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O culto de Jurupari

Jurupari, o legislador dos silvícolas amazônicos, tem um culto rigoroso e cheio de


mistério. Como acima de disse, Jurupari nasceu de Ceuci, uma virgem que estava
comendo cucura do mato. O sumo da fruta escorreu-lhe da boca por entre os selos, pelo
ventre e fecundou-a. Nasceu Jurupari, que reformaria leis e costumes dos índios. O
culto do Jurupari inclui cerimônia em que os índios tocam vários instrumentos, sempre
bem escondidos e só apanhados para essa cerimônia. Mulheres que os vejam ou que
assistam à cerimônia, devem ser mortas, porque, antes da legislação de Jurupari, elas é
que mandavam e os homens só obedeciam.

É tão importante essa cerimônia que os tocadores dos instrumentos só podem neles
executar a música de Jurupari se estiverem puros. Para isso, apanham raízes e caules
do ceuci-cipó, esmagam-nos no pilão e bebem o sumo, que é um vomitório violento.
Após essa purificação, tomam prolongados banhos. Só depois é que podem tocar os
sagrados instrumentos. Quem assim não fizer, arrisca-se a morrer.

Para os cientistas ocidentais, o iagé começou a ser reconhecido a


partir da presença do inglês Alfred Russell Wallace na festa tukano do
Jurupari no Rio Uaupés, no Alto Rio Negro, em 1852. Wallace foi o
primeiro ocidental a presenciar aqueles ritos de iniciação e
recordação, e o primeiro a compreende-los mal, pois admirando o
som das flautas e trombetas sagradas declarou que faziam “uma
música diabólica”. Seis meses depois, em novembro daquele ano, é
que seu colega Richard Spruce chegou à aldeia de Ipanoré, e na
maloca de Urubucoará assistiu a cerimônia do culto jurupari, curioso
de conhecer a planta utilizada na bebida do “kapi” (que
erroneamente grafaria “caapi”, nome tupi-guarani para a classe das
gramíneas). Escreveu: “Os brancos que tomaram caapi na forma
apropriada coincidem em seus relatos sobre as sensações obtidas sob
seu efeito. A vista se altera e diante dos olhos passam rapidamente
visões onde parecem combinar-se tudo o que viram ou leram sobre o
esplêndido e o magnífico.”

JURUPARI

A crença neste mito aceita duas denominações gerais: no norte, o "Jurupari" e no sul, o
"Anhangá".

Entre as tribos indígenas é diferente e contraditório o destino do JURUPARI. Alguns,


não o conheciam como espírito do mal, porém, emprestam-lhe todas as feições de um
ser maligno. Outros o identificavam como o Anhangá, aquele espírito nada bom de que
falavam os escritores do sul. Mas todos concordavam que Jurupari e Anhangá
significavam simplesmente "diabólicos".

Entre o anhanga do sul, conhecido por "Cuaçu anaga" ou "Catingueiro" e o ananga do


Amazonas, é que se deve estabelecer a diferença. O primeiro deriva de "ayua" ou
"ayba", mal, e "anga", alma, de onde se formou a expressão espírito do mal. E o
segundo vem do "aná", parente e "anga", alma, de onde procede o preceito de alma do
parente, fantasma ou alma do outro mundo.

A única dúvida que resta é saber como se parecem. O Jurupari não tem encarnação
alguma e o Anhangá apresenta-se sob o aspecto de um veado vermelho, com chifres
cobertos de pelos, olhos de fogo e com uma cruz no meio da testa. Ele vive em lugares
da mata considerados assombrados, perseguindo os caçadores que se atrevem a violar o
seu domínio. O Anhangá foi um dos primeiros seres sobrenaturais dos quais os
conquistadores portugueses tiveram notícias entre os indígenas.

O Anhangá junta-se com outros defensores da natureza, como o Curupira, Caipora e o


Mantintaperera. Defende as fêmeas grávidas ou com filhotes e os animais fracos e
feridos. Existem Anhangás que encarnam outros animais, como Tatu-Anhangá, ou
mesmo disfarçando-se de gente, como o Mira-Anhangá.

Jurupari é o espírito dos maus pensamentos, que aparece em sonhos, causando os


chamados "pesadelos" noturnos. É portanto, uma entidade espiritual que provoca
insônias, mal estar, prejudicando a tranqüilidade e o repouso. Assim também é
Anhangá.

Pelas indicações que nos oferecem as lendas coletadas do Jurupari e do Anhangá,


verifica-se que é um motivo da ordem fisiológica, pesadelo ou sonambulismo, que
determina a ação deste espírito.

Há, entretanto, lendas cheias de mistérios e romance sobre suas origens e destino. Em
uma, Jurupari, aparece como imigrante invasor, que dita leis e se constitui como
orientador de uma raça e, cujos exemplos e lições devem ser obedecidos pelos índios.

Na maioria das lendas de que se têm conhecimento, os Juruparis não são outra coisa,
senão o resultado das atribulações noturnas do indígena, surpreendido e salteado por
pesadelos.

Foram os jesuítas, sabe-se hoje com certeza, que caracterizaram o Jurupari como
demônio. Supersticiosos, os índios foram fáceis de serem conduzidos, aceitaram
prontamente que as interrupções do sono e os sustos eram obra de um espírito do mal.
E, efetivamente, o testemunho de quase todos os missionários era que o jurupari era
sinônimo do demônio. Já mostraremos, porém de onde procede esta analogia.

Jurupari, é traduzido como: "ser que vem a nossa rede", isto é, ao lugar onde os índios
dormiam. A tradução, conforme tradição indígena, exprime a idéia de que um estranho
visita os homens em sonho, causando aflições e trazendo-lhes imagens de perigo
horríveis. Esta aí delineada nitidamente a imagem do pesadelo.
Os índios piranhas, que habitavam o médio rio Maici, afluente do rio Marmelos, dão o
nome de "paracé" aos rituais com que costumavam invocar os espíritos de Urupá,
zelador e protetor da tribo e de Jurupari, interesseiro e vingativo, mas que tudo sabe.

Quando no momento da invocação o pajé tomava as suas vestes guerreiras,


embrenhava-se na mata, deitava-se comodamente no solo e fazia sua penitência. Aí,
depois de longos momentos de concentração, assobia para as bandas do nascente, como
fazem as crianças para chamar o vento, esperando, deste modo, o momento em que deve
incorporar o espírito. Se é o espírito de Urupá que chega, o pajé mostrava-se calmo e
corria até o terreiro da maloca, onde, confundia-se com os demais índios, dançava e
conversava moderadamente incitando-os ao amor e ao trabalho e às terras conquistadas
pelos seus antepassados.

Mas, se era o espírito de Jurupari que se manifestava, o pajé tornava-se rebelde e


inquieto, vociferando, cantando com imprecações, rolando pelo chão e quebrando o
mato alucinadamente. Cessado este estado de excitação, o pajé se aproximava da
maloca, onde os índios cantavam e dançavam em torno de uma fogueira e ocultamente
dava um assobio pedindo caxiri, vinho de bacaba, patauá ou qualquer outra bebida
preparada para o purecé. Um dos índios ia até o local onde se encontrava o pajé,
entregava-lhe a bebida e voltava com os olhos cravados no chão sob pena de ser varado
por uma flecha vibrada pelo arco do pajé que o fitava com sisudez e severidade sem
perder nenhum de seus movimentos.

Incorporado no pajé, Jurupari toma a bebida e corria novamente para a mata distante
onde prossegue sua cólera diabólica, imprecando ou brandindo o arco na simulação de
uma luta contra o inimigo. Mais tarde, retornava a uma touceira de mato, próxima da
maloca e, oculto aos olhares profanos, respondia às perguntas que lhes eram dirigidas
pelos índios, profetizando bens e males que haveriam de suceder.

LENDA DO JURUPARI, O HERÓI SOLAR

O Jurupari é um profético-legislador, o filho de uma virgem, concebido sem contato


com homem, pela virtude do sumo da cucura (pouruman Aubl) do mato, no momento
em que Ceuci comia embaixo da árvore, esta fruta que era proibida as donzelas. Veio à
mando do Sol, era portanto um filho do sol, que deveria reformar os costumes da terra e
também encontrar a mulher perfeita com quem o Sol pudesse casar. Não a encontrou e
jamais encontrará. Mas, talvez até por que não lhe desagrade a missão, continua sua
busca, sem que se saiba o caminho por onde se tem arriscado nessa esforçada e inútil
tentativa. Só regressará ao céu no dia em que a tiver encontrado e corresponder assim, a
confiança nele depositada. Enquanto isso não acontece, ele desenvolve sua atividade em
outro sentido.

Quando o Jurupari chegou à terra, as mulheres é que mandavam, elas eram as


representantes do sexo forte (sistema matrilinear). O enviado do Sol não gostou do que
viu. Cassou-lhes de imediato o poder (sistema patrilinear), transferindo-os para os
homens, sob o fundamento que as coisas como estavam iam de encontro ás leis do Sol
(deus masculino).

Para os homens se tornarem independentes delas, instituiu grandes festas em que só eles
podiam participar e segredos só a eles contou. As mulheres que fraudassem tais regras
deviam morrer. E, em desobediência a esta lei, morreu Ceuci, a própria mãe do
legislador.

As leis de Jurupari revelam que os homens só são iniciados nos seus segredos depois
de sofrerem, desde a puberdade, esmerado preparo e atingirem a idade em que se
sentem plenamente fortes para resistir a qualquer sedução que lhes queira arrebatar os
segredos. A morte á a punição a todo aquele que o desvenda. Castigo idêntico recaía
sobre a mulher que, mesmo por acaso, soube ou viu os instrumentos sagrados.

AS DURAS LEIS:

As leis estabelecidas por Jurupari, relegaram as mulheres a uma situação de total


inferioridade e subordinação aos homens. A sua simples existência, demonstra que a
situação da mulher antes delas era outra.

Em 1909 foi Don Frederico Costa, bispo de Uaupés que as recolheu no seio de um
movimento de libertação de mulheres, são elas:

1 - A mulher deverá conservar-se virgem até a puberdade;

2 - Nunca há de prostituir-se e ser'á sempre fiel ao seu marido;

3 - Após o parto da mulher, deverá o marido abster-se de todo o trabalho e de toda a


comida, pelo espaço de uma Lua, a fim de que a força desta Lua passe toda para a
criança. (Aqui é estabelecido o "couvade", retirando os direitos de propriedade sobre os
filhos das mulheres)

4- O chefe fraco será substituído pelo mais valente da tribo;

5 - O chefe poderá ter tantas mulheres quantas puder sustentar;

6 - A mulher estéril do chefe será abandonada e desprezada;

7 - O homem deverá sustentar-se com o trabalho de suas mãos;

8 - A mulher nunca poderá ver o Jurupari, afim de que assim seja castigada por alguns
de seus três defeitos dominantes:

a) a incontinência;

b) a curiosidade

c) a facilidade em revelar segredos.

Jurupari também estabeleceu uma rigorosa distribuição de trabalho: os homens


deveriam ir à guerra, à caça e pesca e às derrubadas da mata. As mulheres deveriam
dedica-se à cerâmica, tecelagem, transporte de carga, trato dos filhos e agricultura.

O general Couto de Magalhães, referindo-se ao Jurupari afirma que "com exceção do


Jurupari, não há um só ente sobrenatural entre os selvagens a que se não atribua a ação
benéfica de proteger uma certa parte da criação, de que ele era reputado um pai mais
próximo do que o Sol ou a Lua, mas em suma, um pai".

E este ilustre desvendador de tantos mistérios deste reino maravilhoso dá-nos ainda,
importantes informes no seu grande livro "O Selvagem" sobre a teogonia dos índios,
que atribuíam a cada ordem da criação um deus protetor, uma espécie de mãe, que a
defende contra tudo e, especialmente contra a ação destruidora do próprio homem.

SIGNIFICADO DO JURUPARI

As leis do Jurupari impunham silêncio total sobre os segredos ocultos. Um pai deveria
matar seu filho, se este descobrisse, antes de ser iniciado pelos rituais qualquer
particularidade sobre suas festas sagradas. Nestas cerimônias iniciáticas, os Uananá, por
exemplo, cantavam os seguintes versos:

"Sol, faz valente seus corações!

Lua adoça suas falas!

Sete-Estrelo (Ceuci) ensina-os a fugir

De um dia tudo contar!"

Pois a cantiga já despensa muitas palavras. Os iniciados portanto, tinham que


permanecer sempre com a boca fechada, segundo regiam as leis de Jurupari e deviam
também, invocar a proteção das Sete Estrelas ou Ceuci, a mãe de Jurupari, que
correspondem ao aglomerado estelar aberto das Plêiades, na Constelação de Touro,
próximo às "Três Marias", o cinturão da constelação de Órion.

O Jurupari é o responsável pela criação da instituição secreta da "Casa dos Homens" e


também pelo invento dos instrumentos sagrados, máscaras e da festa reservada
exclusivamente para o homem, o que servia para evidenciar o caráter de dominação
patriarcal no seio das tribos.

Vemos no Jurupari a representação do poder masculino as vezes justo, mas em outras


extremado O sentimento de ódio e paixão às mulheres é o que domina no Jurupari.
Algumas mulheres, também o possuem, sem saber, a força do Jurupari, a sua faceta
masculina que se expressa com maior ou menor intensidade.

Até hoje se mantêm na Amazônia o culto ao Jurupari.


RITUAL DE INICIAÇÃO FEMININA TUKÚNA - A "FESTA DA MOÇA
NOVA”
 
"Os Tukúna consideram a puberdade um período perigoso e cercam a
menina-moça de cuidados rituais, a fim de protegê-la das influências
maléficas de certos espíritos demoníacos da floresta.
O ritual de iniciação começa pela separação da menina do convívio com
a comunidade. Assim que ocorre a primeira menstruação, a menina é
introduzida no compartimento superior de sua casa: uma plataforma
situada bem abaixo do teto, com vedação de esteiras ou cortinado de
pano. Aí ficará durante três meses em reclusão, invisível e silenciosa,
estabelecendo contato apenas com a mãe e com a tia paterna e saindo
raramente, quando nenhum homem estiver na casa.
Os três meses de reclusão constituem a fase da margem (ou de
transição) do ritual. Durante este período, a jovem deve dedicar-se ao
aprendizado dos afazeres femininos, como a fiação do algodão e o
preparo de cestas, redes e esteiras. Deve também aprender o
comportamento que, segundo os Tukúna, é próprio das mulheres
adultas.
A fase de integração da menina-moça na categoria das mulheres
adultas é realizada durante uma grande festa, da qual participa toda a
comunidade, além de convidados de aldeias vizinhas. O ritual de
iniciação encerra-se com a depilação da moça-nova, que simboliza a sua
passagem da infância para a idade adulta. A jovem agora pode casar-se
e tornar-se membro ativo da comunidade.
A festa precisa ser feita para solenizar a passagem e destruir os
espíritos demoníacos que ameaçam constantemente a menina reclusa.
Suas diversas etapas rituais desenvolvem-se especialmente dentro da
casa.
Para o período da festa é construído, pelos convidados homens, um
novo compartimento de reclusão, de forma semicircular, localizado num
dos lados do pavimento inferior da casa, e feito da parte interna do
pecíolo das folhas de buriti, tendo as paredes externas decoradas com
motivos geométricos e figurativos como animais, astros, homens;
destes, o mais significativo repousa na figura do veado, o símbolo da
vigilância. Neste recinto a inicianda permanecerá até o final do ritual,
vigiada pelo tio paterno, o responsável pela sua segurança e "diretor"
das cerimônias, ajudado por sua esposa, já que os pais ocupam-se
principalmente em atender os convidados.
As cerimônias estendem-se por três dias e três noites ininterruptos, na
estação das chuvas, durante a lua cheia.
Dois elementos da maior importância no transcorrer da festa merecem
destaque: os instrumentos musicais e as máscaras.
Entre os instrumentos musicais salientam-se dois tipos, ambos de
comprimento descomunal e considerados sagrados: o megafone de
madeira, a voz de perigosos demônios, e as trombetas de casca de
árvore enrolada em espiral. Dado seu caráter, tais instrumentos não
podem ser vistos por mulheres e crianças. Assim, os homens os
fabricam na floresta e seus sons ecoam só na escuridão da noite, a
partir de locais ocultos. Quando não usados, são escondidos, antes do
amanhecer, na água ou na floresta.
As máscaras, trazidas pelos homens convidados, representam espíritos
demoníacos que num tempo mítico atacaram os habitantes de uma
aldeia tukúna, comendo seus corpos e sugando seu sangue e que, no
delicado período de iniciação, colocam em perigo a vida da menina.
As entidades sobrenaturais simbolicamente representadas pela
decoração e demais características formais das máscaras afiguram-se
diversas: a mãe do vento, a borboleta fêmea, o macaco caiarára,
monstros das profundezas; a aranha; serpentes gigantescas, papagaios;
o milho, a árvore araparirana.
No conjunto, as máscaras são profanas, executando suas coreografias à
vista de adultos e crianças de ambos os sexos, apesar de permanecerem
escondidas na floresta próxima. Aqui, seus usuários vestem-nas e
desvestem-nas, surgindo repentina e secretamente no local da festa.
Os mascarados também devem conservar-se desconhecidos até o
momento de sua performance final, quando as despem na casa do
ritual, presenteando-as ao anfitrião, o pai da menina-moça; este, em
retribuição, oferta-lhes carne de caça ou peixe moqueados.
Confeccionam-se as máscaras com entrecasca de determinadas árvores
(Ficus radula, Poulsenia armata, entre outras). Depois de retirado o
tronco da árvore, batem-no com força, empregando macetes roliços:
esta operação, executada repetidas vezes, permite destacar, num só
bloco, a entrecasca, que depois é submetida a diversas lavagens e
sucessivas batidas, antes do secamento ao ar livre. Tal procedimento
possibilita transformá-la num "pano" macio e flexível.
O tecido, mediante interpretação livre do confeccionador, porém nos
limites de padrões estéticos e técnicos culturalmente estabelecidos, será
metamorfoseado num personagem cosmológico demoníaco para, no
ritual de iniciação, dramatizar episódios míticos relacionados aos
Tukúna e à situação liminar da menina-moça em especial.
Usualmente a celebração da passagem é feita individualmente, ou seja,
para uma só menina. Na ocasião exemplificada são festejadas duas
iniciandas.
 
Preparativos
 
Remoção e tratamento da entrecasca de certas árvores dos gêneros
Ficus e Poulsenia para confecção das máscaras:
1. Homens batem repetidas vezes com macetes na casca do tronco de
árvore para retirar a entrecasca intacta;
2. Uma vez removida, batem agora incessantemente na entrecasca, a
fim de amaciá-la e dar-lhe flexibilidade;
3. Depois das sucessivas lavagens e batidas, a placa de entrecasca é
posta a secar.
4. Processo de pintura da entrecasca com tintas vegetais. Para a
"cabeça " de determinadas máscaras utilizam-se também pigmentos
minerais.
5. Confecção de tambores de madeira e pele de macaco. São tocados
incessantemente durante os dias da festa, pois acreditam os Tukúna
que espíritos demoníacos atacarão as iniciandas se eles silenciarem.
6. Confecção do colar de contas das iniciandas pelas mulheres, que
dividem com os homens a feitura dos adereços.
7. As mães das iniciandas, ajudadas por parentes mulheres preparam
grandes quantidades de bebida fermentada à base de mandioca. Os
pais providenciam e assam as carnes para servir aos convidados.
 
Sequência ritual
 
8. Os preparativos finais incluem a construção do compartimento
especial de reclusão para os dias festivos, dentro da casa de moradia,
na qual centralizam-se as cerimônias.
9. Depois de longo período, as meninas são retiradas da reclusão pelas
mães e tias paternas e conduzidas secretamente a uma pequena área
vedada por paredes de palha, fora da casa. Permanecem com os olhos
tapados, não só pelo incômodo da claridade; caso os abram, ficam à
mercê dos demônios da floresta.
10. Aí, as meninas são despidas para serem pintadas com tinta preta de
jenipapo, de acordo com padrões estéticos específicos para esse
momento ritual.
11. Em seguida, retornam à casa onde estão reclusas.
12. Repentinamente, as máscaras, que simbolizam entidades
sobrenaturais demoníacas, surgem da floresta.
13. Evoluindo, com grande algazarra, entram na casa de reclusão,
simulando atacar o compartimento das meninas. Alguns mascarados
portam grandes escudos com os quais fazem movimentos giratórios;
estes são os acompanhantes do sobrenatural óma, "a mãe do vento".
14. Inicia-se a fase crucial da cerimônia: dois parentes enfeitados com
os adornos especiais das meninas reclusas cantam e dançam
juntamente com os convidados, que fingem protegê-los como se fossem
as iniciandas.
15 e 16. Depois de um momento de grande tensão - quando, expostas
aos maiores perigos, as meninas, completamente ornamentadas, são
retiradas da reclusão e aparecem publicamente com os olhos vendados
pela coroa de penas - desenrola-se ao anoitecer, fora da casa, o ato
simbólico de libertação dos demônios: o xamã entrega-lhes um tição
aceso e elas o atiram com força contra uma árvore que simboliza o mal,
tornando-se, assim, imunes aos maus espíritos.
17. Saltitando selvagemente, os mascarados retornam da floresta: as
jovens, já livres de perigos, abraçam-se a eles e dançam dentro da casa.
18 e 19. A festa atinge seu clímax! Aumentam os sons dos cantos,
chocalhos e tambores. Os tios paternos aproximam-se das meninas em
meio à dança e arrancam-lhes um tufo de cabelo. Agora, já sentadas
sobre um tapete de entrecasca no centro da casa, algumas mulheres
retiram-lhes os enfeites e continuam a depilação, que terminará com
um grito, quando, novamente, os tios paternos puxam o tufo restante
no ápice da cabeça. Esta é a marca da passagem. Simbolicamente é a
morte da menina e o nascimento da mulher adulta.
20. As meninas são novamente ornamentadas: renova-se a pintura
corporal, recolocando-se a coroa de penas, sem vendar seus olhos.
21. Última aparição das máscaras para uma dança com as jovens.
Neste momento, os tios aproximam-se, aconselhando-as: "Sê sempre
zelosa minha filha! Uma jovem ativa terá um marido eficiente e
trabalhador. Uma jovem preguiçosa, esposará somente um preguiçoso.
Não abandone nunca sua mãe, nunca esqueça os parentes e jamais fale
mal deles. Respeite-os. Você deve respeitar também os mais velhos". Em
seguida, os mascarados despem-se de suas máscaras que se tornarão
propriedade do anfitrião.
22. Dança e procissão final até a ribanceira, onde as jovens, uma de
cada vez, desprendendo-se de uma estola de palha, nelas anteriormente
colocada pelos moços, lançam-se suavemente sobre uma pilha de folhas
de milho. Segundo a tradição, deveriam jogar-se e banhar-se no rio,
seguidas por todos os participantes da festa, o que não foi possível,
nesta ocasião, devido às más condições da água do rio".
 
          Quem serão os maus espíritos que poderiam atacar a menina-
moça?  Vimos a passagem do Ualri/tamanduá se transformando em Ser
Terrível, na Leggenda del Jurupary, e o contato de Carumá com
Cuadeabumá, enviado  do “mal” que aparece na forma de um jovem de
extraordinária beleza e que posteriormente vai ajudar Carumá a
usurpar as flautas de Jurupary. Vimos as mulheres sendo associadas
ao morcego, e aos temíveis Homens-Morcego pelos Apynaié.
Do momento em a mulher deixa de ser a vítima do jaguar ou “a mulher
das feras”, os ritos de iniciação são realizados para protegê-la deste ente
aterrorizante. Ser este que, pelo jeito, mantém contato facilitado com as
mulheres, senão não seriam tantas as interdições e nem os ritos para
apartá-las desta interlocução. Afinal, os homens queriam protegê-las ou
proteger-se?
Observamos que, mesmo tendo as mulheres os sinais da passagem do
estado de puberdade para a vida adulta presentes no seu corpo - ao
contrário dos homens, que não possuíam um sinalizador tão concreto
como a menstruação - a riqueza do rito, seu valor mágico-terapêutico e
de regulação social, está presente.
Encontrei um dado curioso que se refere ao Urutau, ou Mãe da Lua,
que preservaria a menina-moça dos riscos da sedução sexual, rito
registrado por José Veríssimo e apresentada por Câmara Cascudo [4]. O
Urutau era caçado e em seguida sua pele era retirada e seca ao sol. Nos
três primeiros dias da menarca, as meninas assentam-se sobre a pele,
período em que são visitadas pelas mulheres mais velhas da família, e
de quem recebem conselhos acerca de sua conduta sexual. Veríssimo
diz que este cerimonial estava sendo abolido quando o registrou e que
agora bastava que o terreiro sob a rede da menina fosse varrido com as
penas da Mãe da Lua.
Esther Harding lembra que existe um medo atávico entre as tribos ditas
“primitivas” de que a mulher menstruada possa atrair “o amor de uma
serpente” [5] e que as meninas não iam para o mato por temer
engravidarem de uma cobra (muitas vezes, a cobra também é
substituída por um peixe). E que uma picada de cobra seria a
responsável pela primeira menstruação feminina. Não são poucos os
mitos que dizem que a mulher antigamente não tinha sexo e que este
lhe foi feito por um peixe. No mito do Guaraná, a guardiã do Noçoquen
é fertilizada por uma cobra que estava no seu caminho, sendo que o
animal teria apenas tocado na sua perna.
O antropólogo Acácio Piedade, em nota sobre o complexo das flautas
sagradas, constante da sua dissertação de mestrado sobre a música
Ye’pâ-masa [6] indica uma “associação entre a menstruação e os
instrumentos musicais, em que a ausência da capacidade reprodutora
nos homens seria compensada simbolicamente através de seu poder
ritual de fabricar homens”.  Em se tratando do ritual do Yaku’i entre os
Kamayurá - as mesmas flautas jakuí, mito constante do capítulo sobre
as Amazonas - Acácio acrescenta:
As relações sexuais e a menstruação - as mulheres- simbolicamente se
opõem às flautas yaku’i e sua música - os homens. A menstruação
feminina aparece como “sinal biótico todo poderoso” da capacidade
criativa da mulher, que os homens “invejam” e reproduzem
simbolicamente no ato de menstruação masculina que é a música das
flautas yaku’i.
 
         Entre os Mehinaku [7], do tronco Aruak, as meninas-moças são
chamadas de meninas-borboleta, pois tão logo menstruem, serão
mantidas em reclusão por um período que pode variar de um a quatro
anos. Só sairão do seu casulo quando os pais considerarem que seu
corpo está pronto. É um rito de passagem que marcará a transformação
da menina em mulher. As meninas-borboleta permanecem todo esse
tempo sem tomar sol. Sua pele se torna alva como o leite, a franja
cresce e só será cortada quando voltar para a vida da aldeia, momento
em que será recebida com uma grande festa. A sexualidade da menina
reclusa não obedece a padrões rígidos. Ela pode ter relações sexuais (o
homem a procura furtivamente à noite), fugindo do controle dos pais.
Situações como essa não são desejáveis e, se descobertas, resultam em
reclamação do pai da moça ao pai do rapaz. Se a menina presa ficar
grávida - uma situação ainda menos desejável - o aborto é praticado
com ervas especiais e o casamento só acontece se houver interesse da
família. Três meses depois de iniciarem o período de reclusão, boa parte
das moças já está acostumada à nova situação. Elas não saem de forma
alguma, nem mesmo para se banhar no rio. Então, passam o tempo
todo fazendo redes, esteiras, desfiando buriti, algodão e barbante. Uma
vez na prisão, as jovens índias contam com a ajuda geralmente de uma
irmã mais velha, para receber água e comida.
Sem sombra de dúvida, o mais significativo ritual feminino indígena é o
Yamarikumã, (Yamurikuma ou ainda, Amurikuma). As celebrações
realizam-se no Alto Xingu, norte do estado do Mato Grosso, entre os
nativos do tronco lingüístico Aruak. Encontrei referência da cerimônia
entre os Mehinaku e Yawalapití.
Pelo o que se sabe o termo Yamarikumã, ou parte do termo, alude a um
espírito feminino que devolve a força às mulheres. Como ainda não tive
o prazer de presenciá-lo, uso como referência os textos de Maria Luíza
Silveira [8],  dos irmãos Villas-Boas [9] e de Carolyne Larrington [10].
Maria Luiza Silveira nos conta que, entre os Mehinaku, durante três
dias as mulheres tomam os cocares, flechas e as braçadeiras
masculinas e dançam, lutam e cantam, mostrando que a sua força é
igual a deles. O espírito de Kamatapari, esposa de um grande chefe e
responsável pela primeira rebelião, é evocado. Kamatapari, irritando-se
com a demora dos homens em uma eterna pescaria, se dá conta que
eles não se importavam que elas passassem fome ou morressem.
Reuniu então todas as mulheres e crianças e elas se entorpeceram
passando no corpo um óleo retirado da casca de pau e ficaram três dias
sem comer ou dormir, dançando sem parar. Depois, abandonaram a
aldeia. Quando os homens retornaram com a pesca, já era tarde. O
espírito de Yamarikumã tornou as mulheres fortes; elas construíram
uma nova aldeia, aprenderam a usar as armas da guerra, caçar e
pescar. Sabiam fazer tudo sozinhas, podiam dispensá-los. O estado das
coisas só foi revertido porque o marido de Atanunmakalu, irmã mais
nova de Kamatapari, recém casado, morria de saudades da esposa e
resolveu buscá-la, fugindo da ira de Yamarikumã. O grande espírito
matou todos os homens da aldeia quando ficou sabendo da fuga.
Segundo o cacique Yumuin “Yamarikumã é um grande espírito que
também pode fazer mal a homens, mulheres e crianças".
Em um artigo para a revista Manchete, também de Maria Luíza Silveira,
encontrei dados interessantes sobre a indumentária que as mulheres
Mehinaku utilizam na Festa das Mulheres.
 
As Mehinaku adoram se enfeitar: a pintura do corpo e o uso dos colares
de miçangas de cores fortes, bem como fios de algodão recobrindo os
joelhos, são adornos freqüentes. As mulheres sempre usam seu cinto
tecido com fios de buriti, só retirando-o para o banho. Nas festas,
costumam adicionar ao cinto um fio de buriti que passa entre as
pernas, pelo meio da vagina, chamado uluri. Muitas não gostam disso,
incomoda.
A pintura no corpo das mulheres limita às pernas e ao rosto e, sua
geometria perfeita tem significados que remetem à vida dura na mata -
a sinuosidade da serpente, a cabeça da sucuri e pequenos peixes, como
as piabas. O urucum é passado numa faixa da testa e algumas vezes na
parte inferior das pernas. A tinta de jenipapo misturado ao carvão
(ulataki) dá a cor escura dos desenhos, que também ganham tons de
vermelho (epitsiri). Só os homens podem pintar o corpo inteiro e o
cabelo. Mas é o jenipapo que garante a permanência da pintura por
mais de 10 dias. Os motivos vão desaparecendo devagar, com os
banhos freqüentes, o cinto, os colares e a pintura do corpo significam
que as mulheres estão vestidas e bonitas. É assim que estas animadas
garotas se preparam para a festa do Yamarikumã, um espírito divino.
 
O ritual do Yamarikumã também é registrado em um belo livro com
fotografias de Maureen Bisilliat, fruto do seu encontro com os irmãos
Villas-Boas. Os autores grafam o termo com um diferencial de uma
letra, “Yamurikumã” ao invés de Yamarikumã. Eles nos contam que a
cerimônia consiste na representação de uma lenda originária das tribos
Karib e peculiar aos índios Kalapalo. O texto a seguir foi adaptado de
algumas legendas das fotografias constantes do livro:
 
"O cerimonial do Yamurikumã começa depois de meses ou até anos de
intermitente preparação. Tem início pela manhã com o cantochão da
mulher mais velha que, arrastando os pés ao ritmo oscilante do canto,
balança uma flecha em cada mão em movimentos ondulantes. Tendo
repetido muitas vezes esse ritual, as mulheres da tribo se dão os braços
e dançam em volta da aldeia, entrando em cada maloca, sacudindo a
escuridão com suas sombras fulgurantes e contínuo alarido. Pouco a
pouco, chega o momento culminante, e o canto ganha fervor, torna-se
um grito de guerra engolfando a humanidade no espírito legendário de
memórias matriarcais, em uma das mais estranhas e poderosas
manifestações das tradições xinguanas.
 
Durante o cerimonial do Yamurikumã, as mulheres lutam. O corpo
delas foi previamente preparado para o rigor do combate por um
processo que é chamado escarificação - hábito masculino -, em que
braços, pernas e coxas são raspados com dentes pontiagudos de peixe
cachorra embutidos em uma cabaça de corte triangular, que provoca
um sangramento superficial. O Yamurikumã é uma festa feminina. As
mulheres se penteiam, se pintam e se enfeitam com guirlandas de
vinhas silvestres. Um desenho de espinha de peixe é pintado no corpo
das mulheres para o Yamarikumã."
 
É intrigante que os pesquisadores brasileiros e estrangeiros, quando
tratam do tema “Amazonas”, ainda se referenciem aos relatos dos
viajantes da época colonial e não levem em conta o extenso cabedal
míticos dos nossos povos nativos em que os tema se apresenta. E o que
dizer de um rito que até hoje pode ver visto no Alto Xingu? 
Afinal, qual seria o significado dessa festa que comemora a inversão de
papéis, a imagem  do ideal masculino sobre o feminino? Até que ponto o
mito e sua ritualização podem espelhar as relações sociais? O mito
ocorre em outro tempo, o tempo mítico,  e suas personagens são
sobrenaturais. Teria essa rebelião realmente acontecido um dia? Seria o
mito das Amazonas brasileiras uma realidade histórica? Para Carolyne
Larrington é um perigo ver o mito como representação das relações
sociais e entre os gêneros. Na opinião da autora o mito deve ser lido
dentro de um contexto social mais amplo. No caso do Yamurukumã a
preocupação do nativo seria com a criação original da sexualidade e não
com a sexualidade per se. No Yamarikumã existiria uma sanção ao
espírito sexual incontrolável e, longe de representar relações humanas
de gênero, o ritual capacitaria os Mehinaku a legalizar a sexualidade
pré-humana.
A versão do mito que Carolyne Larrington apresenta é a seguinte:
Em tempos antigos os homens viviam muito mal, sem posses
adequadas, solitários e muito longe. Não possuíam nem o fogo, nem
armas, nem rede para dormir. Eram forçados a masturbar-se ao invés
de ter fazer sexo adequadamente. As mulheres, por outro lado, viviam
em uma aldeia apropriada e chefiadas por uma mulher. Possuíam tudo
que é necessário para uma vida civilizada, tal como casas, algodão,
enfeites de plumas e as flautas de Kauka que eles haviam feito. Usavam
ornamentos masculinos e tinta no corpo.Tinham uma casa de flautas
de Kauka. Os homens viram as mulheres colocando-as ali. Disseram:
“Isso é mau, as mulheres furtaram nosso viver” e decidiram tomar
algumas medidas. Fizerem zunidores. Eles pensaram que poderiam ter
relações sexuais com as mulheres rapidamente.Chegaram correndo pela
aldeia com seus zunidores e conseguiram pegar todas as mulheres e
rasgar suas condecorações masculinas. Eles avisaram-nas que daí por
diante. Eles lhes disseram que daí por diante só poderiam usar enfeites
femininos e que eles é que seriam os donos das flautas. As mulheres
correram se esconder em suas casas. De noite, os homens chegaram no
escuro e violentaram as mulheres. De manhã, os homens foram pescar.
Depois disso nunca mais as mulheres puderam entrar na casa das
flautas.
 
Creio que, assim como Carolyne Larrington afirma, o mito deve ser lido
em um contexto mais amplo. No entanto, o mito é mais atuante na
história do que possamos imaginar, está no cerne não só das relações
sociais mas presente no âmago da nossa vida, sejamos indígenas,
brancos, japoneses, africanos ... tanto faz. O mito é uma agente
universal e embora finja dormir nos substratos arcaicos, está acordado
e atuante, como sempre esteve e sempre vai estar na história da
humanidade.
Quando vejo deuses estrangeiros serem cultuados em terras brasileiras,
quando percebo um maior interesse com relação aos celtas ou à
mitologia grega no crescente meio pagão contemporâneo brasileiro - não
querendo destituir essas tradições da sua beleza e nem
representatividade -  me pergunto: Por quê? Nossas tradições não são
apenas tradições, estão vivas, presentes, acesas com o fogo que arde,
com o movimento de vento, com a força da música e do canto feminino.
Talvez porque no nosso mundo pasteurizado, acostumado a um modo
colonialista de ser, em que tudo o que é do outro é melhor do que o
nosso, a sobrevivência de uma tradição nativa não seja tão interessante
como um panteão de deuses literalizados em um Olimpo distante. Ou
ainda porque o brasileiro procure primeiro lá fora o que já tem dentro
de casa e nem sabe. Seja como for, fica aqui registrada a beleza de um
culto como o Yamarikumã, vivo em pleno século XXI. Com essa
declaração não quero, de forma alguma, minimizar o encanto e a força
dos mitos de outras tradições, que também procuro conhecer. Mas sim
fazer-nos lembrar do que temos aqui, ao nosso lado e depois de 500
anos continuamos ainda ignorando.
 
 
E,  para finalizar, a Festa das Mulheres Kayapós, o Mebiôk [11]:
 
Há uma festa entre os Kayapó que é exclusiva das mulheres. Celebrada
quase todos os anos, começa com as primeiras chuvas e continua até
pleno inverno. Todas as índias dela participam. Os homens limitam-se a
olhar e a arranjar jabotis em grande quantidade para o último dia da
festa, o mais importante de todos.
Começa um dia, de tardezinha, quando as mulheres se reúnem para
pintar o corpo com tinta preta. Os desenhos são sempre uniformes e,
pelo menos no princípio da festa, aplicados sem grande esmero. Feito
isso, as índias sentam-se no chão para cantar, erguendo e baixando os
braços em movimento rítmico.
No dia seguinte, quando acaba a tarefa da manhã, que quase sempre
leva as mulheres às roças, passam uma hora andando de duas em duas
pela aldeia toda e em todas direções. Geralmente deixam de lado
qualquer vestígio de roupa e usam apenas um ligeiro enfeite de folhas
ou flores sobre a cabeça. E assim vão, andando e cantando, os braços
subindo e descendo com em súplica, os passos cadenciados, a beleza
selvagem ostentando-se perante os homens que fingem uma atitude de
indiferença.
Estas exibições continuam quase diariamente por semanas inteiras,
faça sol quente ou cai chuva fria. Cada dia se acrescenta um enfeite de
cor mais viva, uma pintura mais complicada, uma canção mais
aperfeiçoada.
No grande dia em que termina a festa, ninguém faz outra coisa  senão
enfeitar complicadamente as festejantes, ou preparar infelizes jabotis
para a fogueira. Quando, à tarde, as índias emergem do seu "salão de
beleza", o fazem em toda a sua glória primitiva, os crânios recém
raspados, os cabelos salpicados de penugem branca, as faces com uma
crosta de pó azul com látex, e,  em volta da cabeça e dos ombros, lindas
coroas de penas de arara. Dançam sós a noite toda, comemorando o
tempo em que as suas antepassadas remotas resolveram condenar os
homens a viverem sem elas.
Conta a lenda que havia um índio de nome Birá, verdadeiro Don Juan
das selvas, que exercia tal atração sobre as mulheres, que todas
ficavam perdidas de amor por ele. Como era de esperar-se, os maridos,
ciumentos, lhe votavam o maior ódio. Usando de encantamentos,
conseguiram que Birá se transformasse em anta, mataram-na e
levaram-na para a aldeia como caça comum. Só após terem comido
toda  carne é que as mulheres foram informadas da natureza do
repasto.
Ante a verdade horripilante, as índias vomitaram não só de nojo, mas
de tristeza e de raiva pela morte daquele que lhes fora tão querido.
Mais tarde os homens foram caçar, deixando as mulheres sob a
vigilância de uns velhos que passavam o tempo na casa-dos-homens,
preparando armas. As mulheres resolveram fazer uma festa e para isso
se pintaram cada qual a seu gosto, uma com manchas pretas, outras
com listas. Depois de pintadas, e ainda desgostosas pela morte de Birá,
dirigiram-se ao rio para nunca mais voltar. Pulando na água,
transformaram-se em peixes. Os velhos, que procuraram detê-las,
viraram arraias e poraquês.
Ao voltarem da caçada, os homens acharam a aldeia abandonada, só
restando as crianças que, chorando de fome, contaram que as mães
haviam desaparecido. Indo ao rio, os índios notaram que havia peixes,
criaturas que até aquele tempo não existiam e, vendo as manchas e as
listas do pacu, tucunaré e outros peixes pintados, acreditaram no que
as crianças haviam dito.
Cheio de saudades da mulher desaparecida, um marido desconsolado
inventou a primeira linha de pescar e, por meio de uma isca de fruta
silvestre (ingá), amarrada a um cipó comprido, conseguiu apanhar um
peixe. Este, arrastado à terra, tomou novamente a forma humana, o que
conseguiu fazendo muitos esforços com a cabeça e com a ponta do
rabo. ("Veja", dizem os índios, "como até hoje os peixes fazem assim").
Quando os demais índios viram que aquele conseguira, com cipó e ingá,
recuperar a mulher, tentaram fazer o mesmo, porém sem resultado. As
mulheres que pescaram, zangadas ainda, pularam novamente na água
para nunca mais voltar.
Tristes e inconsoláveis, achando impossível viver sem as mulheres, os
maridos entraram na floresta, onde se transformaram em macacos e
outros animais.
 
E até hoje, na festa chamada "Mebiôk", as índias comemoram a época
dos primeiros peixes e a sua independência em relação aos homens.
 

[1]
Verbete sobre os índios Ka´apor, texto sobre Religião, traduzido do inglês por Ana Valéria
Araújo, setembro de 1998 – site do Instituto Sócio
Ambiental.http://www.socioambiental.org/website/pib/epi/kaapor/religiao.shtm
 
 
[2]
Kadiwéu -verbete sobre os índios Kadiwéu, texto sobre Ritos, por Mônica Thereza Soares Pechincha,
março de 1999. Fonte: Instituto Socioambiental.
http://www.socioambiental.org/website/pib/epi/kadiweu/ritos.shtm
 
 
 
 
[3]
Biblioteca Virtual - Museu Virtual - MAE-USP - Brasil Indígena -  Ritual de Iniciação Feminina
Tukúna a "Festa da Moça Nova"  http://www.bibvirt.futuro.usp.br/acervo/audiovisual/visual/mae
Escola do futuro da Universidade de São Paulo http://www.bibvirt.futuro.usp.br
 
[4]
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Ediouro, s/d, 10º ed. p.
533.
 
[5]
HARDING, M. Esther. Os Mistérios da mulher.  São Paulo: Paulinas, 1985. P. 88.
 
[6]
PIEDADE, Acácio Tadeu de C. Música ye’pâ-masa: por uma antropologia da música  no Alto Rio
Negro. Dissertação de Mestrado, UFSC, 1997.
 
SILVEIRA, Maria Luiza. Índias Mehinaku, as princesas das águas. Revista Manchete, junho de 1996..
[7]

Identidade em mulheres índias: um estudo sobre processos de transformação. Maria Luiza dos Santos
Silveira, tese de mestrado, USP, Instituto de Psicologia.
[8]
SILVEIRA, Maria Luiza. Índias Mehinaku, as princesas das águas. Revista Manchete, junho de 1996.
 
[9]
BISILLIAT, Maureen, VILLAS-BÔAS, Orlando e Cláudio.  Xingu, território tribal.  Fotos de
Maureen Bisilliat, texto de Orlando e Claudio Villas-Bôas. São Paulo: Cultura Editores Associados,
1990.
 
[10]
LARRINGTON, Carolyne. The Woman’s companion to mythology. London:
HarpersCollinsPublishers, 1992. p. 401 a 408.
 
 
[11]
SCHADEN, Egon. Homem, cultura e sociedade no Brasil. Coleção Estudos Brasileiros. Petrópolis:
Vozes, 1972. p.95-97. Mito recolhido por Horace Banner.
 
 
 

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