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DONA FIOTA: A LETRA E A PALAVRA

José Ribamar Bessa Freire


09/12/2007 - Diário do Amazonas

Dona Fiota. Ela é dona Fiota e


pronto. Ninguém a conhece
pelo nome de Maria Joaquina
da Silva. Mas também quem é
que chama Tiradentes de
Joaquim José da Silva ou Pelé
de Edson Arantes do
Nascimento? Basta uma única
conversa para perceber que
dona Fiota é uma mulher
poderosa, um personagem da história do nosso país. Tive o
privilégio de ouvi-la em março de 2006, em Brasília, durante o
seminário sobre as línguas faladas no Brasil, organizado pela
Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados e pelo
IPHAN. Com seu charme e sua inteligência, ela cativou a todos.
Dona Fiota contou, naquele seminário, que seu pai era um baiano
que vivia andando pelo mundo, no tempo do final da escravidão,
que ele passou pelo centro-oeste de Minas Gerais, que foi
passando e viu sua mãe no cativeiro trabalhando, fiando fio de
algodão, que acenou para ela e perguntou se não arrumava uma
ocupação para ele, que acabou conseguindo um serviço na roça de
mandioca, que foi ficando e namorando, ficando e namorando, até
que os dois se casaram, tiveram filhos, netos, bisnetos.
Os descendentes do andarilho baiano com a ex-escrava se
organizaram depois de abolida a escravidão: “Quando rebentou a
liberdade, minha mãe saiu lá de Engenho do Ribeiro caçando um
lugar. Chegou aqui. Tudo era mato. Na subida, havia um barro
branquinho. Ai foi minha mãe que deu o nome de Tabatinga. Toda
vida foi Tabatinga. Desde o tempo da escravidão. Só agora é que o
nome mudou pra Ana Rosa. Quero tirar esse nome de Ana Rosa”.
A história da comunidade Tabatinga - hoje uma área quilombola,
situada no bairro Ana Rosa, periferia da cidade de Bom Despacho
(MG) - foi contada por Dona Fiota aos participantes do seminário do
IPHAN, mas teve de ser traduzida, porque ela falou, não em
português, que ela domina muito bem, mas numa língua afro-
brasileira, de origem banto, chamada Gira da Tabatinga, ainda hoje
usada por um grupo de moradores. Foi a primeira vez que o
plenário da Câmara Federal ouviu o som de uma língua minoritária
de base africana, reconhecendo sua riqueza, sua função histórica e
sua legitimidade.
A fala da senzala
A Gira da Tabatinga era falada nas antigas senzalas das fazendas
do interior de Minas Gerais. Com ela, os escravos podiam se
comunicar livremente sem o patrão entender o que diziam. A língua
libertava. Dona Fiota conta:
- “A gente não podia falar o nome do trem. Tem assango? Não, não
tem assango. Tem cambelera? Não, cambelera também não.
Tem caxô? Nada de caxô. Então, minha mãe falava: „Catingueiro
caxô. Caxô o quê? No Curimã’. Ela tava avisando que o patrão
havia chegado”.
Numa entrevista a Lúcio Emílio, Dona Fiota dá detalhes sobre a
formação da Gira da Tabatinga, produto do sincretismo de várias
línguas africanas misturadas ao português:
- “Aprendi essa língua com a minha mãe. Ela falava todo dia para
mim até eu aprender. Isso traz toda uma história pra gente, tanto
das partes alegres, como das tristes”.
Recentemente, os moradores perceberam que aquela língua que os
havia libertado, estava ameaçada de extinção, porque não é mais
usada por crianças e jovens, diz dona Fiota:
- “Aqui no bairro é muito difícil quem fala a língua”.
Foi aí que a comunidade decidiu fortalecer na sala de aula a língua
denominada Gira da Tabatinga, aproveitando a lei sancionada em
2003 que torna obrigatório o ensino de História e Culturas afro-
brasileiras nas escolas de ensino fundamental e médio. Duas
pesquisadoras – Celeuta Batista Alves e Tânia Maria T. Nakamura
– acompanharam a luta pela revitalização da língua, que no
passado foi um poderoso instrumento de resistência dos escravos e
hoje é uma marca da identidade de seus falantes.
A comunidade conseguiu a promessa de que a Secretaria Municipal
de Educação remuneraria uma professora da Gíria da Tabatinga. A
questão era: - quem daria aulas? Os moradores não duvidaram: -
dona Fiota. Afinal, ela era o Aurélio, o Antônio Houaiss daquela
língua quilombola. Acontece que após um mês de trabalho, quando
foi receber, o funcionário lhe disse:- “Ah, a professora é a senhora?
Então, não vou pagar. Como justifico o pagamento a uma
professora que é analfabeta?”. Dona Fiota deu uma resposta de
bate-pronto, que só os sábios podem dar:
- Eu não tenho a letra. Eu tenho a palavra.
A dona da palavra
Com isso, derrubou a postura quase racista que discrimina os que
vivem no mundo da oralidade. Ensinou que existe saber sem
escrita; que na situação em que ela, dona Fiota, se encontra, não
precisa da letra, porque usa a palavra para transmitir seus saberes,
trocar experiências e desenvolver suas práticas sociais. Foi nessa
língua de forte tradição oral que ela criou e educou seus filhos. É
nela que hoje pensa, trabalha, narra, canta, reza, ama, sonha, sofre,
chora, reclama, ri e se diverte. Dona Fiota deixou claro que não
é carente de escrita, como dizem alguns letrados. Ela
é independente da escrita.
Cerca de um milhão e meio de brasileiros para quem o português
não é a língua materna estão, hoje, na situação de dona Fiota.
Falam uma das 210 línguas existentes dentro do território nacional,
190 das quais são línguas indígenas, ágrafas, sem tradição escrita,
mas que são depositárias de sofisticados conhecimentos no campo
das chamadas etnociências, da técnica e das manifestações
artísticas.
- Esses cidadãos não são menos brasileiros que os outros –
defende o linguista Gilvan Muller, que além dos direitos das
minorias, chama a atenção para a diversidade cultural e linguística,
tão importante para o país e para a humanidade. Por isso, o
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN),
atendendo encaminhamento do então presidente da Comissão de
Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, Carlos Abicalil,
organizou o seminário em 2006 para discutir como proteger essas
línguas e o rico patrimônio intangível que elas representam.
Desse seminário participaram técnicos, especialistas e falantes de
diversas línguas, entre as quais o Guarani, o Nheengatu, a Língua
de Sinais (Libras) e até uma variedade do alemão falada no sul do
Brasil chamada Hunsrückisch. Na ocasião, foi criado um Grupo de
Trabalho Interinstitucional, formado por cinco ministérios, uma ONG
e uma entidade internacional, que produziu um relatório sobre como
registrar essas línguas e proteger a diversidade linguística do país.
Agora o relatório vai ser discutido. Nessa próxima quinta-feira, 13
de dezembro, em Brasília, haverá uma Audiência Pública da
Diversidade Linguística do Brasil, organizada pela Comissão de
Educação da Câmara dos Deputados e pelo IPHAN. Tomara que
dona Fiota, a dona da palavra, esteja lá outra vez. Em caso
afirmativo, voltarei a ouvi-la e conto tudo no próximo domingo.
Disponível em: <http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=108>. Acesso
em: 10 mar 2016.

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