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\\A
& PRISMAS
crítica cultural e sociedade

TbeodoYW.Adora,o

Tradução de
Augustin Wernet e
Jorge Mattos Bruto de Almeida

Museu Valéry Proust;:


Em memória de Hermann 'uon.Grau

eílífora zífica
Museu Valéry Proust:; /

Üm memória,de Berma,nn uon. Gra,b

A expressão «museal" possui na língua alemã uma coloração desa-


gradável. Ela designa objetos com os quais o observador não tem
mais uma relação viva, objetos que definham por si mesmos e são
conservados mais por motivos históricos que por necessidade do
presente. Museu e mausoléu não estão li.gados.apenaspela associa-
ção fonética. Os museussão como sepulcros de obras de arte, tes-
temunham a neutralização da cultura. Neles são acumulados os
tesouros culturais: o valor de mercado não deixa lugar para a felici-
dade da contemplação. Mas mesmo assim essa felicidade depende
dos museus.Quem não possui uma coleção particular -- e os gran-
des colecionadores privados tornam-se uma raridade -- somente
no museu pode conhecer em larga escala pinturas e esculturas.
Quando o mal-estar em relação aos museus prevalece e são feitas
tentativas de expor os quadros em seu ambiente natural ou em
locais semelhantes,como por exemplo em castelos barrocos ou
rococós, o resultado é ainda mais penoso do que quando as obras
são retiradas de seu contexto original e reunidas no museu; a sofis-
ticação provoca mais danos à arte que o.colecionismo. Algo aná-
logo vale para a música. Os programas das grandes sociedades de
concerto, em sua maioria orientados para a música do passado, têm
cadavez mais aspectosem comum com os museus.Mas o Mozart os
apresentado à luz de velas é rebaixado à.peça de costume, e
esforços para retirar a música da distância da encenaçãoe recoloca-
la':i;.: contado com a vida imediata possuem não apenas um ar de

Escrito em 1953, publicado em ll)íe Neve R}Érzdscba, 1953

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THEODOR W. ADORNO

desamparocomo tambémum certo rânicordiligentementerea-


cionário. A um bem-intencionado que Ihe recomendou escurecero
salão durante o concerto, para que se obtivesse uma "atmosfera"
adequada, Mahler respondeu com razão que uma apresentação
diante .daqual não se esquecesseo ambiente não teria nenhum valor.
Dificuldades dessetipo revelam algo da situação fatal daquilo que é
chamado de "tradição cultural". No momento em que esta não cor'
responde mais a nenhuma força abrangente e substancial, mas é ape-
nas citada,porque afinal sempreé bom ter tradição, o que ainda
restavadessatradição dissolve-seem mero meio. O aparato técnico
industrial zomba daquilo que nele deveria ser conservado. Quem
acredita na possibilidade de o original ser restituído pela vontade
fica preso a um romantismo sem esperança;a modernização do pas-
sado violenta e danifica o passado.Mas renunciar radicalmenteà
possibilidade de experimentar o tradicional significaria capitular à
barbárie por pura fidelidade à cultura. Que o mundo está fora dos
xos revela-se por toda parte no fato de que, não importa qual seja
a solução, ela é sempre falsa.
Ninguém deveria, porém, se tranqüilizar com o reconhecimen-
to geral da situação negativa. Uma disputa intelectual, como , refe-
rente ao museu, deveria ser travada com argumentos específicos.
Sobre isso há dois documentos extraordinários. Na França, os dois
escritoresautênticosda última geração,Paul Valéry e Marcel
Proust, pronun.ciaram-sesobre a questão dos museus assumindo
posições diametralmente opostas, sem que essespronunciamentos
tenham sido, entretanto,dirigidos polemicamenteum contra o
outro, ou mesmo que algum deles demonstrasse conhecimento da
posição contrária. Valéry, em sua contribuição a uma coletânea de
artigos dedicados a Proust, ressaltou que estavamuito pouco fami-
liarizado com os romancesdo autor. O artigo de Valéry ao qual me
refiro intitula-se "Le problême des musées", e se encontra no volu-
me de ensaios .Píêces swr /'ózrzl. A passagem corresp(indente em
Proust encontra-se no terceiro volume de .Á /'om&re des Jea zes
faltes en fleaTS.
O p/.zldoye7"de Valéry refere-se evidentemente ao desconcertan-
te excessode obras de arte no Louvre. Ele declara não gostar muito
de museus. Haveria muitas obras admiráveis, mas poucas delícias. A
palavra utilizada por Valéry, dé/alces,pertence, diga-se de passagem,

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PRISMAS

onde se sepultariam visões mortas.


O sentido da audição, opina Valéry -- que não estavafamilia-
riza..:o com a música e podia por isso cultivar ilusões a respeito -'
estaria em melhor situação: ninguém poderia sugerir-lhe ouvir dez
orquestras ao mesmo tempo. Nem o espírito conseguiria conduzir,
simultaneamente, diversas operações distintas. Apenas o olho em
movimento necessitariaapreender,no mesmoinstante,um retrato e

estilos de pintura inteiramente inconciliáveis entre si. Quanto mais


bonitas fossemas pinturas, tanto mais seriam elasdistintas umasdas

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redor. Se isso é esquecido, a herançamorre. Assim como o homem
perde suas forças pelo exceSSQ de meios técnicos, ele empobrece
pelo excesso de suas riquezas.
A argumentação de Valéry possui indiscutivelmentle um tom
conservador no que diz respeito à cultura. Ele sem dúvida se preo-
cupavamuito pouco com a crítica da economiapolítica. Por isso é
ainda mais surpreendente que os nervos estéticos que registram a
falsa riqueza abordem tão precisamente o dado da superacumulação.

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THEODOR W. ADORNO

Quando Valéry fala da acumulaçãode um capital excessivo,(lue por


!sso mesmo é inutilizável, utiliza metaforicamente um termo que
vale literalmente para a economia. Aconteça o que acontecer os
artistasproduzem, genterica morre --, sempre sobra algo para os
museus. Como um cassino, eles jamais poderiam perder, e justa-
mente isso seria sua maldição. Pois os homens sentem-se desconso-
ladamente perdidos nas galerias, sós em meio a tanta arte. Não
haveria outra reaçãopossível senão aquela que Valéry considera em
geral como a sombra do progresso da dominação do material: uma
crescente superficialidade. A arte torna-se assunto de educação e
informação; Vênus setransforma em documento. E a erudiçãoseria,
em matéria de arte, uma espéciede derrota. Nietzsche argumenta de
forma semelhante ein sua bons;datação ex eznpóráneasobre a van-
tagem e a desvantagem da Hlistória. Valéry, na vertigem do museu,
chega a uma intuição de caráter histórico-filosófico sobre a agonia
das obras de arte: é lá que "infligimos o suplício à arte do passado"
Mesmo depois, na rua, Valéry não conseguelibertar-se do magní-
fico caos do museu -- uma parábola, poder-se-ia dizer, da anarquia
da produção de mercadorias na sociedadeburguesa desenvolvida
e procura a razão de seu mal-estar. Pintura e escultura, assim Ihe diz
o demónio do conhecimento, seriam crianças abandonadas. "A sua
mãe está morta, sua mãe, a arquitetura. Enquanto ela vivia, dava-
Ihes lugar e utilidade. A liberdade de errar lhes era negada.Elas ti-
nham o seu espaço, a sua luz bem definida, seus temas, suas alianças.
Enquanto ela vivia, elas sabiam o que queriam... Adeus, diz-me o
pensamento, não ouso ir adiante." A reflexão de Valéry encerra-se
com um gesto romântico. Enquanto ele a deixa aberta, evita a então
inevitável consequência do conservadorismo cultural radical:
renunciar à cultura para permanecer fiel a ela.
A visão de Proust sobre o museu está engenhosamente inserida
no contexto da RecAercbedu empaperda. Somente ali ela revela
inteiramente o seu valor. Na obra de Proust, as reflexões e ao uti-
liza-las ele retoma as antigas técnicas do romance pré-flaubertiano
não constituem em geral apenasobservaçõessobre o que está
sendo narrado, mas se ligam por associaçõessubterrâneas,mergu-
lhando, como a própria narrativa, em um grande cozzz:/7zawm esté-
tico, o do monólogo interior. Ele relata sua viagem ao balneário de
Balbec, e com isso ressalta a mesuraque as viagens colocam ho

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PRISMAS

decurso da vida, ao nos conduzirem "de um nome p'r' outro


nome". Palcos desta cesura são antes de tudo as estações de trem,
"esses lugares especiais... que quase não fazem parte da cidade, mas
contêm a essênciade. sua personalidade de maneira tão marcante
quanto o seu nome escrito na placa". Como tudo..que cai sob o
olhar rememorativo de Proust, que suga, por assim dizer, a intenção
históri-
de seus obJetos,as estaçõestransformam-se em arquétipos l IH

cos e trágicos, porque associadas à despedida. A propósito do .salão


de vidro da Gare Saint-Lazare, diz que ele "estendeu sôbre a cidade
dividida um desses imensos céus repletos de dramas ameaçadores,
parecido com certos céus dêMantegna ou Veronese, desomente
uma moder
fitos
cidade quase parisiense, sob o qual. podem ocorrer t ..= . J .
terríveis e solenes,'comoa partida de um trem ou a colocaçãode
um.a cruz . . . . . .,
A transição associativa em direção ao museu é deixada implícita
no romance o quadro daquelaestaçãode trem pintada por Claude
Monet, pintor que Proust admirou apaixonadamente, encontra-se
sem muitas
agora na coleção do Jeu de Paume. Proust compara, 1 . = n .ü Aq.rena
palavras, a estação ao museu..Ambos estão afastados do liontexto
superficial dos 'objetos da atividade prática, e.a isso poderíamos
acrescentar que ambos são portadores de um simbolismo de morte:

aparentaser eterno, diz ele numa pas.sabem,


$
contêm em ..+''.A
SI os

em compor, passando seus dias em arquivos e bibliotecas; mas a

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THEODORW.ADORNO

sóbria de todos os detalhes, os espaçosinteriores onde o artista se


recolhe para criar.
A tese de Proust é comparável à de Valéry, porque ambas com-
partilham o pressuposto da felicidade nas obras de arte. Assim
como Valéry fala das dé//ces,Proust fala da alegria inebriante, a Joio
en/ 7zzHlc.Nada poderia caracterizar mais precisamente do que este
pressuposto a distância não apenasentre a geraçãoanuale a anterior,
mas também entre a relação alemã e a relação francesa com a arte. Já
na época em que .4 /'om&ze des /e nes /:/Zes en ./Zewrs foi. escrita, a
expressão .Kanstgenass [prazer artístico] deveria soar em a]emão tão
sentimental e filistina quanto uma rima de Wilhelm Busch. Além
disso, esseprazer, no qual Valéry e Proust crêem como se fosse a
promessa de uma mãe adorada, sempre foi algo questionável. Para
quem está próximo às obras de arte, estas representam objetos de
encantotanto quanto a própria respiração.Ele convive com elas
como o habitante de uma cidade medieval que responde ao comen-
tário de um visitante sobre a belezade certos edifícios com o "sim,
é bonito" meio aborrecido de quem conhececada recanto e cada
arco. Mas somente onde reina aquela distância sólida entre as obras
de arte e o observador, distância que permite o prazer, pode surgir a
pergunta sobre o que está vivo e morto nas obras de arte. Quem se
sente em casana obra de arte, em vez de visita-la, dificilmente faria
essapergunta. Os dois franceses,que não apenasproduzem, mas
ainda refletem incessantementesobre a própria produção, estão
porém completamentecertos do prazer que as obras de arte pro-
porcionam aos que a vêem de fora. Eles concordam de tal maneira,
que ambos percebemque uma inimizade mortal entre as obras de
arte acompanha aquela felicidade originada na competição. Mas
Proust, em vez de ter horror a tal inimizade, aprova-a,como se fos-
se tão alemão como Charlus .afeta ser. O processo de competição
entre as obras é para ele um processo de verdade; as escolas artís-
ticas, lemos num trecho de Sodomeet GomorrAe,devoram-se
mutuamente como microorganismos, assegurando com sua luta a
manutenção da vida. Essa concepção diabética acerca da supremacia
do ser sobre cada ente particular faz com que Proust se oponha ao
arZ:/sfeValéry, e permite sua indulgência perversapara com os
museus, enquant:o para o outro interessa sobretudo a preocupação
com a permanênçia das obras.

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PRISMAS

A medida dessapermanência é o aqui-e-agora. Para Valéry, a


arte está.perdidaquando sedestrói o seu'lugar na vida imediata, sua
ligação coh o contexto, ou seja, quando ela perde sua relação com
um uso possível. O artesão dentro de Valéry, que produz coisas e
pl?emas.com aquela precisão de contornos que sempre inclui o
olhar sobre seu entorno, tornou-se infinitamente clarividente quan-
to ao lugar da obra de arte -- tanto o espiritual quanto o literal --,
como se nele o sentimento perspectivista do pintor tivesse ascendi-
do a uma perspectivada realidadena qual a própria obra recebea
sua profundidade. O seu ponto de vista artístico é o da imediati-
dade, mas uma imediatidade levada às últimas consequências. Ele
obedece ao princípio da /'arz:powr /'úrz! até o limiar de sua negação.
Interessa-sepela obra de arte pura como objeto de uma contempla-
ção que nadapode perturbar, masa observapor tanto tempo e tão
firmemente que acabapercebendoque a obra de arte, justamente
como objeto da contemplação pura, est:á prestes a morrer, degene-
rada em produto decorativo e privada daquela dignidade que cons-
titui:p.ara a obra e para o próprio Valéry a raison cZ'être.A obra pura
é ameaçadapela reificação e pela indiferença. O museu se impõe
através dessa experiência. Ele descobre que as obras puras que resis-
tem seriamente à observação são apenas as obras não-puras, que não
se esgotam naquela observação, mas apontam para um contexto
social. E Já que Valéry, com sua integridade de grande racionalista,
sabeque essasituação da arte estáirremediavelmenteperdida, não
resta outra saídapara o anui-racionalista e bergsoniano nele presente
senão o lut:o pelas obras petrificadas.
O romancistaProust começaquaseno ponto onde o lírico
Valéry silencio: na vida póstuma das obras. Pois a relação primária
de Proust com a arte é o oposto da atitude do expert:e do produtor.
Ele é antesde tudo o consumidordeslumbrado,o amatewrque
tende àquele respeito exagerado visto com suspeição pelos artistas,
um respeito que é próprio daquelesque estão separadosdas obras
de arte por um abismo. Poder-se-iaquase dizer que a sua genia-
lidade consiste justamente em ter assumido com tanta tranqÍiili-
dade esta atitude do consumidor e também daquele que se coloca
diante da vida como espectador--, que Ihe foi possível revertê-la
em um novo tipo de produtividade, elevando a força da contempla-
çãodo interno e do externo à rememoração,à memória involuntária.

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PRISMAS

modos de experiência, sua forma particular de reação,percebe, com


suacapacidadeparadoxal, o histórico como paisagem.Ele adora os
museuscomo uma verdadeira criação divina, que no entanto,
segundo a metafísica de Proust, não estápronta, mas que sempre se
realiza novamente graçasa cada momento concreto de experiência e
a cadaintuição artísticaoriginal. Em seu olhar maravilhado,Proust
salvou para si um pedaço de infância; Valéry, ao contrário, fala da
arte como um adulto. Se este sabe algo acerca do poder que a his-
tória tem sobre a produção e a percepção das obras, Proust sabe que
a história, no interior das obras de arte, ocorre quase sempre como
um processo de decomposição. "Ce qu'on appelle la posterité, c'est
la postérité de I'oeuvre", frase que poderíamos traduzir assim: o que
se chama posteridade [.NacÀweZt], é a vida póstuma [.Maçã/e&en] das
obras. Proust descobre na capacidade de decomposição dos arte-
fatos sua semelhançacom a beleza natural, e entendea fisiogno-
monia do declínio como a descrição da segundavida dessascoisas.
Já que para ele nada tem consistência a não ser o que foi transmitido
pela memória, o amor de Proust se apega mais a esta segunda vida,
que já passou,do que à primeira. Parao esteticisnaoproustiano a
pergunta pela qualidade estética é secundária.. Em uma passagem
famosa,ele exaltou a música menor em função da memória de
vida do ouvinte, que retém antigascançõespopularesde modo
muito mais fiel e intenso do que um movimento de uma obra de
Beethoven, uma música que, por:assim dizer, existe por si mesma.
O olhar saturnino da memória trespassao véu da cultura: os níveis
culturais e as distinções, não mais isolados como domínios do
espírito objetivo, mas incluídos no fluir da subjetividade,perdem
aquela pretensão patética que as heresias de Valéry ainda lhes con-
cedia. O aspecto caótico do museu, que escandaliza Valéry porque
perturba a expressão das obras, ganha em Proust a sua expressão
própria: a expressão trágica. A morte das obras no museu, segundo
Proust, desperta-as para a vida. Somente através da perda da ordem
do vivente, na qual estavam inseridasspode-se libertar a sua ver-
dadeiraespontaneidade:o que a cadamomento é único, o seunome,
aquilo que nas grandes obras da cultura é mais do que mera cultura.
A forma da reação de Proust conserva em ró!#!nemezzz:extravagante
a máxima de Goethe no diário de C)tília, segundo a qual tudo o
que é perfeito em seu género remeteria para além dessegénero --

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uma afirmação pouco clássicaque, entretanto, rende homenagensà


arte, ao relativiza-la.
Quem não quer contentar-secom uma abordagemde história
intelectual não pode deixar de fazer a pergunta: quem está com a
razão, o crítico ou o defensordos museus?ParaValéry o museué
um lugar de barbárie. Essa atitude tem como fundamento a con-
vicção do caráter sagrado da cultura, que ele compartilha com
Mallarmé. Diante de todas as objeções provocadas por essa
religião do sp/e.ezz,
sobretudo a da precipitada objeção social, deve-
se insistir no momento de sua verdade. Somente o que exis:te por si
mesmo, sem dar atenção aos homens aos quais deveria agradar,
cumpre a sua vocação humana. Pouca coisa tem contribuído tanto
para a desumanizaçãoquanto a crença geral, formada no pre'
domínio da razão manipuladora, de que formações espirituais só
sejustificam na medida em que existem para servir a outras coisas.
Valéry expôs com autoridade incomparávelo caráter objetivo
dessas formações, a consistência imanente da obra de arte e a con-
tingência do sujeito diante dela, pois ele mesmo chegou a compre'
ender isso através de uma experiência subjetiva, a coação presente
no trabalho do artista. Nisso eleera sem dúvida superior a Proust:
inc.orruptível, Valéry possuía uma maior resistência,enquanto o
primado proustiano da experiência,que não tolera nada rígido,
tem em comum com Bergsonum aspectosombrio,o do confor-
mismo e da fácil adaptação à situação em constante mudança. Em
Proust há passagenssobre arte que se assemelham ao desenfreado
subjetivismo daquela visão vulgar que faz das obras de arte uma
bateria de testesprojetivos, enquanto Valéry, oportunamente e qua:
se sempre com certa ironia, lamenta que a qualidade dos poemas
não possa ser testada. Conforme uma afirmação do segundo volu-
me do ZemPSretrowpé, a obra do escritor nada mais é do que uma
espécie de instrumento ótico que ele oferece ao leitor para que este
descubra, em si, algo que sem o livro talvez não pudesse descobrir.
Mesmo o que Proust apresenta a favor dos museus é pensado a
partir do homem, e não a partir da coisa. Não é por acaso que ele
identifica aquilo que deveria diluir-se na posteridade museo1(5gica
das obras com algo subjetivo, com o ato repentino da produção,
através do qual a obra de arte se afasta da realidade. Proust encon-
tra esse ato espelhado nas formas que Valéry considera estigmas.

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PRISMAS

Apen.as a deslealdade da subjetividade livre em relação ao espírito


objetivo habilita Proust a romper a iminência da cultura.
Nem Valéry nem Proust têm razão nesseprocessode certo
modo latente entre os dois, e tampouco seria possível indicar uma
postura intermediária conciliadora. Mas esse conflito revela de
madeira mais penetrante um conflito inerente à própria coisa, e
ambos tomam o lugar de momentos dessaverdade,que reside no
desdobramento da contradição. A fetichização do objeto e a pre-
sunção do sujeito corrigem-se mutuamente. As posições se inter-
penetram uma na outra. Valéry, em uma incessanteauto-reflexão,
torna-se consciente do ser em si das obras, enquanto, por outro
lado, o subjetivismode Proust esperao ideal, a salvaçãodo vivo
pela arte. Ele defende, contra a cultura e atravésdela, o ponto de
vista da negatividade, da crítica, do ato espontâneo que não se con-
tenta com o existente. Com isso faz justiça às obras de arte, que
somente o são na medida em que incorporam tal espontaneidade.
Proust conserva,em razão da felicidade objetivo, a cultura; enquan-
to a lealdadede Valéry para com a pretensãoobjetivo das obras
precisa dar a cultura por perdida. E como os dois representam
momentos contraditórios da verdade, ambos, os mais sábios a
escreveralgo sobre arte nos últimos tempos, possuem também os
seus limites, sem os quais não teria sido possível sua própria
sabedoria. Valéry não deixa dúvida de que concorda com seu mestre
Mallarmé a respeito do fato de que -- como foi formulado no
ensaio "Triomphe de Manei" a existência e as coisas estão aí uni-
camente para serem consumidas pela arte, o mundo existe só para
produzir um belo livro, um poema absoluto seriaseu coroamento.
Ele também notava claramente o ponto de fuga aspirado pela poésie
pare. "Nada leva com tanta certeza à completa barbárie quanto a
ligação exclusiva com o espírito puro", assim se inicia um de seus
ensaios. E a sua própria idéia de elevar a arte à idolatria acabou de
fato contribuindo para o processode reificaçãoe desgasteda arte,
pelo qual Valéry culpa o museu: somente aí, onde as imagens estão
oferecidas à contemplação como fins em si mesmos,estas se tornam
tão absolutasquanto Valéry sonhava,e ele se espantamortalmente
diante da efetivação de seu próprio sonho. Proust, ao contrário, sabe
qual é o remédio para esta situação. Na medida em que as obrasde
arte, enquanto elementosdo fluxo subjetivo de consciênciado seu

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THEODORW.ADORNO

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P
+

PRISMAS

onde fisionomias de quadros e de pessoasse juntam quase sem


limites, em meio a recordaêóesde vivências e passagensmusicais.
Numa das.partes mais explícitas do todo, na primeira página de
.D# cóié de cÃezSwann, o narrador, na descrição do adormecer.
diz: "Pareceu-me que era de mim que a obra falava: uma igreja, um
quarteto, a rivalidade entre Francisco l e Carlos V«. É isto a recon-
ciliação dg que foi separado, à qual se dirige o lamento irreconci-
liável de \Üléry. O caosdos bens culturais se dilui na felicidade da
criança, cujo corpo se sente unido com o nimbo da distância.
Não é possível fechar os museus, e isso nem seria desejável. Os
gabinetes naturais do espírito transformaram as obras de artc em
hieroglifos da história, dando-lhes um novo conteúdo [GeÀ z/[] à
medida que o sentido antigo se encolhia. Contra isso não é possível
oferecer um conceito de arte pura emprestado do passado, que seria
até mesmo pouco apropriado para esta época. Ninguém soube disso
melhor que Valéry,que exatamentepor este motivo interrompeu
sua reflexão. É verdade, porém, que os museus exigem expressa-
mente algo que já é propriamente exigido por cada obra de arte:
algum esforço por parte do observador. Pois também o /22newr, em
cuja sombra Proust se movia, desapareceuhá rnuico tempo, e nin-
guém mais pode vagar pelos museus para encontrar aqui e ali algum
encanto. A única relação concebível com a arte, em nossa realidade
catastrófica, seria a que considerasse as obras de arte com a mesma
seriedademortal que tem caracterizadoo mundo de hoje. SÓestá
livre do mal tão bem diagnosticadopor Valéry aqueleque junto
com a bengala e o guarda-chuva também entregou, na entrada, a sua
ingenuidade; aquele que sabe exatamente o que quer, escolhe dois
ou três quadros e se detém diante deles com enorme concentração,
como se fossem realmente ídolos. Alguns museus. facilitam este pro-
cedimento. Juntamente com o ar e a luz, também adquiriram aquele
princípio de seleçãoque Valéry declarou ser o de sua escola, e que
ele não encontrava nos museus. No Jeu de Paume, onde agora está
expostoo quadro G.zreSzl.-.['zzú7"e,
convivem em paz o E]stir de
Proust e o Degas de Valéry, ainda que discretamente separados.

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