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Thais Seganfredo
@thaisseganfredo
Coberturas Comunidades tradicionais Entrevista
– Peço licença para entrar no território de vocês. Eu venho questionar esse olhar
quadrado que o ocidente desenvolveu e que exclui olhares circulares.
Foi assim que Daniel Munduruku deu início à sua fala histórica na 63ª Feira do
Livro de Porto Alegre, trazendo a oralidade e a ancestralidade de seu povo em
uma hora de conversa. Mediada pela professor de história José Rivair de
Macedo, a palestra teve também a presença de Angélica Kaingang, liderança
jovem de sua comunidade e graduada em Serviço Social pela Ufrgs. Um
representante da etnia Guarani também foi convidado, mas não conseguiu
comparecer.
– Quando leem minha biografia, dizem que não sou mais índio, que já sou
“civilizado”. Eu não sou índio e não existem índios no Brasil. Essa palavra não
diz o que eu sou, diz o que as pessoas acham que eu sou. Essa palavra não revela
minha identidade, revela a imagem que as pessoas têm e que muitas vezes é
negativa.
– Quando a gente chama alguém de índio, não ofende só uma pessoa, ofende
culturas que existem há milhares de anos. Esse olhar linear empobrece nossa
experiência de humanidade. A gente defende um sistema de vida que tem dado
certo há 3 mil anos – afirmou.
Daniel, José e Angélica no evento realizado pela Bienal do mercosul na Feira (Foto: Otávio
Fortes/ CRL 2017)
– Nós, indígenas, não temos esse conceito de propriedade privada, somos parte
da natureza e não nos colocamos acima dos outros seres vivos. Quando o
indígena luta pela terra, está lutando por um conjunto de vidas. Talvez essa
mensagem de pertencimento seja a grande contribuição dos indígenas.
– A gente entende que nossos territórios indígenas estão com a gente também
quando estamos na cidade, na universidade. nossos conhecimentos ancestrais e
tradicionais são tão valorosos quanto os não indígenas. Já ouvi muitas vezes que
“lugar de índio” é no mato. Mas que mato está sobrando pra nós? – questionou.
(Foto: Otávio Fortes/CRL 2017)
***
Daniel Munduruku passou dois dias em Porto Alegre. Na tarde anterior, ele
conversou com alunos do ensino básico e fundamental de escolas da região
metropolitana. Foi um encontro emocionante, já que os alunos, incluindo uma
escola Mbyá-Guarani de Viamão, haviam lido seus livros e o receberam com uma
ensurdecedora salva de palmas. Aproveitei para conversar rapidamente com o
escritor um pouco antes de ele subir ao palco. Daniel respondeu às minhas
perguntas sobre o crescente protagonismo dos povos indígenas na arte, políticas
públicas e ancestralidade. Confira abaixo:
Daniel – Eu acho que sim. Não é uma coisa muito visível ainda, porque a gente
rema contra maré. A gente procura falar para as pessoas o que a gente pensa
sobre a gente mesmo, mas as pessoas normalmente ouvem as outras pessoas
falando da gente. Num universo de 500 anos da história do Brasil, um universo
em que houve um certo massacre de ideias, o povo brasileiro se acostumou a
pensar de uma determinada forma que não consegue se descolar desse
pensamento. Então, o que normalmente acontece, ao meu ver, é que embora a
gente faça o esforço, use a literatura e também a internet, as redes sociais e tudo
mais, ainda assim somos relativamente poucos. Essa voz é sufocada pelos meios
de comunicação de massa, por uma educação colonizadora que a gente ainda
tem. De qualquer maneira, existem alguns buracos nesses discursos de
colonização, que a gente consegue atravessar. Eu acho que esses furos tem feito
bastante diferença.
Daniel – Vivemos num país onde o Estado é muito presente. Só que os nossos
estadistas, se nós tivéssemos algum, obviamente, nossos políticos são formados
com base nesse pensamento economicista que nós temos, esse pensamento de
desenvolvimento, de processo, de agronegócio, de exploração do petróleo, dos
minérios e tudo mais. Então essas pessoas não estão preocupadas em
desenvolver políticas públicas que sejam dignas das populações indígenas ou
menos favorecidas de uma maneira geral. A esperança era de que nós tivéssemos
um Estado um pouco mais consciente da identidade brasileira. Se nós
tivéssemos uma sociedade mais consciente da sua identidade, nós certamente
teríamos espaço para uma educação digna, uma saúde digna, a demarcação dos
territórios.
Daniel – Eu acho que tem que cear. Se a universidade quer ser universidade,
ela não pode acreditar no cânone como uma coisa estabelecida… é claro, o José
de Alencar fez parte de uma escola literária. Isso não se pode negar, ele está lá,
mas foi importante na época dele. a universidade não pode achar que o que se
produz hoje com relação à questão indígena tem que estar baseado na
indianidade que o José de Alencar propagava, que é uma indianidade liada ao
século XVI, a uma visão romântica. Assim como não se pode achar que Mário de
Andrade, por ter andado em sua terra lá, Roraima [se referindo ao meu estado
natal, que citei quando me apresentei ao Daniel], por ter pego histórias de
Macunaíma lá de Roraima, ele determinou o que é ser brasileiro. Não. Tem toda
uma caminhada que está sendo feita pelos próprios indígenas e isso precisa.
A universidade precisa olhar pra isso e isso está acontecendo. Mesmo aqui no
Rio grande do Sul existe um grupo de pesquisa que está fazendo um estudo
sobre literatura indígena e tem mostrado bons resultados. O cânone estabelece
uma frieza, coloca tudo em um quadrado. E a literatura indígena precisa ser
pensada como algo mais dinâmico, é uma literatura muito específica,
comprometida, é uma literatura que alimenta um outro imaginário que não
aquele que a gente tem.
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