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Memorial Descritivo

Caminhos percorridos

Escolhi o método biográfico, para escrever este memorial, com consciência de que é

difícil falar de si mesmo, por isso, vou evitar qualquer tipo de conceituações. Sou Rosenilda

Nunes Padilha, popularmente conhecida por Rose Padilha. Sou a segunda filha de seis

irmãos de um casal simples seu Raimundo Campelo Nunes e Maria Lourença Batista

Nunes. Nasci em uma ilha no interior do Estado Pará no dia 09 de julho de 1966. Vivi nesta

ilha, junto a minha família por toda a minha infância e um pouco de minha adolescência. Vida

pacata, simplesmente onde quem corria era somente o Rio Tocantins de acordo com suas

marés. Remava com meus irmãos em torno de duas horas por dia para chegar à escola e

encontrar com meus colegas e a minha professora. Na década de 70 surgiram as CEBs –

(Comunidades Eclesiais de Base). Juntamente com os meus pais, nos finais de semana,

reuníamos para celebrar a vida através de cultos dominicais, jogar bingo e até participar de

mutirões para fazer telhas de barro. Neste período das CEBs, inicia-se um processo de

trabalho comunitário em toda a ilha, as mudanças também começaram acontecer em busca de

casas melhores, vacinas contra sarampo e a educação pelos menos até o 5ª ano.

Em 1980, mudamos para a cidade de Cametá, para que pudéssemos estudar para além

do 5º ano. Meu pai não tinha emprego e nem estudos, se virava fazendo bicos para manter a

família. Minha mãe costurava e fazia flores para vender. Enfim, em 1988, conclui o meu

ensino médio aos 22 anos de idade, período que consegui um emprego como escriturária no

Hospital Santa Luiza de Marilac administrado por freiras filhas de Caridade na sede do

município de Cametá. Trabalhava em uma jornada de trabalho 44 horas semanais e ganhava

um salário mínimo.
Em 1991, assisti uma reportagem no jornal Nacional sobre os indígenas Yanomami,

em que dizia que garimpeiros estavam invadidos seu território. Esta reportagem despertou em

mim um desejo de poder contribuir com os povos indígenas. Foi então que procurei o Cimi –

(Conselho Indigenista Missionário), órgão da igreja católica vinculado a CNBB - Conferência

Nacional dos Bispos do Brasil. No mesmo ano, no mês de abril, já recebi uma proposta de

morar com o povo Sororó, Município de São Domingos do Araguaia no Sul do Pará. A tarefa

a ser cumprida era trabalhar na alfabetização de crianças e adultos. No início fiquei

desnorteada, pois não sabia nada de sua cultura, de sua língua, de seu jeito de viver. Enfim,

encarei o desafio. Já conhecia o método de Paulo Freire, das palavras geradoras e

contextualizadas, era desse jeito que se trabalhava na ilha, principalmente nas CEBs. A

adaptação foi muito rápida, de trabalhar a educação, de morar na aldeia, casa de palha, cortar

lenha, limpar peixe, amassar açaí. Em pouco tempo consegui a amizade e a confiança do

povo. Comecei a aprender a língua Sororó, da família tupi. Pena que só pude ficar um ano

com esse povo, a minha mãe estava doente, vítima de um câncer de mama, tive que voltar

para o norte do Pará para ajudar a cuidar no tratamento de minha mãe. Em 1993, após a morte

de minha mãe, fui convidada a morar com o povo Asurini do Trocará, Município de Tucuruí,

também no estado do Pará. Com os Asurini convivi oito anos, ajudei na educação, na

formação de professores Asurini, participar com eles das principais festas, além de correr

também atrás dos prejuízos deixados pela hidrelétrica de Tucuruí.

Neste mesmo ano, casei com o Lindomar dias Padilha, indigenista do Cimi, com

quem continuo casada até hoje. Em 1994 tive o meu primeiro filho, o Igor. Nesta minha

convivência aprendi a ser evangelizada pelos Assurini, participava de suas festas, no trabalho

de roçado, nas oficinas de mulheres. Aprendi com eles o sentindo do quarto poder. Os três

poderes o executivo, o legislativo e o judiciário são nossos. Além desses três, existe entre eles

o quarto poder, que é o poder espiritual. Então foi o período de muita aprendizagem. aprendi

um novo jeito de “ser igreja” estar ali para aprender e não para ensinar. Um novo jeito de
“ser de Deus”. Um Deus Maíra, um Deus Mulher, um Deus presente nas culturas, nas

pessoas felizes. Com eles eu buscava “inspiração para construir esperança, uma nova

sociedade”. Nunca esqueci das mobilizações de fechar estradas, de fazer grandes roçados

coletivos, de lutar contra as sequelas da hidrelétrica de Tucuruí, até mesmo contra o poder da

Funai nas aldeias.

Em 1999, recebi um convite pelo Cimi para morar na cidade de Cruzeiro do Sul,

Estado do Acre. Não pensei duas vezes, o Igor já estava na idade de estudar fora da aldeia. Ele

falava a língua, gostava das crianças, porém queria que o meu filho tivesse oportunidade de

estudar. Enfim, junto com o meu companheiro e o Igor chegamos a Cruzeiro do Sul. A

proposta era de morar na cidade e fazer trabalho de campo. Em Cruzeiro do Sul, nasceu o meu

segundo filho o Ian Padilha, hoje com 20 anos de idade, é um autista e artista, gosta de

cantar, de viver só, de viajar, de construir o seu imaginário.

Quando estava no Pará conheci o curso de Antropologia Aplicada da Universidade

Politécnica Salesiana do Equador. O curso funcionava em São Luiz do Maranhão, foi aí que

eu tive os primeiros contatos com estudiosos da antropologia através dos livros. Também

conheci alguns professores antropólogos excelentes com Patrício Guerreiro, Claudio Zannur

que trabalhavam no curso. Em 2007 conclui o Curso com tema “a terra como elemento de

Identidade do povo Nawa”. O trabalho de pesquisa foi uma tentativa de análise do povo

Nawa em diferentes e complicadas situações. O meu objetivo era apresentar aspectos do

extraordinário dinamismo do “ressurgimento desse povo”, após cem anos de silêncio e a luta

pelo território.

Em 2003 fiz um curso de administração em uma universidade de nome IEVAL –

Faculdade de Desenvolvimento Sustentável de Cruzeiro do Sul, no intuito de aprender

administrar projeto, era indicada para trabalhar na coordenação do Cimi. Conclui o curso em
2007, apresentando no final do curso um relatório de viagem ao Rio Breu/Acre sobre a

chegada dos Ashaninka, às margens do Rio Breu, em busca de sobrevivência.

Em 2010, concorri uma vaga de mestrado na Universidade Federal de Rondônia, em

Ciência da Linguagem, fui bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível

Superior CAPES – o tema da dissertação foi entre “O PORTUGUÊS e JAMINAWA, o

bilinguismo e o ensino da língua oficial”. Conclui o curso em 2013 onde apresentei as

dificuldades que as crianças Jaminawa tinham em aprender o português nas escolas dos não

indígenas.

Em 2013 iniciei uma especialização na UnB em Desenvolvimento e relações sociais

no Campo, conclui em 2015, período em que aprendi muito com os colegas de curso de todo

o Brasil, pois era destinado a vários segmentos da sociedade como indígenas, quilombolas,

pastores, padres, freiras.

De 2015 a 2019 fiquei à frente da coordenação do Conselho Indigenista Missionário,

Regional Amazônia Ocidental. Foram anos de muita aprendizagem e tomadas de decisões

diante de muitos desafios.

Em 2018, fiz um trabalho exclusivo com o povo Jaminawa, denominado: Nuku

Shedivawe Xina, “saberes do céu e saberes da terra” onde gravei na língua e no português os

seus principais Mitos. Em 2020 em plena pandemia também fiz um trabalho junto ao povo

Madijá, denominado: Ima Bote Madijacca – Mitos Madijá, na língua Madijá e no Português.

Em 2018, fui a Europa, especificamente à França, fazer uma campanha sobre a

Amazônia em pé e a questão indígena. Passei 30 dias palestrando em escolas, universidades

e outros espaços. Neste mesmo ano, confeccionei junto com o povo Jaminawa Arara, uma

cartilha denominada: Nukữ Tsãy Kede Vixawe Shawãdawa, material didático para a escola,

visto que só tinha na época dois falantes do povo na língua materna. Recentemente a pedido
da equipe do Cimi que reflete sobre povos “livres” escrevi um artigo com o título: Xinane a

liberdade pela vida ou a vida pela liberdade, coletânea de artigos que vai ser lançado em

forma de livro em 7 de novembro de 2022 por ocasião da festa dos 50 anos do Cimi. Sempre

fui remunerada pelo meu trabalho em torno dois e meio salários mínimos, e já se vão mais

de trinta anos. Moro atualmente em um espaço rural, vivo com os meus dois filhos e meu

esposo. Neste espaço, planto e crio, para o consumo próprio.

Há 15 anos que estou convivendo com o povo Jaminawa, da região de Sena

Madureira, escutando seus problemas, participando de suas lutas pela demarcação de seus

territórios. Sinto a necessidade e a obrigação de continuar escrevendo sobre esse povo. É um

povo que, há centenas de anos, batalha para manter-se vivo, resguardando a essência de sua

cultura e conservando a especificidade que o faz diferente de outros povos indígenas. Eu

entendo que é empolgante compreender esse povo conseguiu, ao longo dos séculos,

perpetuar-se física e culturalmente.

Outra razão que participo desse processo de seleção, como indigenista, sinto que

preciso, adquirir instrumental político/mitológico/antropológico e metodológico para atuar de

maneira qualificada junto aos povos indígenas do Acre. Como também poder contribuir com a

sociedade em aspectos sobre a questão indígena, culturas, territórios.

Concluo este memorial com o título “caminhos percorridos “onde descrevi rasgos de

minha história, de minha vida acadêmica e profissional. Daqui para frente, sei que novos

caminhos vão se abrir e a história da vida se faz.

Rio Branco, AC, 20 de outubro de 2022

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