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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

EMILY SOUZA DE OLIVEIRA

RESENHA CRÍTICA: DOCUMENTÁRIO ÍNDIOS BRASILEIROS DO PARQUE


NACIONAL DO XINGU

SÃO CRISTÓVÃO/SE

2023
EMILY SOUZA DE OLIVEIRA

RESENHA CRÍTICA: DOCUMENTÁRIO ÍNDIOS BRASILEIROS DO PARQUE


NACIONAL DO XINGU

Resenha crítica apresentada como requisito para


obtenção de nota referente à 1ª unidade da disciplina
SOCIA0003 - Antropologia I.

SÃO CRISTÓVÃO/SE

2023
O documentário a ser resenhado é parte de uma série de produções denominada por “Xingu, a
terra mágica”, transmitida pela Rede Manchete de Televisão, em 1985, tendo como objetivo
adentrar e revelar a cultura indígena, sua arte, seus conhecimentos e sua organização social,
de uma forma inovadora, fugindo dos estereótipos atribuídos àqueles povos e trazendo uma
abordagem que traduz o princípio de alteridade, quando mostra o indígena sob o olhar do
próprio indígena. A obra é apresentada por Washington Novaes, jornalista e documentarista
renomado. Novaes foi redator dos principais jornais e revistas brasileiros como O Estado de
S. Paulo, Folha, Jornal do Brasil, Gazeta Mercantil, Última Hora, Correio da Manhã e Veja,
como também, ganhou prêmios como a medalha de prata do festival de cinema de Nova
York, em 1982 e o Prêmio Esso de Jornalismo na conferência da ONU sobre
desenvolvimento sustentável, em 1992, além de trabalhar como editor-chefe do Globo
Repórter, como editor do Jornal Nacional e como comentarista do programa Globo Ecologia.
Em meados de 1980, se dedicou à produção da série “Xingu, a terra mágica”, a partir da qual
ganhou várias premiações. Em 2007, ele retorna para a reserva do Xingu e produz um novo
documentário chamado “Xingu, a Terra Ameaçada”, com o intuito de mostrar as
transformações que aquela sociedade sofreu em relação à primeira série de documentários ali
filmada.

A obra inicia com uma breve explicação de como formou-se o Parque Nacional do Xingu. O
povo Kuikuro morava nas proximidades do Xingu, até o momento em que os “brancos”
encontraram potencial de exploração na área, e para impedir que o povo Kuikuro fosse
ameaçado e, possivelmente, houvesse o genocídio, os irmãos Villas-Boas os aconselharam a
se restabelecerem no interior do Parque. Ou seja, a formação do Xingu se deu à época da
Marcha para o Oeste, campanha lançada em 1943, pelo então presidente Getúlio Vargas, com
o objetivo de desbravar e explorar o interior brasileiro. Os irmãos Villas Boas participaram da
expedição, mas tiveram um bom contato com o povo Kuikuro e buscaram aprender sobre
aquela cultura o que os fez desmistificar o estereótipo do índio e defender ferrenhamente a
proteção da natureza, dos valores e da cultura indígena, sendo eles os principais principais
idealizadores do Parque Nacional do Xingu, em 1961, que também primeira reserva indígena
reconhecida no país.

Na sequência do documentário é relatado a geografia do Parque Indígena do Xingu. O Parque


se encontra no nordeste do estado do Mato Grosso, tendo como principal afluente o Rio
Xingu que também é alimentado por outros rios, são eles: Kuluene, Ronuro e Batovi. No
Parque estão presentes 16 povos indígenas diferentes que mesmo tendo semelhanças culturais
possuem mitos e rituais únicos. A relação dos povos indígenas com os mitos é profunda e
permeia toda a experiência por eles vivida, e assim, os mitos sustentam e dão sentido aos
inúmeros rituais presentes em sua cultura. Segundo Lévi-Strauss
Um mito diz respeito, sempre, a acontecimentos passados: “antes da criação
do mundo”, ou “durante os primeiros tempos”, em todo caso, “faz muito
tempo”. Mas o valor intrínseco atribuído ao mito provém de que estes
acontecimentos, que decorrem supostamente em um momento do tempo.
Formam também uma estrutura permanente. Esta se relaciona
simultaneamente ao passado, ao presente e ao futuro. (LÉVI-STRAUSS,
1970c, p. 229).

Sendo assim, na cosmologia das comunidades indígenas do Xingu o aspecto espiritual e


natural das coisas se tornam um, fazendo com que a vida cotidiana seja totalmente
influenciada pela religião.

Um dos exemplos mostrados no documentário de como a cultura indígena é perpassada pela


crença ocorre na aldeia Waurá quando uma das moradoras enfrenta um trabalho de parto de
risco e as outras mulheres saem de suas casas para cantar e dançar no intuito de agradar e
acalmar o espírito que estava impedindo que o parto continuasse, contando também com a
ajuda do Pajé que age como mediador do plano espiritual. Ademais, um dos rituais mais
famosos nas tribos do Alto Xingu é o Quarup, um ritual fúnebre sagrado, onde são feitas
homenagens aos mortos ilustres. Nesse ritual também é notável o simbolismo das guerras e a
valorização da imagem dos guerreiros que lutavam em tempos antigos.

Outrossim, um fator relevante mostrado na obra é a ampla participação das crianças


xinguanas na sociedade e a liberdade que possuem durante toda a experiência vivida na
comunidade. No Xingu, as crianças não são censuradas quando brincam espontaneamente,
seja subindo nas árvores e telhados, seja nadando nos rios e usando canoas, não são
repreendidas; passam a maior parte do tempo sozinhas, sem a supervisão de um adulto e são
estimuladas a serem totalmente autônomas para que consigam sobreviver em meio à
natureza. Nesse ponto é possível perceber as diferenças no modo de educar a infância em
relação às comunidades não-indígenas, e como também, a distinção na forma de como lidam
com o corpo e com as técnicas por ele performadas, técnicas estas definidas por Marcel
Mauss (1934) como “[...] maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma
forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo.” Ou seja, enquanto os conhecimentos
aprendidos na sociedade urbana são passados através de instituições como por exemplo a
escola, no Xingu o aprendizado se dá pela tradição oral e pela imitação dos costumes.

No decorrer do documentário, o espectador é apresentado ao ritual de iniciação do povo


kren-akarore, onde os garotos são submetidos a um tipo de prova, para testar-lhes a coragem
e, apenas após essa prova poderão tornar-se homens. Esse ritual consiste em sacudir uma
caixa de marimbondos e suportar as picadas; as mulheres da tribo também participam
afastando os insetos para atenuar as dores. Logo após, é mostrado outro rito de iniciação de
meninos na vida adulta, que ocorre entre o povo Kuikuro, onde são preparados para que suas
orelhas sejam furadas; os rapazes têm seus corpos são limpos, representando sua purificação
e assim que suas orelhas são furadas sobem nas costas de seus padrinhos para que não entrem
em contato com o chão e sejam contaminados, após isso, ficam um período em reclusão para
que enfim se tornem homens adultos.

Os adolescentes do Xingu - tanto meninos, quanto meninas - passam por grandes períodos de
reclusão no período da puberdade, são períodos que ocorrem de forma intensa e podem durar
de um a quatro anos. Durante esse tempo, os jovens não podem sair de suas casas passando o
dia reclusos e, como também, não podem ver ninguém a não ser sua mãe e seu pai. Na
reclusão, os meninos são preparados com o consumo de ervas, com práticas de meditação e
com o ensino das artes, a fim de que se tornem bons lutadores e tenham uma boa performance
nas cerimônias do Quarup. Ademais, os jovens passam por um processo doloroso de
escarificação - prática onde o corpo por inteiro é arranhado por dentes de peixe até que a pele
venha a sangrar, com o intuito de fortalecer o corpo para as lutas corporais. Para as meninas,
o período de reclusão se inicia desde a primeira menstruação, nesse período as jovens ficam
com os joelhos e tornozelos amarrados e não podem cortar os cabelos, apenas saem da
reclusão em ocasiões especiais, como na festa do Quarup. Assim que a reclusão acaba
ocorrem os casamentos, quando já se tem um pretendente à espera.

Os casamentos no Xingu não têm cerimônia, apenas se faz necessária a permissão do chefe
da família, e assim, o noivo se muda para a casa da noiva, a fim de prestar serviços ao seu
sogro pelo tempo em que ele supriu as necessidades de sua esposa. As relações entre homem
e mulher nas tribos xinguanas são permeadas pelo afeto e pelo respeito um ao outro, porém,
em determinados momentos essa relação se torna controversa. No momento em que homem
comprometido se interessa por outra mulher da aldeia, quer tomá-la para si, e a esposa não
concorda, iniciam-se os conflitos entre os casais; o homem a “amansa” a mulher, ou seja, lhe
agride fisicamente para que ela se submeta ás vontades dele. Portanto, mesmo que as
sociedades no Xingu sejam mais igualitárias que as ocidentais, a desigualdade de gênero está
presente. De acordo com a antropóloga Françoise Héritier (1996) “Existe um sexo principal e
um sexo secundá- rio, um sexo «forte» e um sexo «fraco», um espírito «forte» e um espírito
«fraco». Esta fraqueza natural, congénita, das mulheres implica e legitima a sua sujeição, até
a do próprio corpo.”

Para expressarem sua indignação para com os homens, as mulheres participam do ritual
Yamurikumã, no qual tomam conta do pátio da aldeia e fazem tudo aquilo que não lhes é
permitido. Esse ritual baseia-se em um mito transmitido pelas mulheres de geração em
geração.

Conta-se entre os povos do Alto Xingu que certo dia os homens de


uma aldeia foram pescar para festejar um menino que se tornaria
adulto e, futuramente, um líder. Eles planejavam ficar três dias fora.
O garoto, que permaneceu na aldeia, foi espiar o acampamento dos
homens e descobriu que eles estavam se transformando em onças,
antas, porcos do mato. Voltou correndo e contou à mãe, que chamou
as outras mulheres para o pátio da aldeia e avisou que os maridos não
voltariam mais. Elas fizeram então a própria festa. Dançaram,
cantaram e chamaram mulheres de todos os outros povos xinguanos.
Após a festa, elas haviam se transformado em Yamurikumalu, na
versão do povo kalapalo, mulheres independentes e guerreiras que
não precisavam mais dos homens, sabiam pescar, caçar e construir
casas. (Kuiaiu Yawalapiti, 33, indígena xinguana)

Outro aspecto notável ressaltado pela obra são as relações de poder presente nas sociedades
xinguanas. O maior nível de poder nas comunidades indígenas são os chefes de aldeia e os
pajés, porém, estes não exercem poder coercitivo ou de autoridade sobre os demais membros
da aldeia, mas são respeitados pelo conhecimento que possuem. Os líderes das aldeias do
Xingu têm a responsabilidade de transmitir o conhecimento que acumulou com o tempo e
guiar os mais novos, são os que mais trabalham e servem em favor da tribo.

A obra “Xingu, a terra mágica” revolucionou a forma como o jornalismo era feito e revelou
uma nova forma de observar e conhecer a cultura dos povos indígenas do Xingu. O jornalista
Washington Novaes lançou um olhar sensível e trouxe através da perspectiva indígena o
conhecimento sobre a sociedade a qual vivem. Em alguns pontos do documentário é
perceptível certa romantização de problemas sociais encontrados nas tribos do Xingu, como a
violência contra a mulher e a exploração dos jovens nos rituais, porém, sem dúvidas é um
trabalho que foi bem produzido e que deve ser apreciado, principalmente pelos estudantes e
acadêmicos da área das ciências sociais, mas também pela população em geral.
REFERÊNCIAS

NUNES, Mônica. Blog - Conexão Planeta. Disponível em: <Washington Novaes,


pioneiro do jornalismo ambiental no Brasil, morre aos 86 anos
(conexaoplaneta.com.br)>

QUEIROZ, Mariana. Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP). Irmãos Coragem:
Quem foram os idealizadores da 1ª reserva indígena do país? Disponível em: <Quem
foram os irmãos Villas-Bôas? (uol.com.br)>

MARIA, Andiara. Blog - Terras Indígenas. Disponível em: <Xingu a terra mágica |
Terras Indígenas no Brasil (terrasindigenas.org.br)>

O dia em que elas tomam o poder. Disponível em: <O dia em que elas tomam o poder |
Terras Indígenas no Brasil (terrasindigenas.org.br)>

LÉVI-STRAUSS, Claude.A estrutura dos Mitos. In: Antropologia estrutural. Rio de


Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970.

MAUSS, Marcel, “Les techniques du corps”, Journal de Psychologie, XXXII, ne, 3-4,
15 mars - 15 avril 1936. (Trad. Bras. Paulo Neves. São Paulo, Cosac Naify, 2003).

HÉRITIER, Françoise. Masculin/Féminin. La pensée de la différence. Paris, Éditions


Odile Jacob, 1996.

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