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Indígenas no espaço urbano: não foi a aldeia que chegou na cidade mas a cidade

que chegou na aldeia.

Antes de ser fundada, Uberlândia era terra indígena, território dos Kayapó com os
Krenak, mas foi tomada pelos brancos, que a transformaram na cidade que conhecemos
hoje. A história do resgate dos povos indígenas desse território começou com a Cacica
Poty Guarani. Sua vida também foi muito sofrida: ela teve suas roças e sua aldeia
queimadas, fugiu na mata, perdeu a família e foi encontrada por padres em uma cidade
próxima. Os padres passaram a abusar dela, e depois deram a Cacica para uma família
que também abusou dela. Ela fugiu para Belo Horizonte, onde ficou hospedada em uma
casa para mulheres. Lá, a Cacica conheceu seu futuro marido. Se apaixonou e eles se
casaram. Ele trabalhava como engenheiro e a trouxe para Uberlândia. Pagou um curso
de cabeleireiro para ela, e ela virou cabeleireira dos ricos locais.

Um dia, a Cacica Poty Guarani foi visitar seu marido, que estava trabalhando na
Universidade, mas foi proibida de entrar lá por ser mulher indígena e não saber ler.
Incomodada, ela prometeu para si mesma: “Eu vou aprender a ler e vou resgatar o meu
povo”. Ela organizou, então, uma primeira reunião de povos indígenas em Uberlândia, e
a primeira família indígena a ser mapeada por ela foi a minha. Com o tempo, a Cacica
foi descobrindo vários outros povos indígenas da cidade, mais de 700 pessoas, e então
criou o MINA – Movimento dos Povos Indígenas Não Aldeados do Triângulo Mineiro e
Alto Paranaíba. Entrei no MINA como Coordenadora de Alimentação Indígena e minha
irmã entrou na parte de artesanato, porque ela faz utensílios de barro e sabonetes.

Em 2017, a Cacica faleceu, e deixou seu legado para mim. Estou aqui hoje, com a
história para prosseguir. É meu dever fazer com que ela se orgulhe. Mudamos o nome
do movimento para Oca – Centro Cultural Indígena Kawã Poty Guarani, e hoje nosso
foco é trabalhar com a cultura, fazendo luau, celebrando o Dia do Índio, celebrando o
Dia da Mulher Indígena. Estou trazendo de volta alguns rituais de reza e chá, e também
pedimos para a Funai fazer um novo censo da população indígena em Uberlândia. Sei
que são muitos e de vários povos: Tupinambá, Tupi-Guarani, Bororos, Xavante,
Xakriabá e várias outras etnias. Aos poucos, queremos retomar as tradições das
culturas por completo.
Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), de 19 de abril de 2012, que reconhece o direito dos indígenas de incluir a etnia
no seu nome, trata dos indígenas aldeados e não contempla indígenas desaldeados,
como é o caso da cacique Maria de Lourdes. “Nenhum indígena deixa a sua
comunidade porque quer, mas premido por uma série de necessidades. Por isso que eles
são desaldeados. E isso já é, em si, uma violência. Eles vivem na cidade, num limbo
jurídico muito grande, pois não são considerados como sendo de cultura branca, por
assim dizer, e sua cultura também não é aceita.

A distinção entre aldeados e desaldeados constitui uma crítica antiga pelos povos
originários em todo o país – muito pela memória de ataques que perduram há mais de
520 anos, mas não só. Para o coordenador da Articulação dos Povos e Organizações
Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME) na microregião
AL/SE, Tanawy Xukuru Kariri, essa distinção que é feita pelo Estado é mais uma
ferramenta para garantir a continuidade da retirada de direitos, ainda mais acentuada
contra indígenas que moram em contextos urbanos, acampamentos, ou mesmo aldeias
não reconhecidas institucionalmente.

“Esse contexto de ‘índios desaldeados’ a gente não aceita e não concorda. A política usa
muito esse termo, que não reconhecemos. Porque para a gente, independentemente de
onde são mantidos, índios são índios. E existe a convenção 69 quando se trata desse
termo. Como dizer que índio é desaldeado se todo o território brasileiro é indígena? O
Brasil é uma grande aldeia. Todo lugar que a gente vá, estamos dentro do nosso
território, dentro de nossa aldeia, e temos merecimento”, defende Tanawy.

Quando se fala em indígenas sempre parece algo longe de nós, que não nos pertence,
que está lá longe, na mata, na história etc. Para essa parcela da população, é reservado
somente preconceitos e estereótipos. Até mesmo o termo “cultura indígena” costuma ser
usado de forma romântica por quem se diz do meio, por desconhecimento, falta de
acesso a informações mais coerentes ou preguiça. Mas o fato é: sempre tivemos
indígenas entre nós.
Quando um brasileiro vai para fora do Brasil, ele, por acaso, deixa de ser brasileiro?
Quando um estrangeiro vem para o Brasil, ele não é bem recebido? Por que, então, nós,
indígenas, só podemos ser indígenas na mata, sendo que as florestas nem existem mais?
Os brancos destroem a mata, matam os nossos povos, estupram nossas mulheres,
roubam nossos territórios e ainda se incomodam quando nós vamos morar nas cidades.
Se hoje eu sou imigrante no meu próprio país, é porque um dia meus territórios foram
tomados e destruídos. Nunca quiseram me reconhecer, mas eu me considero indígena
onde eu estiver. Com tablet, com telefone, com notebook, com o que for, eu continuo
sendo indígena.

A questão dos indígenas em contextos urbanos é extremamente invisível e apagada


perante a sociedade, inclusive no movimento indígena tradicional.

Hoje, a maioria dos centros urbanos acima de 50 mil habitantes têm indígenas, e essa é
uma realidade que se perpetua desde o começo de nossa história. Afinal, não foi a aldeia
que chegou na cidade, mas a cidade que chegou na aldeia. Em Uberlândia, redução em
mais de 37% da população indígena não aldeada em Uberlândia, em comparação do censo
de 2010 com dados de 2020. (IBGE)

O fato é que as cidades nunca deixaram de ter indígenas, especialmente as capitais e as


maiores. A diferença é que ao longo dos anos muitos vieram como migrantes.

De que forma concretizar a cidade como espaço indígena por meio da inclusão cultural?

Pensar o indígena em contexto urbano exige atuar contra estereótipos. Ao se afirmar que
o indígena não é mais indígena ao viver na cidade é negá-lo direitos fundamentais: o de
ir e vir e o direito de ser o que originalmente se é. A cidade também deve ser um local
de afirmação dos direitos indígenas!

Ainda é muito recente a reflexão sobre direito à cidade para povos indígenas, no entanto
a questão indígena no contexto urbano é um debate essencial dentro da Agenda do
Direito à Cidade. O direito à moradia, reconhecido como um direito humano
fundamental pela ONU, considera que para que a moradia seja avaliada adequada ela
deve respeitar e levar em conta a expressão da identidade cultural dos seus moradores.
Do ponto de vista como entendemos o direito à cidade, também acreditamos que este só
estará garantido quando a diversidade e identidade cultural de todas as pessoas
forem acolhidas pela cidade.

Como Uberlândia garante todas as condições para sua reprodução física e cultural,
segundo seus usos, costumes e tradições nas terras de origem?

É comum ouvir que o indígena que vive na cidade não é mais indígena pois “perdeu a
sua cultura”. Com isso, nega-se mais um direito: o de ser indígena. Mais do que
vestimenta, ou pinturas corporais, ou hábitos alimentares, é preciso olhar como os
indígenas vivem seu dia a dia em sua casa e entre os seus. O que faz do indígena ser
indígena é o tripé tradição, cultura e espiritualidade.

A Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI)

- Apoio a Instalação do Museu de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal


de Uberlândia (MAnA), que será um espaço para a realização de pesquisas, curadoria,
guarda e extroversão de acervos antropológicos e arqueológicos oriundos de pesquisas
ou de doações diversas realizadas na região definida atualmente pelo sul de Goiás,
Triângulo Mineiro, Alto Paranaíba, norte de São Paulo e leste de Mato Grosso do Sul.

- Criação de um Plano Cultural voltada para população indígena não aldeada,


buscando formas de entender sua heterogeneidade e suas diferentes formas de matrizes
indígenas. Um projeto que possa desenvolver o direito à sua memória e verdade, e que
vá na contramão da redução em mais de 37% da população indígena não aldeada em
Uberlândia, em comparação do censo de 2010 com dados de 2020. (IBGE)

- Criação do Monumento Cacica Poty Guarani juntamente com o movimento para


Oca – Centro Cultural Indígena Kawã Poty Guarani. Falecida em 2017 foi um marco na
liderança indígena de Uberlândia na articulação e no resgate da história da cidade.
https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2023/03/5080801-projeto-estuda-
fatores-de-risco-cardiovasculares-em-indigenas-nao-aldeados.html#google_vignette

https://www.archdaily.com.br/br/937793/indigenas-no-espaco-urbano-nao-foi-a-
aldeia-que-chegou-na-cidade-mas-a-cidade-que-chegou-na-aldeia

https://www.brasildefatope.com.br/2021/04/20/liderancas-indigenas-apontam-
como-desaldeamento-aprofunda-retirada-de-direitos

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