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As multifaces da ocupação indígena em Guarulhos

Por Beatriz Gomes, Camila Mazzotto, Giovanna Jarandilha, Jonas Santana, Larissa Vitória e Matheus Oliveira

Um grupo de alunos do 7° semestre do curso de jornalismo da Escola de Comunicação e Artes (ECA),


da Universidade de São Paulo (USP), elaborou uma grande reportagem sobre saneamento básico, saúde,
educação e demarcação de terras indígenas em Guarulhos. O portal Click Guarulhos publica nesta terça-feira
(14) a primeira reportagem da série.

A área central da Aldeia Indígena Filhos Desta Terra, em Guarulhos, cidade localizada ao norte da região
metropolitana de São Paulo, está coberta de pedaços de madeira, enxadas e carrinhos de mão. “Estamos
construindo uma oca”, diz Awa Kuaray Wera, de nome civil Gilberto Silva dos Santos. O indígena de 47 anos,
da etnia Tupi, vive há quase dezoito no município, mas é originário da Aldeia Bananal, de Peruíbe. Enquanto
caminha pelos quase 135 mil metros quadrados da ocupação, ele explica que ali nem todas as casas têm
banheiro; que o esgoto é despejado em uma fossa sem tratamento; e que os moradores sonham com a
presença de um posto de saúde e uma escola indígena no local.
Era dia 26 de outubro de 2017 quando os indígenas chegaram à terra. No início do mesmo ano, teriam
recebido da Subsecretaria de Igualdade Racial, órgão da Prefeitura de Guarulhos, o aviso de que, até agosto,
o terreno — prometido em 2008 após apresentarem o projeto de uma aldeia multiétnica à Prefeitura — seria
transferido à propriedade do grupo.
À época, a notícia correu rápido. Em menos de uma hora, reuniram-se esperançosos. “Foi uma festa”,
lembra Awa, que é educador no Parque Estadual da Cantareira. “A gente esperava por aquele momento
desde 2002, quando começamos a pensar no projeto da aldeia”.
Nos primeiros dias de outubro, porém, sobreveio a informação de que a Subsecretaria de Igualdade
Racial ainda não tinha o número do processo de efetivação da terra. Os representantes do grupo indígena —
entre eles, Awa — entraram, então, com um documento reivindicatório do espaço à Prefeitura. No dia
seguinte, sem respostas do órgão, decidiram ocupar o terreno. Nascia, ali, a Aldeia Filhos Desta Terra.

Entre barras de ferro e telhas de zinco


O acesso à aldeia, localizada no bairro do Cabuçu, distrito da região oeste do município de Guarulhos,
é um pouco restrito. Sem carro, uma longa ladeira consome os pedestres antes de alcançarem sua entrada.
Também não tem calçada — o que aparece à beira da estrada Benjamin Harris Hunicutt serve mais para
delimitar o pavimento do que para comportar uma caminhada.
Uma entrada de cascalho à esquerda não entrega de cara que é a abertura para a área. Um
fechamento improvisado com barras de ferro e telhas de zinco presos uns aos outros por arame faz função de
portão entre as árvores. O cercamento é completo por montes de terra de um lado e o barranco que dá vista
para o trecho norte do Rodoanel Mário Covas do outro.
A única aresta faltante para fechar o polígono não é, na verdade, uma barreira. Dela parte uma escada
sinuosa que conduz mata adentro, onde foram assentados os indígenas. Espacialmente, cada etnia ocupa
uma parte do terreno — uma forma que encontraram de respeitar as diferenças culturais entre as famílias,
explica Antonio Carlos, que faz parte da etnia Kaimbé.
“Ali em cima fica o povo Kaimbé”, diz, apontando para o topo de um morro, onde uma construção
simples de tijolos sem reboco se desenha na linha do olhar. Esses “ajuntamentos”, como ele coloca,
circundam uma área comum destinada a todas as 25 famílias. A maior parte delas é pertencente a seis
diferentes etnias: além da Kaimbé, estão reunidas a Pankararu, Pankararé, Wassu Cocal, Tupi e Pataxó.
As que não pertencem a nenhuma das etnias são famílias não-indígenas, que já ocupavam a parte
superior do terreno antes da formação da aldeia indígena. A primeira a chegar foi Jéssica, junto ao marido e
dois filhos pequenos, em setembro, um mês antes da fundação da Filhos Desta Terra. A família veio do Pará
e, antes de chegar em Guarulhos, passou por três ocupações na cidade de São Paulo. “Ficamos igual
macacos, de galho em galho”, diz.
A paraense alegou que quem estava à frente dessas ocupações por onde passou “só queria dinheiro,
mas não dava garantia de nada”. Na terra que compartilha com os indígenas, Jéssica se sente mais
estabilizada e conta que, apesar das diferenças, possuem uma boa relação. Um dos moradores não-
indígenas, acrescenta Awa, estava inclusive ajudando na construção da nova oca.

“Quem decide aqui é a maioria”


A divisão da terra entre as etnias indígenas só veio a acontecer cerca de seis meses depois da
ocupação, conta Antonio. “Quando chegamos, a gente ficou aqui, todo mundo junto”. Gesticula para onde
está a oca que, junto ao Awa e outros indígenas, foi pensada para tornar-se um importante centro cultural.
“Esse espaço ficou como multiétnico, como se fosse de todo mundo, pra momentos como esse que tá
acontecendo agora”, celebra, em referência à festa realizada nos dias 26 e 27 de outubro deste ano, que
comemorou os dois anos da ocupação e sediou o 12º Encontro dos Povos Indígenas de Guarulhos.
https://www.youtube.com/watch?v=iSH2QMe6LZY
Repensar a espacialidade, porém, só foi necessário depois de desentendimentos acerca da
centralização do poder no espaço. “Tinha um cacique que queria liderar sozinho”, critica Awa. “Opressora” e
“autoritária” são termos que ele atribui à antiga liderança que, conta, não distribuía as doações que chegavam
na aldeia. Estas eram encaminhadas apenas para o povo Wassu Cocal — maioria numérica na aldeia e etnia
da qual o cacique fazia parte.
A questão, para Awa, reside ainda em outro ponto: como escolher uma liderança representativa e
democrática em uma comunidade de culturas diferentes entre si? “Aqui não temos cacique, temos um grupo
de lideranças. Na verdade, hoje está acabando isso de cacique nas aldeias, ainda mais aqui que são povos
diferentes.”
Da questão, surgiu a ideia de, em cada tomada de decisão, consultar não só uma, mas “várias
pessoas da mesma etnia”. “A gente tem que se unir para ganhar a terra. Se não houver união, a gente não
vai em lugar nenhum. Quem decide aqui é a maioria”, postula Awa.
Por outro lado, Antonio ri e desconversa quando perguntado sobre os conflitos. “Assim como em
qualquer sociedade, temos os baixos e os altos. A gente foi se adaptando a isso, um respeitando o limite do
outro”. Agora, explica, tudo na aldeia é decidido em conjunto. “Questão de terra, saúde, educação a gente
fala a mesma língua, tá todo mundo junto, é a mesma briga”.
Não só as grandes reivindicações, como também os assuntos mais triviais passam por um tipo de
quórum popular e uma votação antes de ser batido o martelo. “Tudo o que a gente for fazer, se for plantar
algo, a gente chama todo mundo e vê quem tá de acordo”.

Desejo de se auto-sustentar
A variedade étnica, apesar dos desafios da convivência, é a aposta dos moradores para o sucesso de
um projeto corrente de auto-sustentação. “O plano pro ano que vem é trazer mais turismo para cá”, prediz
Awa. A ideia é abrir a comunidade para o exterior, atrair visitantes não-indígenas, desmistificar a cultura e,
principalmente, gerar renda própria.
“A gente não tem recurso aqui dentro”, comenta Antonio. Ele explica que muitos dos indígenas têm de
sair da aldeia e manter empregos formais a fim de sustentarem suas famílias. A conquista de autonomia
depende do aumento das vendas de artesanato nos eventos abertos para o público geral, e da liberdade de
plantar e colher o próprio alimento.
Contudo, observa o indígena, pelo fato de o espaço ser de proteção ambiental, a intervenção no
terreno torna-se mais burocrática. Além disso, a qualidade do solo também não é das melhores — a área
costumava abrigar um local de reciclagem de material de construção da Proguaru (Progresso e
Desenvolvimento de Guarulhos S/A), empresa de economia mista.
Logo quando se mudaram, algumas indígenas relataram encontrar cacos de vidro em uma área do
solo. “Era impossível dançar o toré com o vidro ali”, afirma uma delas. Além disso, a vida animal escassa leva
ao desejo — e à necessidade — de criar um sistema de represamento de água, viabilizando a criação de
peixes.
O projeto de auto-sustentação também alcança outras frentes. Melhorar a infraestrutura da aldeia,
tornando as trilhas mais seguras e os caminhos mais intuitivos é uma delas. Antonio prevê que, completada a
obra da oca, será possível receber não só festas e reuniões, mas também excursões de escolas.
Quebra de estereótipos
“Adentrando a aldeia, muitos preconceitos de crianças e jovens sobre a figura do índio podem ser
quebrados”, considera Awa, que é educador indígena e conta histórias em escolas, universidades e parques.
Em uma dessas ocasiões, na saída da escola, depois de ter tirado os trajes e adornos tipicamente
indígenas, ouviu de algumas crianças que ele não era um “índio de verdade”. “Quer dizer então que índio não
pode usar calça jeans ou ter celular?”, questiona. “Tem que falar do índio de hoje, da diversidade cultural
indígena. Muita gente acha que pra ser índio tem que ser baixinho, de olho puxado, cabelo lisinho. E não é
isso”.
Silvia Kaimbé, esposa de Antonio, também trabalha palestrando em escolas e universidades e ressalta
a importância da formação do corpo pedagógico nas temáticas étnico-raciais. “A gente sempre fala ‘olha,
vocês que vão estar dando aulas no futuro, então vamos abrir a mente, porque as nossas crianças precisam
desse apoio de vocês’”, conta.
Criança indígena da aldeia e filha de Silvia e Antonio, Maria Antonela começou a frequentar uma
escola infantil da rede pública municipal aos três anos de idade. Por ser muito agitada, conta a mãe, os
professores, à época, chamaram Silvia para assinar uma ocorrência.
A ela, perguntaram se a agitação de Antonela era resultado de sua participação em rituais indígenas.
Silvia lembra do episódio como um dos mais “preconceituosos” que já vivenciou.“Eu disse: ‘Minha filha é livre,
desculpa aí se vocês não estão preparados para lidar com uma criança que passa a maior parte do tempo ao
ar livre’”, conta, em tom de indignação. Depois da ocorrência, a família decidiu retirar a criança da escola.
Mas a preocupação da indígena continua. Em 2020, a filha já terá atingido a idade mínima obrigatória
para ingressar na escola e terá de voltar à instituição, que é a mais próxima da aldeia.

Decadente do município à aldeia


Outro fator importante para aldeia é o saneamento básico. Apesar de Guarulhos ser a segunda cidade
mais populosa do estado de São Paulo, encontra-se entre as 20 piores do país em coleta e tratamento de
esgoto, de acordo com dados divulgados pelo Instituto Trata Brasil em 2019. O estudo mostra que o
município trata menos de 20% do esgoto e despeja a quantidade restante no Rio Tietê.
Esses números se refletem na região do Cabuçu, onde a aldeia está situada. Segundo relatos de
indígenas, quando chegaram na região, bebiam água numa nascente, adaptada e cavada pelo grupo no
terreno ocupado.
Mas, depois de três meses, receberam a visita de uma equipe de saúde enviada pela Prefeitura, que
constatou que a água utilizada para consumo pessoal e doméstico continha “coliformes fecais”, como lembra
Antonio. Nesse caso, a contaminação acontece pelo despejo de esgoto sem tratamento em locais
inadequados, que carregam as fezes.
Depois da descoberta, a equipe forneceu uma mistura em pó que transformava o líquido contaminado
em potável. Os indígenas aderiram a essa solução por alguns meses até conseguirem instalar uma ligação
clandestina de água para dentro da aldeia, através da rede que abastece bairros próximos — essa forma é
utilizada até hoje.
Quanto ao lixo, Awa explica que tem de ser depositado na rua de um bairro próximo, onde circulam os
caminhões da coleta seletiva. Dona Diva, indígena da etnia Wassu Cocal que está na ocupação desde o seu
início, conta que só há duas alternativas para o descarte dos resíduos no local: “Ou a gente queima, ou
levamos lá em cima na beirada da avenida, onde um carro passa e recolhe”.
Algumas moradias apresentam fossas, mas os indígenas afirmam ter planos de construir “banheiros
secos”, alternativa presente nas aldeias do Jaraguá e de Parelheiros, em São Paulo. A medida é uma forma
ecológica de tratar as fezes que, durante o processo, são separadas da urina e cobertas de serragem,
evitando, assim, o mau cheiro.
Em outubro deste ano, a demanda por saneamento básico foi um dos tópicos discutidos em uma
reunião entre os indígenas e o subsecretário da Cultura de Guarulhos, conta Silvia. “Temos que usar uma
fossa inadequada porque precisamos, mas sabemos que não é o ideal.”, diz.

Alívio na saúde, mas não o suficiente


A principal necessidade da aldeia, relatam os indígenas, é o atendimento especializado em saúde.
Atualmente, o órgão responsável pela saúde indígena é a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). A
repartição, porém, presta serviços em terras que já foram demarcadas. Em nota, explicou que os indígenas
que vivem fora de aldeias, em terras não demarcadas — como é o caso dos indígenas de Guarulhos — ou
em aglomerados urbanos devem buscar assistência na rede referenciada do Sistema Único de Saúde (SUS).
Em resposta às reivindicações da comunidade indígena do município, a Prefeitura, em agosto de
2019, instituiu, através da Portaria Nº. 137/2019-SS, publicada no Diário Oficial de Guarulhos, uma “Unidade
de Referência para Atenção à Saúde dos Povos Indígenas” na Unidade Básica de Saúde (UBS) Jardim
Cabuçu, posto de saúde mais próximo à aldeia.
Anderson da Silva Guimarães, da Subsecretaria de Igualdade Racial, diz que o órgão está investindo
em formação constante dos servidores da Secretaria de Saúde nas temáticas étnico-raciais, a fim de “garantir
a sensibilização dos agentes públicos para as especificidades desta população, especialmente no combate a
toda forma de discriminação”.
Apesar da inauguração dessa unidade de referência, o indígena Awa diz que o projeto ainda não se
equipara ao que a comunidade reivindica. “Se você for em outras aldeias, tem agente de saúde, médico de
segunda a sexta. E o atendimento aqui é demorado”.

Uma promessa falha


O vice-prefeito de Guarulhos, Alexandre Zeitune, lembra da ocasião em que, poucos meses depois de
ter assumido o cargo, em 2017, convocou os indígenas para uma reunião no gabinete da Prefeitura. À época,
afirma ter realizado um mapeamento das pessoas que se autodeclaravam indígenas no município — de
acordo com o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, esse número é
de 1.434 habitantes. “Vimos que estava na hora de pensar em um local exclusivo para eles”, diz.
Oca utilizada pela etnia Wassu Cocal para atividades culturais e espirituais. Foto: Giovanna Jarandilha
Dessa reunião, conta Zeitune, surgiu a promessa do prefeito, Gustavo Henric Costa, mais conhecido como
Guti, de que, em breve, a terra no bairro do Cabuçu pertenceria aos indígenas. A ocupação do espaço pelo
grupo também atenderia a alguns objetivos da administração municipal, como a manutenção da área
remanescente de Mata Atlântica e o possível desenvolvimento de atividades turísticas, já que o espaço se
encontra na margem de um trecho ainda em construção do Rodoanel Norte e a poucos quilômetros do
Aeroporto Internacional de Guarulhos.
“Faltou e ainda falta vontade política por parte do prefeito para pensar em uma solução ao caso dentro
dos trâmites legais”, considera, enquanto comenta a indefinição atual da situação jurídica da terra.
Em nota, Anderson Guimarães, subsecretário da Igualdade Racial, afirma que o território ocupado
pelos indígenas pertence à companhia Desenvolvimento Rodoviário S/A (Dersa), de titularidade do estado de
São Paulo. “Estamos em constante diálogo para que os indígenas desocupem a terra e encontremos um
outro caminho”, diz.
Ele explica que, ainda que o município quisesse demarcar a terra, não poderia fazê-lo, em razão da
competência caber à Fundação Nacional do Índio (Funai). “Temos lançado esforços para a implantação de
políticas que alcancem suas necessidades para a manutenção de sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições, ainda que residentes em meio urbano”, afirma, enquanto cita a ampliação das Unidades
Básicas de Saúde referenciadas a essa população na cidade e a garantia de cadastro no CADÚnico, principal
instrumento federal usado na seleção e inclusão de famílias de baixa renda em programas federais, como o
Bolsa Família e a Tarifa Social de Energia Elétrica.

Terra ou reserva indígena?


Para que uma terra seja declarada território indígena pela Funai, estudos técnicos têm de comprovar
que o local foi historicamente ocupado pelos índios que reivindicam sua posse. “É um trabalho gigantesco e
complexo, levando em conta características étnicas, históricas, ambientais, cartográficas e fundiárias do
território”, diz Luís Roberto de Paula, antropólogo e professor da Fundação Universidade Federal do ABC
(UFABC), que já participou de processos de demarcação de terras indígenas.
“De uma maneira bem simples, isso significa que temos de comprovar que os indígenas que
reivindicam uma determinada terra têm um vínculo territorial pré-colombiano com ela e, se não estão mais
nesse lugar, que eles foram espoliados da terra, mas a memória histórica tem de, necessariamente, estar
atrelada a um levantamento documental”, explica.
Entre as décadas de 1950 e 1970, grupos indígenas, principalmente do Nordeste, migraram para São
Paulo em busca de emprego, espalhando-se entre as periferias do estado, em municípios como Guarulhos,
Osasco e São Bernardo do Campo. Esses casos assemelham-se aos indígenas da Aldeia Filhos Desta Terra,
que pertencem a etnias majoritariamente nordestinas — Wassu Cocal (AL), Kaimbé (BA), Pankararé (BA),
Pankararu (PE), Pataxó (BA). Há também um pequeno grupo de indígenas da etnia Tupi, do litoral sul de São
Paulo.
Por não apresentarem vínculo territorial histórico com a terra que reivindicam, eles não têm, portanto,
direito à demarcação. Na cidade de São Paulo, o único povo indígena que atende a essa prerrogativa da
Funai são os Guarani, que vivem nos arredores do Pico do Jaraguá, na Serra da Cantareira.
Nesse caso, explica o antropólogo Luís, caberia à Funai, num ato de mediação, organizar uma reunião
com os indígenas da aldeia, o prefeito de Guarulhos e um representante da companhia Desenvolvimento
Rodoviário S/A (Dersa), proprietária do território. “Há duas opções possíveis: ou a Dersa, pressionada pela
Funai e pelos indígenas, doa uma parte da terra para a regularização da aldeia, ou o prefeito indeniza a
companhia e doa o terreno aos indígenas”.
Essa modalidade de terra, doada por terceiros, adquirida ou desapropriada pela União, é reconhecida
pela Funai como reserva indígena. Em São Paulo, segundo dados disponibilizados pelo site da Fundação, há
duas delas — uma em Eldorado e a outra em Tapiraí.
Por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), o órgão disse que não há previsão para o início do
procedimento administrativo de identificação e delimitação da área reivindicada pela comunidade indígena de
Guarulhos. Informou também que, atualmente, existem outros 495 registros de reivindicações fundiárias no
país, além de cerca de 119 procedimentos de identificação e delimitação em curso, sendo o trabalho
realizado por apenas quinze servidores.
“Vale esclarecer que, desde o ano de 2012, esta Fundação não dispõe de mecanismo de contratação
de profissionais externos para compor e coordenar esses Grupos Técnicos (GTs), sendo necessário contar
com colaboradores voluntários em regime de recebimento de apenas diárias, que não podem se dedicar com
exclusividade aos trabalhos”, diz a nota. E acrescenta que, desde 2018, esse regime de pagamento de diárias
para servidores públicos federais de outros órgãos tem autorização para acontecer apenas em situações
emergenciais e excepcionais, devidamente justificadas.
Em nota, a companhia Dersa alega que a aldeia ocupou uma área de propriedade da empresa
municipal Progresso e Desenvolvimento de Guarulhos S/A (Proguaru), parte dela em fase de desapropriação
judicial pelo Departamento de Estradas de Rodagem (DER) para obras do trecho norte do Rodoanel Mário
Covas. Segundo a empresa, foi ajuizada ação de reintegração de posse pelo DER devido à ocupação
irregular do local. O processo está sob acompanhamento do Ministério Público Federal.
O objetivo da companhia, explica a Dersa, é concluir as obras do Rodoanel para que seja entregue o
quanto antes à população. “É mais um passo para que o Estado possa retomar este empreendimento, dentro
da forma da lei.”

Conheça a história de alguns indígenas da aldeia:


● Dona Diva

A cerimônia estava quase no fim. O vice-prefeito Alexandre Zeitune deixou a roda de dança às
pressas — como um superastro, saiu o centro da oca sem olhar pros lados, andando ao lado de uma mulher
baixinha, encurtada pelo cabelo muito longo e muito escuro. Aceleramos o passo para segui-los. Zeitune logo
percebeu e estendeu a nós o convite para acompanhá-los.
Os últimos minutos de sua passagem haviam sido reservado pro beiju de dona Diva, explicou no
caminho. Em sua primeira visita à aldeia, Diva o recebeu com esse tipo de tapioca feito com farinha de
mandioca e coco fresco em lascas. Foi tiro e queda: desde então, não se vê vindo a aldeia sem saborear o
prato de dona Diva.
O beiju é motivo de orgulho dela. Enquanto nos conduzia pelas trilhas apontando pra lá e pra cá e
contando sobre cada cantinho escondido entre as árvores, mais de uma vez tornava a mencionar o sabor de
seu beiju. Cozinhar para ela vai além do alimento: significa família reunida e cuidado com os filhos. O beiju é
uma forma de expressar carinho.
E para isso não poupa esforços. “Tem que acordar às 5 da manhã e arrepiar”, diz, com o prazer quase
devoto com que recebe, o mesmo que nos tratou desde o princípio: como se fôssemos de sua família. O afeto
da alagoana é o que a distingue, a urgência que derrama em seus abraços, a ênfase de suas palavras e seu
laço com a terra.
Alcançamos sua casa meio sem fôlego, junto de outro grupo de visitantes também ávidos por sua
presença. A terra, ela enche o peito, é tudo. “É onde eu posso viver minha liberdade”, atesta ao passarmos
pelo cômodo apertado, quase claustrofóbico, que lhe serve de quarto. “A gente não quer casa de alvenaria, a
gente quer viver o cultural”.
Ali próximo, outros membros da etnia Wassu Cocal estavam reunidos sob uma tenda amarela, em um
tipo de comemoração particular. Entre eles, os filhos de Diva, muito quietos e reservados, dissidentes quando
ao lado da mãe, que poderia falar por horas a fio sem que nenhum de nós lhe houvesse perguntado nada.
Isso porque, para ela, contar sobre a terra era como contar os feitos de seus próprios filhos — ambas
narrativas que empenha com amor.

● Antonio Carlos

Na área central da aldeia, um homem capinava terra para a construção da nova oca do espaço. Era
Antonio Carlos, que logo explicou o motivo de estar trabalhando debaixo de quase 30 graus: “Esse será um
espaço para a reunião das diferentes tribos moradoras da aldeia para celebrarem a sua cultura”.
Da etnia Kaimbé, Antonio explicou que mora ali com sua esposa e filhos desde o início da ocupação.
A origem de sua etnia é do estado da Bahia, no município de Euclides da Cunha, área do sertão baiano. O
seu povo, contou, vivia em casas de taipa coberta de palha e, no passado, foi escravizado por pessoas não-
indígenas. Após a demarcação da terra, a população recebeu uma indenização do governo. Hoje, vivem em
casa de alvenaria, “só que ao redor das casas há um espaço cultural típico deles. Todo ano há feira de
cultura lá”.
Depois de um demorado suspiro, contou a história de como os indígenas chegaram em Guarulhos e
ocuparam aquele terreno. Expressou gratidão por Awa ter reunido a comunidade. Um certo dia, disse, estava
em um ponto de ônibus com sua esposa, Silvia, e viu o indígena passar. Imediatamente, comentou: “Ele é
indígena também”.
Em pouco tempo, Awa entrou em contato com Silvia, explicou o projeto e perguntou se o casal tinha
interesse de se juntar à luta. A resposta foi rápida. Passaram a integrar o grupo.
Antonio explica que, desde a sua mudança para a área urbana há quase dezesseis anos, trabalha e
não esconde das pessoas suas origens.“Sempre falei que sou indígena, mas com muito receio”. Ele, loiro dos
olhos claros, afirma já ter escutado inúmeras vezes que era um “falso índio”. No final de 2016, pediu
demissão de seu antigo trabalho e explicou ao chefe: “Como eu sempre disse, sou indígena e encontrei,
enfim, um lugar para trabalhar a minha cultura”, disse, referindo-se ao início da luta pela aldeia.
A reação do chefe foi inesperada. Dizia que “não levava a sério a história de Antonio ser indígena” e,
mesmo depois de um tempo, não acreditava que ele havia deixado o seu emprego para morar numa aldeia.
“Ainda que aqui não seja o meu lugar, o habitat do meu povo lá no Nordeste, esse contato da gente com a
natureza é muito importante”.
Para além do contato com a natureza, ele acrescenta que a presença dos indígenas é fundamental ali
não somente para a preservação de suas culturas e tradições, mas também dos resquícios de Mata Atlântica.
“Nossa missão também é fazer com que as pessoas entendam e levem esses pensamentos de preservação
adiante”, completa.
● Awa Kuaray Wera

Antonio Carlos, entusiasmado, anuncia que há na aldeia um indígena de importância inexplicável para
a comunidade. Sobre os seus feitos, afirma que não haveria dinheiro que os pudesse pagar. “Foi ele que,
desde 2002, saiu batendo na porta de cada índio de Guarulhos pedindo pra gente se fortalecer e lutar por
uma terra”, conta. O nome do indígena é Awa — ou Giba, para os íntimos.
Era 1995 quando ele pisou pela primeira vez em Guarulhos. Três vezes por semana, deslocava-se de
sua aldeia — a Bananal, em Peruíbe — , onde então morava, para fazer hemodiálise em uma clínica do
município. “Eu tinha hipertensão renal e não sabia”, conta. À época, um de seus rins tinha parado de
funcionar.
Ainda que sua aldeia apresentasse uma equipe de agentes de saúde da Sesai, entre risos, quase em
tom de orgulho, revela: “Nunca gostei de médico. Por isso, muitas vezes deixei de me cuidar”. Quem o levava
à cidade para o tratamento, que se estendeu por doze anos, era um motorista da área de assistência à saúde
indígena da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), órgão vinculado ao Ministério da Saúde.
Foi grande o espanto do indígena quando, em Guarulhos, conheceu Nivaldo da Mata, um índio que
estava há quase cinco anos em cima de uma cama devido às sequelas de um acidente vascular cerebral. Por
pertencer a uma etnia originária do Nordeste, ele tinha de recorrer ao atendimento público paulista comum e,
há tempos, não conseguia uma vaga. A situação seria o estopim para que Awa decidisse convocar, de porta
em porta, a comunidade indígena do município. “Percebi que tinha tudo o que precisava na minha aldeia,
enquanto ainda tinham índios sem atendimento no meio urbano”, lembra.
O indígena olha para a terra que se transformou em Aldeia Filhos Desta Terra e suspira. Faz memória
da inauguração do primeiro setor indígena em uma UBS de Guarulhos, em 2013; da segunda, instalada no
bairro do Cabuçu neste ano; de quando foi para a Brasília, à época de uma Conferência Municipal de Saúde.
Diz que, se não fosse pela organização dos povos indígenas do município, pouco ou nada teria sido feito ali.
Nos últimos meses, ele tem se esforçado para incentivar os moradores da aldeia a permanecerem
unidos, apesar das diferenças étnicas que, há pouco, causaram pequenas divisões e afetaram o
funcionamento do espaço. “Ainda há muito a ser conquistado e só iremos prosseguir se estivermos juntos”,
diz.

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