Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos é um relato subjetivo e fragmentado de suas memórias do período que passou preso após se envolver com a Intentona Comunista de 1935. O texto não se propõe a ser um documento histórico objetivo, mas sim uma obra literária baseada na memória subjetiva do autor. Graciliano reconhece que suas memórias são falíveis e lacunares, mas busca fidelidade à sua própria percepção dos fatos.
Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos é um relato subjetivo e fragmentado de suas memórias do período que passou preso após se envolver com a Intentona Comunista de 1935. O texto não se propõe a ser um documento histórico objetivo, mas sim uma obra literária baseada na memória subjetiva do autor. Graciliano reconhece que suas memórias são falíveis e lacunares, mas busca fidelidade à sua própria percepção dos fatos.
Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos é um relato subjetivo e fragmentado de suas memórias do período que passou preso após se envolver com a Intentona Comunista de 1935. O texto não se propõe a ser um documento histórico objetivo, mas sim uma obra literária baseada na memória subjetiva do autor. Graciliano reconhece que suas memórias são falíveis e lacunares, mas busca fidelidade à sua própria percepção dos fatos.
Memória/História em Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos
Ananda Gomes Henn*
A discussão sobre o relacionamento entre a literatura e a realidade dos fatos é
uma que se estende desde a criação das primeiras expressões literárias. Na literatura de testemunho, em que a linha de distinção entre ficção e fato não é bem traçada, esse relacionamento se mostra ainda mais desafiador, e a escolha entre “acreditar” na narrativa ou encará-la como totalmente inventada parece inevitável diante da leitura. É necessário distanciá-la, porém, do registro historiográfico – o testemunho se exprime por meio da literatura, e seus procedimentos se orientam por pressupostos assentados nas convenções literárias e nos limites que a literatura, como arte, impõe. A leitura de um testemunho literário, portanto, comporta a compreensão de que o texto não é verdadeiro nem falso em relação à realidade, mas pode ser ambos ao mesmo tempo: é fruto da memória individual e subjetiva.
Visto isso, uma obra em que essa dualidade se manifesta notavelmente é
Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos. Publicada postumamente em 1953, ela contém as memórias do autor sobre o período em que ficou preso por seu envolvimento com a Intentona Comunista de 1935. Logo no primeiro capítulo, ele já avisa ao leitor que “não me agarram métodos, nada me força a exames vagarosos” (RAMOS, 2008, p. 08); o que escreve são suas memórias, e conta o que quer contar, omite o que quer emitir. Não escreve relato jornalístico ou documento histórico, espelho fiel da realidade – seu testemunho é literário.
Nesta reconstituição de fatos velhos, neste esmiuçamento, exponho o
que notei, o que julgo ter notado. Outros devem possuir lembranças diversas. Não as contesto, mas espero que não recusem as minhas: conjugam-se, completam-se e me dão hoje impressão de realidade (RAMOS, 2008, p. 10).
O texto é narrado em primeira pessoa; o eu narrador, Graciliano Ramos,
transformado em autor-sujeito-personagem. Esse sujeito, porém, é fragmentado: Graciliano Ramos, homem, é o sujeito que sofre(u) a experiência ao mesmo tempo que a analisa (e analisou), e ao mesmo tempo que, dez anos depois, a recorda e a escreve. Sua experiência, a forma como ele percebe o mundo é imagem fragmentada relativa a como ele vê a si mesmo, e, consequentemente, sua escrita de si, de seu corpo, de tempo ** Graduanda da quinta fase do curso de Letras Português e Literaturas. E-mail: nandahenn@gmail.com no cárcere, é imagem fragmentada de como concebe a si mesmo. É impossível conceber algo em sua totalidade – nossa percepção está sempre atravessada pela nossa subjetividade – e, no caso de um testemunho baseado em memórias, essa impossibilidade é ainda maior.
Henri Bergson, em Matéria e memória (2010), apresenta a existência de duas
memórias. Enquanto a primeira registra os acontecimentos da nossa vida cotidiana na medida em que se desenrolam, sem poupar nenhum detalhe, possuindo data e lugar para cada fato, a segunda “[...] reencontra esses esforços passados, não em imagens- lembranças que os recordam, mas na ordem rigorosa e no caráter sistemático com que os movimentos atuais se efetuam [...]. ela já não nos representa nosso passado, ela os encena [...]” (BERGSON, 2010, p. 88) Essa memória, em uma obra como a de Graciliano, é talvez mais importante do que a factual, intelectual: é ela que move a escrita do autor, é nela, principalmente, que a narrativa se fundamenta.
O próprio autor parece confirmar isso. No primeiro capítulo, ao mencionar a
perda das vastas anotações que fez durante o cárcere, afirma ser bom não ter escrito o livro a partir delas, pois se sentiria tentado a consultá-las a todo instante e se preocupar em descrever detalhadamente toda memória em sua data, horário e local. Seu testemunho há de ser fruto da segunda memória, “[...] assentada no presente e considerando apenas o futuro” (BERGSON, 2010, p. 88), aquela que encena o passado. O filtro de sua subjetividade é tão importante para a construção do texto quanto as situações objetivas que se propõe representar:
Essas coisas verdadeiras podem não ser verossímeis. E se
esmoreceram, deixá-las no esquecimento: valiam pouco, pelo menos imagino que valiam pouco. Outras, porém, conservaram-se, cresceram, associaram-se, e é inevitável mencioná-las. Afirmarei que sejam absolutamente exatas? Leviandade (RAMOS, 2008, p. 09).
Semelhantemente, Alfredo Bosi (1995, p. 321) afirma que a testemunha “[...]
produz um depoimento que é sempre válido, mesmo que remeta a um sentido oculto à maioria dos circunstantes da situação evocada”. Ao contrário do historiador, que busca escrever a verdade objetiva pela voz da maioria, no testemunho, texto memorialístico com traços tanto da história quando da ficção, o autor retrabalha os fatos intencionalmente para narrar acontecimentos reais, porém subjetivizados; não significa, contudo, que possui menos significância em sua representação do real, visto que, como posto por Bosi (1995, p. 321) “[...] o olhar perspicaz, coisa sempre rara, vê o que passa despercebido à maioria desatenta. [...] a verdade subjetiva de uma só testemunha poderá valer pela verdade objetiva que a História pretende guardar e transmitir”. Realiza-se, então, um reaproveitamento artístico da experiência vivida, em que a realidade é relativizada e refigurada literariamente.
Sendo assim, Memórias do Cárcere se localiza no espaço que existe entre
realidade e ficção, um espaço de memória. Seu distanciamento do discurso histórico, compromissado com a veracidade dos fatos objetivos, porém, não o circunscreve no cosmo da imaginação – é a realidade. Ou melhor, é a imagem da realidade tal qual uma pessoa – Graciliano Ramos – a recorda e a entende em seu presente, e tal qual a escreve, com compromisso de fidelidade à própria consciência, sem negar que “[...] é falível a sua percepção, lacunosa a memória e tateante o seu juízo ético” (BOSI, 1995, p. 322).
REFERÊNCIAS
BERGSON, Henri. Matéria e memória. Ensaio da relação do espírito com o corpo.
Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
BOSI, Alfredo. A escrita do testemunho em Memórias do cárcere. Estudos Avançados,
São Paulo, n. 9, v. 23, p. 309-322, 1995.
RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. Rio de Janeiro: Record, 2008.