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o Problema da Mão-de-Obra e
a Solução Escravista
1. LÓPEZ DE GOMARRA apud FERRO, Marc. História das colonizações:das conquistas às independências
(séculos XIII a XX). São Paulo: Companhia das Letras, p. 49, 1996 (grifos nossos - MGM/MCP).
2. CANNABRA VA, Alice P. A grande propriedade rural. ln: HOLANDA, Sérgio Buarque de, org. História
geral da civilização brasileira: a época colonial. São Paulo: Difusão Européia do Livro, t. 1, v. 2, p. 196,
1968.
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64 Formação
Econômica
doBrasil
6.1 A ExploraçãodoTrabalhoCompulsório
Os objetivos apontados acima levariam à adoção, em toda a América, de formas de
trabalho compulsórias: em algumas áreas, como é caso das regiões mineiras colonizadas
pela Espanha, por meio da servidão; nas demais, especialmente nas regiões tropicais,
como é o caso do Brasil, mediante a implantação pura e simples do escravismo, que se
tomou, afinal, o regime de trabalho preponderante no continente.
"Não é difícil compreender por que essa fase do capitalismo europeu exigiu o
surgimento e expansão da escravidão no Novo Mundo. A atividade comercial passou a
ser encarada como o meio mais rápido de enriquecimento e fortalecimento do poder dos
povos, a idéia do lucro tomou-se predominante. O capital comercial movia a economia,
portanto a agricultura e indústria eram-lhe subordinadas, ou seja, produzia-se aquilo
que tivesse valor comercial. (...) Mas, para produzirem-se as mercadorias exigidas, as
colônias necessitavam de trabalhadores, tanto nas ricas em metais preciosos quanto
naquelas em que estes, aparentemente, não existiam. No caso do Brasil, a disponibilidade
de terras e as condições geoclimáticas favoreciam a produção de mercadorias tropicais
como o açúcar, de grande aceitação no mercado europeu. Este produto, no entanto, exigia
grandes investimentos, só compensáveis pela produção em larga escala, o que suptrnha
mão-de-obra numerosa"3. E essa mão-de-obra não seria européia.
No entanto, é curioso notar que, naquele momento,. a Europa começava a "liber-
tar" seus trabalhadores, num movimento em que os servos passaram a deixar o campo
em direção às cidades, onde se transformariam em trabalhadores "livres", isto é,
assalariados. E ressalvamos "livres" pelo fato dé, como é notório, ter ocorrido em
muitas regiões da Europa, durante a era moderna, um aumento da exploração do tra-
balhador e uma piora nas suas condições de vida em relação à servidão.
Assim, para que se possa compreender o porquê da adoção da escravidão na
América e, mais especificamente, da escravidão negra, é especialmente importante que
nos reportemos ao próprio "sentido" da colonização, ou seja, ao estabelecimento de uma
economia voltada para a produção de artigos de interesse para o comércio europeu, de
maneira a permitir a aceleração da acumulação capitalista. Aliás, como bem assinalou
Caio Prado Ir., em "seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a colonização
dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais complexa que a anti-
ga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela, destinada a explorar os recursos
naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. (...) É com tal obje-
tivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não
fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia
brasileiras. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura social, bem como as atividades
do país. Virá o branco europeu para especular, realizar um negócio; e verterá seus cabe-
dais e recrutará a mão-de-obra de que precisa: indígenas ou negros importados"4.
Do mesmo modo, Sérgio Buarque de Holanda também assinalou este "sentido" da
colonização ao analisar o caráter do colonizador. Segundo ele, o que" o português vinha
3. QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Escravidãonegrano Brasil.São Paulo: Ática, p. 8-9, 1990.
<1 PRADO Ir., Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, p. 22-23, 1970.
o Problema
daMão-de-Obra
e aSoluçãoEscravista 65
buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas a riqueza que custa ousadia, não riqueza que
custa trabalho. A mesma, em suma, que se tinha acostumado a alcançar na índia com as
especiarias e os metais preciosos. Os lucros que proporcionou de início, o esforço de
plantar a cana e fabricar o açúcar para mercados europeus compensavam abundante-
mente esse esforço - efetuado, de resto, com as mãos e os pés dos negros -, mas era pre-
ciso que fosse muito simplificado, restringindo-se ao estrito necessário às diferentes
operações"5.
A implantação do trabalho assalariado na colônia representaria, evidentemente,
uma grande limitação a esses objetivos, principalmente considerando-se a quantidade
de terras disponíveis, o que poderia levar os trabalhadores a se transformarem, com o
tempo, em proprietários. Dessa forma, a simples transferência de mão-de-obra da
metrópole para a colônia constituiria um entrave à acumulação. Ademais, deve-se levar
em conta a pequena população portuguesa da época, insuficiente para fornecer a quan-
tidade de braços necessários à tarefa da colonização sem que os salários se tomassem
por demais elevados. Por outro lado, dados os custos, a produção colonial só se tomaria
economicamente viável se pudesse ser organizada em larga escala, o que pressupunha,
obviamente, enormes investimentos iniciais. Assim, desde logo estava afastada a possi-
bilidade de se estabelecer uma colonização com base na pequena propriedade autôno-
ma ou no trabalho assalariado.
Explica-se, assim, o porquê da adoção da escravidão. Aliás, saliente-se que desde
a implantação da indústria açucareira nas ilhas do Atlântico, Portugal utilizara mão-de-
obra escrava negra. Senão, vejamos o comentário de João Lúcio de Azevedo: "Com
efeito, a produção de açúcar era por tradição e necessidade trabalho de cativos. Tal se
mostrava nos países do Levante, de onde a indústria procedia, e tal se pôde estabelecer
na ilha portuguesa, novamente descoberta, desde que a costa africana ministrava os
braços, tantos quantos fossem necessários. Foi sem dúvida este pensamento que indu-
ziu o Infante a mandar vir da Sicília, onde também os cativos trabalhavam, a preciosa
cana e os mestres da arte. A notícia de Cadamost06, a mais antiga que temos sobre a pro-
dução de açúcar na Madeira, corresponde à época em que o tráfico dos escravos entrara
em plena expansão. Nem de outro modo a indústria lograria desenvolver-se com
tamanha largueza. Não sobravam no reino trabalhadores rurais, e aqueles que busca-
vam as ilhas do Atlântico pretendiam ser donos das leiras, e não assalariados nelas. A
cultura do açúcar, para dar vantagem, tinha de fazer-se em vasta escala, demandando
assim cópia de braços (...)"7.
6.2 A OpçãopeloEscravoAfricano
Poder-se-ia perguntar o motivo pelo qual não foram utilizados escravos nativos,
até porque, como lembrou Stuart Schwartz, eles eram chamados pelos portugueses
5. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, p. 18, 1971.
6. O autor refere-se a um viajante que escreveu sobre a produção de açúcar na Ilha da Madeira por volta
de 1455.
.7. AZEVEDO, João Lúcio de. Épocasde Portugaleconômico.Lisboa; Livraria Clássica, p. 227, 1978.
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de "negros da terra". De fato, "na Idade Média, em Portugal, a palavra 'negro' tomara-se
quase sinônimo de escravo, e com certeza no século XVI ainda tinha implicações de
servilismo. Seu uso para qualificar os índios patenteia o modo como os portugueses
encaravam os africanos e indígenas, não tanto com respeito à cor da pele, mas à sua
posição social e cultural em relação aos portugueses. No decorrer do século XVI o
emprego comum do termo 'negro da terra' desapareceu gradualmente à medida que
aumentou o número de africanos introduzidos na colônia. Esse desaparecimento foi, na
verdade, concomitante à extinção da escravidão indígena"8.
Ademais, e conforme a análise de Alexander Marchant, "os donatários vieram
para o Brasil formar lavouras a fim de exportar produtos agrícolas, e como seu
empreendimento diferiu acentuadamente do dos traficantes de pau-brasil e dos guar-
da-costas, eles introduziram novos elementos no primitivo padrão econômico. Em
primeiro lugar, sua vinda para o Brasil, para aqui viver, distingue suas colônias da-
queles postos mais ou menos transitórios, dos quais os traficantes condJ1ziralll sua
exploração da terra. Em segundo, a existência de suas lavouras implica a necessidade
de trabalho abundante e disciplinado (...). Suas necessidades, ampliadas pela,suageral
procura de capital e braços, os forçaram a requerer dos índios braços e mais trab,alho do
que os primeiros portugueses haviam obtido com o escambo. E,m muitas oportu-
nidades, então, a escravização ocorreu quando as relações de escambo se t()rnaram
inadequadas"9. ' , ,
Contudo, por volta de 1580, a predominância dos negros era absoluta. Assim, as
razões para a substituição do índio pelo africano devem ser buscadas em outros fatos.
Primeiramente, havia a oposição da Igreja Católica à escravização dos indígenas. "Os
jesuítas tinham seus próprios objetivos, ao virem para o Brasil com Tomé de Sousa (...).
Embora desejassem conduzir a uma vida mais cristã a população branca do Brasil, que
contraíra os hábitos dos nativos entre os quais vivia, sua tarefa principal era a conver-
são do gentio. Os portugueses poderiam ser assistidos nas vilas e lavouras. Mas os indí-
genas, estes, estavam hoje num lugar e amanhã noutro. Deviam ser antes de mais nada
fixados em determinadas localidades, pois a disciplina cristã e o culto poderiam ser
mais bem conduzidos em aldeamentos do que por padres solitários viajando em toda a
extensão do Brasil com tribos erradias"lo.
Porém, deve-se ressaltar que esta oposição à escravização dizia respeito somente
aos indígenas, não havendo qualquer objeção em relação aos negros, como se pode ver
da análise de Marchant. Segundo ele, "o sustento dos dependentes, em suas casas e
colégios, não era fácil tarefa para os jesuítas. O seu próprio sustento poderia ser facil-
mente provido pela esmola de uns poucos colonos, por doações e por pagamentos feitos
pelo rei, mas nem com essa diversidade de fontes de renda o sustento estava garahtido.
(...) Quando, por exemplo, os colonos passaram a reprovar os preceitos morais e a pre-
gação dos jesuítas, declinaram, em sihal de hostilidade, de dar espórtulas. Nóbrega
8. SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo:
Companhia das Letras, p. 58, 1988.
9. MARCHANT, Alexander. Do escamboà escravidão.São Paulo: Companhia Editora Nacional, p. 35-36,
1980.
10. Idem, p. 71.
o Problema
daMão-de-Obra
ea SoluçãoEscravista 67
Um último aspecto a ser ressaltado diz respeito à questão da forma assumida pelo
tráfico no continente africano. Para tanto, pedimos novamente auxílio a Jacob Gorender.
"O tráfico mercantilista iniciado pelos portugueses introduziu um fator externo destrutivo
que paralisou ou perverteu a evolução endógena dos povos negros. A África surgiu como
imenso viveiro de força de trabalho: ainda no século XVII, sua população equivalia à da
Europa e representava um quinto da população de todo o globo. Ademais, sua localiza-
ção fronteira com relação à América viabilizava o transporte de escravos. A princípio,
os próprios portugueses assaltavam aldeias inermes e realizavam capturas. Todavia,
não demoraram a deixar semelhante tarefa aos africanos. Seduzidos pelos artigos de
origem européia ou americana, e munidos de armas de fogo, os africanos se entregaram
à caça ao homem numa escala nunca vista. Capturar prisioneiros para o tráfico tomou-se
atividade prioritária de tribos primitivas de remotas regiões interioranas e de sólidos
Estados litorâneos, como o de Daomé, nascido do tráfico no século XVII e fundado no
monopólio real do comércio de escravos. Os prisioneiros eram trocados por panos,
ferragens, trigo, sal, cavalos e, sobretudo, por armas de fogo e munições. A estes produtos
de origem européia juntaram-se, com grande aceitação, os procedentes da América:
tabaco, aguardente, açúcar, doces e búzios, estes últimos utilizados como moeda pelos
africanos. A difusão das armas de fogo tornou sua posse questão de sobrevivência e
obrigou uma tribo após outra a tentar obtê-Ias por meio da captura de homens e mulheres
de outras tribos"17.
Portanto, é possível concluir que o escravismo colonial e, especificamente, o escra-
vismo africano não deve ser entendido como uma opção por um tipo de trabalhador
supostamente mais dócil e disciplinado, mas sim como uma imposição das condições
econômicas e históricas da época, porquanto a colonização, desde o início, se configurou
como uma empresa comercial, com necessidade de se adaptar ao objetivo primordial da
expansão mercantil e colonial, qual seja, o da promoção da acumulação capitalista.
Esse aspecto, no entanto, não deve encobrir o fato de que a escravidão engendrou
no Brasil uma sociedade essencialmente hierarquizada e violenta, em que a alguns indi-
víduos são concedidos todos os privilégios, enquanto a grande massa da população
permanece à margem das decisões políticas e dos benefícios econômicos e sociais. As
origens dessa forma de organização devem ser buscadas na estruturação da sociedade
colonial, profundamente marcada pela escravidão, que "transformou e ampliou as
categorias tradicionais - transformou em pessoas de qualidade alguns indivíduos que
nunca sonhariam em obter essa condição em Portugal, e criou um novo estado de plebeus,
formado pelos escravos. Entretanto, ao mesmo tempo, desenvolveu novos princípios de
hierarquia baseados na raça, aculturação e condição social. A sociedade escravista
brasileira não foi uma criação do escravismo, mas o resultado da integração da
escravidão da grande lavoura com os princípios sociais preexistentes na Europa"18.