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IMAGEM, CULTURA E CORPO: FORMAS DE DISTORCER O PODER


Glória França*

Laroyê em Iorubá quer dizer: Viva a contradição! Exu é o orixá da


contradição. A pedra primordial dos orixás. Ele é o maestro da melodia
existencial. Todos nós estamos dançando a melodia existencial, e quando
nós perdemos o compasso, a coreografia, quando nós perdemos o passo, Exu
nos provoca, para que a gente volte a dançar de acordo com/em harmonia
com a melodia existencial. Exu é esse orixá.
Sidnei Nogueira1

Este texto2 se movimenta no cruzo entre um ensaio e um esboço de análise. Nele


parto da descrição de um “episódio de racismo” religioso, para entrever nas brechas de
um ato-manifesto, que se sucedeu a esse acontecimento, um grito coletivo que aponta
para insurgências possíveis pensadas a partir de outras temporalidades e de outras
perspectivas encruzadas. O objetivo é conversar com o campo da análise de discurso em
vistas de se pensar o que temos considerado “corpo” quando o trazemos para o jogo de
análises discursivas e de reflexões teóricas que interseccionam diferentes materialidades.
Seria ele uma materialidade significante? Um suporte? Poderia ele ser pensado enquanto
um arquivo de memórias? Estaríamos conseguindo driblar a ilusória distinção entre
corpo, mente e saber? Estaríamos conseguindo desatar as amarras dos dualismos
pragmáticos, sociológicos, biológicos, que não cessam de se formular? No que me
interessa, tenho pensado corpo num atravessamento necessário com outras materialidades
e numa encruzilhada com o cultural. Dito de outro modo, talvez eu tenha me interessado
em pensar cultura e me dado conta da inseparabilidade de trazer a dimensão do corpo
nessa reflexão, que não deixa de apontar para brasilidades em discurso3.

1 Esta epígrafe e as duas próximas são trechos de uma aula ministrada pelo Prof. Pai Sidnei Nogueira na
Pós Graduação em Teologia, Cosmologia e Cultura Afro-Brasileira, sobre Exu e publicado na página do
professor Sidnei Nogueira no Instagram. Agradeço à colega Mariana Cestari pelo compartilhamento desse
material. Disponível em: https://www.instagram.com/reel/CtwJ-
beAHYP/?utm_source=ig_web_copy_link&igshid=MzRlODBiNWFlZA==
2
Este trecho traz parcialmente uma análise apresentada sob o título Subversões de raça e de cultura:
“alguma coisa de outra ordem” (2), no evento Língua e discursividade em movimentos sócias - Ciclo de
Palestras GAL- da Universidade Federal Fluminense, ocorrido em maio de 2022.
3 Situo este texto na sequência de uma série de trabalhos que tenho feito, remontando à pesquisa de

doutorado, intitulado “gênero, raça e colonização: a brasilidade no olhar do discurso turístico no Brasil e
na França”. E a diversos outros desdobramentos realizados no âmbito de projetos de pesquisa do
GEPEDIS/CNPq, que se interessa por processos de identificação intersecionais – no cruzamento da
dimensão de gênero, raça e classe – em diferentes materialidades significantes, e que em particular tem
buscado um aprofundamento em torno do digital, do corpo e da cultura.
2

Mais um “episódio de racismo” religioso


O contrário de Exu é cárcere, é prisão, é dogma,
é verdade absoluta, é aprisionamento
Sidnei Nogueira

O que se projeta do ser naquele que sofre violências? O que resta do ser numa cena
de racismo religioso? Restaria o corpo objetificado e silenciado pela violência?
No dia 24 de abril de 2022, no dia da festa de Ogum, membros de uma igreja
evangélica se posicionaram em frente à
Casa Fanti Ashanti, importante Casa de
Tambor-de-Mina e Candomblé4, situado
na Rua Militar, no Bairro do Anil, em
São Luís do Maranhão.
Um agrupamento de algumas
pessoas, acompanhadas por um carro
com alto falante, uma faixa onde se lê
“ministério dos Gideões”. Dentre as
pessoas, algumas mulheres com o que
parece um tipo de uniforme de saia
comprida reta em tom de vermelho,
camiseta para dentro da saia, cabelos

Figura 1. Capturas de tela do vídeo


publicado na conta da Casa Fanti
Ashanti no Instagram.

presos, atualizando um rigor que parece dialogar com os gestos que acompanham esses
corpos posicionados de modo fixados na rua. São imagens que circularam no vídeo que
registrou a presença do grupo de neo-pentecostais na rua onde se situa uma das casas de
religião afro-brasileira5 mais antigas do Estado, a Casa Fanti Ashanti. Chama

4 A Casa Fanti Ashanti “é uma casa de candomblé e tambor de Mina, da nação Jeje-Nagô, fundada em
1954, mas que só começou a funcionar em 1958, e dirigida pelo babalorixá Euclides Menezes Ferreira, (de
Oxaguiã com Oxum) e Mãe Isabel de Xangô com Oxum. [...] Os membros do candomblé costumam se
reunir em templos conhecidos como terreiros administrados por sacerdotes chamados babalorixás e
sacerdotisas chamadas ialorixás”. O fundador da Casa Fanti Ashanti foi o babalorixá Pai Euclides, sucedido
desde seu falecimento, em setembro de 2015, por sua filha, a Mãe Kabeca, que assumiu o posto de chefe
da casa, após o período em que a mesma permaneceu fechada por um ano para completar o ciclo do
falecimento do Pai Euclides. (Cf. https://revistacontinente.com.br/edicoes/187/senhor-completo--senhor-
total
5
Segundo Ferreti (2008, p. 1), “o termo religião afro-brasileira designa uma pluralidade de manifestações
religiosas organizadas geralmente bem antes da abolição, por africanos e seus descendentes, onde são
cultuados e se entra em transe com entidades espirituais dos jeje, nagô e bantos - voduns, orixás ou inquices.
3

primeiramente a atenção os gestos desse pequeno grupo de evangélicos, mãos impostas,


mãos levantadas nas quais podemos interpretar um sentido da ordem e da imposição –
imposição de mãos que trazem bênçãos e/ou que tentam impor seus sentidos de ordem e
crenças? Em uma das cenas se vê uma das mulheres como que cercando, indicando por
onde se pode circular, impondo algum tipo de limite. As imagens aqui trazidas são
capturas de tela desse vídeo, com duração de menos de 1 minuto6 - que circulou nas redes
sob forma de denúncia, e pelos quais o caso veio à público.
Juridicamente o que ocorreu ali foi inicialmente enquadrado enquanto “intolerância
religiosa”7. No entanto, uma figura política membro da mesma igreja que promoveu o
ataque racista, já havia vindo às redes afirmar ter sofrido intolerância religiosa8. É por
esse motivo que muitos reclamam que se caracterize esse acontecimento, e muitos outros,
por “racismo religioso”. Historicizando as práticas discursivas temos que não há racismo
reverso, de modo que – fundamentando-nos no que nos informa a história – sabemos que
nem toda religião pode dizer que sofre intolerância religiosa 9. No Brasil, a intolerância
tem seus alvos demarcados, trata-se, sabemos, das religiões de matriz africana no
cruzamento com elementos ameríndios10. Assim como não existe racismo reverso, não
existe um funcionamento equivalente de discursos contra outras religiões ou contra povos
que professem outras crenças, como as cristãs, ou as evangélicas. A simetria projetada

Entre as denominações religiosas afro-brasileiras mais antigas e conhecidas podem ser citadas: o candomblé
da Bahia, o xangô de Pernambuco, o batuque do Rio Grande do Sul e tambor-de-mina do Maranhão”.
6
Os dois vídeos que aqui descrevo foram postados e por mim coletados na página da Casa Fanti Ashanti
no Instagram. Foi igualmente nessa rede social em que foram repostadas as inúmeras notas de repúdio, e o
desenrolar jurídico que acompanhou o caso, e sobre as quais tratarei adiante.
7
A nomeação de intolerância religiosa que circulou nas mídias oficiais e sociais mobiliza um arquivo
jurídico, como por exemplo na notícia a seguir: “Maranhão” o ataque racista à Casa Fanti Ashanti não é
caso isolado”. A referida notícia inicia citando a lei que criminaliza a intolerância religiosa: “Art. 5º, inc.VI
– é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias” (Constituição Federal
de 1988. Uma denúncia foi formalizada pela Ouvidoria de Direitos Humanos, Igualdade Racial e
Juventude. Um boletim de ocorrência também foi feito, pela Casa Fanti Ashanti, na Delegacia de Crimes
Raciais, Delitos de Intolerância e Crimes Agrários. O caso teria ainda sido encaminhado para outros órgãos,
como o Ministério Público do Maranhão (MP-MA) e a Defensoria Pública do Estado do Maranhão
(DPE/MA). Percebamos que o título da notícia já aponta para uma contradição entre o que se chama
intolerância religiosa e racismo. Cf. http://observatorioseguranca.com.br/maranhao-o-ataque-racista-a-
casa-fanti-ashanti-nao-e-caso-isolado/.
8
Em relação ao fato ocorrido ano passado se tem a notícia no site da assembleia: “Mical esclarece suposto
caso de intolerância religiosa praticado por evangélicos contra Casa Fanti Ashanti”.
http://www.al.ma.leg.br/noticias/43349 . Em notícia de 2019, se lê
https://www.al.ma.leg.br/noticias/39482 “Mical Damasceno denuncia caso de intolerância religiosa.”
9
A respeito de uma discussão profunda em torno da questão da intolerância religiosa, ver Nogueira, 2020.
10
Em torno de racismos contra povos indígenas, acaba de ser publicado um dossiê organizado pelo
Kuñangue Aty Guasu - Grande Assembleia Das Mulheres Kaiowá e Guarani, intitulado “O Racismo e a
Intolerância Religiosa: As sequelas de invasões (neo)pentecostais nos Corpos Territórios das Mulheres
Kaiowá e Guarani/MS". O dossiê pode ser acessado em:
https://drive.google.com/drive/folders/1O7tLDZBGznFIJjkEKQmNoqPC7VWACF0V
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não é mais do que um efeito ideológico. A experiência tem seus sentidos delimitados na
história. Quem dá o nome de racismo é a lei, o que determina os sentidos da experiência
racializante é a história.

Ainda nos atendo na descrição de algumas cenas nesse vídeo, temos um outro plano
de cena nas quais outros corpos, remetendo a outras discursividades, e outras memórias,
se projetam e se textualizam. São pessoas posicionadas na calçada da Casa Fanti Ashanti,
nas imagens se percebe pessoas vestidas com roupas brancas, com colares de contas, com
panos de cabeça saindo da casa num movimento de ir ver do que se trata aquele
burburinho que interrompeu momentaneamente os tambores que tocavam para Ogum.
Em específico, chama a atenção uma cena, vemos uma mulher se dirigir na direção de
um companheiro de casa e lhe lançar uma de suas mãos em cujo gesto se pode ler “não
reaja, deixe estar”, podemos ainda ler ali “não podemos reagir”. A seguir, o rapaz
interpelado posiciona suas duas mãos de modo unido frente ao corpo como que se
rendendo, mas não sai daquele lugar. Aceita e não aceita a sugestão de não reagir. Resiste?
Do que é que todo mundo sabe que, ao mesmo tempo que
autoriza determinadas práticas e circulações de corpos, nesse
mesmo golpe, interdita reações que poderiam ser de autodefesa?
Que historicidade e que memórias sustentam essa circulação
discursiva textualizada que põe em choque vozes, silenciamentos,
adornos, vestimentas, mãos que se impõem e cerceiam, e mãos que
parecem aceitar? Que história é essa na qual se constrói a imagem
de um país?
A cena acima descrita torna-se possível, pois se ancora nessa história e em uma
formação discursiva bem demarcada. Para pensar nas condições de produção sócio-
históricas que tornam possíveis esses dizeres textualizados nas cenas descritas,
precisamos levar em conta que os Brasis que se chocam nessas cenas se sustentam em
uma história que é constitutivamente atravessada pela colonização, pela cruel experiência
da escravidão, e pelo racismo e sexismo que constituem a arena de lutas da cultura
5

brasileira – que mesmo sendo uma batalha já ganha pelo negro, segundo Lélia Gonzalez
(2020 [1979]) – são a base desses processos históricos, e cujos efeitos se perpetuam e se
atualizam a todo instante em discursos e práticas.
Sendo assim, me interessa levar em conta os efeitos da colonialidade nos corpos e
na fala, segundo Rufino (2019, p. 132), o colonialismo concentrou seus ataques
primeiramente nas dimensões do corpo. É pelo corpo “primeiro lugar de ser no mundo,
onde se iniciam os processos ideológicos, em que se textualizam e se materializam as
políticas de vida e de morte que constituem as sociedades ao longo dos tempos”. É nessa
medida em que Rufino afirma que a política colonial sempre foi e sempre será uma
biopolítica, na esteira das afirmações deste autor, toca-me analisar as formas de dribles
possíveis às políticas coloniais que tentam paralisar e emudecer11.
Nessa descrição, sendo corpo pensando no enquadramento do gesto, nos detalhes,
corpo toma a forma/sentido das vestes e acessórios textualizando posições divergentes,
se há corpo - e sempre há - ele é nesse caso a voz, o silêncio, ele se resume a mãos caladas,
e mãos que tentam se impor pelo grito. Gostaria aqui de pensar corpo enquanto sendo da
ordem da temporalidade da enunciação/do acontecimento. Assim, na ordem do discurso/
na temporalidade projetada pelo discurso dos que tentam impor-se pela força parece se
atualizar um sentido de corpo enquanto fixidez, enquanto possuindo contornos exatos,
ordenáveis, controláveis. Projetando-se enquanto indivíduos possuindo um corpo,
reduplicam essa imagem aos que sofrem a agressão. Na ordem do discurso racista, corpo,
assim como a própria experiência de ser sujeito no mundo, se projeta como sendo da
dimensão individual.
A materialidade da voz diz muito desse jogo de poder que, pela enunciação, atualiza
os papéis e posições de uma sociedade arraigada num racismo que alimenta e sustenta
socioeconomicamente a sociedade brasileira. O uso de um microfone atrelado a alto
falantes de qualidade duvidosa, parecendo algo a mais produzir ruído com as palavras
gritadas de modo ensurdecedor, e emudecedor, aponta para uma dimensão da voz e da
fala que dizem dos lugares historicamente autorizados a falar ou autorizados a impor sua
fala, e dizem dos sentidos legitimados em sua circulação. Dizem de silenciamentos e
políticas do silêncio estruturantes da voz e dos corpos postos historicamente em posições

11 Analisei em outros textos os efeitos da colonização e das opressões intersecionais de gênero-raça e


classe, em torno dos silenciamentos e das políticas do silêncio. Cf. França & GLeo (2021); Franca & Veriato
Chaves (2022).
6

subalternas. Não dizem necessariamente de corpos que não falam, mas de vozes
historicamente não ouvidas.
Com a circulação do vídeo nas redes, vemos a recorrência da expressão “mais um
episódio de racismo12”. Chamar de um episódio parece se inserir numa série, num
enquadramento imagético e fílmico, numa cena regular, televisionada, fotografada,
previsível, uma regularidade. Episódio já circula de forma recortada. Aqui caberia uma
entrada a respeito da relação com a imagem e com sua circulação nas redes, algo a ser
aprofundado em outro trabalho.

Em se tratando de regularidade, uma cena que costuma se seguir a algum desses


episódios é a série de notas de repúdio e de solidariedade que se multiplicam em favor do
grupo que sofre a agressão. Percebemos que em geral são as notas de repúdio enquanto
regularidade discursiva que nomeiam a experiência das ofensas e agressões, neste caso,
enquanto “racismo”, termo que já vem atravessado por um arquivo jurídico que projeta
uma divisão entre o que seria da ordem da religião e o que seria um debate racial13. As
notas e atos em solidariedade também provocam um efeito individualizante dessa
experiência, eles trazem à tona nomes de indivíduos que acabam por se tornarem a própria
personificação daquele que sofre racismo. As experiências de violência de diferentes
ordens quando personificadas projetam-se enquanto não históricas. Assim, a experiência
do racismo tem como efeito a projeção desse corpo enquanto empírico, individualizando
a experiência corpórea, uma experiência que é sócio-histórica. Isto se percebe, por

12
https://www.instagram.com/p/Ccy7jS1Nmyd/ “gritos de “aleluia, muda, muda…”, Neste último
domingo 24/04/2022, em frente à casa Fanti Ashanti, marcaram mais um episódio de racismo religioso e
racismo estrutural que tem matado povos e ceifado vidas.” [grifo nosso]
13
Cf. nota 4.
7

exemplo, na circulação massiva do nome próprio Mãe Kabeca de Xangô, Ialorixá da Casa
Fanti Ashanti. Ainda que nesse significante marque-se o pertencimento a outro Brasil,
pelo nome, Mãe Kabeca é projetada enquanto separada do todo que é a própria Casa, o
nome próprio de Mãe Kabeca vê-se formulado enquanto sujeito a sofrer racismo.
Esse episódio de racismo religioso, por esse funcionamento descrito, pelo arquivo
que mobiliza, e pelas discursividades que põe em circulação, nos coloca questões
profundas enquanto analistas. Pensar corpo, o impensável da cultura e como sair das
evidências em torno destas questões, centrais para se pensar o Brasil e sua formação social
arraigada no colonialismo, na memória da escravidão intocada, nas neuroses, no
fascismo, no racismo de Estado, dentre tantas outras cicatrizes ou mesmo feridas abertas.

Corpo-ato e corpo-poesia
Exu é o “e” da língua.
Exu é a conjunção aditiva.
Exu é a palavra.
Sidnei Nogueira

Da série de notas de repúdio, de apoio, de solidariedade, repostadas nas redes


sociais da casa Fanti Ashanti, uma voz se
distinguiu e deu pega ao afirmar que apenas notas
não são suficientes, seria preciso um ato. Com
efeito, parece filiar-se à ideia de ato o que se
sucede nessa cadeia de acontecimentos,
igualmente registrado em vídeo, produzido desde
outro lugar14. Agora são imagens aéreas, talvez produzidas por drones, que registram o
corpo-terreiro se movimentando pelas ruas daquele bairro, transformando-se em um
grande encontro das diferentes pessoas membros
de diversas casas religiosas de Mina, de umbanda,
do candomblé, um ato em solidariedade à Casa
Fanti Ashanti.
Às imagens desse corpo-coletivo
percorrendo as ruas do bairro, tornando-se o
próprio “corpo encantado das ruas” composto por

14 Imagens produzidas pelo fotógrafo Eduardo Moura e publicadas na nota da Casa Fanti Ashanti no
instagram, disponível no link: https://www.instagram.com/reel/Cc-
5YMltpTf/?utm_source=ig_web_copy_link&igshid=MzRlODBiNWFlZA== Acessado em 15 de junho de
2023.
8

povos do terreiro, do axé, vestidos de branco, associa-se um discurso em tom tranquilo,


falado, sem microfone, da Ialorixá Jô Brandão, coordenadora do coletivo Dan Eji/MA,
que em sua fala contextualiza aquele encontro e nomeia a experiência sofrida nos dias
anteriores ao mesmo tempo em que a coletiviza e historiciza: “Nós, povos de terreiro,
temos uma irmandade, um compromisso político e religioso, primeiramente, de sermos
juntos, apesar de nossas diferenças [...] nós somos uma família [...] até porque ninguém
vai combater racismo sozinho”.
Além do sentido posto em evidência de apenas uma “reação” pacífica, poderíamos
ler nessa reação algo da ordem da “resistência passiva” de que nos fala Lélia Gonzalez e
retomado por Cestari, Veriato Chaves e Baldini (2021). Sendo ela pacífica ou
resistentemente passiva sabe-se que esses sentidos se constituem na história, assim, vale
nos determos novamente nos modos como esses corpos vão ocupando as ruas, nos modos
como as mãos que não cessam de se afagar, de se encontrar, de acenar e de bater tambor.
A segunda parte do vídeo, que mostra imagens do trajeto feito no bairro até chegar
na Casa Fanti Ashanti, substitui a voz da Ialorixá, que discursava, por cantos entoados ao
ritmo dos tambores de dentro da Casa, nessas imagens as mãos já se confundem com os
tambores que não param de tocar.
Estes produzem sons coletivos:
portanto não há grito, há canto. A
potência do que esse ato produz e do
que ali se diz é alcançada não por
gritos estridentes em um microfone,
mas pela junção de muitas vozes que
entoam cantos, de muitas
mãos que tocam os
tambores. De corpos que
se movimentam em
danças um tanto
sincronizadas e um tanto improvisadas. Um ato
dessa natureza produz não uma resposta, mas sentidos que projetam uma refinada forma
de insurgência, que a nosso ver toca o poético, ao atualizar toda uma discursividade do
que chamamos de cultura afro-brasileira.
O ato sugerido e realizado, parece-nos tocar no sentido de poesia, enquanto essência
do agir. "O poético diz sempre a essência do agir, não mecânico, funcional, mas
9

realização no e pelo sentido da compreensão e compreensão do sentido 15” (CASTRO,


2015, p. 279). Do que precede temos que ato é da ordem da criação, da poesia como ação.
De sujeitos de, e não somente ou não mais sujeitos a sofrer
racismos.
A mão que bate no tambor. Bate palmas. O ganzá. O riso.
O movimento. O coletivo. Os nomes das famílias se constituem
pelo nome do afeto e pela ancestralidade. Nem revolução, nem
revolta, e nem simplesmente uma resposta juridicamente
criminalizante – mas um grito coletivo, uma agitação na história.
Podemos ver nessas diferentes formas e projeções de sentido de movimentação coletiva
uma entrada pra perceber que o corpo é uma potência quando se trata de distorcer o poder.
Percebemos nesse ato de que corpo sendo da ordem da temporalidade do acontecimento
diferentes formas de ser corpo se projetam. Se nas notas de repúdio que nomearam o caso
de racismo ocorrido também circulou o nome da mãe Kabeba, neste ato o que se tem é o
nome de diferentes famílias de axé, de grupos religiosos e culturais. Há uma dimensão
incontornavelmente coletiva no acontecimento do corpo no ato. Mãe Kabeca agora não
atualiza o sentido de um individuo, mas é o próprio corpo-multidão, ela se confunde com
as famílias e as nações do terreiro.
Mas não se projeta somente um sentido coletivo, há uma memória da
ancestralidade, há movimentos, há festa. O corpo de mãe Kabeca, nessa outra
discursividade, já projeta outras temporalidades: “[esse] corpo rasura as determinações
impostas pelo substantivo racial para se inscrever como o suporte que resguarda saberes
e possibilidades intermináveis.” (RUFINO, 2019, p.150). Nos registros desse ato temos
o rosto, a fala de mãe Kabeca, a dança, o sorriso, os abraços. Tem algo no significante
que dá corpo, esse nome tem corpo. Esse corpo tem história. Nessa outra discursividade,
Mãe Kabeca tem filiacão sócio-história, ela não está mais só, enfileiram-se nomes como
Mãe menininha16, mulheres afro-mestiças, Mães de santo, o nome de Maria Jesuína ou

15
http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br/index.php/Po%C3%ADesis foi em conversa com Zoppi-Fontana, na
UFF, quando apresentei parte desta análise, que me iluminou no sentido de ver a poesia como ato. Ou o ato
como poesia. “Poíesis diz a energia de sentido e compreensão. Onde está o estranho e contraditório? É que
poiesis nunca, jamais, significou expressão linguística, não é uma expressão da língua.[...] Poiesis diz
essência do agir como ethos ligado à physis / ser, é o produzir e desvelar da physis / ser enquanto se vela.
Todo deixar-viger o que passa e procede do não-vigente para a vigência é poiesis, é pro-dução.
Por isso, afirma Heidegger: "Também a physis, o surgir e elevar-se por si mesmo, é uma produção, é poiesis.
A physis é até a máxima poiesis". (Castro, 2015)
16 Agradeco à Tyara Veriato Chaves pela conversa que muito inspirou este e tantos outros trechos de

análise.
10

Nã Agontimé, rainha do Reino de Daomé, trazida como escravizada para o Maranhão, e


em seguida fundadora da casa das Minas - “considerada a casa mãe de outros tambores
de mina do Maranhão e da Amazônia17” e a casa mais antiga de que se tem registro.
A casa Fanti Ashanti é uma casa cujas festas e rituais giram em torno “do Tambor-
de- Mina, do Candomblé, da Cura, do Baião de Princesas, do Canjerê, do Tambor de
Taboca, do Divino Espírito Santo e do Samba de Angola18”. Uma dimensão dos corpos
em movimentos se formula. Adentrando nessa outra discursividade, somos levados a
convocar aqui os atravessamentos em torno dos tambores, se tomarmos a própria
formulação tambor-de-mina não é possível mais separar o que é religião do que é cultura.
Ademais, se pensarmos nessa dimensão da cultura, vemos que esta se vê atualizada
em nomes de mulheres. Sempre há um nome, a cultura tem corpo e corpo-feminino, num
cruzamento discursivo de gênero, idade e raça. No Maranhão temos figuras como Mestra
Roxa, Dona Teté, Carla Coreira, a Caixeira Josefa, e muitas outras. Limito-me aqui ao
que se atualiza em termos de memória, levando-nos a adentrar na discursividade dos
tambores de crioula, dos grupos de bumba-meu-bois, do tambor de taboca da Casa Fanti
Ashanti, enfim das diferentes formas de expressão religiosa que se confundem com o que
se chama de cultura popular. Mas uma historicidade projetada na própria temporalidade
do acontecimento da enunciação.
Tenho buscado ultrapassar os dualismos pragmáticos que encaixam na etiqueta
cultura popular formas de expressão bastante específicas, e que tomam a separação com
o que seria cultura erudita, do que seria religião, entre que seria cultura regional/nacional.
Não interessaria, para o que aqui se propõe, afirmar ou delimitar o que é cultura popular,
me toca principalmente pensar seu funcionamento enquanto culturas de síncope, nos
moldes do que Rufino (2019, p 135) e Simas & Rufino (2018) abordam: “mesmo sofrendo
esforços para serem enquadradas em determinadas normas, garimpam espaços para
eclodir nos vazios deixados”.
Considero que cultura/religiosidade têm algo a nos dizer a respeito desse corpo que
acontece em diferentes temporalidades, no arquivo com que tenho trabalhado, cultura
mostra-se incontornável para pensar a dimensão significante do corpo. A memória dos
arquivos oficiais e dos discursos docilizantes esburaca-se em uma temporalidade que se
filia à memória ancestral dos corpos, dos ritos, das danças. Do que precede interessa ir

17
(Ferretti, Sergio, 1995).
18 Cf. https://revistacontinente.com.br/edicoes/187/senhor-completo--senhor-total
11

escutar o que os corpos-terreiros estão cantando com seus corpos, tambores, palmas e
côros em suas ancestralidades.

“O que espanta miséria é festa 19”

Ancestralizar-se é um significante que nos ajuda a repensar a fixidez de


determinadas projeções de sentido em torno do corpo. “Ele se ancestralizou 20” diz-se por
vezes da morte física, do desencarne. Ao mesmo tempo, que, em uma narrativa a respeito
do Pai Euclides, o fundador da Casa Fanti Ashanti, diz-se que aos 6 anos ele se
ancestralizou, projetando aí sentidos em tornos dos dons da incorporação e da iniciação
aos saberes do terreiro. 21 Pensando desde as cosmologias afro-brasileiras não há morte,
há formas de desencanto, que correspondem mais a esquecimentos, à escassez, ao
desencante e à perda da energia vital. Do que precede, há algo que se desestabiliza nas
pragmáticas que dualizam corpo e mente, vida e morte. Vida, morte, incorporação,
desencarne, são outras perspectivas que aqui me guiam. Desde a perspectiva dos povos
do terreiro que considera o desencarne, os encantados e os incorporados, já não interessa
muito questionar o que é corpo, mas pensar em quais e como determinadas “práticas que
imantam o corpo.” (RUFINO, 2019, p. 136) constituem-se enquanto “estruturantes de
uma contranarrativa ao colonialismo” e ao racismo.
Rompendo o binarismo “todo e parte”, corpo toma outra dimensão quando
adentramos o arquivo de memórias ancestrais:
O corpo é esfera mantenedora de potências múltiplas, o poder que o incorpora
o transforma em um campo de possibilidades. O corpo em performance nos
ritos se mostra como arquivo de memórias ancestrais, um dispositivo de
saberes múltiplos que enunciam outras muitas experiências [...] recolhe-se, no
balaio de memórias, múltiplas sabedorias praticadas ao longo do tempo por
aqueles que vieram antes e, no fiar da pertença, da continuidade, da esperança
e da utopia, partilharam o sentido do ser e a reinvenção da vida [...] suporte de
sabedorias múltiplas que baixam e o encarnam; é também um elemento de
imantação e diálogo constante (cruzo) com o campo multidimensional. O
corpo potencializado pelo transe (deslocamento e trânsito por múltiplas
dimensões) passa a não ser meramente passivo às violências a ele empregadas,
se desgarra da fixidez material imposta pelo substantivo racial e passa a operar
inventando/inventariando ações de resiliência e transgressão”. (RUFINO,
2019, pp. 128-131).

19
(RUFINO, 2019, p. 137)
20
Formulação ouvida em palestra data pela líder quilombola Ana Cleta Belfort, a respeito de seu pai, um
dos antigos moradores do Quilombo Santa Rosa dos Pretos, situado em Itapecuru-MA
21
Relacionada a cosmologias indígenas, há ainda uma dimensão da ancestralidade que se formula em torno
do corpo-território das mulheres indígenas. Como um desdobramento deste estudo, pretendo dedicar-me a
pensar a formulação em outro momento. A respeito, ver nota 6.
12

Nos deparamos com um arquivo-outro, nessa gramática das macumbas, como é


chamada por Rufino, nessa não separação entre cultura e sua dimensão religiosa, chega-
se a um deslimite que nos permite questionar: o que é humano, o que é divino, o que é
entidade. A religião como cultura é a própria vida no/do terreiro. A cultura, naquela
porção que tem sido chamada de cultura popular, aponta para uma dimensão religiosa que
não cessa de se chocar com a relação com o Estado, com a produção da cultura de massa
e com discursos hegemônicos sobre Brasil.
A partir das cenas descritas anteriormente, podemos deslocar imagens que muito
dizem desse arquivo da ancestralidade, imagens que se desdobram para muitas outras. O
ato se faz no toque do tambor de crioula, no toque das caixas do divino, no toque das
tabocas de bambu - que pra quem não conhece essas tabocas, pode confundi-las com a
sonoridade produzidas por tambores. “As sabedorias inscritas nas gramáticas das
macumbas já nos diriam que é o movimento que cura” (RUFINO, 2019, p. 149). O
movimento dos toques dos instrumentos é o mesmo movimento dos corpos. Podemos
brincar com os deslimites entre o que é tambor e o que é corpo; o que é caixa do divino e
o que é caixeira. Da barra da saia de quem dança ao toque da caixa e tambores, tudo o
que se vê é movimento, é continuidade, é deriva.
Estendendo às diferentes danças que compõem a cena cultural maranhense, do
tambor de crioula, do cacuriá, dos grupos de bumba-meu-boi, por exemplo, deixo como
apontamento para futuros estudos as possíveis entradas de análise que busquem entrever
nos arranjos do corpo aqueles que não parecem buscar reconciliação, ou harmonias
normativas, apontando assim para harmonias outras. No toque do tambor e nos pés que
dançam travam-se operações significativas no político e ao mesmo tempo no simbólico:
que léxico, que sintaxe, esses corpos textualizam em suas coreografias e arranjos
corporais?
Dessa breve observação temos que para além de questionarmos o que é corpo, ou o
que dizer sobre o corpo, torna-se pertinente investigar corpo quando nos situamos nas
cosmologias das encruzilhadas e mergulhando em suas inúmeras filiações e memórias.
Não concluir, não se fechar, o que nos resta é estranhar qualquer divisão dualista. Baldini
(2010, p. 64) ao pensar corpo e resistência, aponta que “o campo do sentido é atravessado
por um fechamento que só torna mais visível sua impossibilidade, isto é, a cada tentativa
de totalização, fica mais e mais marcado o próprio limite dessa mesma tentativa”. A partir
das sabedorias do povo do terreiro, aprende-se a não mais separar o que é comida do que
13

é cura, o que alimenta e o que é reza. A festa vira ato de fé, e por esse movimento vira
fresta.
Assim, considero o campo cultural um campo de questionamento, necessário,
potente, ao configurar-se como um terreno de lutas estéticas e políticas que estão
acontecendo a todo instante, disputando formas de ver Brasil e suas brasilidades, por
diferentes vias. Se “o Brasil é, antes de tudo, uma construção estética22”, do mesmo modo,
os diferentes arranjos corporais que se formulam e reformulam nos tambores e outros
seres são formas estratégias de discursivizar o corpo: pluralizando e descentrando
perspectivas. O que a chamada cultura popular grita, toca, canta e dança aponta para
sentidos de corpo atravessados por contradições vivas, por aquilo que pulsa, por aquilo
que é e não matéria, que é bicho, que é ave, que é planta, que é proa de barco, aquilo que
é umbigo, lembrando a terra onde se nasce, onde se enterra o umbigo, e onde se enterra o
corpo que se ancestraliza. Fica aqui o desejo de ouvir um pouco do muito que já se diz
em outros tons, outras vozes e perspectivas.
O mundo não é, mas ele está sendo aquilo que praticamos. Atravessado pelo que o
olhar discursiviza, do mesmo modo, corpo não é. Corpo é verbo do que se pratica. Ele se
faz. Corpo não é movimento, faz movimento ao mesmo tempo em que produz a dança.
Corpo incorpora. Corpo negaceia. Corpo produz o som, está no toque de tambor, corpo
dança, vibra. Não é possível afirmar o que é corpo, nem o determinar de modo estanque.
As suas bordas se confundem com outras, e configuram e se reconfiguram a cada
acontecimento, a cada temporalidade projetada.

Corpo-saber e saber corporal na análise de discurso


“não começa, não termina, é nunca é sempre”23

Nessa busca por compreender os des-limites do corpo, a partir de epistemologias


da macumba e de filosofias da encruzilhada, chegamos igualmente à inseparabilidade
entre corpo e saber, a ponto de se “acessar o saber com o corpo” (FREITAS, 2022, p.
324) Relaciono tal reflexão ao que Rufino (2019, p. 137) chama de “saber corporal: “todo
conhecimento só se manifesta na medida em que é incorporado”.
Segundo este autor:

22
Wladimir Safatle, em conferência de lançamento do livro “Em um com o impulso”, Encontro
Humanístico/ Universidade Federal do Maranhão, junho de 2023.
23
Carta de amor, Maria Bethânia.
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A instituição colonial edificou-se a partir da pilhagem de corpos indígenas e


negros brutalmente assassinados, desencantados, desmantelados e blindados
cognitivamente [...] O corpo negro, como um suporte que monta outras
sabedorias, um inventário e mola propulsora de invenções, firma como um
assentamento de outros modos de racionalidades, opostos aos praticados pelo
Ocidente. Dessa forma, o corpo se consagra como a própria instituição que
compreende a existência do ser em integralidade com a comunidade e o
universo. (RUFINO, 2019, p. 129)

Tendo “a política de dominação” se concentrado na “violência contra os corpos”,


corpo é, pois, chave para se entender Brasil. É preciso que se encare a discussão sobre
corpo em processos de identificação racializados que constituem os processos de
produção subjetiva. Historicamente, no Brasil, não podemos deixar de buscar pelas
produções de identificação, ao mesmo tempo em que não se pode fechar em identidades
fixas. Saber que sempre se toma um caminho, mas que esse caminho não pode ser
tomado como único, há muitos possíveis. Um caminho possível a se tomar, dentre tantos,
talvez seja situar-se no lugar da contradição, de modo a não fixar os sentidos ou limites
do que é, levando a sério as condições sócio-históricas da produção dos sentidos, no caso
dos Brasis em discurso, e concebendo toda e qualquer relação simbólica e prática
discursiva constituída na história de colonização.
Discursivamente, não conseguimos aderir totalmente a esse corpo, dado que ele é
produzido e desarranjado nas temporalidades dos acontecimentos. A partir do campo da
análise de discurso, interessa-me questionar como se produz e como circula isso que
projetamos como corpo. Pela análise aqui trazida temos a necessária relação de corpo e
de outras materialidades: corpo e voz, corpo e dança, corpo e tambor. Questiono ainda:
podemos separar corpo de imagem do corpo? Separar corpo de cultura? Qual o papel da
imagem nas diferentes análises que tem tomado a dimensão do corpo em suas
materialidades? Corpo deve ser pensado pra fora de qualquer empirismo, pensado
enquanto discurso, e, portanto, corpo na história e na temporalidade dos acontecimentos.
Para tanto, levar em conta a dimensão do coletivo ajuda a se sair de uma projeção
biológica, psicologisante e pragmática para os corpos, interessa-me pensar os corpos dos
diferentes movimentos religiosos e culturais como singularidades inefáveis produzidas
por alguma subjetividade, mas não como reduto de uma vontade de ação. Pensados como
espaço aberto de retomadas, redes de memórias provisoriamente regularizadas,
podemos aceitar a provocação de Zoppi-Fontana24 a não reduzir o acontecimento do
discurso ao real da língua, para que se consiga “descrever o funcionamento” desses

24
(ZOPPI-FONTANA, 2009, p. 197)
15

encontros subjetivos coletivos amplos que produzem movimentos na história. Índices


potenciais de agitação no corpo necessariamente imbricado com outras materialidades.
Corpo só pode existir em sua dimensão coletiva, e em uma relação com materialidades
discursivas complexas. Pensando possíveis em torno dessa brasilidade que dança e toca
tambor e caixa do divino e que nesse ritmo parece reinventar a existência como festa e
pertencimento, uma “antítese do Brasil institucional”25.
Associando-me aos trabalhos que tem proposto à análise de discurso que se re-
pense os limites do que tem chamado de cultura 26, e a partir do que ensaio como análise
neste texto, acrescento que pode haver algo de altamente refinado que talvez possa ser
compreendido pela AD no que se tem chamado de cultura popular e de regional. Uma
Brasilidade latente, potente e possível vagando pelas margens do que se considera ser o
Brasil enquanto universalidade, e que amarra corpo e cultura de modo incontornável.

Referências:

BALDINI, Lauro. “ Um pouco de possível senão eu sufoco...”. In: ROMÃO, Lucília


Maria, PACÍFICO, Soraya. Efeitos de leitura: sujeitos e sentidos em movimento. São
Paulo: Alphabeto editora, 2010.

CASTRO, Manuel Antônio de. "Época e tempo poético". In: Dicionário de poética e
pensamento, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2015.

CESTARI, Mariana; CHAVES, Tyara Veriato; BALDINI, Lauro J. Siqueira. O


Pretuguês, a língua materna e os discursos fundadores da brasilidade. In: ZOPPI-
FONTANA, M. G.; BIZIAK, J. S. Mulheres em Discurso: lugares de enunciação e corpos
em disputa – Vol. 3. Campinas, SP: Pontes Editores, 2021.

FERRETI, Sergio Figueiredo. Repensando o sincretismo A Casa das Minas de São Luís
do Maranhão. São Paulo: Edusp/Fapema, 1995.

FERRETI, Mundicarmo. A mina maranhense, seu desenvolvimento e suas relações com


outras tradições afro-brasileiras. In: MAUÉS, R. e VILLACORTA, G. Pajelança e
religiões afro-brasileiras. Belém: EDUFPA, 2008. Disponível em:
https://www.gpmina.ufma.br/arquivos/Mina%20e%20outras%20denominacoes.pdf
Acessado em 20 de maio de 2023.

FRANÇA Glória & GLEO, Gnenonsegouet Noelle, « « Moi, la noire docteure » : penser
une prise de parole de femme noire/décoloniale à la première personne », Itinéraires [En
ligne], 2021-3 | 2022, mis en ligne le 14 septembre 2022, consulté le 22 septembre 2022.
URL : http://journals.openedition.org/ itineraires/11553 ; DOI :
https://doi.org/10.4000/itineraires.11553.

25
Simas, 2023, s/p
26
Cito em particular as contribuições dos trabalhos de Maria Cristina Leandro Ferreira e do Grupo "
Oficinas de AD: conceitos em movimento", PPGL-UFGRS, com os quais tenho dialogado.
16

FRANÇA Glória & VERIATO CHAVES, Tyara. Brasilidade, encantaria e resistência:


o silêncio e essa “coisa de outra ordem”. In: Indursky, Freda (org.) Línguas e Instrumentos
Linguísticos, Campinas, SP, v. 25, n. esp., p. 153-165, 2022.

FREITAS, Henrique. Letramentos negros: o corpo como saber. In: Muniz, Kassandra,
Souza, Ana Lúcia. Cadernos de Linguagem e Sociedade, Dossiê Dossiê Questões raciais,
em intersecção, como agentes de transformação no campo dos estudos da Linguagem. V.
23, n.2. Salvador: 2022. pp. 315-228, 2022. Disponível em:
https://periodicos.unb.br/index.php/les/issue/view/2454/778. Acessado em 02 de junho
de 2023.

GONZALEZ, Lelia. Racismo e Sexismo na cultura brasileira. In: Por um feminismo


afrolatinoamericano. Editora Zahar. (2020) [1979].

RUFINO, Luiz. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2019.

RUFINO, Luiz, SIMAS, Luis Antonio. Fogo no mato: a ciência encantada das
macumbas. 1. Ed. Rio de Janeiro: Mórula, 2018.

NOGUEIRA, Sidnei. Intolerância religiosa. Coleção Feminismos plurais. São Paulo:


Sueli Carneiro/ Editora Jandaia, 2020.
Simas e Rufino, 2018

SIMAS, Luis Antonio, 2023. Aula pública ocorrida em 15/04/2023, na cidade do Rio de
Janeiro.

ZOPPI-FONTANA, Mónica, G. O acontecimento do discurso na contingência da


História. In: INDURSKY, F., LEANDRO FERREIRA, M. C., MITTMANN, S. (orgs.)
O Discurso na Contemporaneidade: materialidades e fronteiras. São Carlos: Claraluz,
2009.

*Glória FRANÇA
Professora Adjunta do Departamento de Letras, e professora permanente dos Programas
de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Federal do Maranhão. Possui doutorado
em Linguística, pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL-UNICAMP) e Université
Paris 13 Sorbonne Paris Cité. Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas em Discursos,
Interseccionalidades e Subjetivações (GEPEDIS/CNPq). Integra o grupo de pesquisas
Mulheres em Discurso/CNPq, coordenado pela profª. Drª. Monica Zoppi-Fontana,

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