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PERGUNTA: Além disso tudo, quais foram os principais desafios em prosseguir com o
trabalho com as mulheres?
CLEONE: Estávamos preocupadas, pensávamos não ter pernas só com as meninas abolicionistas.
Então, comecei a me aproximar do pessoal da Secretaria da Mulher, até porque a secretária
adjunta da secretaria é uma amiga minha. Fui propor para ela uma forma de fazermos uma
discussão intersecretarial sobre a situação da prostituição na cidade de São Paulo. E conseguimos
reunir quase todas as secretarias para discutir a situação dessas mulheres. Chegamos apontando
as dificuldades, veja só, estávamos sob um governo de esquerda (PT) e não fazia sentido a
esquerda ignorar os trabalhos que precisavam ser feitos. Então eles abriram a secretaria, para que
pudéssemos fazer algumas discussões lá. A única secretaria que nos deu muito trabalho, por
incrível que pareça, foi a de assistência social, foi muito difícil de conseguirmos que nos
atendessem, mas com as outras secretarias fizemos uma boa discussão. Durante esse tempo, nós
já estávamos guardando a bicicleta no porão do Parque da Luz e assumindo o parque
discretamente, na verdade, já estávamos ocupando o porão, devagarinho, tanto que até hoje eu
penso que o administrador de lá nos via e não falava nada, porque estávamos fazendo uma
diferença muito grande com as mulheres: a violência ali diminuiu, elas estavam mais tranquilas,
algumas, umas quatro mulheres, já tinham ido procurar o ensino formal, porque a irmã Regina
ensinou as primeiras letras pra elas, então elas procuraram as escolas. Uma delas, a Juliana*, ela
dizia para irmã Regina que não sabia ler, mas ela sabia, bem pouco, mas ela sabia, ela era semi
alfabetizada, então a irmã Regina ensinou, depois a gente conseguiu uma escola pra Juliana, e
hoje a Juliana é assistente social. Mas percebemos que quando elas caminham um pouquinho e
podem sair dali, não querem mais ir lá. A Juliana ainda ficou dois anos com a gente, depois que
ela se formou, mas na primeira oportunidade que teve ela saiu. Até porque, se elas continuam lá,
os horrorosos dos ex-clientes veem e não respeitam, então elas preferem sair. Até por um pouco
de insegurança e medo de voltar e estar lá de novo. Tiveram outras que fizeram curso de cuidadora
e algumas estão trabalhando, outras não estão, mas ainda vão lá porque nosso compromisso com
elas não acaba quando elas arrumaram um trabalho, nosso compromisso com elas é, quando elas
precisarem de nós, estarmos lá.
Então, esse foi o nosso começo.
PERGUNTA: Cléo, você citou a questão da violência ali, poderia falar um pouco mais sobre
isso?
CLEONE: Na Luz, na Sé e no Parque Dom Pedro, a violência é grande, mas a mídia não mostra,
acontece feminicídio, e a mídia não mostra porque tem aquele desdém com as “prostitutas”, né?
A mídia não acha que precisa mostrar. Nós enfrentamos situações muito difíceis, por exemplo, os
donos de hotéis priorizam quem paga, e quem é que paga? O cliente. Logo, é ele que está sempre
certo, principalmente depois que fecha a porta e ficam só a mulher e ele. Às vezes, é feita uma
negociação na rua, mas depois que fecha a porta o homem cisma que quer outras coisas e é aí que
a violência acontece e a culpa cai sempre na vítima, como se ela merecesse ser violentada.
Teve uma época na Luz que muitas mulheres morreram, fizemos então um acordo de que
as próprias mulheres cronometrariam o tempo das outras no quarto, porque elas estão vulneráveis
demais, mas, infelizmente, nem sempre dava tempo, morreram 6 mulheres de formas terríveis. O
dono do hotel não queria nem saber, só queria tirar o corpo logo. Fizemos um acordo com a guarda
metropolitana, a Guarda Maria da Penha funcionava, tinha um comandante simpático ao nosso
trabalho e isso fez com que a violência diminuísse. Segurança é muito difícil e, agora, nesses
tempos está pior, porque antes ainda tínhamos o apoio da guarda metropolitana e conseguíamos
buscar uma segurança para as mulheres, mas quando João Dória assumiu a prefeitura, a primeira
coisa que fizeram foi tirar esse comandante de lá, e os outros cortaram relação com nosso trabalho.
Então, segurança só existe para os homens, se ele grita e sai correndo o dono do hotel vai lá
atender, querendo saber o que aconteceu.
PERGUNTA: E nesse período de pandemia, a ONG precisa de alguma coisa? Como tem sido
para ela se manter?
CLEONE: Temos conseguido dar ajuda de custo nesses tempos de pandemia, estamos
conseguindo manter, conseguindo que essas mulheres tenham uma pequena assistência da nossa
parte. Conseguimos manter as crianças (filhos e netos que apareceram nesse tempo de pandemia).
No começo, conseguimos manter um bom número de mulheres quietas, dentro de casa, tanto que
só uma delas foi contaminada e continuamos na torcida para que continuem assim. Foi uma
campanha vitoriosa e continua sendo. Conseguimos até alguém para pagar o aluguel de uma casa
para a gente.
Hoje, a ONG é conhecida praticamente no Brasil inteiro, até internacionalmente, na
verdade. No Canadá, por exemplo, as meninas fazem campanha lá. E a pandemia nos fez descobrir
qualidades nessas mulheres, nós até sabíamos que existiam, mas ainda não tínhamos descoberto.
Achávamos que muitas iriam morrer e, felizmente, isso não aconteceu. Tinham dias que eu ficava
preocupada, no começo foi muito pesado, até conseguirmos doações de cestas, mas era difícil.
Temos um espaço no bairro da Luz, que recebemos doações e entregamos para as
mulheres, precisamos principalmente de produtor de higiene.
*o nome foi trocado, para preservar a imagem da mulher citada.
Núcleo USP do Movimento de Mulheres Olga Benario,
São Paulo.