lá estava, encomendando-lhe uma coisa curiosa. Leonardo
fez um leão que, ao caminhar, em poucos passos tinha seu peito
aberto onde se viam muitos lírios. Em Milão, Leonardo adotou Salai
como seu pupilo, o qual era cheio de graça e beleza, possuindo belos
cabelos cacheados que muito agradavam Leonardo. Ensinou-lhe
muitas coisas sobre arte, e alguns trabalhos que, em Milão, dizem
ser de Salai foram retocados por Leonardo. Retornou a Florença
onde encontrou os frades dos Servi que haviam encomendado a
Filippino a Anunciação para o retábulo do altar maior. Leonardo
disse que gostaria de executar tal obra e Filippino, sabendo desta
vontade, generosamente lhe cede a atividade. Os frades, desejando
que Leonardo a pintasse, levaram-no a sua casa, pagando todas as
suas despesas e da sua família. Eles os mantiveram assim por muito
tempo, mas o artista nunca iniciou nada.
Por fim, fez um cartão da Madona e Santa Ana com o Menino,
que agradou a todos os artistas. Quando o finalizou, durante dois
dias, homens e mulheres, jovens e velhos, aglomeraram-se para
vê-lo, parecendo uma festa solene para conhecer as maravilhas cria-
das por Leonardo que encantavam a todos. Na feição da Madona
nota-se tudo aquilo de simples e belo que pode, com simplicidade e
beleza, dar graça à mãe de Cristo, objetivando mostrar a modéstia
e humildade que há em uma Virgem alegre ao ver a beleza de seu
filho que com carinho segura entre os joelhos. Enquanto, com um
olhar sincero, aparece por baixo São João Batista criança brincando
com um carneiro, Santa Ana contentemente sorri ao ver seu des-

10  As reticências indicam uma possível falha do documento que impossibilita


a leitura do texto.

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Vida de Leonardo da Vinci, de Giorgio Vasari

cendente tornar-se divinamente celeste. Uma concepção da grande


mente de Leonardo. Este cartão, como veremos, foi levado depois à
França 11. Desenhou a Ginebra 12, esposa de Americo Benci, em um
lindo retrato e abandonou o trabalho dos padres, que recorreram
novamente a Filippino, que faleceu antes de poder terminá-lo.
Leonardo foi contratado para fazer um retrato de Mona Lisa13,
mulher de Francesco del Giocondo, e, depois de trabalhar nesta
obra por quatro anos, ainda a deixou inacabada. Hoje pertence ao
rei Francisco da França, em Fontainebleau. Este retrato é um extra-
ordinário exemplo de como a arte pode imitar a natureza, pois
podemos perceber nela todas as suas minúcias pictóricas. Os olhos
são brilhantes e lacrimejantes como vemos na vida real, um vívido
vermelho e cabelos os circundam da maneira mais sutil que se possa
imaginar. Os cílios não poderiam ser mais naturais pela maneira
que os cabelos crescem, uns mais grossos, outros mais ralos, de
acordo com os poros da pele. As narinas são as mais rosadas e
macias já vistas. A abertura da boca com seus cantos vermelhos e as
bochechas rosadas não parecem coloração, mas carne real. Olhando
intensamente sua garganta, poderíamos imaginar sua pulsação. Na
verdade, pode-se dizer que ela foi pintada de tal forma que afron-
taria e desestimularia qualquer outro artista. Mona Lisa era muito

11  Não se sabe ao certo a que obra Vasari se refere nesta passagem. Deste tema
e autoria restaram-nos duas obras, uma inacabada, ainda com tratamento grá-
fico (National Gallery, Londres, datada entre 1507 e 1508) e outra já mais fina-
lizada e colorida (Museu do Louvre, datada de 1510). Vasari menciona quatro
personagens, a Madona, sua mãe, o Menino e São João Batista, o que elimina-
ria a possibilidade de estar se referindo àquela do Louvre que retrata apenas
uma criança. No entanto, é justamente nesta que aparece o carneiro com o
qual São João Batista brinca, atributo extensamente relacionado a este santo.
Poderíamos considerar uma terceira obra, hoje talvez perdida, que aglomerasse
tais elementos descritos.
12  Conservada na National Gallery of Art de Washington e datada entre
1474 e 1476.
13  Datada entre 1503 e 1505 e conhecida também como La Gioconda, está
hoje no Museu do Louvre.

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Tradução e notas: Fernanda Marinho

bonita, e enquanto Leonardo a retratava estimulou que tocassem e


cantassem para ela, que bufões a mantivessem alegre para retirar
aquela melancolia que a pintura faz nos retratos. Esta figura apre-
senta um sorriso misterioso tão agradável que era mais divina que
humana e era considerada estupenda por não estar de fato viva.
A excelência das obras deste diviníssimo artista fez crescer a sua
fama de tal forma que todas as pessoas que se deleitavam com a arte, e
mesmo toda a cidade, desejavam que deixasse uma obra memorável.
Pensaram que pudesse executar algo grande e notavelmente decora-
tivo, que homenageasse e honrasse o público pelas características de
genialidade, graça e justiça que se conhecia de Leonardo. O golfalo-
niere e os grandes cidadãos julgaram e aconselharam a reconstrução
da grande sala do Concílio. Sob a direção de Giuliano da Sangallo,
Simone Pollaiuolo, dito Cronaca, Michelangelo Buonarroti e Baccio
d’Agnolo foi encarregada a Leonardo a execução de qualquer obra
bela, e assim, por Piero Soderini, agora golfaloniere da justiça, lhe
foi concedida esta sala. Leonardo começou desenhando um cartão
para a sala do Papa, em Santa Maria Novella, onde conta a história
de Niccolo Piccinino, capitão do duque Filippo de Milão, no qual
desenhou um grupo de cavalos que combatiam por um estandarte.
Um excelente trabalho de grande habilidade que foi admiravel-
mente reconhecido pela representação dos galopes, por não haver
outra obra que retrate melhor a raiva, a ira e a vingança nos homens
e cavalos. Entre estes últimos, dois ligados pelas patas dianteiras,
não se confrontam menos pelos dentes do que pelo cavalgar, ao
combaterem. Um soldado montado torce as costas e segura firme-
mente a haste do estandarte para arrancá-lo à força das mãos de
outros quatro, enquanto dois o defendem com uma mão e, com a
outra no ar, tentam cortar a haste com suas espadas. Um soldado
velho com um chapéu vermelho, gritando, tem uma das mãos sobre
a haste e, numa torção, levanta a outra num ímpeto de raiva para
arrancar as duas mãos daqueles que, com força, rangendo os dentes,
tentam com determinada atitude defender sua bandeira. No chão,
entre as patas do cavalo, vemos claramente duas figuras que lutam.

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Vida de Leonardo da Vinci, de Giorgio Vasari

Uma, deitada no chão, ergue o braço o quanto pode, com o máximo


de força, enquanto a outra está a apunhá-la. Outra, com as pernas e
braços cansados, faz o que pode para fugir da morte14.
Pode-se perceber como Leonardo desenhou as roupas dos sol-
dados de maneira variada, com elmos e outros ornamentos. Sem
mencionar a inacreditável maestria que apresenta nas formas
e fisionomias dos cavalos, os quais, devido à bravura, aos mús-
culos e à agradável beleza, executa melhor que qualquer outro
mestre. Diz-se que para desenhar este cartão criou um artificioso
sistema de andaimes de modo que, comprimindo-o, levantava-
se, e alargando-o, abaixava-se. Imaginando que poderia colorir o
muro a óleo, fez uma composição tão grossa para ser aderida na
parede que, quando continuou a pintar, começou a descolar de tal
maneira que logo abandonou esta pintura ao vê-la deteriorar-se.
Leonardo era muito espirituoso e muito generoso em todas suas
ações. Diz-se que quando foi ao banco para receber o pagamento
que Piero Soderini depositava todo mês, o caixa queria dar-lhe
pequenas moedas. Recusou a recebê-las, respondendo-lhe: “Eu
não sou pintor de moedas”. Percebendo que Piero Soderini o
havia enganado, com a ajuda de seus amigos coletou o dinheiro e
devolveu-lhe, mas Piero não quis aceitar.
Foi a Roma com o duque Giuliano de Medici na eleição do papa
Leão X, que estudou filosofia e especialmente alquimia. No cami-
nho produziu uma pasta de cera e com esta criou animais infláveis
que voavam quando eram assoprados e caiam na terra quando o

14  Tais descrições dizem respeito à Batalha de Anghiari pintada na Sala del
Consiglio do Palazzo Vecchio de Florença, retratando o combate entre floren-
tinos e pisanos. Michelangelo também havia iniciado, por volta de 1505, no
mesmo palácio, os estudos para a Batalha de Cascina (também inacabado). Da
obra de Leonardo não restaram muitos indícios, apenas alguns estudos gráfi-
cos hoje espalhados entre a Galleria degli Uffizi, em Florença; Royal Library,
Windsor; Museum of Fine Arts, de Budapeste; Galleria dell’Accademia, Veneza;
além de diversas cópias, sendo a mais conhecida aquela atribuída a Peter Paul
Rubens, conservada no Museu do Louvre e datada de c. 1603.

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Tradução e notas: Fernanda Marinho

ar acabava. Em um curioso lagarto encontrado por um vinicultor


de Belvedere, grudou escamas de outros lagartos mergulhadas em
um banho de prata, que o faziam tremer quando andava. Depois de
acrescentar-lhe olhos, chifre e barba, domesticou-o em uma caixa e,
ao mostrar aos seus amigos, fazia todos correrem de medo.
Costumava retirar a gordura e purgar as vísceras de um carneiro
castrado e as deixava tão finas que poderiam caber na palma da
mão. Em outro quarto guardou um par de assopradores artesanais
que encaixava na ponta de tais vísceras assoprando-as até que pre-
enchessem o quarto, que era grande, forçando aqueles que lá entras-
sem a se refugiar em um canto. Aquilo que antes ocupava tão pouco
lugar se expandiu pelo espaço, mostrando sua transparência com
tanto ar dentro. Fez infinitas loucuras como estas, estudou os espe-
lhos, e tentou desenvolver curiosos experimentos para encontrar
óleo para pintar e verniz para preservar a obra acabada.
Nesta época fez uma pequena pintura para M. Baldassare Turini
de Pecia, que era datário de Leão X, da Virgem com o Menino,
com muita diligência e arte. Mas, seja por culpa de quem pre-
parou a tela ou pelas suas inúmeras e caprichosas misturas de
preparação de telas e cores, hoje está muito danificado. Em outra
pintura retrata um pequeno rapaz belo e gracioso, que, assim
como a primeira, encontra-se em Pescia, com M. Giulio Turini.
Diz-se que assim que foi contratado pelo papa logo começou a
destilar óleo e ervas para fazer verniz, o que foi comentado pelo
papa Leão X: “Ai de mim! Este homem nunca vai fazer nada, pois
começa a pensar no final antes do começo”.
A incompatibilidade entre Leonardo e Michelangelo Buonarroti
era tão grande que este último, devido à concorrência, voltou para
Florença com a desculpa que o duque Giuliano o teria chamado em
nome do papa para trabalhar na fachada de São Lourenço. Quando
Leonardo soube disso foi para a França, onde o rei, ouvindo falar
de suas obras, muito entusiasmado pretendia que ele pintasse um
cartão da Santa Ana. Mas Leonardo, como de costume, por muito
tempo prometeu executá-lo antes de efetivamente o fazer.

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Vida de Leonardo da Vinci, de Giorgio Vasari

Finalmente, envelhecendo, permaneceu doente por muitos meses


e, percebendo-se perto da morte, procurou ocupar-se da fé católica
e da vida religiosa cristã. Depois de confessar e pagar suas peni-
tências, devotamente retirou o Santíssimo Sacramento da sua cama
com a ajuda dos seus amigos e servos que o carregavam pelos bra-
ços, já que não conseguia mais ficar em pé. Com a chegada do rei,
que sempre lhe fazia afáveis visitas, levantou-se da cama em sinal
de respeito e relatou as circunstâncias da sua doença, mostrando
o quanto havia ofendido Deus e os homens do mundo por não
ter operado a sua arte como se convinha. Ele foi atacado por um
forte espasmo, o mensageiro da morte, e então o rei levantou-se e
apoiou sua cabeça para ajudá-lo e aliviar sua dor. O divino espírito
de Leonardo, reconhecendo não poder ser mais honrado, morreu
nos braços do rei na idade de setenta e cinco anos15.
A perda de Leonardo foi motivo de tristeza a todos aqueles que
o conheceram pois nunca houve um homem que honrasse tanto a
pintura como ele. O esplendor da sua feição, que era belíssima, sere-
nava cada ânimo melancólico e sua eloquência era capaz de conven-
cer a todos de qualquer coisa. Sua força era tão violenta que com a
mão direita torcia um ferro de campainha de um portão e um ferro
de cavalo como se fosse chumbo.
Com a sua liberalidade acolhia seus amigos pobres e ricos, se
estes tivessem inteligência e virtude. Sua presença adornava e hon-
rava qualquer apartamento abandonado e vazio. Florença havia
recebido um grande presente com o nascimento de Leonardo e a
perda com a sua morte era imensurável. Adicionou à arte da pintura
uma maneira de colorir a óleo com certo escurecimento, que deu
aos modernos grande força e relevo às suas figuras. Na estatuária
provou sua habilidade em três figuras de bronze que estão sobre a
porta de São Giovanni, do lado norte. Estas foram executadas por

15  Jean Dominique Ingres se inspira nas anedotas vasarianas para retratar a
morte deste gênio, como podemos observar na pintura A Morte de Leonardo,
datada de 1818 e conservada no Museu Petit Palais, em Paris.

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Tradução e notas: Fernanda Marinho

Giovanni Francesco Rustici, mas sob a orientação de Leonardo, e


são as peças mais belas em desenho e perfeição que já se viu.
A Leonardo devemos a mais perfeita anatomia dos cavalos e dos
homens. Além destes seus excelentes dons, ainda que dominasse
mais as palavras do que a produção, o seu nome e fama nunca serão
esquecidos. O senhor Giovan Battista Strozzi em sua celebração disse:

VENCEU SOZINHO TODOS OS OUTROS, E


VENCEU FÍDIAS E VENCEU APELES E
TODA A SUA VITORIOSA TROPA16.

Foi discípulo de Leonardo o milanês Giovanantonio Boltraffio,


uma pessoa muito prática e perceptiva, que no ano de 1500 pintou
excelentemente na igreja da Misericórdia fora de Bolonha, em uma
tela a óleo, a Virgem com Menino nos braços, São João Batista, São
Sebastião nu e o patrono retratado ao natural e ajoelhado. Uma obra
verdadeiramente bela na qual se escreve seu nome como discípulo
de Leonardo. Este fez outras obras em Milão e em outros lugares,
mas basta ver esta assinada que é a melhor. E, semelhantemente, tra-
balhou Marco d’Oggiono, que em Santa Maria della Pace executou o
Trânsito da Nossa Senhora e os Esponsais de Cana Galileas.

16  Na versão italiana – VINCE COSTUI PUR SOLO TUTTI ALTRI, E


VINCE FIDIA E VINCE APELLE E TUTTO IL LOR VITTORIOSO STUOLO
– Vasari cria um jogo de palavras com o verbo vincere, vencer, e o nome de
Leonardo da Vinci.

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Dürer e a Antiguidade
Italiana, de Aby Warburg 1
Tradução e notas: Claudia Valladão de Mattos

N
ascido em 1866 como filho primogênito de um rico ban-
queiro judeu alemão de Hamburgo, Warburg é agora prin-
cipalmente lembrado como o idealizador e fundador da
importante Biblioteca Warburg, hoje sediada em Londres, e como
mentor da assim chamada “Escola de Warburg”, vinculada às ativi-
dades daquela biblioteca, que inclui importantes nomes da história
da arte, como Erwin Panofsky, Fritz Saxl, Edgard Wind, Gombrich,
Frances Yates, entre outros. Dedicou a maior parte de sua carreira
a investigações sobre o Renascimento europeu, dando contribui-
ções de grande importância para o campo. Contrapondo-se a abor-
dagens estritamente formalistas nascidas do círculo da “Escola de
Viena”, Warburg insistia na importância de compreender a obra de
arte como um testemunho da cultura, analisando-a em conjunto
com outros documentos de época. Nesse sentido, Warburg é tam-
bém considerado o pai do método iconológico.
Warburg considerava-se um historiador da cultura e não um
historiador da arte. Concentrou seus esforços na compreensão
do destino cultural das imagens e não apenas na investigação da
“alta arte”. Nesse contexto, seu foco principal foram as formas de
sobrevivência e circulação das imagens entre diferentes épocas e

1  Tradução realizada a partir do original em Wuttke, Dieter (org.) e


Warburg, Aby. Ausgewählt Schriften und Würdigungen. Baden-Baden: Verlag
Valentin Koerner, 1992, pp. 125–130.

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Tradução e notas: Claudia Valladão de Mattos

culturas. Para Warburg, a recepção da cultura clássica durante os


séculos XV e XVI em diversos países europeus tornou-se um labo-
ratório para o estudo da imagem como transmissora de memória
cultural. O célebre conceito de Pathosformel (fórmula de pathos)
foi por ele cunhado, por exemplo, para explicar a sobrevivência
de imagens — e de seu conteúdo patético — provindas da cultura
greco-romana no primeiro Renascimento. Tais fenômenos foram
posteriormente tratados de forma mais universal em seu último
projeto denominado Atlas Mnemosyne, que infelizmente perma-
neceu inacabado devido à sua morte em 1929.
Com suas pesquisas, Warburg deu ainda importantes contribui-
ções para uma antropologia da imagem. Especialmente em seu texto
“O Ritual da Serpente” — um ritual que ele assistiu por ocasião de
sua visita aos índios Hopi na região do Novo México nos Estados
Unidos — ele esboça uma teoria sobre a origem e função antropo-
lógicas das imagens, que ainda pode ser consideradas de interesse.
Contribuiu para esta “guinada” em direção à Antropologia sua pró-
pria experiência de loucura, entre os anos de 1918 e 1923, quando
permaneceu internado na clínica psiquiátrica de Kreuzlingen, sob
os cuidados de Ludwig Binswanger, o criador da Gestalt.
Nas últimas décadas, os estudos de Aby Warburg no campo das
imagens tornaram-se uma fonte valiosa de renovação teórico-meto-
dológica para a disciplina da História da Arte.

O Kunsthalle de Hamburgo guarda dentre seus tesouros de dese-


nhos e gravuras antigas duas famosas representações da morte de
Orfeu: um desenho de Albrecht Dürer datado do ano de 1494, e uma
gravura anônima, do círculo de Mantegna, até hoje só conhecida
por esse único exemplar, que serviu de ponto de partida para Dürer.
O fato fortuito de ambas pertencerem à coleção de Hamburgo não
teria me levado a transformar essas duas gravuras, das quais tam-
bém devo entregar cópias sob encomenda ao comitê local, no ponto

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Dürer e a Antiguidade Italiana, de Aby Warburg

de partida de uma palestra2. Para tanto, foi decisiva a certeza de que


essas duas obras ainda não foram devidamente investigadas como
peças de documentação da história do reingresso do Antigo na cul-
tura moderna, na medida em que elas revelam uma influência dupla,
mas ainda não percebida, do Antigo sobre o desenvolvimento do
estilo do primeiro Renascimento.
Devido à ainda influente doutrina clássica e unilateral da
“Grandeza quieta” na Antiguidade, que se desvia de uma observação
profunda do material, deixou-se até agora de ressaltar quão clara-
mente a gravura e o desenho apontam para o fato que, já na segunda
metade do século XV, os artistas italianos buscavam no tesouro de
formas redescobertas no Antigo, tanto modelos para uma mímica
de pathos acentuado, quanto para um silêncio clássico idealizante.
Em favor dessa perspectiva mais ampla, pareceu-me adequado
comentar a Morte de Orfeu do ponto de vista da História da Arte,
diante de uma reunião de filólogos e acadêmicos, para quem a per-
gunta sobre a “Influência do Antigo” nada perdeu em importância
desde os dias do Renascimento.
A Morte de Orfeu nos fornece, sob várias perspectivas, um ponto
de partida seguro para a visualização da influência dessa corrente
patética no redespertar do Antigo. Primeiramente, ela permite, o
que até agora não foi notado, comprovar que a Morte de Orfeu,
tal como aparece na gravura italiana, de fato deve ser vista como
estando repleta do verdadeiro espírito da antiguidade, pois a com-
posição remonta sem a menor dúvida a uma obra antiga perdida,
como a comparação com figuras de vasos gregos que representam
a morte de Orfeu ou a morte de Pentheus, nos ensina (comparar

2  A Morte de Orfeu: Imagens referentes à palestra sobre Dürer e a antiguidade


Italiana. Aos membros da sessão arqueológica (…) entregue por A. Warburg, 3
imagens em formato grande. Exemplares estão ainda à disposição dos colegas
de área. A palestra deverá ser ampliada para incorporar-se a um livro sobre os
inícios da pintura secular autônoma no século XV, ainda a ser publicado (N. da
T.: esta e as demais notas do texto são de autoria de Aby Warburg).

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Tradução e notas: Claudia Valladão de Mattos

com Il. I, fig. 1, 2, 33, cf. Roscher, M.L. Orpheus fig. 10 e 11). A
linguagem facial tipicamente patética da arte antiga, característica
das mesmas cenas trágicas na Grécia, intervém aqui construindo o
estilo de forma não mediada.
O mesmo processo pode ser observado em um desenho do cír-
culo de Pollaiuolo em Turim, para o qual o Prof. Robert me chamou
a atenção: um homem que coloca seu pé sobre o ombro de seu ini-
migo rendido, segurando-o pelo braço, foi claramente modelado no
agave, tal como ele aparece em sua loucura dionisíaca, dilacerando
seu filho Pentheus, em um sarcófago em Pisa. Também outras obras
totalmente diferentes, contendo o tema da morte de Orfeu, como,
por exemplo, o caderno de esboços do norte da Itália (pertencente ao
Lorde Roseberry), o prato de Orfeu, na coleção Correr, uma meda-
lha no Museu de Berlin e um desenho (Giulio Romano?) no Louvre
mostram de forma quase uníssona, com que força vital essa fórmula
do pathos (Pathosformel), arqueologicamente fiel às representações
de Orfeu ou Pentheus, se naturalizou em círculos artísticos. Isso é
acima de tudo comprovado pela xilogravura que integra a edição
veneziana de Ovídio, datada de 1497, que acompanha a narrativa
dramática de Ovídio sobre o fim trágico do cantor, uma vez que essa
ilustração, talvez em uma referência direta à gravura norte-italiana,
remonta ao mesmo original antigo que parece até mesmo ter sido
conhecido em sua versão completa — ver aquele com a Mênade
vista de frente. Aqui ressoa na imagem a voz do verdadeiro Antigo,
familiar ao Renascimento, pois o fato de que a morte de Orfeu não
era simplesmente um motivo de ateliê interessante e puramente for-
mal, mas sim uma experiência apaixonada e compreensiva, sentida
de acordo com o espírito e as palavras pagãs de tempos remotos,
vindos dos obscuros jogos de mistério das profecias dionisíacas,
pode ser comprovado pelos primeiros dramas italianos de Poliziano,
como seu Orfeu, expresso em forma ovidiana, que teve estreia em

3  N. da T.: essa numeração, assim como a seguinte, faz referência às imagens


apresentadas por Warburg em sua comunicação.

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Dürer e a Antiguidade Italiana, de Aby Warburg

Mântua em 1472. Em função disso, a Morte de Orfeu ganha acento


enérgico, pois esse teatro-dança trágico que foi a primeira obra do
famoso erudito florentino apresentou o sofrimento de Orfeu incor-
porado, sem mediação, falando de forma penetrante e em harmonia
com a sua própria língua italiana, diante da consciência da socie-
dade renascentista de Mântua, a mesma que teve sob os olhos a
Morte de Orfeu daquele gravador anônimo. Mântua e Florença se
encontram aqui em suas tentativas de incorporar a fórmula auten-
ticamente antiga da expressão intensificada dos corpos, ou da alma,
no estilo renascentista da figura viva em movimento. Os florenti-
nos, sob influência de Poliziano, foram capazes então de alcançar,
em arte e em poesia, um estilo misto, entre a observação realista
da natureza e uma dependência idealista de modelos antigos, como
demonstram as obras de Botticelli e, acima de tudo, alguns cas-
soni nupciais de Jacopo del Sellaio com representações da lenda de
Orfeu. Ao contrário, Antonio Pollaiuolo criou para si, no espírito
de Donatello, um estilo mais unitário e antiquizante, através de sua
retórica de músculos mais que vivazes que se anunciam em corpos
nus em movimento. Entre a movimentação delicada de Poliziano e
o maneirismo veemente de Pollaiuolo, encontra-se o pathos teatral
heroico, com o qual as figuras antigas de Mantegna se apresentam.
Mantegna e Pollaiuolo tornaram-se modelos para Dürer, ao
mesmo tempo em que a Morte de Orfeu . Em 1494, ele copiou o
Bacanal com Sileno e a assim chamada Batalha dos Tritões, de
Mantegna, e desenhou, em 1495, dois homens nus raptando mulhe-
res, que sem dúvida derivavam de um modelo perdido de Antonio
Pollaiuolo. Essas quatro obras em papel, cheias de pathos, dos anos
entre 1494 e 1495, ganham um significado importante para a visão
de Dürer sobre a Antiguidade pagã, pois ele realizou em detalhe,
a partir desses modelos, cada uma das figuras que aparecem em
uma de suas primeiras gravuras de tema mitológico, que é falsa-
mente chamada de Hércules. Talvez uma versão humanista da lenda
de Zeus e Antíope seja a referência, porém o mais acertado parece
ser o velho título dado por Bartsch: A inveja, uma vez que Dürer

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Tradução e notas: Claudia Valladão de Mattos

queria antes de tudo apresentar uma imagem de temperamento


antiquizante, e, em consonância com os italianos, acatar a primazia
dos antigos na representação da vida através de uma mímica exal-
tada. Daí originava-se também aquela vivacidade afetada de uma
das primeiras xilogravuras mitológicas de Dürer, representando a
ira de Hércules. Desde 1460, quando os Pollaiuoli representaram
os feitos de Hércules em grandes telas, como decoração de parede
no palácio dos Medici, Hércules tornou-se um símbolo idealizado
de um sobre-humano desagrilhoado. Por esse mesmo motivo, um
Hércules de Pollaiuolo encontrou seu caminho como modelo para o
quadro a óleo Hércules e a Harpia de Dürer, em Nürenberg.
Ainda que na gravura Inveja nenhuma das figuras seja uma cria-
ção original de Dürer, ela continua sendo, em um sentido mais ele-
vado, uma criação de Dürer; pois mesmo que a angústia estética
moderna de independência do indivíduo fosse para ele distante, e
nenhuma vaidade artística o impedisse de apropriar-se da herança
do passado, ele de fato opôs à vivacidade pagã do sul, a resistên-
cia instintiva de uma serenidade típica de sua Nüremberg nativa,
o que dá às suas figuras de gesticulações antiquizantes, como um
sobre-tom de tranquila força de resistência.
Mas, igualmente através da mediação italiana, a Antiguidade
veio ampará-lo, não apenas incitada pelo dionisíaco, mas também
clarificada pelo apolíneo: o Apolo Belvedere pairava diante de seus
olhos quando ele buscava a proporção ideal do corpo humano e
ele comparava a natureza verdadeira às proporções de Vitrúvio.
Dürer apegou-se durante sua vida a essa meditação fáustica sobre
as proporções. Por outro lado, ele não encontrava mais nenhum
prazer naquele maneirismo de movimento barroco antigo. Quando
esteve em Veneza em 1506, os italianos não consideraram sua obra
“na maneira antiga” sendo “ruim” por esse motivo. Que os venezia-
nos mais jovens, no mesmo ano em que Leonardo e Michelangelo
canonizavam o pathos heróico de luta, achassem uma figura como
a Grande Fortuna uma tentativa incipiente e essencialmente estra-
nha ao espírito do que eles consideravam ser o Antigo, é-nos mais

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Dürer e a Antiguidade Italiana, de Aby Warburg

compreensível do que deve ter sido para Dürer, que não só tinha
precisamente construído esta figura usando medidas vitruvianas,
mas também — um fato assombroso descoberto por Giehlow4 —
tinha ilustrado, através da figura de Nêmesis, um poema latino de
Poliziano em todos os seus detalhes.
Porém, aquilo que fazia falta aos italianos, o pathos decorativo,
isso Dürer não queria mais, de forma consciente. Assim escla-
rece-se também aquela passagem na mesma carta de Dürer acima
citada: “e a coisa que me agradava tanto há onze anos, não me
agrada mais agora. E se eu mesmo não a tivesse visto, não teria
acreditado em ninguém”. Em minha opinião, que fundamentarei
de forma mais completa adiante, a coisa há onze anos tinha sido
aquela série de gravuras italianas de pathos, que ele tinha copiado
em 1494/95, acreditando que fosse a verdadeira maneira antiga
da grande arte pagã.
Dürer pertencia, certamente, aos combatentes daquela linguagem
gestual barroca à qual a arte italiana se impelia desde meados do
século XV, pois se vê falsamente na escavação do Laocoonte em 1506
uma causa para o início do estilo barroco romano do grande gesto.
A descoberta do Laocoonte é na verdade apenas o sintoma externo
de um processo internamente condicionado da história dos estilos,
encontrando-se no ápice e não no início da “degeneração barroca”.
Achou-se apenas o que há muito se procurava no Antigo e por esse
motivo se encontrou: a forma trágica, sublimemente estilizada, para
expressões miméticas e fisionômicas extremas. Assim, por exemplo,
— para lançar mão de apenas um exemplo desconhecido e surpre-
endente — Antonio Pollaiuoilo usou como modelo para a expres-
são agitada da figura de um David (no escudo de couro pintado
em Locko Park), até nos mínimos detalhes movimentados de suas
formas acessórias, uma obra autenticamente antiga: o pedagogo dos
filhos de Niobe. E em 1488, quando uma pequena cópia do grupo

4  [Poliziano e Dürer] Mitteilung der Gesellschaft für vervielfältigende Kunst


(1902), 25ff.

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Tradução e notas: Claudia Valladão de Mattos

do Laocoonte foi encontrada durante uma escavação noturna em


Roma5, os descobridores admiraram, em claro e espontâneo entu-
siasmo artístico, sem nem mesmo tomar conhecimento do conte-
údo mitológico, a impactante expressão de sofrimento das figuras e
“certos gestos maravilhosos” (certi gesti mirabili). Era o latim vulgar
da linguagem gestual patética, que se entendia internacionalmente
e em toda a parte com o coração, onde se tratava de romper com as
amarras das formas de expressão medievais.
As Imagens sobre a morte de Orfeu devem ser vistas como achados
iniciais das primeiras escavações dessa via de muitas etapas, na qual
as migrações dos superlativos do gesto antigo, passando de Atenas
a Roma, Mântua e Florença, chegaram a Nüremberg, onde foram
recebidas pelo espírito de Dürer. Dürer respondeu de forma diversa,
em momentos diferentes, a essa antiga retórica migrante. A psico-
logia do estilo não é o tipo de questão que pode ser enquadrada
usando, no espírito da antiga história das políticas de guerra, as
categorias de “ganhador ou perdedor”. Através desse tipo de fórmula
conclusiva pouco satisfatória, um diletantismo dedicado ao culto
do herói poderá abdicar dos fastidiosos estudos particulares sobre
relações de dependência entre grandes indivíduos, mas desse modo
lhe escapará por certo o problema da história dos estilos, de grande
alcance e praticamente não formulado até agora, de um intercâmbio
da cultura artística entre presente e passado, entre o norte e o sul,
no século XV. Esse procedimento não só permite que se tenha uma
compreensão mais clara do primeiro Renascimento como campo
geral da história da cultura europeia, mas ele também revela alguns
acontecimentos até hoje não valorizados que permitem um escla-
recimento amplo dos processos de circulação nas trocas de formas
expressivas na arte.

5  Ver Burchart, Jacob, Beiträge, 351 [in Gesamtausgabe 12:349f.]

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Glossário

Leidiane Carvalho1

1  Esse glossário, redigido por Leidiane Carvalho sob a coordenação de Maria


Berbara, contou com a colaboração de alguns dos autores dos ensaios – princi-
palmente Letícia Martins de Andrade – em entradas pontuais.

Academia Afresco
Instituição ou associação destinada Técnica de pintura utilizada em pare-
à formação do artista em seu ofício. des e tetos, em geral para formar pai-
Embora o termo tenha sido empre- néis. Consiste na aplicação de tinta
gado já no Quatrocentos para descre- sobre a superfície do emboço ainda
ver encontros literários, a partir do úmido, possibilitando sua penetra-
século XVI passa a designar corpo- ção na base.
rações que incluem o ensino intelec-
tual, e não exclusivamente manual, Água-forte
do artista (a Academia de Desenho Termo utilizado para designar o
de Florença, capitaneada por Giorgio ácido (atualmente chamado nítrico)
Vasari e formalmente constituída em diluído em água utilizado para gra-
1563, é considerada a primeira delas). var chapas de metal (ferro, cobre,
A partir do século XVII, o conceito latão ou zinco) que geram matrizes
acadêmico chega à França, Espanha e de gravura. Com o tempo, passou a
Países Baixos; na França de Luís XIV, designar a própria gravura feita com
torna-se parte integral do aparato do esta matriz.
estado. No século XX, o termo conti-
nuaria sendo utilizado para denomi- Água-tinta
nar escolas de arte; sobretudo a partir Técnica de gravura que consiste em
do modernismo, contudo, passa a refe- produzir a matriz a partir de pro-
rir-se à arte conservadora que se pro- cessos químicos que criam uma tex-
duzia neste tipo de instituição – por tura, a qual gera, ao invés de linhas,
oposição às vanguardas – assumindo regiões tonais para criar áreas de
então uma conotação pejorativa. sombreamento.

435

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Alegoria

Alegoria Para o filósofo, o apolíneo e o dioni-


Em seu sentido genérico, imagem ou síaco são conceitos antitéticos, mas
figura retórica que permite significar de uma espécie dialética necessária
um conceito moral, ideal ou religioso à existência de todos os homens.
metaforicamente, isso é, através de Apolíneo, portanto, diz-se do cará-
símbolos que expressem generaliza- ter onírico da condição humana; é
ções relativas a esses conceitos. No força que se projeta nas imagens e
campo da história da arte renascen- nas formas. Em seu grande poder
tista, as alegorias frequentemente se de visão, dá contornos precisos às
manifestam em personificações. formas, dotando-as de individuali-
dade. Apolo é luz, o princípio que
All’antica cria ordem, que da fragmentação é
À maneira dos antigos. Uso de voca- capaz de unir; é aquele que dá visão
bulário antiquizante na criação de àquilo que era cegueira. É o deus da
pinturas, esculturas ou edifícios; imi- harmonia, da simetria, da sereni-
tação de obras da antiguidade clás- dade, da clareza, da justa medida,
sica como modelos de perfeição, ou da finitude, da lucidez. Dioniso, seu
retomada dos mitos antigos na narra- oposto, é o deus da embriaguez. É o
tiva pictórica. nome grego para o êxtase. É o deus
do caos, da contradição, da desme-
Antigualhas sura, da disformidade, da noite, da
Segundo aquele que é considerado o música – mãe de todas as artes, para
primeiro dicionário de português, o Nietzsche. É um deus passional, que
“Vocabulário portuguez” (1712-1728), tem o sistema afetivo intensificado
de Raphael Bluteau, “Cousa que nos e os meios de expressão descarre-
ficou dos antigos”. Quando Francisco gados, que abole a subjetividade, e,
de Holanda emprega o termo, refere- assim, insere o homem, simultane-
se aos edifícios e ruínas encontrados amente, no mundo da harmonia e
em Roma e constantemente visitados da desarmonia, do prazer e da dor,
por artistas estrangeiros na Itália ou da construção e destruição, da vida
mesmo por aqueles não criados no e da morte.
então considerado centro da arte em
território europeu. Como Bluteau Aquarela
cita no mesmo verbete em latim Técnica de pintura que consiste na
– “antiquitatis monumenta” – anti- mistura de pigmentos com água sobre
gualha e monumento (ou memória) papel aplicada em velaturas transpa-
estão diretamente relacionados. rentes, aproveitando a superfície clara
do suporte. É largamente utilizada
Apolíneo/Dionisíaco para registros rápidos e estudos, por-
Termos de uma oposição central que não permitia correções ou grande
estudada por Friedrich Nietzsche, detalhamento. Albrecht Dürer, porém,
que toma como referência as divin- empregará este recurso para seus estu-
dades superiores da Antiguidade dos de botânica e zoologia e neles con-
grega: Apolo e Dioniso (ou Dionísio). seguirá obter detalhes minuciosos.

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Cartão

Arcaico em Roma, projetado Gian Lorenzo


Termo utilizado para denominar Bernini e construído entre 1624 e
período histórico, civilização ou 1633, guarda o túmulo de São Pedro
expressão artística antigos. Em histó- e é um dos mais importantes da his-
ria e história da arte, frequentemente tória da arquitetura.
se refere a um período específico,
identificável de acordo com o con- Bossagem
texto (por exemplo, no contexto da Parte saliente de pedra bruta ou
arte antiga grega). talhada, deixada propositadamente
numa parede ou numa coluna para
Arco servir de suporte a uma escultura ou
Elemento arquitetônico de forma simplesmente, como ornamento.
curva, que oferece sustentação para
portais e vãos, surgido no período Bottega
romano e adaptado durante os mais Ateliê, oficina.
diversos momentos históricos.
Braça
Atributo A braccia é uma unidade de medida
Objeto simbólico convencionalmente de comprimento, variável entre 58cm
usado para identificar uma persona- e 68cm, usada sobretudo na Itália
lidade em particular, sejam santos centro setentrional. Ainda havia a
católicos ou deuses greco-romanos. possibilidade de variações regionais,
No caso de santos mártires, os atri- como a braccia mantuana.
butos costumam estar vinculados à
natureza de seu martírio. Capitel
parte superior de sustentação das
Balaustrada colunas arquitetônicas. Dependendo
Conjunto de balaústres. da ordem clássica à qual possa per-
tencer, obedece aos cânones desta
Balaústre ordem, os quais denunciam a utili-
Pequeno pilar que, junto de outros dade da construção à qual pertencem.
iguais, sustenta um peitoril ou
corrimão. Cartão
Papel espesso no qual é feito o dese-
Baldaquino nho da figura que será pintada em
Dossel sustentado por colunas utili- um painel ou afresco. O desenho é
zado para adornar tronos ou leitos. perfurado em seus contornos e, ao ser
Estes costumam ser acompanhados posicionado no local correto, é pul-
de cortinas. Em arquitetura, é um verizado com carvão para que deixe
arremate ou uma obra escultórica o esboço da figura gravado na parede.
suspensa por colunas que resguarda Um dos cartões mais importantes
um altar, um trono, um retábulo, um no âmbito da história da arte renas-
portal, uma escultura, etc. O bal- centista é o da Batalha de Cascina
daquino da Basílica de São Pedro, (1504), de Michelangelo, que, ape-

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Claro-escuro

sar de nunca ter chegado a tornar-se pela primeira vez empregado pelo
pintura efetivamente, foi inspiração e jurista alemão Johann Stephan
base de estudo para diversos pintores Pütter nos anos 1760 para definir
de seu tempo e após. tanto a reação católica militar, polí-
tica e ideológica ao luteranismo
Claro-escuro quanto o arco temporal compre-
Estratégia inovadora cuja invenção endido entre a paz de Augsburgo
é atribuída ao artista Leonardo da (1555) e o fim da guerra dos trinta
Vinci, o claro-escuro ou chiaros- anos (1648). Em 1946, Hubert
curo é uma técnica pictórica que faz Jedin redefiniu o termo – dife-
uso do contraste entre luz e sombra renciando-o de Reforma Católica
na representação de uma imagem, – como a série de medidas toma-
produzindo um efeito de volume das pela igreja católica a partir dos
gerado, em objetos reais, pela inci- anos 1550, notadamente com os
dência da luz sobre eles. O efeito decretos doutrinais contra o pro-
também pode ser obtido em escul- testantismo formulados durante o
tura (e em baixo ou alto-relevo) pela Concílio de Trento. A sessão final
incidência de luzes e sombras nas do Concílio enfatizou o caráter
reentrâncias da figura. didático e decoroso da arte: o artista
deveria preferir estabelecer parale-
Coluna salomônica los mais entre o Antigo e o Novo
Coluna torsa ou espiralada que pode Testamento do que com a tradição
estar relacionada tanto a um fitomor- clássica, e suas obras devem repre-
fismo que imita os movimentos orgâ- sentar cenas de forte apelo emocio-
nicos dos elementos naturais quanto nal. As pinturas deveriam ater-se
à alusão aos diversos simbolismos às histórias bíblicas tradicionais
da serpente enroscada. Geralmente evitando ornamentos demasiados
possui motivos decorativos atrelados e detalhes muito imaginativos. Por
às videiras, como as uvas, as folhas outro lado, a fim de evitar confu-
e seus colhedores, que no Antigo são, era preciso ater-se aos atribu-
Testamento simbolizam a fertilidade tos convencionais: anjos deviam
da terra prometida. ter sempre asas; santos, suas auréo-
las e respectivos atributos; e Cristo
Condottiero (ou condottiere) deveria aparecer sempre com seus
Comandante militar, frequentemente estigmas. O termo Contrarreforma
de tropas mercenárias. é empregado com extrema cautela
atualmente; seus diversos detra-
Contrarreforma tores questionam a existência de
A Contrarreforma é o nome dado à um movimento geral organizado
reação da Igreja Católica à Reforma pela igreja como reação à reforma
Protestante, cujo início costuma-se protestante; aponta-se, ainda, que
identificar com a publicação das propostas de reforma no âmbito do
Noventa e Cinco Teses de Lutero em catolicismo precedem a publicação
1517. O termo Gegenreformation é das Noventa e Cinco Teses.

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Écfrase

Contraposto caráter, sexo, idade, assim como com


posicionamento das figuras repre- a situação em que se fazia o retrato,
sentadas em escultura ou pintura ou seja, a narrativa envolvida, e o
na qual um dos joelhos fica parcial- local onde este se instalaria. Durante
mente dobrado, mantendo o apoio da a Contrarreforma, o termo associa-se
figura todo em apenas uma das per- com frequência à ideia de uma con-
nas, resultando em que os quadris, os formidade estrita entre as escrituras
ombros e a cabeça ficam voltados em e os temas retratados, assim como de
direções diferentes. probidade e decência.

Cúpula Disegno
Teto abobadado em forma de semi- O termo italiano disegno abrange um
círculo sustentado por arcos, o qual significado mais amplo e diversifi-
recobre prédios cuja planta é circular cado do que a sua tradução desenho,
ou poligonal plana. em português, ou mesmo drawing,
em inglês. Subentende não apenas
Dionisíaco o ato de desenhar, a prática grá-
Ver Apolíneo/Dionisíaco. fica como técnica artística ou como
esboço de um trabalho a ser desen-
Díptico volvido, mas se relaciona também
pintura em dois painéis com imagens à prática intelectual de concepção
relacionadas que, por convenção, criadora do artista. Vasari, em suas
devem ser expostas em dupla para Vidas, define-o como o pai das três
que seu sentido seja completo. Pode artes (arquitetura, escultura e pin-
fechar-se como um livro. Ver tam- tura), uma vez que seria a construção
bém Políptico e Tríptico. cognitiva de um conceito, um juízo
extraído da natureza às artes.
Decoro
Princípio de adequação segundo o Di sotto in su
qual, nas artes visuais, a composição, Literalmente, de baixo para cima.
a localização e os atributos dos per- Refere-se à pintura em que o obser-
sonagens representados devem ser vador tem a ilusão de estar posicio-
estritamente controlados. Alberti, nado abaixo da cena representada.
nos anos 1430, enfatiza a relação
estreita entre retórica e teoria da arte Écfrase
propondo que cada figura represen- Do grego ekphraseis (latim: descrip-
tada em uma pintura narrativa pos- tio). Dispositivo retórico através do
sua características concordes com qual se busca que uma descrição
sua forma e comportamento na lite- vívida de um determinado objeto
ratura. No caso de personagens espe- ou tema seja capaz de colocá-lo
cíficos, o pintor renascentista deveria diante do “olho mental” do ouvinte.
compreender a necessidade de cor- Em relação a obras de arte, a écfrase
respondência entre a figura pintada busca recriar tanto a impressão visual
com o retratado – sua posição social, quanto a resposta emocional evo-

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Encáustica

cadas por uma pintura, escultura Filósofos como Albertus Magnus e


ou edifício – em detrimento, mui- Tomás de Aquino buscam assimilar
tas vezes, da sua descrição factual. os escritos aristotélicos definindo
Durante o Renascimento, a écfrase sua relação com doutrinas filosó-
serviu com frequência como fonte ficas e teológicas como a Criação
para os artistas; a Calúnia de Apeles e a imortalidade da alma. Mesmo
de Botticelli, por exemplo, baseia-se então, o escolasticismo seguiu man-
em uma tradução latina do diálogo tendo diversas vertentes vinculadas
Da Calúnia, de Luciano. seja a determinados filósofos – por
exemplo, o tomismo – seja a uni-
Encáustica versidades ou ordens religiosas, o
Técnica pictórica surgida no século que seria posteriormente criticado
V a.C. que se utilizava de cera quente no âmbito humanista. Sempre nesse
somada a pigmentos derretidos no último meio, a escolástica é crescen-
calor. temente questionada por pensado-
res como Lorenzo Valla, quem, em
Entablamento suas Dialecticae disputationes, argu-
Dentro das ordens arquitetônicas, menta que o poder da linguagem
chama-se entablamento a parte supe- reside mais na persuasão do que em
rior do esquema de uma ordem. sua capacidade de exprimir certezas
lógicas. Também no âmbito uni-
Escolasticismo versitário, durante o Renascimento
Em seu sentido genérico, o termo o estudo da lógica foi lentamente
faz referência às várias formas de sendo substituído pela retórica.
filosofia e teologia desenvolvidas
em universidades europeias a par- Escorço
tir de fins do século XI ou prin- Representação bidimensional de obje-
cípios do século XII. Todos esses tos com o intuito de obter efeito de
sistemas “escolásticos”, não obs- perspectiva de tal forma que estes pare-
tante marcadas diferenças estrutu- çam tridimensionais.
rais, tinham em comum uma forte
dependência aristotélica, incorpo- Fórmula de Pathos
rando os preceitos lógicos e termi- Estruturas formais transmissoras
nológicos de Aristóteles em seus de conteúdos emocionais, capazes
debates intelectuais. Quando, no de circular entre culturas distintas,
século XIII, quase a totalidade do através dos tempos. Warburg utiliza
corpus aristotélico conhecido atu- o conceito para explicar aspectos da
almente é traduzido ao latim (pre- transmissão da herança clássica na
dominantemente através do árabe), cultura do Renascimento italiano.
Aristóteles adquire uma renovada O teórico concebe a história das
importância não apenas no domí- imagens como estratificações em
nio da lógica, mas também das ciên- que são depositadas várias cama-
cias naturais e mesmo da teologia. das, cada uma de uma época dife-

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Grotescas

rente, mas que ficam prontas para, Fuste


a qualquer momento, virem à tona Corpo da coluna que se estende
após um longo tempo de ausência. desde a base até o capitel.
A fórmula de pathos, portanto, faz
referência a imagens que conden- Gonfaloniere (ou gonfaloniero)
sam a criação original (pathos) com Literalmente, aquele que porta a
uma repetitividade involuntária, da bandeira ou estandarte (gonfalone).
qual não se tem referência (formel Supremo magistrado civil ou mili-
ou fórmula). Tal conceito foi criado tar em algumas das comunas italia-
pelo teórico para contrapor-se a nas medievais. A signoria florentina,
Winckelmann, que defendia que tradicionalmente, era composta por
a Antiguidade nos legou a “nobre oito gonfalonieri e um gonfaloniere di
simplicidade e serena grandeza” giustizia, eleitos entre os mais nobres
de sua arte e que, portanto, quanto cidadãos florentinos; seu mandato,
mais contidas emocionalmente porém, tinha a escassa duração de
fossem as obras, melhor seriam, dois meses. Em 1501, durante o pri-
comparativamente aos antigos. meiro interlúdio republicano, ele-
Warburg, ao contrário, defende um geu-se em Florença um gonfaloniere
equilíbrio entre o controle emocio- di giustizia vitalício, Piero Soderini,
nal e o pathos, sendo este exempli- cujos poderes equivaliam aproxima-
ficado pelos cabelos esvoaçantes da damente ao do doge veneziano.
Vênus de Botticelli em meio à sere-
nidade da cena ou pela serviçal que Gravura
invade subitamente a cena solene Meio de reprodução de imagens pela
do nascimento de João Batista de criação de matrizes nos mais varia-
Ghirlandaio na Capela Tuornaboni, dos materiais – o que altera signifi-
em Florença. cantemente as características destas
imagens – , que podem ser impressas
Fachada por muitas vezes, evitando a necessi-
Parede frontal de uma obra arqui- dade de uma cópia manual.
tetônica. A fachada não é somente
um item estrutural, mas adquire um Grotescas
caráter simbólico e um valor artístico Pinturas representando híbridos de
de primeira ordem. animais, deuses, figuras míticas e
humanos, geralmente como arabescos
Friso simétricos organizados verticalmente
No esquema das ordens arquitetôni- ao redor de um eixo central. O termo
cas, é a parte plana do entablamento, deriva do italiano grotto, ou gruta, em
entre a cornija e a arquitrave. Fora referência à localização subterrânea
das ordens, é uma faixa que, além das pinturas murais encontradas no
de separar as superfícies de uma século XV na assim chamada Domus
parede, ainda a ornamenta com Aurea, isto é, a antiga villa do impe-
motivos variados. rador Nero em Roma. Essas pintu-

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Humanismo

ras causaram um profundo impacto obras de arte. Pode referir-se a per-


nos artistas contemporâneos, como sonagens ou acontecimentos históri-
Rafael e Pinturicchio. A palavra gro- cos, bem como à investigação sobre
tesco, atualmente, é empregada, mais temas religiosos ou mitológicos. No
além do campo da arte, para definir século XX, o termo vincula-se sobre-
objetos ou situações bizarras, repug- tudo aos estudos de Aby Warburg e
nantes ou ridículas. seu discípulo Erwin Panofsky, quem
o conecta estreitamente à iconologia,
Humanismo isso é, o estudo do significado intrín-
Inicialmente, o termo “humanismo” seco e último de uma obra de arte – a
se vincula ao meio acadêmico. qual, por sua vez, não pode prescin-
Durante o Renascimento, os studia dir da história da cultura, filosofia,
humanitatis abarcavam a gramá- literatura, etc.
tica, a retórica, a poesia, a história e
a filosofia moral. “Humanista” – por Iluminura
oposição ao canonista e ao legista Tipo de pintura colorida que, sobre-
– era o professor responsável pelo tudo durante o medievo, decora
ensino dessas disciplinas, as quais manuscritos, mais frequentemente
eram concebidas a partir da emula- as letras maiúsculas que iniciam
ção dos modelos antigos (em alguns as páginas. Com o surgimento da
casos, também poderia fazer referên- prensa móvel de Gutenberg a técnica
cia aos estudantes dessas matérias). cai em desuso.
Além de seu sentido estritamente
acadêmico, porém, o termo “huma- Imitação
nismo”, a partir do século XIX, passa Ver Mímesis.
a fazer referência ao movimento de
recuperação, transcrição, anotação e In Nuce
tradução das grandes obras literárias Em estado embrionário.
da antiguidade greco-romana, assim
como à convicção profunda de que Intarsia
esse estudo poderia engendrar um Do italiano marchetaria, é a técnica
Renascimento cultural que revitali- artística de ornamentar pela incrus-
zaria toda a sociedade contemporâ- tação de materiais como madeiras de
nea. Petrarca é quase unanimemente diversas colorações, osso ou marfim,
considerado o precursor, ou mesmo utilizando a madeira mesma como
fundador, do humanismo italiano, o suporte. A técnica já era, há muito,
qual, de acordo com a maioria dos difundida, mas, entre 1440 e 1550,
historiadores, floresce aproximada- atinge grande alcance, sendo utili-
mente entre 1350 e 1500. zada para a decoração de casas, por-
tas, revestimentos, pisos, etc.
Iconografia
Ramo da história da arte que lida Inventio (ou Invenzione)
com a descrição, classificação e inter- No âmbito da teoria artística renas-
pretação do que é representado em centista, significa capacidade de

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Maneirismo

criar, inventividade, originalidade. orgânico e que é o espelho em que


Derivado da retórica clássica, este foi o homem irá se refletir. Qualquer
um dos principais conceitos artísticos modificação neste universo deve cor-
da época, porque se baseava na ideia responder à outra no universo parti-
de que, para fazer arte, era preciso cular do homem – o microcosmo – e
usar a razão – isso é, o conceito da vice-versa. Já o microcosmo será o
arte como “coisa mental”, e não, pri- universo do ponto de vista subjetivo
mordialmente, manual, o que estabe- ou pessoal. É o mundo na medida
lece a respeitabilidade intelectual da do homem, em que este tem cons-
pintura e escultura junto a outras ati- ciência de si mesmo – como se o
vidades consideradas até então supe- homem fosse o universo em minia-
riores, como a poesia e a música. tura e nele coubessem todos os fenô-
menos universais.
Licença
O conceito de licença se vincula Maneirismo
estreitamente às Vidas de Vasari, Tendência artística de emular a
para quem “para atingir a perfeição maniera, ou “estilo”, de grandes artis-
faltava ainda na regra uma licença, tas precedentes, sobretudo Rafael
a qual, sem ser ela própria uma e Michelangelo, durante o período
regra, nela fosse ordenada e pudesse posterior ao Renascimento. Talvez de
existir sem causar confusão ou per- forma mais pronunciada do que em
turbar a ordem”. De acordo com qualquer outra etiqueta estilística, há
Vasari, somente os artistas da ter- uma ausência de consenso no que diz
ceira idade, e, muito especialmente, respeito às suas principais característi-
Michelangelo, souberam substituir cas, seu período, e, no limite, mesmo
a regra pelo giudizio dell’occhio, isso a sua existência. O termo maniera
é, o juízo do olho; somente o artista é pela primeira vez empregado por
excelente pode transgredir a regra, Vasari, de forma positiva, conotando
como afirma o próprio Vasari em graça, beleza e sofisticação. Raffaello
outras passagens das Vidas, sem pare- Borghini o empregará posterior-
cer bizarro, presunçoso ou mesmo mente, discutindo se o talento de um
ridículo. artista seria ou não superior e origi-
nal diante de seus precedentes. Mais
Macrocosmo adiante, entretanto, autores como
Junto do microcosmo e, ao mesmo Giovanni Bellori e Luigi Lanzi criti-
tempo, em oposição a ele, é um cariam os maneiristas por considerar
conceito hermético e exotérico que que suas obras são artificiais e apre-
se refere a uma realidade que, por sentam uma visão distorcida da natu-
si só, constitui um todo indivisível, reza. Este ponto de vista influenciaria
uma unidade em que a parte (micro- o modo como as obras maneiristas são
cosmo) está em relação a um todo avaliadas até, ao menos, os anos 1920,
(macrocosmo). No Renascimento, o quando o termo começa a perder sua
macrocosmo será identificado com conotação negativa a favor da revalo-
o Universo, o mundo que é um todo rização de características considera-

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Maniera

das tipicamente maneiristas, como a tes de caça, instrumentos musicais,


elegância, o marcado sentido de movi- etc. Se antes este gênero costumava
mento, o colorido vibrante, etc. aparecer como detalhe e adorno em
pinturas de temas “maiores”, durante
Maniera o chamado “Barroco” consolidar-
Maneira, estilo pessoal de um deter- se-á como gênero autônomo, sendo
minado artista estudo virtuoso da representação de
objetos reais, num momento em que
Microcosmo pinturas começavam a ser comercia-
Ver Macrocosmo. lizadas, principalmente nos Países
Baixos, por comanditários da bur-
Mímesis guesia ascendente.
Do grego, imitação; por extensão,
definição do processo artístico de Neoplatonismo Florentino
representação. Para Platão, tudo o O assim chamado neoplatonismo
que existe no mundo sensível é já florentino se refere especificamente
uma cópia da sua contrapartida no ao núcleo de intelectuais vincu-
mundo ideal; a arte, portanto, é algo lados à corte de Cosimo e, poste-
de terceira linha, já que, segundo riormente, Lorenzo de Medici na
ele, o artista cria uma cópia da Florença quatrocentista (Pico della
cópia do que existe no mundo ideal. Mirandolla, Cristoforo Landino,
Aristóteles, porém, argumenta que Angelo Poliziano). Marsilio Ficino,
o artista representa a natureza não seu principal expoente, traduziu a
como é, mas como poderia ou deve- totalidade dos diálogos platônicos
ria ser, isso é, a mímesis não funciona ao latim, assim como as Enéades
apenas para recriar objetos existentes, de Plotino e outras obras gregas. O
mas também embeleza-os, refina-os, grupo florentino associava a tradi-
universaliza-os. ção platônica (ou neoplatônica),
ainda, a outros textos genuinamente
Mosaico antigos ou forjados que, segundo
Composição pictórica obtida eles, preservavam uma sabedoria
mediante a utilização de fragmentos filosófica sobre questões divinas, os
de materiais de diversas naturezas e quais englobavam, além dos textos
cores: pedras – preciosas ou não –, platônicos, o zoroastrismo, os orá-
vidro, conchas, cerâmica esmaltada, culos sibilinos ou a cabala. Ficino
seixos, etc. estava profundamente convencido
de que esses textos, apesar da sua
Natureza morta diversidade, exprimiam uma única
Gênero de pintura que, no século tradição transmissora da sabedora
XVII, adquire grande importân- divina, revelada à humanidade no
cia. Busca retratar o mais fielmente princípio dos tempos e transmitida
possível objetos inanimados e coti- oralmente de geração a geração, até
dianos como utensílios domésticos, ser escrita nesse corpus de textos
flores, frutos, animais provenien- que, para ele e seus colegas, consti-

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Renascimento_CS4.indb 444 14/02/2011 20:19:54


Paragone

tuíam a prisca theologia, ou antiga Bélgica. Por Países Baixos refe-


teologia. Seu estudo, portanto, só rimo-nos ao território bordeado,
poderia revitalizar e fortalecer as ao oeste e ao norte, pelo Canal da
próprias bases do cristianismo. O Mancha e Mar do Norte, ao leste
neoplatonismo ficiniano marcou aproximadamente por uma linha
profundamente não apenas o huma- que desce de Emden a Münster, na
nismo italiano, mas também as artes atual Alemanha, Wesel, Colonha e
visuais. o rio Reno, e ao sul, por uma linha
que parte de Trier a Cambrai e a
Nerofumo Bolonha, no norte da França. Esta
O nerofumo ou nero di fumo é um área jamais formou uma unidade
pigmento negro obtido a partir de política, embora vários de seus con-
um depósito de partículas de car- dados e ducados estivessem sob o
vão derivadas da combustão incom- domínio borgonhês no século XV e,
pleta de algumas substâncias; é um a partir de 1477, dos Habsburgo.
dos principais pigmentos negros
que entram na composição da tinta Panejamento
para gravura. Representação de tecidos que envol-
vem as figuras pintadas ou esculpi-
Non finito das. Foi item de distinção entre artis-
Termo aplicado a obras de arte que, tas porque exigia grande habilidade
deliberadamente ou não, são deixa- para que fossem alcançados volu-
das inacabadas, ou com a aparência mes, cores e texturas fiéis – dobras
de inacabadas. O termo quase sem- e caimento que se assemelhassem à
pre faz referência aos Escravos de realidade.
Michelangelo, cuja incompletude
seria, segundo alguns historiadores, Paragone
uma opção do próprio artista. 1. Do italiano, comparação. 2.
Comparação entre o antigo e o
Ordens Arquitetônicas moderno, surgido como disputa no
No contexto da arquitetura clássica, século XV, na qual artistas tentavam
“ordem” é um conjunto de elementos equiparar-se ou mesmo superar a
pré-definidos e padronizados que, obra dos antigos. 3. Debate surgido
associados, constituem uma “lingua- no século XV (Alberti, Leonardo)
gem arquitetônica” correspondente em que a escultura e a pintura dispu-
a um estilo histórico. As princi- tam entre si o lugar de arte superior.
pais ordens clássicas são a Coríntia, Em meados do Quinhentos, esse
Dórica, Jônica, Compósita e Toscana. debate se torna central no âmbito
da tratadística italiana, sendo
Países Baixos abordado por Pino, Dolce, Doni,
O termo Países Baixos, durante o Varchi, Vincenzo Borghini, Cellini,
Renascimento, cobria uma área Francisco de Holanda, Vasari e pelo
muito mais extensa do que a cor- próprio Michelangelo em uma céle-
respondente às atuais Holanda e bre carta a Varchi.

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Renascimento_CS4.indb 445 14/02/2011 20:19:54


Perspectiva

Perspectiva como uma imagem oscilante.” Neste


Técnica que possibilita a ilusão de trecho é importante observar que,
tridimensionalidade em obras bidi- apesar de expressar-se sem o uso de
mensionais. A tentativa de fornecer termos de estilo, a fim de criar uma
ao observador a possibilidade de história da arte sem nomes, o autor
compreender a estrutura e profun- inicia o resgate histórico da pintura
didade da composição pintada existe dita “Barroca”, considerada uma
em distintos contextos históricos, degenerescência até então, ao afirmá-
mas a investigação da “perspectiva la como uma “evolução” relativa-
exata”, ou linear, adensa-se na Itália mente à “Renascentista”.
em princípios do século XV. Além da
perspectiva linear – isso é, baseada Pintura a óleo
em um esquema geométrico no qual Pintura sobre tela, madeira ou painel
linhas inclinadas sinalizam a profun- com tinta de base oleosa que aparece
didade espacial – a assim chamada na arte ocidental por volta do século
perspectiva cromática, ou não linear, XV como uma alternativa versátil
imita o efeito da distância através de para a têmpera.
diferentes gradações de cor, claridade
e relevo aparente. Pintura de gênero
Representação pictórica que tem por
Pictórico-Linear assunto cenas e eventos cotidianos
Heinrich Wölfflin, em seu estudo como, por exemplo, mercados, cenas
“Conceitos Fundamentais da História domésticas ou internas, festas etc. A
da Arte”, de 1915, descreve uma “evo- pintura de gênero, por representar o
lução do linear ao pictórico, i.e., a cotidiano, foi tida como uma pintura
evolução da linha enquanto caminho menor, abaixo da histórico religiosa
da visão e guia dos olhos, e a desvalo- e mesmo dos retratos. Os grandes
rização gradativa da linha: em termos comissariados não estavam interessa-
gerais, a percepção do objeto pelo dos neste tipo de encomenda, princi-
seu aspecto tangível em contornos palmente por sua pequena dimensão.
e superfícies, de um lado, e um tipo Encontrou, porém, grande procura
de percepção capaz de entregar-se à entre a burguesia e os comerciantes.
simples aparência visual e abando- Não por acaso, na verdade, os pri-
nar o desenho ‘tangível’, de outro. No meiros grandes pintores das pinturas
primeiro caso, a ênfase recai sobre de gênero são radicados nos Países
os limites dos objetos; no segundo, a Baixos, região com forte caráter mer-
obra parece não ter limites. A visão cantil: Pieter Brueghel – o Velho e
por volumes e contornos isola os Johannes Vermeer estão entre os
objetos: a perspectiva pictórica, ao mais famosos pintores holandeses
contrário, reúne-os. No primeiro especializados na pintura de gênero.
caso, o interesse está na percepção
de cada um dos objetos materiais Políptico
como corpos sólidos, tangíveis; no Pintura dividida em quatro ou mais
segundo, na apresentação do mundo painéis complementares e postos lado

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Simetria

a lado, tendo entre si uma temática que quando mais da metade do volume
os une. Ver também: Díptico e Tríptico. da peça se salienta do fundo, ou
seja, algumas partes ainda se unem
Proporção ao suporte, mas há uma tridimen-
Relação entre partes que busca fixar sionalidade evidente, tem-se de um
medidas ideais; a harmonia que deve alto-relevo.
existir entre as diversas partes de um
todo, e entre cada parte e o todo. Ricordo (ou ricordanza)
Literalmente “recordação”, durante
Putti o Renascimento – especialmente
Meninos, pequenos anjos ou gênios. florentino – o termo podia signifi-
car tanto uma anotação geralmente
Quadratura concisa destinada a registrar eventos
Gênero de pintura difundido princi- como o nascimento de um filho, casa-
palmente durante o Renascimento, o mentos, um empréstimo pecuniário,
Barroco e o Rococó, em que o trompe a venda de um imóvel, etc., como o
l’oeil (ver trompe l’oeil), a perspectiva livro utilizado para esta espécie de
e outros efeitos espaciais são usa- anotações.
dos para criar a ilusão de um espaço
tridimensional sobre uma superfí- Signoria
cie plana, semicurva ou curva. Está Equivalente ao poder executivo de
fortemente associada às pinturas Florença. A extensão precisa de seu
de perspectiva do século XVIII e às poder variava consideravelmente ao
representações da arquitetura. Esta longo das sucessivas etapas de poder
técnica também incluía esculturas e republicano e mediceo.
pinturas de estuque como decoração
ilusória. Sfumato
técnica pictórica desenvolvida por
Relevo Leonardo da Vinci voltada à aplica-
Entalhe ou escultura que se pro- ção da tinta no suporte, produzindo
jeta de uma superfície plana e não o efeito do esmaecimento cromá-
se sustenta independentemente, tico. Através dessa técnica Leonardo
produzindo visibilidade pelo con- empregava a perspectiva em suas
traste de luz e sombra em relação composições, determinando os
ao fundo. O relevo pode ser encon- diferentes planos cênicos, do pri-
trado em três modalidades: baixo- meiro e mais definido ao último e
relevo, meio-relevo ou alto-relevo. mais esfumaçado.
A diferença entre eles não reside
na profundidade do entalhe, mas Simetria
no volume que se destaca: quando Equilíbrio da imagem; relação de
menos da metade do volume se tamanho ou de disposição que, entre
destaca do fundo, além de manter- si, devem ter as coisas ou as partes
se no nível do plano que ocupa, de um todo em relação a um ponto,
trata-se de um baixo-relevo; já eixo ou plano.

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Stanze

Stanze Tríptico
Quarto ou aposento; por stanze Pintura ou painel que se apresenta
entende-se universalmente os quatro em três partes unidas entre si. Ver
aposentos do palácio vaticano onde também: díptico, políptico.
Rafael pintou seus célebres afrescos
entre 1508 e 1517. Trompe l’oeil
Do francês, “engana o olho”: pintura
Studia Humanitatis ilusionista que deseja recriar um
ver Humanismo espaço que se confunda com o real,
utilizando-se de artifícios como a
Tipologia perspectiva.
Características fixas na arte que for-
mam esquemas ou tipos. Por exem- Velatura
plo, o conjunto de características que, Camada semitransparente de pin-
juntas, representam a virgem Maria tura aplicada sobre outra pintura já
(seu manto azul, o halo, o semblante existente que pode lhe conferir novas
sereno, o menino no colo, etc.). Esta tonalidades de cor ou, somente, pro-
esquematização também é válida tegê-la como um verniz.
para a arquitetura, em que o esquema
nos faz reconhecer, por exemplo, a Xilogravura
ordem arquitetônica à qual um deter- Gravura cuja matriz se faz em madeira.
minado edifício pertence pelo tipo de
capitel que tem suas colunas ou pelas
formas da fachada. §

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452

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Imagens

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Imagens

Fig. 1 – Cimabue, Maestà. Fig. 2 – Giotto, Maestà (Madonna Ognissanti).


Florença, Galleria degli Uffizi. Florença, Galleria degli Uffizi.

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Imagens

Fig. 3 – Giotto, pinturas da Capela Scrovegni (ou dell’Arena). Pádua .

455

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Imagens

Fig. 4 – Masaccio, Trinità. Florença, Santa Maria Novella.

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Imagens

Fig. 5 – Piero della Francesca, Flagelação de Cristo. Urbino, Galleria Nazionale delle Marche.

Fig. 6 – Carpaccio, Chegada dos Embaixadores Ingleses (ciclo das


histórias de Santa Úrsula). Veneza, Gallerie dell’Accademia.

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Imagens

Fig. 7 – Leonardo da Vinci, Mona Lisa. Paris, Museu do Louvre.

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Imagens

Fig. 8 – Rafael, Madona do Prado. Viena, Kunsthistorisches Museum.

Fig. 9 – Rafael, Escola de Atenas. Vaticano, Stanza della Segnatura.

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Imagens

Fig. 10 – Michelangelo, pinturas do teto da Capela Sistina. Vaticano.

460

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Imagens

Fig. 11 – Michelangelo, Cativos. Florença, Galleria dell’Accademia.

Fig. 13 – Francisco de
Fig. 12 – Tiziano, Três Idades do Homem. Holanda, Roma destruída.
Edimburgo, National Gallery of Scotland. Escorial, Álbum dos
Desenhos das Antigualhas.

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Imagens

Fig. 14 – Giulio Romano, Madonna dell’Anima.


Roma, Santa Maria dell’Anima.

Fig. 15 – Giulio Romano, Psique descobre Fig. 16 – Giulio Romano, Os carros de


cupido adormecido. Mantua, Palácio Te. Diana e Apolo. Mântua, Palácio Te.

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Imagens

Fig. 17 – Giulio Romano e ajudantes, pinturas da Sala dos Gigantes. Mântua, Palácio Te.

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Imagens

Fig. 18 – Giulio Romano, Palácio Ducal. Mântua.

Fig. 19 – Leonardo da Vinci, estudos


da luz e da figura humana. Windsor,
Royal Library (RL 19149r-19152v.).

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Imagens

Fig. 20 – Leonardo da Vinci, Mulher com Arminho (Cecilia Gallerani). Cracóvia, Czartoryski Museum.

465

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Imagens

Fig. 21 – Leonardo da Vinci, estudos da água e ancião.


Windsor, Royal Library (RL 12579).

Fig. 22 – Leonardo da Vinci, estudos das seções vertical e horizontal ao


longo da cabeça humana. Windsor, Royal Library (RL12603).

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Imagens

Fig. 23 – Leonardo da Vinci, estudo de artista


utilizando um painel de vidro para dese-
nhar uma esfera armilar. Milão, Biblioteca
Ambrosiana (Codex Atlanticus).

Fig. 25 – Leonardo da Vinci, estudo


para as cabeças de dois guerreiros.
Budapeste, Szépmüvészeti Muzeum.

Fig. 24 – Leonardo da Vinci, Virgem dos Fig. 26 – Leonardo da Vinci, estudo da


Rochedos. Londres, National Gallery. anatomia do pé e da parte inferior da perna.
Windsor, Royal Library (RL 19017).

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Imagens

Fig. 27 – Leonardo da Vinci, estudos


dos músculos do braço direito e ombro.
Fig. 29 – Leonardo Da Vinci, Homem
Windsor, Royal Library (RL 19008v.).
Vitruviano. Veneza, Gallerie dell’Accademia.

Fig. 28 – Leonardo da Vinci, estudos para virgem


e menino com Santa Ana e São João Batista.
Londres, British Museum (1875–6–12–17).

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Imagens

Fig. 30 – Vincenzo Borghini, desenho prepa-


ratório para o Arco da Prudência. Florença,
Biblioteca Nazionale Centrale.

Fig. 31 – Joachim Beuckelaer, Mercado de peixes. Fig. 32 – Annibale Carracci, Açougue.


Estrasburgo, Museu de Belas Artes de Estrasburgo. Oxford, Christ Church.

469

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Imagens

Fig. 33 – Marco Dente (apud Rafael), Sacrifício de


Noé. Roma, Istituto Nazionale per la Grafica.

Fig. 34 – Tiziano Vecellio, Retrato de Francesco Maria della Rovere. Florença, Galleria degli Uffizi.

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Imagens

Fig. 36 – Tiziano Vecellio, desenho


preparatório para o retrato de Francesco
Maria della Rovere. Florença, Gabinete
de desenhos da Galleria degli Uffizi.

Fig. 35 – Jakob Seisenegger, Retrato de Carlos V.


Viena, Kunsthistorisches Museum.

Fig. 37 – Tiziano Vecellio, Retrato de Don Fig. 38 – Cristóvão de Morais, Retrato


Diego de Mendoza. Florença, Palazzo Pitti. de D. Sebastião de Portugal. Lisboa,
Museu Nacional de Arte Antiga.

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Imagens

Fig. 39 – Leonardo da Vinci, Virgem


das Rochas. Paris, Museu do Louvre.

Fig. 40 – Leonardo da Vinci, Última Ceia. Milão, refeitório


do convento de Santa Maria delle Grazie.

472

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Imagens

Fig. 41 – Giampietrino, Virgem amamentando Fig. 42 – Agostino da Lodi, Lavagem dos


o Menino e São João Batista criança pés. Veneza, Gallerie dell’Accademia.
em adoração. São Paulo, MASP.

Fig. 43 – Giotto, Cortejo nupcial da Virgem. Pádua, Capela Scrovegni.

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Imagens

Fig. 46 – Artista bizantino-pisano,


Crucifixo nº 20. Pisa, Museu de Pisa.

Fig. 44 – Nicola Pisano, Púlpito


do Batistério de Pisa.

Fig. 47 – Cimabue, Maestà.


Fig. 45 – Giovanni Pisano, Púlpito da Paris, Museu do Louvre.
igreja de Sant’Andrea, Pistoia.

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Imagens

Fig. 48 – Cimabue, Crucifixo. Arezzo, Fig. 49 – Cimabue, Crucificação.


igreja de San Domenico. Assis, Basílica Superior de Assis.

Fig. 50 – Giotto, Crucifixo. Florença, Fig. 51 – Giotto, Sonho de Inocêncio III. Assis, Basílica
Santa Maria Novella. Superior de Assis.

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Imagens

Fig. 52 – Giotto, Criação do Presépio de Fig. 54 – Duccio, Madona Rucellai.


Greccio. Assis, Basílica Superior de Assis. Florença, Galleria degli Uffizi.

Fig. 53 – Maso di Banco, Milagre de S. Silvestre. Florença, Santa Croce.

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Imagens

Fig. 55 – Duccio, Madona dos Franciscanos.


Siena, Pinacoteca Nazionale.

Fig. 56 – Duccio, Maestà. Siena, Museo dell’Opera del Duomo.

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Imagens

Fig. 57 – Ambrogio Lorenzetti, Alegoria do Bom Governo. Siena, Palazzo Pubblico.

Fig. 58 – Giotto, O Sonho de Joaquim. Pádua, Capela Scrovegni.

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Imagens

Fig. 59 – Simone Martini e Lippo Memmi, Anunciação com os SS. Ansano


e Margarete e quatro Profetas. Florença, Galleria degli Uffizi.

Fig. 60 – Giovanni da Milano, Pietà. Florença, Galleria dell’Accademia.

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Imagens

Fig. 61 – Masolino, O Pecado Original. Fig. 62 – Masaccio, Adão e Eva expulsos do


Florença, Santa Maria del Carmine. paraíso. Florença, Santa Maria del Carmine.

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Imagens

Fig. 63 – Jacopo della Quercia, tumba de Fig. 64 – Sandro Botticelli, Alegoria da


Ilaria del Carretto. Lucca, Catedral. Abundância. Londres, British Museum.

Fig. 65 – Domenico Ghirlandaio, O Nascimento de Fig. 66 – Albrecht Dürer, Morte de


São João Batista. Florença, Santa Maria Novella. Orfeu. Hamburgo, Kunsthalle.

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Imagens

Fig. 67 – Piero della Francesca, Vitória de Constantino sobre Massenzio. Arezzo, Basílica de São Francisco.

Fig. 68 – Escola de Rafael, A Batalha de Constantino. Vaticano, Stanza de Constantino.

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Imagens

Fig. 69 – Giovanni Girolamo Savoldo, Autorretrato, (já


dito retrato de Gaston de Foix). Paris, Museu do Louvre.

Fig. 70 – Daniele Da Volterra, Fig. 71 – Daniele Da Volterra,


Davi e Golias. Paris, Museu do Louvre. Davi e Golias. Paris, Museu do Louvre.

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Índice Onomástico
e Topográfico

Alberti, Leon Battista: 23, 29, 50, Botticelli, Sandro: 50-51, 254,
53, 79, 93, 97, 132-135, 137, 146, 257-258, 266, 340, 348, 431, 440-
190, 195-196, 268-269, 275, 278, 441, 481
439, 445 Bramante: 16, 29, 31, 54, 56-57,
Anselmi, Michelangelo: 82 83-84, 86, 107, 130, 205, 305, 319,
Argan, Giulio Carlo: 130, 205 376, 384
Aristóteles: 13, 31, 97, 111, 236, Bronzino, Agnolo: 33, 275
275, 387, 440, 444 Brunelleschi, Filippo: 22-23, 48-
Armenini, Giovan Battista: 281, 49, 108, 149, 249
292, 294 Burckhardt, Jakob: 34, 217-218,
Avignon: 18, 217, 230, 385-386, 229
398 Campi, Bernardino: 281, 294
Bandinelli, Baccio: 133, 272, 389 Caravaggio, Michelangelo da: 64,
Barocchi, Paola: 36, 116, 123-128, 70, 73, 77-79, 150-151,
134, 143-144, 146, 148, 269-270, Carlos V: 38, 58, 61, 167-168,
274-275, 283, 286, 400, 409 173-181, 183-187, 220, 308, 326, 471
Bellori, Giovanni: 79, 443 Carpaccio, Vittore: 23, 177, 457
Berenson, Bernard: 35, 199 Carracci, Annibale: 62, 150-151,
Bernini, Gianlorenzo: 64, 86, 307, 158-160, 162, 164, 469
437 Casa, Giovanni della: 280, 284
Beuckelaer, Joachim: 150-164, Cassirer, Ernst: 35, 153
469 Castiglione, Baldassare: 30, 58,
Biondo, Flavio: 11, 14, 18 275-276, 306, 311, 323, 360-362,
Borghini, Raffaello: 285, 443 364
Borghini, Vincenzo: 33, 140-145, Cellini, Benvenuto: 33, 96, 133,
149, 274, 282-287, 445, 469 272, 275, 282-283, 292, 299, 445

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Índice Onomástico e Topográfico

Cennini, Cennino: 21, 110, 122, 225 Ficino, Marsílio: 13-14, 31, 52,
Chastel, André: 24 138, 444
Cimabue: 19-22, 46, 141, 188, 216- Filarete, Antonio: 273
217, 231-238, 244, 278, 401, 454, Florença: 12-13, 18-19, 21-22,
474-475 24-26, 29, 32-33, 47, 49-55, 59, 61,
Clark, Kenneth: 26, 93 73, 81, 91, 113, 119, 121-122, 127,
Clemente VII: 58, 128, 300, 302, 131-134, 136, 138, 140-144, 147,
305-307, 309-311, 377, 400, 405- 149, 170, 175, 179, 188, 190, 198-
406, 414 199, 207-208, 211-212, 215-216,
Condivi, Ascanio: 29, 33, 123-124, 218, 221, 231, 238, 242, 246, 248-
126, 128 250, 258-259, 261-262, 264, 270,
Constantinopla: 12-13, 51, 190, 274, 289, 302, 335, 338-341, 343-
225-227, 396 344, 346-347, 352-354, 356-357,
Correggio, Antonio Allegri da: 360, 389, 405, 411-414, 420, 423-
17, 82 425, 431, 434-435, 441, 444, 447,
Cortona, Pietro da: 81 454, 456, 461, 469-471, 481
Cosini, Silvio: 272 Francesca, Piero Della: 23, 25, 29,
Dante Alighieri: 14, 21, 216, 218, 94, 105-106, 137, 191, 263-266, 273,
219, 224, 231, 237, 241, 242, 243, 339-340, 457, 482
363, 406 Franco, Battista: 284-285, 316
Dolce, Ludovico: 61, 445 Galilei, Galileu: 286
Donatello: 20, 22-23, 48, 50, 92, Ghiberti, Lorenzo: 23, 249, 273
224, 250, 270, 431 Ghirlandaio, Domenico: 17, 19,
Doni, Anton Francesco: 272-274, 32, 50, 53, 122-124, 128-129, 258,
277, 445 261, 263-264, 340, 342, 348, 441, 481
Duccio (di Buoninsegna): 22, 46, Giordano, Luca: 81
244-245, 248, 476-477 Giorgione: 38, 55, 173-174, 209,
Dürer, Albrecht: 38, 52, 58, 94, 271
105, 213, 251-252, 254, 261-264, Giotto (di Bondone): 14, 20-22,
266, 330, 427-429, 431-434, 436, 481 46-47, 216, 218, 234, 237-241, 244-
Edimburgo: 74, 461 249, 269, 454-455, 473, 475-476,
Félibien, André: 81 478
Ferrara: 18, 188-193, 196, 218, Giovio, Paolo: 24, 400-402
253, 260, 328

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Índice Onomástico e Topográfico

Giulio Romano: 64-90, 264, 296- Mantegna, Andrea: 17, 50, 52, 79,
318, 320-336, 361, 367, 370-371, 261-262, 329, 384, 428, 431
374-377, 379, 407, 430, 462-464 Mântua: 17-18, 66, 72, 75, 77-79,
Gombrich, Ernst: 37, 88, 116, 251, 81, 86-88, 90, 169, 199, 218, 262,
253, 257, 259-261, 402, 427 296, 309, 311, 314, 316-317, 322-
Goya, Francisco Lucientes de: 174 328, 330-335, 361-362, 376, 384,
Holanda, Francisco de: 14, 22, 38, 431, 434, 462-464
60, 167-170, 172-175, 178, 180-182, Masaccio: 20, 22-23, 49, 235, 250,
185, 187, 397, 436, 445, 461 456, 480
Isabella d’Este: 17, 208, 210, 323 Melzi, Francesco: 95-97, 103, 117,
João III (Dom): 58, 167-168, 181, 200, 289, 419
183, 185, 187 Michelangelo (Buonarroti): 15-
Júlio II: 15-16, 29-30, 32, 55, 128, 17, 19-20, 24, 27-30, 32-34, 36-38,
400, 403-404 52, 55-57, 59, 64, 71, 82, 89-90, 100,
Leão X: 29, 57, 84, 128, 297, 299- 112, 117, 119-130, 133-136, 138,
300, 302-303, 310, 361, 364, 377, 141-144, 146-150, 161-162, 175,
400, 406, 423-424 180, 188, 212-213, 221, 224, 235,
Leonardo (da Vinci): 17, 20, 23- 241, 249, 272, 275-283, 285-286,
29, 31, 51, 53, 55, 57, 64, 91-121, 291-293, 332, 349, 353, 358, 400,
137, 198-201, 203-213, 253, 269- 403-404, 422-424, 432, 437, 443,
273, 277-280, 284, 287-290, 293, 445, 460-461
299, 339, 400-402, 409-426, 432, Michelozzi, Girolamo: 285
438, 445, 447, 458, 464-468, 472 Milão: 17-18, 24-25, 50, 54-55, 57,
Lisboa: 167, 186, 206, 471 91-92, 94, 96, 100, 103, 105-106,
Lomazzo, Giovanni Paolo: 94, 96, 188-189, 198-199, 204-205, 208,
145, 206, 271, 279, 287-294 210-213, 218, 248, 328, 333, 402,
Londres: 74, 173, 177, 109, 207, 405, 414, 416, 418-420, 422, 426,
213, 241, 328, 347, 402, 414, 421, 467, 472
427, 467-468, 481 Nápoles: 17, 53, 55, 71, 155-156,
Lorenzi, Battista: 286 163, 218, 220, 230, 248, 299, 307,
Lourenço (Lorenzo), o Magnífico: 331, 347, 377
13, 24, 32, 133, 198, 444 Pádua: 21, 47, 114, 189-190, 194,
Madri: 54, 71, 169, 177, 183-184, 218, 239, 248, 400, 419, 455, 473,
186, 377 478

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Índice Onomástico e Topográfico

Panofsky, Erwin: 35, 176-178, Pontormo, Jacopo: 275-276


180, 293, 427, 442 Praxíteles: 278-279, 396
Paris: 71, 74, 109, 211, 218, 228, Quincy, Antoine-C. Quatremère
230, 241, 299, 323, 358, 368, 385, de: 72
402, 425, 458, 472, 474, 483 Rafael (Sanzio): 16, 20, 24, 29-32,
Parma: 82, 159 34, 38, 52, 55, 57, 64-75, 78, 80, 83-
Pasíteles: 279 87, 90, 117, 125, 128, 130, 150, 161-
Penni, Giovanfrancesco: 65, 80, 162, 213, 255, 264, 297-303, 306,
300, 302, 306, 327 309-311, 316, 325, 330, 334, 341,
Perugino, Pietro: 17, 20, 29, 68, 347, 349, 354-357, 360-370, 371-
125, 309, 337-338, 340-344, 347- 375, 376-384, 400, 405, 407, 442-
358, 376 443, 448, 459, 470, 482
Peruzzi, Baldassare: 85, 333, 375- Raimondi, Marcantonio: 69, 310
376, 416 Rembrandt (van Rijn): 155, 184,
Petrarca, Francesco: 11, 14, 47, 266
171, 217, 224, 242-243, 276, 385- Roma: 11, 14-16, 18, 22, 29, 33, 38-
386, 388-389, 391-393, 395, 397- 39, 54, 57-58, 60, 62, 64, 66-67, 70,
398, 406, 418, 442 73-75, 77-79, 81-82, 84, 87-88, 119,
Pino, Paolo: 271-273, 291, 445 121, 123, 132, 134, 139, 144, 158,
Piombo, Sebastiano del: 24, 70-71 160-162, 167-168, 170, 173, 191-
Pisa: 24, 37, 57, 218, 222-223, 227- 192, 194, 213, 215, 217-218, 220-
228, 231-232, 236, 269-270, 335, 221, 224, 228-229, 232, 234, 236,
411, 430, 474 243-244, 248, 255, 258, 264, 290,
Pisano, Giovanni: 216, 222, 224, 299-301, 305-311, 317, 322, 327,
244, 474 331-334, 348-349, 356, 358, 360-
Pisano, Nicola: 37, 216, 221-222, 365, 369, 371, 377-378, 380, 386-
224, 227, 230-233, 236, 269, 474 397, 400, 404, 406-407, 420, 423,
Pistóia: 224, 474 434, 436-437, 441, 461-462, 470
Platão: 12-13, 31, 387, 444 Rubens, Peter Paul: 169, 174, 402,
Plínio, o Velho: 15, 37, 154, 171- 423
172, 278-279, 293
Plotino: 13, 444 Sangallo, Antonio da, o Jovem:
Pollaiuolo, Antonio: 262, 289, 85, 333, 361, 371
430-432 Sangallo, Francesco da: 275

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Índice Onomástico e Topográfico

Sangallo, Giuliano da: 15, 121, 288-290, 292-293, 296, 298-304,


422 309-310, 313-314, 316-318, 320-
Savoldo, Giovanni Girolamo: 323, 325-326, 329, 331-333, 337,
271-272, 483 339, 341, 344, 348-353, 361, 365,
Saxl, Fritz: 35, 193, 427 367, 370-371, 374, 401, 409, 421,
Sebastião (Dom): 61, 187, 471 426, 435, 439, 443, 445
Sforza, Lodovico (ou Ludovico): Vaticano: 15-16, 29-30, 33, 50, 56-
17-18, 25, 91-92, 98, 107, 110, 198- 57, 73, 76, 83, 86, 258, 264, 297-298,
199, 208-211, 287, 403, 416 302, 306-307, 309, 348, 350, 365,
Sicília: 17, 218, 220-221, 228, 299, 380, 403, 405-406, 459-460, 482
320 Vecchietti, Bernardo: 285
Sirigatti, Ridolfo: 285 Velásquez, Diego: 174
Soggi, Niccolò: 284-285 Veneza: 13, 15, 18, 54-55, 62, 94,
Tasso, Battista: 62, 275 132, 166-167, 169, 173, 175-176,
Tiepolo, Giambattista: 83 179, 188, 190, 199, 208-210, 213,
Tiziano (Vecellio): 38, 53, 59, 61, 228, 263, 272, 325, 331-332, 423,
166-167, 169-187, 291, 322, 324- 432, 457, 468, 473
325, 407, 461, 470-471 Verrocchio, Andrea: 25, 91-92,
Ucello, Paolo: 23 201, 212, 289, 410, 412
Urbino: 17, 29, 125, 170-171, 184- Virgílio: 37, 310, 393, 415
185, 457 Vitrúvio: 132-134, 146-147, 262,
Valori, Baccio: 285 358, 363, 367, 378, 381, 400, 432
Varchi, Benedetto: 27, 33, 132, Volterra, Danielle da: 280-281,
136, 139-140, 142-143, 272, 274- 284, 483
278, 283-284, 286-287, 291-292, Warburg, Aby: 35, 191, 193-194,
445 251-254, 256-267, 427-430, 440-
Varrão: 279, 364, 387 442
Vasari, Giorgio: 18-22, 24-25, 29, Winckelmann, J. J.: 251-252, 254-
31-33, 36-37, 61, 65-66, 70-71, 76, 258, 261, 263, 266, 441
78-79, 81, 89-90, 93-94, 96, 116-117, Wind, Edgar: 35, 427
122-131, 133-137, 139-140, 142- Zuccaro, Federico: 286
147, 149, 179-180, 188, 212, 217,
221-222, 224-225, 231, 235, 270-
273, 275-276, 278-280, 283-286,

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Biografia dos Autores

Letícia Martins de Andrade


Bacharelado em Artes Plásticas e Licenciatura em Educação Artística
pela UNICAMP (1990). Mestrado em História da Arte e da Cultura
pela mesma universidade (1999). Doutorado em História pela
UNICAMP, com estágio na Università degli Studi di Pisa (2004) e
pós-doutorado em História da Arquitetura pela FAU-USP (2006).
Atualmente é professora adjunta da UFSJ, onde leciona a disciplina
de História da Arte.

Juliana Barone
Graduada em Arquitetura e Urbanismo (PUCCAMP) e em História
(UNICAMP), escreveu sua tese de mestrado sobre Leonardo da
Vinci e a comparação entre as artes, paragone (UNICAMP). Seu
doutorado concentrou-se no estudo da recepção do Tratado da
Pintura de Leonardo no século XVII (Oxford, Trinity College).
Recentemente concluiu a redação de um livro, com Martin Kemp,
sobre os desenhos de Leonardo e de artistas de seu círculo em cole-
ções britânicas (exceto Windsor). Suas publicações incluem estudos
sobre Leonardo, Rafael, Dürer, Rubens, Poussin, Stefano della Bella,
Raphael Trichet Du Fresne, o Codex Urbinas Latinus 1270 (Roma,
Biblioteca Vaticana), o Codex Arundel (Londres, British Library)
e o Codex sobre o vôo dos pássaros (Turim, Biblioteca Reale). No
momento prepara seu livro Leonardo, Poussin e Rubens: estudos
sobre a teoria e representação do movimento humano.

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Biografia dos Autores

Maria Berbara
Mestre em História da Arte pela UNICAMP e doutora em História
da Arte pela Universidade de Hamburgo (Alemanha), leciona atual-
mente junto ao departamento de História e Teoria da Arte da UERJ.
É autora de diversos artigos e livros no âmbito do Renascimento ita-
liano e ibérico e dos intercâmbios artístico-culturais europeus nos
séculos XV, XVI e XVII.

Elisa Byington
Formou-se em sociologia na PUC-Rio e em história da arte na
Universidade de Roma – La Sapienza, onde se dedicou ao estudo
da obra de Giorgio Vasari, primeiro historiador do Renascimento
italiano. Autora dos livros Galleria Borghese – Os tesouros do car-
deal (2000) e Palazzo Pamphilj (2001), colabora periodicamente
com ensaios e artigos sobre arte clássica e contemporânea em
revistas especializadas.

Stefania Caliandro
Ensina e pesquisa na área de teoria da arte. Graduada na Universidade
de Bolonha, obteve um DEA francês (equivalente ao mestrado) e um
doutorado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris.
Ensinou na Universidade Marc Bloch de Estrasburgo e foi convidada a
ministrar um seminário intensivo na UAM-A, México. Obteve várias
bolsas, realizando pesquisas doutorais nas universidades canaden-
ses Laval e UQAM e, em seguida, três pós-doutorados: em semiótica
visual pela Universidade de Aarhus (Dinamarca); em estética pela
Universidade de Leuven (Bélgica flamenga); e em Teoria e História da
Arte pela Universidade de Freiburg (Suíça). Além de artigos e ensaios,
é autora do livro Images d’images. Le metavisuel dans l’art visuel (Paris,
L’Harmattan, 2008) e curadora de publicações de várias autorias. Foi
professora visitante no Instituto de Artes da UERJ e está desenvol-
vendo, entre outros projetos, uma reflexão sobre a espacialidade na
arte em diversas culturas e épocas.

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Biografia dos Autores

Leidiane Carvalho
Bacharel em História da Arte pela UERJ. Mestranda em História e
Teoria da Arte também na UERJ. Professora assistente da EBA-UFRJ.
Pesquisa atualmente a recepção da tradição clássica dentro da arte
contemporânea. Exerce atividades junto à montagem de exposições
e assistência de artistas contemporâneos no Rio de Janeiro.

Raphael Fonseca
Bacharel e licenciado em História da Arte pela UERJ. Mestre em
História da Arte pela UNICAMP, em que pesquisou “Do tirar polo
natural”, texto de autoria de Francisco de Holanda, pensando sua
possível relação com outras teorias do retrato e a produção destes
no território português durante a segunda metade do século XVI.
Atualmente é professor do Colégio Pedro II e professor substituto
de História da Arte na UERJ.

Nancy Ridel Kaplan


Pós-doutorado em História (2008), doutorado em História da
Política, Memória e Cidade (2004) e mestrado em História da
Arte e da Cultura (1998) pela UNICAMP. Possui graduação em
Licenciatura Plena em Educação Artística pela FAAP (1978).
Tem experiência nas áreas de História e Artes, atuando principal-
mente nos seguintes temas: Renascimento, arte italiana do século
XV, Andrea Mantegna e iconografia hieronimiana. Pesquisadora
Colaboradora no Depto. de História, IFCH - UNICAMP.

Fernanda Marinho
Doutoranda em História da Arte pelo IFCH - UNICAMP, con-
cluiu seu mestrado junto ao mesmo departamento e a graduação
em História da Arte pelo Instituto de Artes da UERJ. Desenvolveu
pesquisas relacionadas às pinturas do Quattrocento e Cinquecento
italiano conservadas em acervos nacionais (Rio de Janeiro e São
Paulo) e atualmente seus estudos voltam-se para o léxico icono-

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Biografia dos Autores

gráfico e conceitual do Renascimento italiano tratados no livro


L’Antirinascimento, de Eugenio Battisti.

Luiz Marques
Graduação em Ciências Sociais pela UNICAMP (1977), DEA em
Sociologia da Arte pela École des Hautes études en Sciences Sociales,
Paris (1979) e doutorado em História da Arte, pela Université de
Paris IV (Paris-Sorbonne) (1983). Foi Curador-Chefe do Museu de
Arte de São Paulo – MASP (1995-1997). É professor assistente dou-
tor do Depto. de História, IFCH, da UNICAMP. Especializou-se na
história da arte italiana dos séculos XV e XVI e suas relações com a
Tradição Clássica.

Claudia Valladão de Mattos


Professora de História da Arte no Instituto de Artes da UNICAMP
e pesquisadora do CNPq. Possui doutorado em História da Arte
pela Universidade Livre de Berlim e pós-doutorado pelo Courtauld
Institute de Londres. É autora de vários artigos e dos seguintes livros:
Goethe e Hackert: Sobre a Pintura de Paisagem (Ateliê Editorial,
2008), Lasar Segall. Expressionismo e Judaismo (Perspectiva, 2000),
O Brado do Ipiranga (EDUSP, 1999), Entre Quadros e Esculturas.
Wesley Duke Lee e os fundadores da Escola Brasil (Discurso Editorial,
1997), Lasar Segall ( EDUSP, 1996).

Alexandre Ragazzi
Especialista em História da Arte do Século XX pela Escola de
Música e Belas Artes do Paraná e mestre em História da Arte pela
UNICAMP. Doutor em História da Arte na UNICAMP – bolsista
Fapesp. Pesquisa fundamentalmente a literatura artística italiana
do século XVI – de Vasari a Lomazzo, com especial consideração
por Bernardino Campi e Armenini –, sendo que tem a atenção
voltada sobretudo para o uso de modelos plásticos auxiliares por
pintores.

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