Adaptação do texto de Flávia Martinelli, publicado em 25/10/2019.
Artemisa Xakriabá tem 19 anos e o nome emprestado de
uma pedra preciosa das terras de sua aldeia – e também em homenagem a uma locutora de rádio adorada por seus pais. A jovem indígena do povo Xakriabá, etnia que vive em São João das Missões, no norte de Minas Gerais, luta pela manutenção da demarcação de suas terras. Um povo sobrevivente que guarda na memória histórias de violência. "Em 1987, o nosso cacique Rosalino Gomes foi assassinado por grileiros. Ainda é muito doloroso, e o que aconteceu com a gente acontece com muitos povos indígenas", conta. Artemisa toca violão, canta e é líder da Juventude Indígena Brasileira. Há um mês esteve na sede da ONU (Organização das Nações Unidas), em Nova York, para participar da Cúpula do Clima. Estava entre os mais de 500 jovens, de 140 países, que ocuparam a entidade pela primeira vez para se manifestar sobre as condições climáticas do planeta. Também foi a primeira vez que Artemisa andou de trem, viajou de avião e saiu do país. LGBT apesar de todo o preconceito, ela se surpreendeu por receber o apoio de um membro Xakriabá de mais de 80 anos de idade. Ele a orientou a se abrir com a família e foi o que Artemisa fez. "Nós, jovens, precisamos ser ouvidos sobre assuntos que afetam o presente e o futuro de todos." Ela conta que é ativista desde os 7 anos, quando participou de um reflorestamento de nascentes dentro do território dos Xakriabás, comunidade de 12 mil indígenas onde morou até os 16 anos. Hoje, vive em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, onde se prepara para o vestibular. Quer ser psicóloga para ajudar seu povo, que sofre com altas taxas de suicídio. "Qualquer curso que eu fizesse, faria pelo território. Cresci sabendo da importância do nosso povo."
Lá no território o ensino é diferente. No ensino fundamental a gente só aprende geografia, história ou
ciências e tudo é voltado para a cultura indígena e o povo Xakriabá. Nunca na vida imaginava que tinha acontecido a primeira e a segunda guerra mundiais! A geografia não é conhecer hectares do mundo, mas conhecemos cada lugar do nosso território. E sabemos muito sobre plantas medicinais e nossa cultura. Na escola, onde aprendi sobre a chacina que aconteceu conosco em 1987. Os fazendeiros chegaram no território, mataram meu cacique e alguns indígenas. É uma coisa que dói na gente até hoje. A gente fazia teatro sobre isso. Eu gostava de interpretar o filho do cacique, o Zé Nunes. Ele, criança, teve que arrastar o pai. Sempre me perguntava de onde ele tirou forças. Zé viu todos os acontecimentos: a mãe baleada no braço, o pai jogado no chão com um tiro no peito… Outras vezes interpretei o Rosalino, o cacique. Quis estudar fora porque em São João das Missões não tinha curso preparatório para o vestibular. Foi quando aconteceu de meus pais se separarem, uma tia que também queria estudar foi para Ribeirão Preto e fui com ela e minha irmã de consideração, mais velha. Ela passou na universidade em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, e agora moro com minha mãe na cidade. Vou fazer o vestibular para Psicologia esse ano, estou fazendo cursinho. Eu falo o português e um pouco de portunhol. Mas a gente tem a nossa própria língua nativa que é a akwê. Consigo conversar com pessoas que falam o básico. Infelizmente são os mais velhos que falam bem nossa língua nativa. Os mais jovens foram perdendo um pouco do costume. Na escola ensinam músicas na língua akwê, em determinada idade você aprende os cumprimentos, como falar com os mais velhos. Mas a gente aprende o português também, a matemática. E isso vai dividindo espaço com a cultura nativa. Tá sendo uma formação ainda, de procurar saber mais sobre a cultura do povo Xakriabá, principalmente sobre a língua. Já vi muitas pessoas falando que a língua é coisa mais importante dos povos indígenas, mas para mim é a luta. Com luta a gente resgata a língua, a cultura, o próprio conhecimento e identidade. Lutamos por uma resistência, por uma sobrevivência. A luta é o principal da cultura dos povos indígenas. Só quando a gente sai do território conhece o mundo. É difícil. Ainda não me adaptei totalmente à cidade. Adoeço muito, fico gripada rápido e já tive falta de ar. Estava acostumada a outro clima, com as épocas. Na cidade é estranho: uma hora está chovendo, outra está calor, no outro dia faz frio e depois vem sol. É bagunçado. E tem as pessoas. Como vivia em um mundo mais isolado, não conhecia ninguém, só os nossos parentes, os nossos familiares. Eu tinha medo. Se eu não te conhecesse, não falaria contigo, sairia correndo. Na cidade, comecei a trabalhar num restaurante, tive oportunidade de perder um pouco esse medo e conversar com os clientes, com os funcionários, aí fui aprendendo. As pessoas vêm falar "ah, para com isso que você é índia de mentira, você nem tem cor". Falam pessoalmente, não só pela internet. Depois de ir à ONU, um vídeo circulou na internet e li o comentário de uma moça que disse "eu só acredito se tiver a carteirinha do índio", outro falou "índia de Taubaté". Eu me abalo e isso adoece. Procuro ensinar à minha irmã mais nova, de 12 anos, a importância da nossa cultura. Falo para ela não se abalar e se proteger de comentários. Um exemplo: ela tem a ponta dos cabelos loiros e as pessoas falam "onde já se viu uma índia loira?". Por ter a pele mais escura que a minha falam "você só tem cor, não tem cultura, não tem nada". Uma vez eu a pintei e as pessoas disseram: "é uma criança de 12 anos e tá com tatuagem?". Não respeitam a nossa identidade. Não respeitam nada. Fui na escola dela dar uma palestra para entenderem nossa cultura. Isso deveria ser ensinado em todo o país. Sobre ser LGBT e o processo de descobrimento... Eu ainda estou em processo. Aos 12 anos percebi mas achava que era errado. A família do meu pai é religiosa, então eu também cresci com essa parte católica, a gente ia pra missa, participava, vivia naquele mundinho que era só nosso. Por mais que eu tivesse um olhar diferente, eu falava "meu Deus, isso não pode. Eu não vou pro céu". Por isso que eu falo que quando eu saí do território e fui pra cidade a minha cabeça se abriu. Ao conhecer um pouco sobre a cultura LGBT, sabia que iria enfrentar os mesmos problemas e foi aí que eu falei "eu tenho que me libertar disso". Contei pra minha família. Muitas pessoas do território têm preconceito porque tem a mente muito fechada. Nós levamos debates sobre o suicídio, sobre a visibilidade da mulher indígena, sobre o feminicídio, genocídio, mas a comunidade LGBT é um dos temas mais críticos. Já tive o pensamento de "será que eu não sou uma vergonha pro meu povo por ser indígena e ser da comunidade LGBT?" e isso chegou no ouvido das minhas lideranças e eu fiquei com medo. Mas foi quando, de maneira surpreendente, recebi o acolhimento de uma pessoa de 80 e poucos anos, dizendo que eu tenho que ser feliz, que se Deus me fez desse jeito eu tenho que ser assim. E disse que se eu não tiver um apoio na minha família eu tenho um apoio na casa dele. O peso que estava nas minhas costas desapareceu e eu me senti confiante. Xakriabá é onde me sinto viva. Sempre vou lembrar do fundo da casa da minha avó onde a gente cortava cipó para brincar. Aldeia, pra mim e para o povo que ainda está, é um lugar de vida. Lá, onde eu coloco o pé descalço no chão, parece que alguma coisa me alivia. Não falo só da minha aldeia, mas do território inteiro. Fonte: https://mulherias.blogosfera.uol.com.br/2019/10/25/resistimos-desde-1500-diz-indigena-que-foi-a-onu- proteger-a-amazonia. Acesso em 19/02/21. Adaptado.