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Memória/História em Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos

Ananda Gomes Henn*

A discussão sobre o relacionamento entre a literatura e a realidade dos fatos é


uma que se estende desde a criação das primeiras expressões literárias. Na literatura de
testemunho, em que a linha de distinção entre ficção e fato não é bem traçada, esse
relacionamento se mostra ainda mais desafiador, e a escolha entre “acreditar” na
narrativa ou encará-la como totalmente inventada parece inevitável diante da leitura. É
necessário distanciá-la, porém, do registro historiográfico – o testemunho se exprime
por meio da literatura, e seus procedimentos se orientam por pressupostos assentados
nas convenções literárias e nos limites que a literatura, como arte, impõe. A leitura de
um testemunho literário, portanto, comporta a compreensão de que o texto não é
verdadeiro nem falso em relação à realidade, mas pode ser ambos ao mesmo tempo: é
fruto da memória individual e subjetiva.

Visto isso, uma obra em que essa dualidade se manifesta notavelmente é


Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos. Publicada postumamente em 1953, ela
contém as memórias do autor sobre o período em que ficou preso por seu envolvimento
com a Intentona Comunista de 1935. Logo no primeiro capítulo, ele já avisa ao leitor
que “não me agarram métodos, nada me força a exames vagarosos” (RAMOS, 2008, p.
08); o que escreve são suas memórias, e conta o que quer contar, omite o que quer
emitir. Não escreve relato jornalístico ou documento histórico, espelho fiel da realidade
– seu testemunho é literário.

Nesta reconstituição de fatos velhos, neste esmiuçamento, exponho o


que notei, o que julgo ter notado. Outros devem possuir lembranças
diversas. Não as contesto, mas espero que não recusem as minhas:
conjugam-se, completam-se e me dão hoje impressão de realidade
(RAMOS, 2008, p. 10).

O texto é narrado em primeira pessoa; o eu narrador, Graciliano Ramos,


transformado em autor-sujeito-personagem. Esse sujeito, porém, é fragmentado:
Graciliano Ramos, homem, é o sujeito que sofre(u) a experiência ao mesmo tempo que
a analisa (e analisou), e ao mesmo tempo que, dez anos depois, a recorda e a escreve.
Sua experiência, a forma como ele percebe o mundo é imagem fragmentada relativa a
como ele vê a si mesmo, e, consequentemente, sua escrita de si, de seu corpo, de tempo
**
Graduanda da quinta fase do curso de Letras Português e Literaturas. E-mail: nandahenn@gmail.com
no cárcere, é imagem fragmentada de como concebe a si mesmo. É impossível conceber
algo em sua totalidade – nossa percepção está sempre atravessada pela nossa
subjetividade – e, no caso de um testemunho baseado em memórias, essa
impossibilidade é ainda maior.

Henri Bergson, em Matéria e memória (2010), apresenta a existência de duas


memórias. Enquanto a primeira registra os acontecimentos da nossa vida cotidiana na
medida em que se desenrolam, sem poupar nenhum detalhe, possuindo data e lugar para
cada fato, a segunda “[...] reencontra esses esforços passados, não em imagens-
lembranças que os recordam, mas na ordem rigorosa e no caráter sistemático com que
os movimentos atuais se efetuam [...]. ela já não nos representa nosso passado, ela os
encena [...]” (BERGSON, 2010, p. 88) Essa memória, em uma obra como a de
Graciliano, é talvez mais importante do que a factual, intelectual: é ela que move a
escrita do autor, é nela, principalmente, que a narrativa se fundamenta.

O próprio autor parece confirmar isso. No primeiro capítulo, ao mencionar a


perda das vastas anotações que fez durante o cárcere, afirma ser bom não ter escrito o
livro a partir delas, pois se sentiria tentado a consultá-las a todo instante e se preocupar
em descrever detalhadamente toda memória em sua data, horário e local. Seu
testemunho há de ser fruto da segunda memória, “[...] assentada no presente e
considerando apenas o futuro” (BERGSON, 2010, p. 88), aquela que encena o passado.
O filtro de sua subjetividade é tão importante para a construção do texto quanto as
situações objetivas que se propõe representar:

Essas coisas verdadeiras podem não ser verossímeis. E se


esmoreceram, deixá-las no esquecimento: valiam pouco, pelo menos
imagino que valiam pouco. Outras, porém, conservaram-se,
cresceram, associaram-se, e é inevitável mencioná-las. Afirmarei que
sejam absolutamente exatas? Leviandade (RAMOS, 2008, p. 09).

Semelhantemente, Alfredo Bosi (1995, p. 321) afirma que a testemunha “[...]


produz um depoimento que é sempre válido, mesmo que remeta a um sentido oculto à
maioria dos circunstantes da situação evocada”. Ao contrário do historiador, que busca
escrever a verdade objetiva pela voz da maioria, no testemunho, texto memorialístico
com traços tanto da história quando da ficção, o autor retrabalha os fatos
intencionalmente para narrar acontecimentos reais, porém subjetivizados; não significa,
contudo, que possui menos significância em sua representação do real, visto que, como
posto por Bosi (1995, p. 321) “[...] o olhar perspicaz, coisa sempre rara, vê o que passa
despercebido à maioria desatenta. [...] a verdade subjetiva de uma só testemunha poderá
valer pela verdade objetiva que a História pretende guardar e transmitir”. Realiza-se,
então, um reaproveitamento artístico da experiência vivida, em que a realidade é
relativizada e refigurada literariamente.

Sendo assim, Memórias do Cárcere se localiza no espaço que existe entre


realidade e ficção, um espaço de memória. Seu distanciamento do discurso histórico,
compromissado com a veracidade dos fatos objetivos, porém, não o circunscreve no
cosmo da imaginação – é a realidade. Ou melhor, é a imagem da realidade tal qual uma
pessoa – Graciliano Ramos – a recorda e a entende em seu presente, e tal qual a escreve,
com compromisso de fidelidade à própria consciência, sem negar que “[...] é falível a
sua percepção, lacunosa a memória e tateante o seu juízo ético” (BOSI, 1995, p. 322).

REFERÊNCIAS

BERGSON, Henri. Matéria e memória. Ensaio da relação do espírito com o corpo.


Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

BOSI, Alfredo. A escrita do testemunho em Memórias do cárcere. Estudos Avançados,


São Paulo, n. 9, v. 23, p. 309-322, 1995.

RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. Rio de Janeiro: Record, 2008.

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