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MULHERES DA LUZ: RESISTÊNCIA E LUTA PELA VIDA DAS MULHERES

No dia 22 de agosto, o núcleo da USP do Movimento de Mulheres Olga Benario fez um


debate online sobre abolição da prostituição, contamos com a presença de Cleone Santos,
organizadora da ONG Mulheres da Luz, que faz um trabalho de apoio para mulheres em situação
de prostituição. Convidamos a Cleone para dar uma entrevista para o Jornal A Verdade e a
conversa foi em torno da história pessoal da Cléo, o início da ONG, seus principais desafios nos
tempos de pandemia, segurança e alternativas para uma outra condição de vida para nossas
mulheres.
PERGUNTA: Fale um pouco de você e sobre como começou o trabalho da ONG:
CLEONE: Eu sou Cleone Santos, moro em Diadema, mas trabalho junto com as Mulheres da
Luz, no bairro da Luz, na capital de São Paulo. Estive alguns anos vivendo em situação de
prostituição e saí porque tive a ajuda de pessoas que apoiaram a minha saída. A partir daí, eu parei
de prostituir, mas comecei a pensar numa forma de continuar junto com as mulheres dali porque,
antes de eu estar na prostituição, eu já construía uma militância aqui em Diadema, mesmo durante
o período que prostituía, eu era militante do movimento de desempregados e desempregadas e do
movimento de moradia daqui. Inclusive, hoje eu moro num espaço que é uma ocupação, que foi
feita nos anos 80, foi aí que a começamos nossa luta. Esse bairro era só barraco, aí fomos lutando,
lutando e conseguimos.
Eu trabalhava numa metalúrgica e lá também exerci uma militância: comecei a me
envolver nas lutas grevistas lá dentro da empresa e aí me mandaram embora. E, quando nos
mandavam embora de uma empresa, se fossemos envolvidas em movimento grevista, não
achávamos mais emprego. Na hora do contrato, íamos lá, fazíamos a ficha, mas se eles
encontrassem alguma coisa sobre greve, eles mandavam embora. Então, eu não consegui mais
emprego, comecei a fazer faxina, ainda passei por um casamento, depois me separei porque não
aceitei várias coisas nele, mas acabei reatando porque, com 20 anos, eu já tinha meus três filhos.
Eu fazia faxina no Bom Retiro (centro de SP), entrava no Parque da Luz para ler, porque gosto
muito de ler, daí a coisa aconteceu - até hoje eu não sei quando e como tudo começou. Eu sei que
eu fiquei na prostituição e tendo uma vida dupla: aqui, eu era a Cleone militante, que dava
catecismo; lá, eu ia pra Luz e prostituía. Foram 18 anos nessa vida dupla, então veio o momento
que eu saí e aí comecei a pensar. Primeiro, eu ia lá e ficava pensando sozinha, mas depois a irmã
Regina apareceu.
Eu comecei a falar “irmã, a gente precisa fazer alguma coisa. Porque olha essas mulheres,
ficam aqui brigando, uma batendo na outra, essa competição insana, essa coisa toda”, ela
concordou. E ela me fez uma pergunta que, naquele momento, eu não podia responder - “quantas
mulheres aqui sabem ler?”, eu acreditava que tinham bem poucas analfabetas lá e a irmã propôs
que levássemos livros para que elas lessem e preenchessem o tempo ocioso. E veio a triste
surpresa: não era nem uma, nem dez, nem vinte, eram muitas mulheres que não sabiam ler, ou
outras que sabiam muito pouco. A irmã Regina então começou a sentar com essas mulheres para
ensiná-las a assinar o nome, pelo menos.

PERGUNTA: E como foi se desenrolando esse trabalho?


CLEONE: Insistimos bastante nesta história. Encontramos o seu Robson, que já me conhecia, ele
tinha um projeto chamado Bicicloteca, que levava livros para os moradores de rua. Pedimos uma
bicicleta emprestada para ele, mas não avaliamos como a íamos carregar aquela bicicleta para lá
e para cá lá, do Largo São Francisco até a Luz. Seu Robson deu a bicicleta todo feliz. E aí
começamos, a irmã Regina e eu, mas com um problema: como levar essa bicicleta? Porque eu
não pedalo, irmã Regina não pedala, e no centro né? (risos). Conversamos com o seu Robson, ele
toda semana arrumava um homem que levava a bicicleta. Nesse momento apareceram as meninas
do coletivo abolicionista, que foi um bom apoio, um apoio tão bom que eu acho que, se elas não
tivessem aparecido naquele momento, eu não sei se a irmã Regina e eu teríamos dado conta.
Começamos a levar livro que seriam para as mulheres, mas uns homens começaram a
usar do nosso trabalho – eles pediam livros para as mulheres. Veja só, como as mulheres não
sabiam ler, e elas não assumiam isso, falavam que queriam pegar um livro, mas estavam com os
óculos ruins, ou que estavam sem óculos, tinham mil e uma histórias. O que fez com que
descobríssemos o perfil dos homens que frequentavam ali, eram homens, na sua grande maioria,
que moravam em albergues, muito pobres, desempregados, alcoólatras. E havia outra
particularidade neles: vimos que aqueles homens tinham passado por uma certa educação, eles
tinham uma formação, que eles não pediam qualquer livro. Eles pediam livros que, por exemplo
as pessoas, por exemplo o seu João, meu vizinho, não pediria esses tipos de livros para ler. Eles
queriam Foucault, alguns autores específicos, livros de psicologia, de sociologia, eram essas
coisas que eles pediam. Eles vinham e até discutiam sobre! E, até aquele momento, achávamos
que eram pessoas analfabetas, homens analfabetos ali.
E aí pensamos “poxa vida, mas e as mulheres, como ficam?”. Mas, depois de um tempo,
elas viram a nossa disposição e começaram a nos dar propostas de atividades: primeiro, que
chamássemos alguém para falar da saúde, então vimos um grupo para ir lá e falar. Depois,
propuseram uma tarde de lazer, e assim foi indo. Nesse meio tempo, o administrador do Parque
da Luz já estava um tanto que “ferrado”, porque ele nos ofereceu o espaço uma vez por mês, mas
nós já estávamos precisando mais do espaço da casa de chá (dentro do parque), para fazer o
trabalho com as mulheres, assim, viraram 15 dias, fazíamos uma roda de conversa de formação
e, no final do mês, fazíamos com as mulheres uma tarde dançante.

PERGUNTA: Além disso tudo, quais foram os principais desafios em prosseguir com o
trabalho com as mulheres?
CLEONE: Estávamos preocupadas, pensávamos não ter pernas só com as meninas abolicionistas.
Então, comecei a me aproximar do pessoal da Secretaria da Mulher, até porque a secretária
adjunta da secretaria é uma amiga minha. Fui propor para ela uma forma de fazermos uma
discussão intersecretarial sobre a situação da prostituição na cidade de São Paulo. E conseguimos
reunir quase todas as secretarias para discutir a situação dessas mulheres. Chegamos apontando
as dificuldades, veja só, estávamos sob um governo de esquerda (PT) e não fazia sentido a
esquerda ignorar os trabalhos que precisavam ser feitos. Então eles abriram a secretaria, para que
pudéssemos fazer algumas discussões lá. A única secretaria que nos deu muito trabalho, por
incrível que pareça, foi a de assistência social, foi muito difícil de conseguirmos que nos
atendessem, mas com as outras secretarias fizemos uma boa discussão. Durante esse tempo, nós
já estávamos guardando a bicicleta no porão do Parque da Luz e assumindo o parque
discretamente, na verdade, já estávamos ocupando o porão, devagarinho, tanto que até hoje eu
penso que o administrador de lá nos via e não falava nada, porque estávamos fazendo uma
diferença muito grande com as mulheres: a violência ali diminuiu, elas estavam mais tranquilas,
algumas, umas quatro mulheres, já tinham ido procurar o ensino formal, porque a irmã Regina
ensinou as primeiras letras pra elas, então elas procuraram as escolas. Uma delas, a Juliana*, ela
dizia para irmã Regina que não sabia ler, mas ela sabia, bem pouco, mas ela sabia, ela era semi
alfabetizada, então a irmã Regina ensinou, depois a gente conseguiu uma escola pra Juliana, e
hoje a Juliana é assistente social. Mas percebemos que quando elas caminham um pouquinho e
podem sair dali, não querem mais ir lá. A Juliana ainda ficou dois anos com a gente, depois que
ela se formou, mas na primeira oportunidade que teve ela saiu. Até porque, se elas continuam lá,
os horrorosos dos ex-clientes veem e não respeitam, então elas preferem sair. Até por um pouco
de insegurança e medo de voltar e estar lá de novo. Tiveram outras que fizeram curso de cuidadora
e algumas estão trabalhando, outras não estão, mas ainda vão lá porque nosso compromisso com
elas não acaba quando elas arrumaram um trabalho, nosso compromisso com elas é, quando elas
precisarem de nós, estarmos lá.
Então, esse foi o nosso começo.

PERGUNTA: Cléo, você citou a questão da violência ali, poderia falar um pouco mais sobre
isso?
CLEONE: Na Luz, na Sé e no Parque Dom Pedro, a violência é grande, mas a mídia não mostra,
acontece feminicídio, e a mídia não mostra porque tem aquele desdém com as “prostitutas”, né?
A mídia não acha que precisa mostrar. Nós enfrentamos situações muito difíceis, por exemplo, os
donos de hotéis priorizam quem paga, e quem é que paga? O cliente. Logo, é ele que está sempre
certo, principalmente depois que fecha a porta e ficam só a mulher e ele. Às vezes, é feita uma
negociação na rua, mas depois que fecha a porta o homem cisma que quer outras coisas e é aí que
a violência acontece e a culpa cai sempre na vítima, como se ela merecesse ser violentada.
Teve uma época na Luz que muitas mulheres morreram, fizemos então um acordo de que
as próprias mulheres cronometrariam o tempo das outras no quarto, porque elas estão vulneráveis
demais, mas, infelizmente, nem sempre dava tempo, morreram 6 mulheres de formas terríveis. O
dono do hotel não queria nem saber, só queria tirar o corpo logo. Fizemos um acordo com a guarda
metropolitana, a Guarda Maria da Penha funcionava, tinha um comandante simpático ao nosso
trabalho e isso fez com que a violência diminuísse. Segurança é muito difícil e, agora, nesses
tempos está pior, porque antes ainda tínhamos o apoio da guarda metropolitana e conseguíamos
buscar uma segurança para as mulheres, mas quando João Dória assumiu a prefeitura, a primeira
coisa que fizeram foi tirar esse comandante de lá, e os outros cortaram relação com nosso trabalho.
Então, segurança só existe para os homens, se ele grita e sai correndo o dono do hotel vai lá
atender, querendo saber o que aconteceu.

PERGUNTA: E qual seria a melhor maneira de proteger essas mulheres?


CLEONE: Na segurança, eu sinceramente não sei, porque vivemos num país tão machista, tão
hipócrita e que tem um falso moralismo tão grande, não sei o que fazer. A autoestigmatização
pesa.
Acho que solução são algumas políticas públicas já existentes, não acho que precisa de
mais nada novo, elas só precisam ser respeitadas e colocadas em prática. As mulheres lá acham
que não têm direito a nada, elas só veem as pessoas apontarem o dedo na cara delas, precisamos
mostrar que elas estão ali porque não tiveram oportunidades. Nós tentamos mostrar para elas que
existem direitos e deveres e garantir isso a elas.

PERGUNTA: Qual seria o impacto da regulamentação da prostituição na vida dessas


mulheres? Seria positivo ou não? E o que você acha da lei Gabriela Leite?
CLEONE: Bem, quando se fala nesse projeto de lei, eu sempre repito as mesas coisas: é uma lei
que, ao invés de proporcionar às mulheres liberdade, resgatar a autoconfiança e a auto estima
delas, vai pelo caminho contrário, hoje as mulheres já são exploradas, desse jeito elas serão
exploradas com o aval do governo e ainda terão que pagar impostos por isso. Tem mais, o cafetão
terá como explorá-las de uma forma parecida com trabalhadoras de setores terceirizados, que são
contratadas para trabalhar em um lugar específico, mas são encaminhadas para outro. Os projetos
de regulamentação não trazem nada que beneficie as mulheres, por exemplo, aquela história do
exame que as elas precisam fazer para mostrar que estão saudáveis é importante, mas e os
homens? Eles não levam atestado de que estão bem, levam doença para elas e ainda podem acusá-
las de terem transmitido.
Além disso, se regulamentada, o que mais pode acontecer com a mulher em situação de
prostituição é o seguinte: um homem vai ser o patrão, ou uma mulher, afinal tem muita cafetina
também, e esse patrão vai ter que garantir seu poder, então ele vai dar um contrato para ela assinar,
mas quando a mulher for prostituída num lugar onde é muito conhecida, ela vai ser mandada para
onde eles bem quiserem. O tráfico sexual pode ficar mais intenso do que já é. E penso que, além
desses problemas, tem a questão dos 50% que pode virar 70% porque, além dela repassar 50% do
que ganha para quem está gerenciando, caso ela queira comer, ela estará dentro do bordel e o
dono do lugar, que acaba por controlar tudo que entra lá pra vender, vai falar: “ou alguém cozinha
aqui dentro e eu cobro um valor x de vocês”, que vai ser um valor alto, “ou eu vou lá no bar e
busco” – daí, se ele pagar $30, ele vai cobrar $45/$50 dessa mulher. Se as mulheres falarem que
precisam de lingeries, porque eles também dizem que elas precisam, aparece algum vendedor lá,
que na verdade é um aliado do dono da casa, vende as peças por um preço altíssimo. Então, as
mulheres acabam deixando todo o dinheiro delas lá dentro. E aí, ao invés das mulheres verem
alguma alternativa para sair dali, vão afundando cada vez mais.
Sem contar que nos bordeis onde as mulheres moram não existe controle - na hora que
aparece cliente, elas precisam atender, não tem um respeito, é um trabalho escravo. E elas ficam
expostas nos corredores a mercê dos homens. Então, será que isso é justo com um ser humano?
É escravidão, é desumanização. Há ainda uma separação por categorias dentro de alguns bordeis:
as brancas que eles consideram bonitas ficam nos primeiros degraus, as que classificam como
“médias” ficam no meio, as negras ficam ainda mais no meio, as mais velhas e obesas ficam no
final. Fomos em um bordel onde, uma vez por mês, eles escolhiam as negras mais bonitas,
desciam elas para os degraus da frente e faziam alguma promoção, isso é desumano demais.
Imagina só, faça frio ou faça sol, essas mulheres ficam na escada e de lingerie, expostas, os
homens não têm dó: passam, apalpam, falam besteiras, é horrível de ver.
Eu ficava mal quando ia neste bordel, ver as meninas tendo que sorrir o tempo todo diante
daquela situação, os homens podendo fazer o que bem queriam e nós que íamos falar sobre saúde
e politicas publicas tendo que falar rápido, com o dono da casa olhando. Se falássemos alguma
coisa que ele considerasse como um problema que pudesse atrapalhar o negócio, ele pedia para
que nos retirássemos. Quando falamos de saúde até que ele não reclamava, mas quando falávamos
de políticas públicas a coisa mudava. Tínhamos que tratar as mulheres como se fossem produtos,
era horrível. Imagina regulamentando? Aí que não conseguiremos entrar mesmo.
Então, se regulamentar, o cafetão vai “deitar e rolar”. Até porque, na verdade, já é
regulamentada – a prostituição está dentro da ocupação trabalhista, basta as mulheres criarem
coragem para chegar numa loja, por exemplo, e falarem “eu sou trabalhadora sexual e quero
comprar isso no crediário”, até declaração o bordel dá, mas elas não têm coragem, e isso é uma
sacanagem, pois colocam na ocupação sem a população que é ativa saber, além de que não há
nada contra quem gerencia e consome. E quem apoia isso são pessoas que ou têm o pé na
cafetinagem, ou são mal intencionadas. Quem acha que regulamentação é a solução não conhece
a verdadeira realidade, eu já vi pessoas mudarem de posição só de ver as Mulheres da Luz.

PERGUNTA: E nesse período de pandemia, a ONG precisa de alguma coisa? Como tem sido
para ela se manter?
CLEONE: Temos conseguido dar ajuda de custo nesses tempos de pandemia, estamos
conseguindo manter, conseguindo que essas mulheres tenham uma pequena assistência da nossa
parte. Conseguimos manter as crianças (filhos e netos que apareceram nesse tempo de pandemia).
No começo, conseguimos manter um bom número de mulheres quietas, dentro de casa, tanto que
só uma delas foi contaminada e continuamos na torcida para que continuem assim. Foi uma
campanha vitoriosa e continua sendo. Conseguimos até alguém para pagar o aluguel de uma casa
para a gente.
Hoje, a ONG é conhecida praticamente no Brasil inteiro, até internacionalmente, na
verdade. No Canadá, por exemplo, as meninas fazem campanha lá. E a pandemia nos fez descobrir
qualidades nessas mulheres, nós até sabíamos que existiam, mas ainda não tínhamos descoberto.
Achávamos que muitas iriam morrer e, felizmente, isso não aconteceu. Tinham dias que eu ficava
preocupada, no começo foi muito pesado, até conseguirmos doações de cestas, mas era difícil.
Temos um espaço no bairro da Luz, que recebemos doações e entregamos para as
mulheres, precisamos principalmente de produtor de higiene.
*o nome foi trocado, para preservar a imagem da mulher citada.
Núcleo USP do Movimento de Mulheres Olga Benario,
São Paulo.

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