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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE e PRÉ-ALAS

BRASIL.

GRUPO DE TRABALHO 03:


SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA DAS
EMOÇÕES

IMAGEM E IMAGINAÇÃO NOS AMORES CONTEMPORÂNEOS

Túlio Cunha Rossi


Doutorando em Sociologia –
Universidade de São Paulo - USP
Faculdade de filosofia, letras e
ciências humanas – FFLCH
Bolsista FAPESP

04 a 07 de setembro de 2012
UFPI, Teresina-PI
Este trabalho é uma síntese de observações e reflexões presentes em minha
tese de doutorado sobre a construção do amor no cinema hollywoodiano, mais
especificamente entre os anos 1990 e 2000. Seguindo a metodologia proposta por
Pierre Sorlin, foram analisados seis filmes, primeiramente em profundidade,
isoladamente e depois foram feitas observações acerca do conjunto, de conteúdos e
estratégias narrativas recorrentes nessa amostra. Foram analisados os seguintes
filmes: Uma Linda Mulher, Sintonia de Amor, Titanic, Do que as mulheres gostam,
Closer1 e O amor não tira férias. Por limitações de extensão deste texto, muitos
elementos considerados relevantes, particulares de cada filme não serão discutidos,
em favor da tentativa de apresentar reflexões pertinentes não apenas à amostra, mas
também a outras produções hollywoodianas que tenham como tema principal relações
amorosas.

As análises dos filmes permitiram identificar alguns elementos e construções


recorrentes, apesar de diferenças nos enredos e nas estratégias narrativas
empregadas em cada filme. Embora isoladamente possam parecer de menor
importância dentro de cada enredo, a reincidência de alguns desses elementos em
quase vinte anos de produções cinematográficas diferentes sugere a manifestação de
algo que é extra fílmico, indicando a persistência de algumas concepções consideradas
necessárias, ou, no mínimo, importantes para a construção de discursos fílmicos
referentes ao amor. Para tratar dessas reincidências e discutir seu papel expressivo do
ponto de vista sociológico, parte-se aqui do conceito de pontos de fixação de Sorlin:
Chamaremos de “pontos de fixação” um problema ou um fenômeno que, sem
ser diretamente implicado na ficção, aparece regularmente nas séries fílmicas
homogêneas e é sinalizado por alusões, repetições, uma insistência particular
da imagem ou de um efeito de construção.2
Nesta amostra, três pontos de fixação merecem destaque. O primeiro é a
referência a atos heroicos, a construção de uma relação entre uma pessoa que salva
ou resgata outra. Nos seis filmes analisados, o único que não traz referências textuais
diretas a isso é Sintonia de Amor, embora seja possível interpretar que esse tema é
aludido quando o protagonista Sam (Tom Hanks) parte em disparada para Nova York
em busca de seu filho de oito anos que viajara para lá sozinho para encontrar-se com
1
Dentro da análise, este filme foi utilizado como contraponto.
2
SORLIN, Pierre. Sociologie du cinéma. Paris: Aubier, 1982, p. 230.

2
Annie (Meg Ryan) no topo do edifício Empire State. Já em Uma linda mulher, Titanic e
Do que as mulheres gostam, a referência é mais direta e específica entre os amantes:
Vivian (Julia Roberts) conta para Edward (Richard Gere) de quando era criança e se
imaginava presa em uma torre e sendo resgatada por seu príncipe encantado. Ao final,
Edward, em alusão a essa fantasia, “resgata” Vivian e ela, segundo suas próprias
palavras, “o salva de volta”.
Em Titanic, Além de Jack (Leonardo di Caprio) ser referido por Rose (Kate
Winslet) como alguém que a salvou de todas as maneiras imagináveis, o discurso e a
construção de sequências de salvamento são presença constante no filme, ora Rose
salva Jack, ora Jack salva Rose e, no fim das contas, Rose salva a si mesma. Já em
Do que as mulheres gostam, na última sequência, em que Nick (Mel Gibson) vai se
confessar para Darcy (Helen Hunt), ele diz: “Parece que estou sendo todo heroico aqui
à uma hora da manhã, tentando salvar você, mas a verdade é que sou eu quem
precisa ser salvo aqui”. A isso, segue-se a inversão de papéis atribuídos a masculino e
feminino que o filme sugere, em que Darcy se coloca como “cavaleiro em armadura
brilhante” e “salva” o homem que ama.
Além dessas referências, a ideia é aludida em Closer desde a primeira
sequência, em que, após o atropelamento de Alice/Jane Jones (Natalie Portman), Dan
(Jude Law) vai em seu socorro e a leva para o hospital. Depois, a referência a um
caráter heroico aparece em forma de escárnio, quando Larry (Clive Owen), depois de
reconquistar Anna (Julia Roberts), diz para seu rival: “Para um grande herói romântico
como você, eu sou bem comum, ainda assim, eu sou quem ela escolheu e devemos
respeitar a escolha dela”. Além disso, a personagem de Natalie Potman adota, durante
quase todo o filme, um nome que vira em um monumento em homenagem a pessoas
que teriam morrido heroicamente: Alice Ayres, filha de um pedreiro que salvara três
crianças de uma casa em chamas. Por último, em O amor não tira férias, a referência
ao heroísmo não se dá necessariamente em personagens construídas como amantes
ou potenciais amantes, mas ajuda na construção favorável de Iris (Kate Winslet) que,
ao ver Arthur (Eli Wallach) perdido na vizinhança, “salva-o”, oferecendo-lhe uma carona
até sua casa. Arthur agradece Iris, em suas palavras, por “resgatá-lo”, não por
simplesmente lhe dar uma carona.

3
O segundo ponto de fixação é a presença de referências a filmes dentro da
narrativa, com alusões e cenas de outros filmes. Em Uma Linda Mulher, além de Vivian
trabalhar em Hollywood Boulevard, das prostitutas marcarem seus territórios de acordo
com as estrelas da calçada da fama e fazerem menções diversas aos astros, há
referências à Audrey Hepburn, seja em um filme que Vivian assiste na televisão, seja
em uma tomada da joalheria Tiffanny’s e outras aproximações perceptíveis entre a
protagonista de Bonequinha de Luxo e a de Uma linda mulher. Em Sintonia de Amor,
mais do que referências à Tarde demais para esquecer, a relação das personagens
com o filme é fundamental tanto para a construção do feminino quanto para o
desenrolar da história e o encontro final do par central, uma vez que o lugar – o topo do
edifício Empire State – foi escolhido por Annie em referência direta ao filme que ela
assistia enquanto escrevia sua carta para Sam.
Em Titanic, quando Jack se encontra com Rose para jantar na primeira classe e
beija-lhe a mão num ato de cavalheirismo, ele logo diz que vira aquele gesto no cinema
e sempre quisera fazer aquilo um dia. Por último, em O amor não tira férias, as
referências a filmes e ao meio cinematográfico são constantes na construção do
enredo e das personagens que, no arco norte-americano da trama, trabalham (ou
trabalharam) todas na indústria cinematográfica . Além disso, há a lição que o filme
sugere de que Iris deve agir como a “atriz principal” de sua vida. Em Closer, embora a
relação com cinema não seja construída, toda ênfase na questão dos olhares, jogos de
imagens e inclusive da fotografia através da personagem Anna permite, em seu
emprego como contraponto, problematizar relações entre imagem e amor e os
direcionamentos de olhares operados dentro e fora do cinema no que concerne às
relações afetivas.
O terceiro e último ponto de fixação aqui remarcado é a expressão mais ou
menos direta de nostalgia ou uma relação com elementos marcados como do passado
de maneira a constituir uma relação de valores em que tais elementos pareçam
favorecidos em relação ao presente. Em Uma Linda Mulher, tal construção se
manifesta por meio do velho Sr. Morse, industrial que resiste até o último momento em
vender sua empresa, defendendo seu vínculo afetivo com ela e seu valores de
“construção” em contraponto ao tipo de negócio que Edward opera, de desmantelar

4
grandes empresas e revender as partes, o que é construído negativamente no filme.
Em Sintonia de Amor, essa ideia é explícita nas referências a Tarde demais para
esquecer, podendo ser resumida na seguinte frase de Annie enquanto assiste ao filme:
“Aquela era a época em que as pessoas sabiam amar.” Em Titanic, a relação com o
passado é ainda mais crucial, considerando que o filme trata, basicamente, das
memórias de uma senhora idosa sobre sua experiência durante a viagem e o
naufrágio. Além de fazer revelações sobre seu encontro de amor naquela viagem, ao
final do filme, quando se entende que a senhora falece e está para entrar em outro
plano, ela retorna justamente ao cenário do navio – que está como novo – onde
reencontra as pessoas que lá conhecera e o seu amado, o que sugere que, apesar de
todos os anos vividos, seu maior desejo pós vida é de retorno àquele momento e
reencontro com as personagens que participaram dele.
Em Do que as mulheres gostam, além das constantes referências musicais aos
sucessos de Frank Sinatra, há o problema central de Nick e seu chefe Dan, grandes
publicitários para o público masculino nos anos 1980 que se veem acuados por um
mercado consumidor feminino em crescimento nos anos 2000. Em Closer, tal relação
com o passado aparece sutilmente em diferentes momentos, podendo ser destaca em
Dan, construído como pretenso herói romântico, seja nas lembranças que ele nutre e
compartilha da falecida mãe, seja em seu último momento com Alice, em que eles
relembram seu primeiro encontro e Dan insiste em conjugar frases como: “Você era
perfeita” e “Aquele foi o momento da minha vida”, enquanto a moça tenta chamá-lo ao
presente, respondendo: “Eu ainda sou [perfeita]. Este é o momento da sua vida”. Já em
O amor não tira férias, a nostalgia é abertamente expressa pelo roteirista aposentado
Arthur e suas críticas às produções hollywoodianas atuais, com referências diretas ao
cinema clássico como “melhor”, além de referir-se à Hollywood de sua juventude, como
“melhor” do que sua interlocutora Iris seria capaz de imaginar.
Considerando esses três pontos de fixação, há dois elementos característicos de
correntes literárias românticas: a distinção moralizada da personagem “merecedora” do
amor – o que é expresso nesses filmes por seu caráter heroico – e a nostalgia. A
capacidade de “salvar”, de agir “heroicamente” é parte constitutiva do caráter distintivo
da personagem central, como prova de merecimento da graça amorosa, construída não

5
como universal, mas como restrita a poucos. Em relação à nostalgia, concorda-se aqui
com Elias:
Uma das formas pelas quais os sentimentos podem se expressar
simbolicamente é a projeção dos próprios ideais num sonho de uma vida
melhor, mais livre e mais natural, situada no passado. A luz romântica que
caracteriza essa evocação do passado traduz uma nostalgia irrecuperável, um
ideal inatingível, um amor irrealizável. Trata-se do conflito de homens que não
podem destruir as coerções sob as quais vivem – sejam elas de poder,
civilizadoras, ou uma junção dos dois tipos – sem destruir os fundamentos e as
marcas distintivas de sua posição social elevada, aquilo que dá sentido e valor
3
às sãs vidas do próprio ponto de vista – sem destruir a si próprios.
A persistência destes dois elementos no cinema hollywoodiano contemporâneo
sugere a manutenção de percepções cultural e historicamente consolidadas do amor
romântico. A nostalgia, em grande parte, é expressão do desejo frustrado de
transformar o presente; indicando uma insatisfação que não é simplesmente com uma
situação particular, mas com todo um contexto mais amplo das relações de poder e dos
valores que nele predominam, quando parecem se sobrepujar às possibilidades
individuais de sucesso e contentamento. Em certa medida, isso muda no cinema, não
tão expressivamente como referência a uma ordem social diferente, mas enquanto
indicador de caráter exclusivamente pessoal. Nos filmes aqui observados, a nostalgia
não opera no sentido de tornar o passado um lugar melhor, mas sim no sentido de
favorecer a construção do caráter das personagens que manifestam essa nostalgia. De
tal forma que a ideia construída é a de que aqueles que nutrem os valores construídos
como do passado – às vezes tratados como esquecidos - é que são melhores, que
podem tornar o presente melhor e reafirmam que seus valores, embora pareçam
ultrapassados, não apenas resistem às mudanças mais amplas como ainda
compensam e justificam sua distinção moralizada dos demais. Isso confere a seus
discursos e crenças sobre o amor um aspecto de algo que transcende o tempo como
valor universal.
Quanto à construção do heroísmo, o que se nota é que, se nos romances da
Idade Média, essa tenderia a ser uma exclusividade masculina, nos filmes aqui
analisados, ela é construída em personagens femininas, a não ser por Annie, de
Sintonia de Amor. Entende-se que essas referências ao heroísmo aparecem

3
ELIAS, Norbert. A Sociedade de corte, Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 227.

6
associadas nesses filmes à mística do príncipe encantado que, de acordo com
Chaumier:
[...] virá se inscrever em continuidade, levando as mulheres a crerem que o
sentido de sua existência é algo escondido. Em uma existência vazia, o amor
virá preencher essa falta. A mulher espera do homem uma confirmação de sua
identidade, um reconhecimento, uma afirmação. [...] O jogo amoroso é
idealização da fantasia do reconhecimento: “o outro me dará minha
4
identidade... ele faz de mim alguém” .
No entanto, nos filmes aqui analisados ela não é limitada às mulheres, indicando
que o homem também carece de ser “salvo”, no sentido de ter sua identidade
resgatada, sendo ambos expostos ao perigo de se perderem, seja em um casamento
arranjado, como Rose, seja numa relação vazia com o dinheiro como Edward, ou na
condição de homem que coleciona conquistas sexuais, mas é solitário e incapaz de
estabelecer uma conexão afetiva com alguém, como seria o caso de Nick em Do que
as Mulheres Gostam.
A construção do heroísmo nas histórias de amor, dentro e fora do cinema,
parece sugerir que a conquista do amor demanda superação, coragem, enfrentamento
de algum grande desafio que a valorize. E esse grande desafio, como os filmes aqui
analisados constroem, tende a ser de superação dos próprios valores e crenças: é
preciso que a prostituta acredite que possa ser mais e ser amada por um milionário, é
preciso que o homem viúvo acredite na possibilidade de seu verdadeiro amor estar do
outro lado do país, é preciso que a mulher mal amada de O amor não tira férias
acredite em si como personagem principal e quebre o ciclo de submissão e expectativa
em seu amor não correspondido. Isso indica, nesses filmes, que os perigos para os
amantes são cada vez mais percebidos como de caráter pessoal e não tanto externos,
como uma ordem social opressora, diferença de classes ou as restrições de um
casamento infeliz que não poderia ser dissolvido.
É interessante observar que aquilo a princípio é construído como “heroísmo”,
logo perde sentido ao se considerar que não expressa nenhuma forma significativa de
altruísmo ou sacrifício, mas apenas a afirmação de méritos individuais. A não ser no
caso de Jack em Titanic, não há heroísmo, mas, no máximo, uma troca direta, como
em Uma Linda Mulher, onde, nas palavras de Vivian, Edward a salva e ela o salva de
volta. E, nesse sentido, como construído nos filmes aqui analisados, tem-se a forte
4
CHAUMIER, Serge. La déliaison amoureuse. Paris: Armand Colin, 1999, p. 170 (grifo nosso).

7
impressão de que esses atos “heroicos” funcionam mais como dádivas que, tendo um
caráter aparentemente voluntário, geram um vínculo, uma relação, no fundo da qual, há
obrigação e interesse5. De tal forma que os atos “heroicos” nesses filmes funcionam
para promover, de imediato, alguma espécie de comprometimento, obrigação, débito,
com o amado salvo em relação a seu salvador. Se por um lado isso pode ser
considerado normal, por outro, contrapõe-se a própria idealização liberal do amor
enquanto escolha individual dos amantes baseada em seus desejos e afinidades e
favorecida pelo destino. De tal forma que o mesmo discurso que enfatiza a liberdade e
autonomia dos amantes é o que constrói uma relação moral de débito entre eles
fundamental para a manutenção de seu vínculo.
De maneira geral, as personagens desses filmes necessitam obrigatoriamente
se distinguir do “comum” ou pelo menos do que é comum em sua vida para poderem
usufruir do amor. Então, embora haja hoje o discurso do amor como experiência
universal, o direito a essa experiência é construído nos filmes na chave da distinção, do
merecimento conquistado por atos de heroísmo ou a promoção de outros valores
moralmente reconhecidos, remetendo a aspectos dos códigos do amor na literatura
que remarcam distinções que remontam a relações de estratificação social:
Importante era: conseguir distanciar-se da satisfação trivial, vulgar, imediata
das necessidades sensuais no seio de uma aristocratização crescente da
estrutura estratificada, existente na Idade Média. Em tudo isto é determinante
a referência à estratificação social e só excepcionalmente a referência à
individualidade – para isso bastando que o amor se transferisse para o campo
do ideal, do inverossímil, do atingível apenas através dos méritos especiais (e
não através do casamento!)6.
Essa distinção é afirmada por valores que são cultural e socialmente
incentivados, o que, no caso dos filmes estadunidenses, encontra proximidade com os
ideais de obstinação do self made man, a persistência, mas, principalmente, um ar
“sonhador”, a capacidade de imaginar, de se projetar além da própria realidade, de não
aceitá-la em suas condições mais objetivas e imediatas. Essa perspectiva mais afasta
do que aproxima a construção dos ideais de amor no cinema de uma relação
pragmática com a realidade. Nesse sentido, o ponto de fixação das várias referências
que os filmes fazem ao próprio cinema – principalmente hollywoodiano – revela sua

5
Cf. MAUSS, Marcel, Ensaio sobre a dádiva, São Paulo: Cosac Naif, 2003, pp.187-188
6
LUHMANN, Niklas. O amor como paixão para a codificação da intimidade. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1991, p. 49.

8
importância: esse cinema que, abertamente, clama para si o título de terra dos
sonhos7, onde tudo pode acontecer e onde os desejos se realizam é a oferta pronta,
técnica e ricamente construída das idealizações. Mais do que construir discursiva e
imageticamente a realização de ideais que se encontrariam restritos ao universo da
imaginação, ela constrói visual e discursivamente os próprios ideais, abertamente
declarados como distintivos da realidade, com as referências constantes aos sonhos,
mas apresentados como melhores. E assim, eles sinalizam ideais construídos como
moralmente preferíveis em relação a outros. Nesse sentido é sintomática a tendência
hollywoodiana a construir filmicamente de maneira positiva apenas relações afetivas
que se convertam em relações de amor que sugiram continuidade, não raramente,
culminando no casamento. Confome Bidaud:
Os rituais de sedução visam a glorificar, ao fim do percurso, o casamento. O
cinema hollywoodiano clássico é pouco inclinado a fazer do amor louco um
modelo: a paixão deve entrar rapidamente nas normas, do contrário ela
assume as cores da destruição e da morte. Todas as personagens femme-
fatales, de Theda Bara à heroína de Instinto selvagem confirmam sua
8
dimensão antissocial maléfica.
Construir a experiência amorosa nos filmes na chave das distinções e
valorativas do que esses mesmos filmes constroem como “realidade”, a qual deve ser
sempre superada em nome dos ideais e da crença na força transformadora do amor
sugere a existência de formas específicas e socialmente reconhecidas de se conceber
o amor que necessariamente passam pela valorização do imaginário. E ao se afirmar
como terra de sonhos, Hollywood se torna uma referência importante não tanto porque
sugere a realização da fantasia amorosa, mas precisamente porque reforça a
significância de seu aspecto imaginário. Mais importante do que realizar os sonhos, é,
como nas palavras finais de Uma linda Mulher, “continuar sonhando”, porque é
precisamente o “continuar sonhando” que dá reconhecimento e legitimidade a
experiência do amor romântico. Com a diferença que, culturalmente, buscou-se – com
algum sucesso – incorporar à prática o máximo de elementos constituídos como de
sonhos.

7
Isso é diretamente referido no início e no fim de Uma Linda Mulher e aludido em O Amor não tira férias,
pelas referências à lenda do vento Santa Ana, que sopra na região onde Hollywood está localizada.
Segundo Miles (Jack Back), Quando aquele vento sopra, “qualquer coisa pode acontecer”.
8
BIDAUD, Anne-Marie. Hollywood et le rêve américain. Paris: Masson, 1994, p.160.

9
O amor romântico deixou de ter um caráter rebelde que encontrava em relações
“impossíveis” o seu aspecto de sonho e fuga para ser a regra, tornando a busca pela
realização de ideais um elemento fundamental em estilos de vida contemporâneos. E a
possibilidade de relações sucessivas, aliada ao discurso de buscar os sonhos tornado
como regra, permite cada vez mais experiências amorosas de intensidade e
durabilidade variáveis, com o aspecto da continuidade ficando em segundo plano –
embora ainda almejada enquanto desejo de estabilidade e segurança. Conforme
Rougemont já apontara: “o amor romanesco vence uma série de obstáculos, mas não
resiste ao último: o tempo.”9
*
Dois elementos se sobressaem nas concepções de amor vigentes na
contemporaneidade e potencializam contradições e angústias nas vivências amorosas.
O primeiro é o emprego da imaginação; o deslocamento e definição do amor como
objeto de um mundo mais próximo do onírico, fundamentalmente ideal e mental. Esse
aspecto é reconhecido, mas tende-se a rechaçar seu componente racional
normalmente envolvido no senso de planejamento e estruturação das próprias
idealizações e desejos dentro de uma narrativa individual. Segundo Chaumier:
Não se deve subestimar o papel do imaginário na invenção de novas relações
que, por intermédio das referências que, por intermédio de representações
sociais, fornece quadros e padrões amorosos. O amor moderno é um vai e vem
constante entre o real e o imaginário. Bem descrito por Stendhal, a
cristalização – isso é, o fato de idealizar outro para vir a amá-lo, forma de
excrescência do sentimento espontâneo – se tornou o sinônimo do amor no
ocidente.10
O segundo elemento é a presença consolidada de mídias de comunicação
audiovisuais que oferecem modelos narrativos e de construções simbólicas, visuais e
causais que já se tornaram naturalizadas nas sociedades contemporâneas, operando
uma relação cada vez mais indiferenciada com as imagens construídas, como se essas
correspondessem ou, mesmo, superassem as experiências da vida prática. Constrói-se
então uma noção de verdade para o amor e suas diretrizes morais que,
aparentemente, “só pode ser propriamente verdadeira por ser, e, enquanto for,
imagem. O problema crucial é saber se ainda existe alguma outra”11. O exercício da

9
ROUGEMONT, Denis de. O amor e o Ocidente. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988, p. 205.
10
CHAUMIER, Serge. Op. cit., p. 27.
11
MENEZES, Paulo. Op. cit., 2001, p. 46.

10
imaginação, enquanto componente de algo apresentado como meta culturalmente
estabelecida a ser atingida por todo indivíduo, ao deparar-se com uma indústria
especializada em converter fantasias e idealizações em imagens gravadas e
aparentemente realistas, encontra um referencial com grande potencial para influenciar
comportamentos na construção e na busca dessa experiência ideal a ser realizada.
Nas produções hollywoodianas, constituem-se modelos visíveis de experiências
a princípio consideradas irrealistas que frequentemente visam a se comunicar não
tanto com a suposta “realidade” do público, mas, precisamente, com desejos, sonhos e
projeções mais ou menos distantes da vida prática. No caso do amor, mais
especificamente, não se trata de captar sua “realidade” – se é que isso é possível –
mas de construir visualmente seus ideais de superação, grandeza e transformação. O
amor, como se tem observado, é antes um ideal social e culturalmente construído que,
enquanto sustentado por crenças, não só é passível de se transformar, como de fato se
transforma.
Seria então arriscado separar as percepções de amor contemporâneas de suas
“imagens”, sejam elas construídas mentalmente a partir da literatura, de histórias
contadas, ou construídas filmicamente e em outras mídias audiovisuais. Enquanto
ideal, o amor é referência moralizada para interpretação e orientação de experiências e
projetos mais ou menos concretos. De tal maneira que o amor se realiza, sobretudo, na
crença e nas interpretações morais que orientam as experiências, as relações afetivas
e sexuais. E, obviamente, estas não estão restritas ao plano das ideias ou do
imaginário, manifestando-se corporal e emocionalmente. Assim, concorda-se quando
Eraly afirma que o amor é “uma constelação de percepções, posturas, tendências,
sentimentos suscitados por uma pessoa em diferentes situações [...]”12.
Se não apenas a compreensão, tanto da realidade de maneira mais ampla,
como da vida particular, de seus sentidos e potenciais objetivos, depende de
interpretações social e culturalmente balizadas, contextualmente localizadas e
aprendidas, não se pode separar a experiência vivida das formas com que se aprendeu
a avaliá-la, reconhecê-la e orientar-se perante ela. Assim, recursos empregados na

12
ERALY, Alain. L’amour éprouvé, l’amour ennoncé. In ERALY, Alain & MOULIN, Madeleine (org).
Sociologie de L’amour. Université de Bruxelles, 1995, p. 42 (grifo nosso).

11
socialização, desde a referência a mitos, aos ensinamentos formalizados de
instituições educacionais, passando por contar histórias com lições de moral ou,
simplesmente, planejar o futuro – seja o próprio, o de uma relação ou de outra pessoa,
como um filho – revelam-se aspectos fundamentais da orientação dos comportamentos
e transmissão de valores que definem as vivências práticas tanto ou talvez mais do que
são definidas por elas.
Entendendo que os comportamentos e ações na vida em sociedade são
orientados por valores e que estes não são intrínsecos aos objetos e às coisas, mas
culturalmente construídos, significados e transformados, concorda-se com Weber
quando este aponta que:
[...] a significação que para nós tem um fragmento da realidade não se
encontra evidentemente nas relações que compartilha, tanto quanto possível,
com a maior parte dos outros elementos. A relação da realidade com as ideias
de valor que lhe conferem uma significação, assim como o sublinhar e ordenar
os elementos do real matizados por esta relação sob o ponto de vista da sua
significação cultural constituem perspectivas completamente diferentes e
distintas da análise da realidade levada a cabo para conhecer as suas leis e a
13
ordenar segundo conceitos gerais .
Dessa maneira, acredita-se que, no presente contexto, os discursos e imagens
que o cinema constrói sobre o amor constituem parte de uma significação cultural, a
qual é, em grande medida, compartilhada ao se considerar a presença e o alcance de
mídias audiovisuais diversas hoje. Considerando essas mídias como importante veículo
de difusão de modelos de práticas e interpretação de significações, a análise de um de
seus produtos mais difundidos – os filmes – ganha relevância para a interpretação de
comportamentos baseados em juízos de valores.
Em sua recente análise dos hábitos de consumo de bens culturais na França
nos anos 2000, Lahire lembra que “adolescentes e pós adolescentes cresceram em um
novo estado de oferta cultural (comparado àqueles que viveram sua adolescência nos
anos 1960), caracterizado por uma forte presença das mídias audiovisuais.”14.Esse
contato diferenciado com mídias audiovisuais afeta a maneira como essas gerações
percebem a própria realidade e se orientam perante ela, bem como nos modos com
que constituem planos e idealizações para a própria vida e constroem a si mesmos.

13
WEBER, Max. A objetividade do conhecimento nas ciências sociais, in Ensaios sobre a teoria das
Ciências Sociais São Paulo: Centauro, 2008, p. 35.
14
LAHIRE, Bernard. A cultura dos indivíduos. São Paulo: Artmed, 2006, p. 516.

12
No presente, o comércio das imagens e sensações é a âncora identificatória
dos indivíduos. Saber quem ou o que se é significa tomar: a) o que se
“experimenta” como sensações e b) o que é oferecido nos modelos
publicitários como critério para saber o que se deve ser. As drogas legais ou
ilegais, os cuidados corporais, as imagens televisivas deixaram de ser meios
marginais na construção das identidades subjetivas; tornaram-se os
15
instrumentos por excelência de acesso “às verdades de nossa natureza .
O amor romântico, ainda hoje, aproxima-se da literatura não apenas por seu
caráter de idealização e desejo de fuga da realidade, mas também pela ideia de o
indivíduo conceber seu próprio romance, converter a própria vida em uma “narrativa do
eu”16 e, enquanto tal, construir reflexivamente a própria identidade, na qual o ser
amado tem papel fundamental ao oferecer reconhecimento. Nisso, o papel da
imaginação é fundamental na constituição de narrativas pessoais, embora esse
processo às vezes passe despercebido uma vez que tende a ser naturalizado.
Conforme Solomon:
O amor não é apenas uma paixão momentânea, mas um desenvolvimento
emocional, uma estrutura narrativa tão familiar e aparentemente tão ‘natural’
para nós que raramente pensamos nela como uma história, um roteiro que
somos ensinados a seguir, com todas suas progressões, conflitos e soluções
17
previsíveis .
*
Embora Giddens sugira que “na época atual os ideais de amor romântico
tendem a fragmentar-se.”18, o que se entende aqui é que não há enfraquecimento do
amor romântico, mas justamente o oposto. Segundo Chaumier: “O ideal se torna um
mito tal que toda forma de amor se torna sinônimo de amor romântico, ao ponto em
que tenhamos todas as dificuldades em conceber, ainda hoje, outra forma de amor”19.
O modelo de amor romântico então predomina, mas hoje já não está necessariamente
atrelado à constituição de uma família nuclear burguesa, enquanto vínculo duradouro
para a vida inteira, embora ainda seja idealizado por muitos como tal. As possibilidades
de se viver sucessivamente a experiência intensa do amor romântico são maiores e
são constantemente experimentadas. No entanto, tendo o casamento perdido, para

15
FREIRE COSTA, Jurandir. Sem fraude nem Favor. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 215.
16
por “narrativa do eu”, entende-se: “a estória (ou estórias) por meio da qual a auto-identidade é
entendida reflexivamente, tanto pelo indivíduo de que se trata quanto pelos outros.” In GIDDENS,
Anthony. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p. 222.
17
SOLOMON, Robert. About love – reinventing romance for our times. Lanham: Rowman & Littlefield,
1994, p. 97.
18
GIDDENS, Anthony. A Transformação da Intimidade. São Paulo: UNESP, 1992, p. 72.
19
CHAUMIER, Serge. La déliaison amoureuse. Paris: Armand Colin, 1999, p.121.

13
muitos, a força do status legitimador da relação amorosa, o reconhecimento desta tem
se limitado a sensações passageiras e elaborações cada vez mais complexas de
interpretação dessas sensações e das experiências para avaliar se podem ou não ser
nomeadas de “amor”.
A idealização romântica é ainda mantida e estimulada na busca por laços
afetivos, uma vez que se entende que a experiência de momentos ideais não só é
realizável como obrigatória. O emprego consciente da imaginação e da idealização
torna-se reconhecido como elemento confirmador do estado amoroso:
A idealização é mostrada no argumento dos filmes através da inclinação dos
amantes a lidar com a separação a fim de atingir a união. De fato, o período de
separação é um símbolo chave de que o romântico de sucesso é capaz de
construir seu objeto romântico como ‘ideia’, sem contato físico ou sexual,
doravante, preenchendo o requisito do amor verdadeiro como fonte mais de
prazer emocional do que de prazer sensual20.
Portanto, se uma parte essencial e legitimadora para um relacionamento
amoroso na contemporaneidade é o exercício intenso da imaginação, o estímulo ao
pensamento e à projeção, a distinção entre ideal e real, no campo do amor considerado
legítimo, perde sentido. Na concepção de relação afetiva-sexual ideal que se tornou
predominante, a existência do amor só é reconhecida pela capacidade individual de
imaginá-lo, projetar-se fora do presente, para além da experiência imediata. E esse
trabalho imaginário, mental e individualizado é a única possibilidade de diferenciação
de expressão amorosa na relação quando as possibilidades contemporâneas de
escapar dos ideais de exclusividade sexual e durabilidade são correntes. A experiência
sexual, mesmo intensa e significativa, uma vez encerrada em si, tende a não ser
qualificada como amorosa; uma vez encerrada, se assume como passageira, portanto,
fugaz, contrapondo-se ao ideal sublime, o qual deve persistir no tempo, ao menos pelo
estímulo da memória. Mas o mais importante aqui não é nem a “qualidade”, nem a
intensidade dessa relação, mas, simplesmente, o sentido a ela atribuído, que é
completamente contingente.
A crítica recorrente ao caráter fantasioso das histórias hollywoodianas de amor,
com a reafirmação de que “a vida não é como nos filmes”, tem pouca relevância para

20
WILDING, Raelene, Romantic love and ‘Geting married’. Journal of Sociology, The Australian
Sociological Association, Volume 39, 2003, p. 378.

14
as vivências do amor contemporâneas uma vez que, para a experiência
romanticamente idealizada e tomada como legítima, a referência que se busca não
está no que se concebe como realidade em oposição à ficção cinematográfica,
televisiva ou literária. Todas essas se tornam componentes da própria experiência,
especialmente quando ela é pensada em termos narrativos. Uma vez que se aprende a
ver e interpretar a vida íntima como um romance, com uma estrutura mais ou menos
definida, mas que é, antes de tudo, um projeto mental que valoriza a possibilidade de
visualizar a si e ao outro fora do presente e além da experiência, o amor só é vivido e
reconhecido se tal aspecto imaginativo estiver presente. Contudo, como a realização
ainda é considerada uma meta, algo que dá valor e corpo ao ideal, uma vez
experimentados seus aspectos mais intensos, mais próximos de tudo que fora
idealizado, há tanto a possibilidade de ressignificar a relação e os próprios conceitos de
amor em nome da durabilidade e persistência do relacionamento quanto de se buscar
outro amor. Como apontara Beck:
[...]alguém que em nome do amor verdadeiro sacrifica um casamento, laços de
família, paternidade, talvez num extremo, mesmo o bem estar daquele
dependente dele/a, não está cometendo um pecado, mas apenas obedecendo
às regras, respondendo ao chamado do coração e buscando completude para
ele/a e outros. Ele ou ela não deve ser culpado; seria errado agarrar-se a uma
21
ordem a qual não valorizaria o amor como elevado o bastante.
Dentro da concepção da vida íntima e amorosa como narrativa, parece ainda
haver a dificuldade em dissociá-la da imagem de um longo romance, no qual os
eventos devem se conectar em continuidade até uma conclusão definitiva. Em
contrapartida, a experiência, pelas condições contemporâneas, parece conduzir a algo
mais próximo de uma coletânea de histórias menores, sucessivas, não
necessariamente conectadas entre si, com seus próprios desenlaces. Mas como se
percebe no que ainda é reproduzido no cinema e no senso comum, há a valorização da
relação única, que, uma vez considerada legítima, torna todas as outras ressignificadas
como erros, acidentes de percurso percebidos como necessários para algum
aprendizado e provação até o encontro do verdadeiro amor.
Os modelos de amor dos filmes aqui abordados, embora tratados criticamente
no senso comum como diferenciados e insustentáveis do ponto de vista prático,
constituem parte fundamental da experiência amorosa contemporânea ao estimular a
21
BECK, Ulrich & Elisabeth. The Normal chaos of love, Cambridge: Polity, 2002, p. 173.

15
idealização e a persistência do pensamento e da imaginação essenciais para o
reconhecimento da condição amorosa. Se a visão predominante de amor na
contemporaneidade valoriza que se imagine, que se sonhe, que se fantasie e se realize
tudo isso em um projeto de vida a dois que pareça predestinado, é porque a
experiência amorosa só adquire significância enquanto tal justamente quando, assim
como nos filmes, supera as próprias concepções de realidade. E tal superação se torna
possível não porque o amor transforma a realidade de fato, mas porque os olhares
sobre a realidade são transformados em função dele. De tal maneira que os modelos
de amor hollywoodianos não precisam nem devem ser “realistas”; o que lhes confere
legitimidade é justamente sua capacidade de subverter as concepções de realidade
que não acreditam nele e triunfar sobre elas. Isso é perceptível na diferenciação entre
as protagonistas dos filmes aqui analisados e demais personagens a seu redor: Em
Uma linda mulher, Vivian diferencia-se de sua amiga Kitty por não aceitar a sua
“condição real” de prostituta, assim como em Sintonia de Amor, Annie distingue-se de
Becky por seu ar sonhador e por, nas palavras de Becky, “não querer estar
apaixonada, mas querer estar apaixonada em um filme”. A heroína se distingue pela
capacidade de fantasiar, de projetar-se fora do que é construído no filme como sua
realidade. E não se trata de uma invenção especificamente hollywoodiana, mas,
conforme Campbell, da manifestação de um hedonismo caracteristicamente moderno
que sobrevaloriza a experiência do prazer pelo autoestímulo da imaginação, mais do
que por sua experiência sensual.22 Com a diferença que, no contexto contemporâneo,
busca-se mais intensamente a conjunção dos dois, sendo que o amor romântico já se
tornara percebido como acontecimento natural, mais do que como uma complexa
expressão de anseios e projeções culturalmente estimuladas.
O amor dito romântico não é então um afeto eterno e universal. Trata-se mais
de um sentimento situado socialmente e historicamente (Dayan – Herzbrun,
1982). Não que suas ligações não existissem nas ditas sociedades tradicionais,
mas simplesmente elas são controladas de maneira diferente. Elas não são
nem o fundamento da identidade, nem a finalidade da vida conjugal. Trata-se
de situar a problemática do amor em relação a um reconhecimento social, uma
23
legitimidade e não a uma gênese do amor em si .

22
Cf. CAMPBELL, Collin. A ética romântica e o espírito do consumismo moderno. Rio de Janeiro: Rocco,
2001.p. 103.
23
CHAUMIER, Serge. Op. cit., p. 127 (grifo nosso).

16
A experiência amorosa culturalmente constituída encontra nos filmes um
excelente meio de difusão de sua linguagem e expressividade em dimensões diversas:
desde o aprendizado do que seria uma trilha sonora adequada para um jantar, para
uma noite íntima ou para um pedido de casamento, passando pelo gestual – como
beijar, como abraçar, como olhar – e pelos discursos para compor referências claras e
visíveis do que buscar e do que esperar. Não cabe aos filmes transmitir imagens
“realistas” do amor quando este se trata essencialmente de uma idealização que visa a
distinguir-se da realidade para poder transformá-la. Precisamente por isso que os
modelos de amor difundidos no cinema hollywoodiano se sustentam na
contemporaneidade e tomam parte nos projetos de vida e nas formas de interpretação
dos sentimentos e das experiências dos indivíduos. Não porque constituem uma
relação de fidedignidade, mas porque valorizam a imaginação, a projeção romântica, o
diletantismo, em nome de uma conquista transcendental. E o amor cinematográfico
“convence” porque, na síntese do roteiro, ele é estabelecido dentro de uma estrutura
lógica, com sentido, causas e consequências bem definidos.
A impressão de realidade baseia-se também na coerência do universo
diegético construído pela ficção. Fortemente embasado pelo sistema do
verossímil, organizado de forma que cada elemento da ficção pareça
corresponder a uma necessidade orgânica e apareça obrigatório com relação a
uma suposta realidade, o universo diegético adquire a consistência de um
mundo possível, em que a construção, o artifício e o arbitrário são apagados
24
em benefício de uma naturalidade aparente .

Tal aspecto intensamente explorado no cinema hollywoodiano contribui para o


estabelecimento de maneiras de olhar o mundo e também as próprias expectativas,
desejos e aspirações. Não raramente, os filmes oferecem um referencial perfeito e
completo de como algo por vezes inverossímil seria caso se tornasse realidade. Mais
do que isso, a narrativa corrobora esse senso de realidade ao organizar a sucessão
dos eventos de maneira a enfatizar relações simples de causa e consequência. Mesmo
o acaso e a surpresa são, em grande medida, esperados em filmes hollywoodianos,
como intrínsecos à narrativa, que pressupõe um objetivo, um desafio e sua superação
para a conquista do objetivo.

24
AUMONT, Jacques et al. A Estética do Filme. São Paulo: Papirus, Coleção Ofício de Arte e Forma,
1995, p. 50.

17
Com isso, uma mídia que, nas palavras de Edgar Morin, “reflete a realidade,
mas é também outra coisa, que comunica com o sonho”25, fundamentada na
articulação de imagens a princípio captadas mecanicamente da própria realidade,
acaba tendo um importante papel na composição de ideais e da imaginação romântica
dos espectadores de um contexto repleto de produtos audiovisuais. Mais do que uma
maneira de olhar a própria realidade, o cinema contribui com maneiras de olhar e
construir os próprios sonhos e ideais e, assim, ajuda a compor “cinematograficamente”
a narrativa individual de incontáveis espectadores e o planejamento de sua vida íntima
e afetiva.
A vida moderna é tão profundamente invadida por imagens eletrônicas, que
não podemos deixar de responder aos outros como se suas ações – e as
nossas próprias – estivessem sendo registradas e simultaneamente
transmitidas a uma audiência invisível ou armazenadas para minucioso
26
escrutínio posterior .
Ao se trabalhar com modelos e discursos ideológicos, construir histórias com
mensagens morais mais ou menos explícitas, as produções fílmicas não apenas
estabelecem conexões com seu público, como também expressam seu caráter de
construção social, cujos sentidos são constituídos não apenas internamente, mas na
relação com o público e com o próprio cinema. Nesse sentido, ao se tratar dos valores
e ideologias expressos nos filmes, os limites entre o conteúdo dentro e fora da tela se
embaçam.
No caso do tema amor, a distinção é ainda mais problemática, já que este, em
sua concepção mais básica, é essencialmente uma construção ideológica de
interpretação e significação de sentimentos e ações diversas, no que a imaginação, a
idealização e o discurso são fundamentais para sua prática. Especialmente no contexto
contemporâneo em que as possibilidades de amor já não são mais formalmente
limitadas pelo contrato do casamento, sua expressão parece cada vez mais legitimada
quanto mais individualizada e abstrata for. O amor é uma forma de significação
variável, culturalmente, socialmente e individualmente constituída, um trabalho
interpretativo que mistura sonho e realidade, ação e imaginação. O amor não está nem
no gesto, nem nos sentimentos ou nas sensações, mas na interpretação que se faz dos
mesmos, o que torna tão relevante na análise de Luhmann o papel da literatura
25
MORIN, Edgar. Le cinéma ou L’homme imaginaire. Paris: Éditions Gonthier, 1958.
26
LASCH, Christopher. A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro: Imago, 1983, p. 73.

18
enquanto meio pelo qual se propaga código do amor, “encorajando a formação de
sentimentos correspondentes” 27.
O papel do cinema é particularmente relevante hoje nesse aspecto porque o que
o espectador enxerga, a princípio, não é o código, mas o acontecimento do amor em si;
embora também haja um trabalho de interpretação das imagens – que frequentemente
passa despercebido – e da leitura de códigos diversos, que vão desde as declamações
de amor à simples imagem de um beijo de olhos fechados. E a ampliação que o
cinema promove da expressividade – seja através do close-up28 ou do emprego da
trilha sonora e tantos outros recursos – se estende para a vida cotidiana dos
espectadores afetando as formas como eles se comunicam e se compreendem.
Conforme Sennett:
A lógica toda da tecnologia das comunicações do século XX foi determinada
por essa abertura da expressão. E ainda assim, apesar de termos venerado a
ideia de facilidade da comunicação, ficamos surpresos como fato de que a
“mídia” resulte numa passividade ainda maior da parte daqueles que são os
29
espectadores .
O cinema hollywoodiano, ao estabelecer fórmulas expressivas diversas, seja em
função da censura, seja em função de necessidades técnicas, contribuiu para
enriquecer a linguagem do amor de tal maneira que hoje, estando tão impregnada na
cultura contemporânea, é impossível diferenciar precisamente formas de expressar,
reconhecer e projetar o amor que não sejam, em alguma medida, influenciadas por
várias construções cinematográficas. E, com o cinema, ocorre algo semelhante ao que
Luhmann observara na literatura:
[...]as representações literárias, idealizantes e mitificantes do amor não
escolhem ao acaso os seus temas e pensamentos diretores, reagindo antes
desse modo à sociedade e respectivas tendências de mudança, refletindo, de
30
uma forma absoluta, os quadros de circunstâncias reais do amor[...]
Hoje, as “circunstâncias reais do amor” passam pela presença de mídias audiovisuais.
E embora os discursos de amor reproduzidos no senso comum e nos filmes tendam a
separar amor e razão ou amor e racionalidade – valor fundamental das sociedades
modernas – o que se observou é que tal separação, embora discursivamente

27
LUHMANN, Niklas. O amor como paixão para a codificação da intimidade. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1991, p. 7.
28
A esse respeito, ver os textos de Béla Baláz em XAVIER, Ismail. A experiência do cinema, Rio de
Janeiro: Graal, 1983.
29
SENNETT, Richard. O declínio do homem público. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 320.
30
LUHMANN, Niklas. Op. cit., p.22

19
sustentada, é tão problemática improcedente quanto é a separação entre realidade e
imaginação na experiência amorosa considerada legítima:
Amamos com sentimentos, mas também com razões e julgamentos. A
racionalidade está tão presente no ato de amar quanto as mais impetuosas
paixões. Amar é deixar-se levar pelo impulso passional incoercível, mas
sabendo “quem” ou “o que” pode e deve ser eleito como objeto do amor. A
imagem do amor transgressor e livre de amarras é mais uma peça do ideário
romântico destinada a ocultar a evidência de que os amantes, socialmente
falando, são na maioria sensatos, obedientes, conformistas e conservadores31.
A racionalidade está presente tanto na significação, na intepretação dos gestos, das
sensações e dos códigos para o reconhecimento do amor, quanto em seu caráter
narrativo, que, como Solomon apontara, parece natural, embora consista em um roteiro
bem definido no qual se estabelecem relações de causa e consequência, com
finalidades conscientemente estabelecidas, o que é ainda mais claro quando a questão
da continuidade da relação vem à tona. Nisso, interpretar um conjunto de eventos,
sentimentos e sensações e chamá-lo de amor define não apenas um olhar sobre as
experiências passadas, mas, principalmente, as expectativas sobre o que se seguirá:
Quando classificamos, nossas expectativas se defrontam necessariamente
com o passado e com o futuro. Expectativas têm a ver com relações de
consequência entre nós mesmos e o objeto. Todavia, as expectativas
repousam também sobre lembranças de experiências passadas com objetos
32
semelhantes – no nosso entender ao que está agora à nossa frente .
Concluindo, a experiência amorosa construída nos filmes não é menos “realista”
nem menos “lógica” do que aquelas que podem ocorrer fora das telas. Enquanto
construção essencialmente valorativa, ideológica e de caráter projetivo, não é um
coeficiente de “realização” que confere ao amor seu grau de legitimidade e
reconhecimento, especialmente nos dias atuais. O estabelecimento de um casamento
duradouro e um lar repleto de filhos poderia – e, para muitos, ainda pode – constituir a
prova definitiva do amor de sucesso e da conquista da felicidade, assim como pode,
igualmente, significar menos do que versos rabiscados por um adolescente para a
menina mais bonita do colégio. Mas tanto um quanto o outro, só podem constituir
elementos significantes de amor a partir de relações com valores e interpretações que
são socialmente construídas, negociadas e reconhecidas, uma vez que necessitam ser
comunicadas e, em alguma medida, entendidas para se legitimarem. De tal maneira
que o amor não está nem nos gestos, nem nas imagens, palavras ou sensações, mas

31
COSTA, Jurandir Freire. Op. cit., p. 17.
32
STRAUSS, Anselm. Espelhos e Máscaras. São Paulo: Edusp, 1999, p. 41.

20
na interpretação, que, tanto dentro quanto fora da tela, é sempre cultural, social e
historicamente localizada.
______________________________________________________________________

BIBLIOGRAFIA:

AUMONT, Jacques e outros. A Estética do Filme. São Paulo: Papirus, Coleção Ofício
de Arte e Forma, 1995.
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CAMPBELL, Collin. A ética romântica e o espírito do consumismo moderno. Rio de
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CHAUMIER, Serge. La déliaison amoureuse. Paris: Armand Colin, 1999.
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ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
ERALY, Alain. L’amour éprouvé, l’amour ennoncé. in ERALY, Alain & MOULIN,
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GIDDENS, Anthony. A Transformação da Intimidade. São Paulo: UNESP, 1992.
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LASCH, Christopher. A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro: Imago, 1983.
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ROUGEMONT, Denis de. O amor e o Ocidente. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.
SENNETT, Richard. O declínio do homem público. São Paulo: Companhia das Letras,
2001.

21
SOLOMON, Robert. About love – reinventing romance for our times. Lanham: Rowman
& Littlefield, 1994.
SORLIN, Pierre. Sociologie du cinéma. Paris: Aubier Montaigne, 1982.
STRAUSS, Anselm. Espelhos e Máscaras. São Paulo: Edusp, 1999.
WEBER, Max. Sobre a objetividade do conhecimento nas ciências sociais, in Ensaios
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WILDING, Raelene, Romantic love and ‘Geting married’: Narratives of The Wedding in
and out of Cinema texts. Journal of Sociology, The Australian Sociological Association,
v. 39 pp. 373–389, 2003.

FILMOGRAFIA

Bonequinha de Luxo (título em português); Breakfast at Tiffany’s (título original).


Estados Unidos, 1961, 115 min. Dirigido por Blake Edwards.
Closer – Perto Demais (título em português); Closer (título original). Estados Unidos/
Inglaterra, 2004, 104 min. Dirigido por Mike Nichols.
Do que as mulheres gostam (título em português); What women want (título original).
Estados Unidos, 2000, 127 min. Dirigido por Nancy Meyers.
O amor não tira férias (título em português); The Holiday (título original). Estados
Unidos, 2006, 138 min. Dirigido por Nancy Meyers.
Sintonia de amor (título em português); Sleepless in Seattle (título original). Estados
Unidos, 1993, 105 min. Dirigido por Nora Ephron.
Tarde demais para esquecer (título em português); An affair to remember (título
original). Estados Unidos, 1957, 119 min. Dirigido por Leo McCarey.
Titanic (título em português); Titanic (título original). Estados Unidos, 1997, 194 min.
Dirigido por James Cameron.
Uma linda mulher (título em português); Pretty Woman (título original). Estados Unidos,
1990, 119 min. Dirigido por Gary Marshall.

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