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ANTOLOGIA ONÍRICA

Sumário
Prefácio à obra

01 Yume

02 Kubo

03 Dois anos e meio

04 Fre-ne-si

05 A Grande Invasão

06 Predadores e Cavaleiros

07 Kronós e Kairós

08 Game Tokyo II

09 Você Vai se Arrepender

10 Protessividade

11 Eus

12 A 100 km/h

13 Santos 2055

14 No Fundo do Poço

15 Pecado
01 Yume
Hoje temos aula de Digital Art Design. É uma tentativa furada para modernizar nossa
escola. Neste ano, piloto da implantação desta disciplina, há apenas duas turmas da
segunda série recebendo aula. Temos um laboratório de informática equipado com
softwares e mesas digitalizadoras, além de dois ônibus equipados para aula de campo,
que é o caso de hoje. Queria ficar em casa, não preciso sair a campo pra atestar o fiasco
que é minha vida, a pior. Dizem que isso é da adolescência, mas meu tio tirou sua
própria vida, eu estava lá quando isso aconteceu, ele escreveu algo assim, dessas coisas
de “minha vida é a pior”. Mesmo se quisesse tentar filar a aula, em casa não poderia
ficar, minha mãe não permitiria; na rua não deveria ficar, nem em algum outro campo
da escola, pois se recebesse mais um comunicado aos pais eu não sei o que aconteceria
comigo.

O maior problema da escola é... não sei o que é. Nada entra na minha cabeça; não
consigo dormir bem há séculos e por isso acabo dormindo em quase toda aula;
relacionamentos interpessoais são complicados, só tenho dois amigos na sala e um fora;
e tem os valentões que adoram fazer bullying e sempre se safam, e isso ainda se chama
uma escola militar.

Já na escola, a manhã foi avançando. Richard não havia ido naquela manhã e Bárbara
estava letárgica a manhã inteira, até no intervalo. Sandro, da primeira C não havia saído
para o intervalo, a turma estava impedida por desrespeito à professora de história, algo
que aconteceu com pornografia no retroprojetor. Estive só no intervalo e não consegui
dormir, me esquivando de problemáticos. Eu achei que com o ensino médio as pessoas
fossem amadurecer, que iriam discutir de sexo, iriam contar vantagens por serem ricas
ou atléticas, esquecer quem não se enquadra em nenhuma categoria... mas elas não nos
esqueceram, e nos agridem. Semana passada acharam um garoto sem roupas preso no
vestiário feminino em choque. O que fizeram com ele, até hoje não descobrimos: foi
caso de polícia... bem, de investigação policial.
Os últimos horários chegaram, nós entramos nos ônibus e escolhemos as mesas para
ocuparmos até o final da aula. Assim que acabasse, voltaríamos para a escola, onde
haveria uma última chamada antes de nos liberarem. Sentei perto da Bárbara em uma
mesa – cada mesa há quatros computadores –, e outras duas garotas novatas que não sei
o nome, e nem precisei perguntar, pois elas não paravam na nossa mesa: pertenciam a
uma panelinha. Bárbara se queixava de sono o percurso inteiro, enquanto o professor
tentava reexplicar a atividade em meio à confusão de adolescentes. Iríamos para uma
comunidade composta por fazenda no alto da cidade para fotografarmos o cenário,
passarmos para o photoshop e fazermos uma ilustração no mínimo, a pintura seria para
a próxima aula no laboratório. Paramos na entrada dessa comunidade. Havia uma vila e
uma fazenda, e após elas haviam mais terras e fazendas. Nós paramos próximo à porta
da vila e saímos do carro para fotografar, bem, Bárbara saiu para tirar algumas fotos,
pois enquanto ela dormia nas aulas eu escrevia por nós dois, agora ela faria o favor de se
mexer por mim enquanto eu ficava no ônibus aguardando todos voltarem. 

Me debrucei sobre a mesa e em menos de um minuto eu estava cochilando. Nesse


instante vi uma sombra se aproximando, tentei levantar e não conseguia. Novamente eu
estava tendo uma paralisia do sono. A sombra tocou no meu ombro e eu consegui me
mover, o casaco era do professor... Eu já levantei tentando falar alguma desculpa, mas
parei no momento em que percebi que não conseguia falar, neste momento olhei para a
cara do professor e vi meu tio vomitando sangue falando “eu te vi”. Desesperado sem
poder gritar, só pude jogar meu corpo para trás, que me fez bater a cabeça. Num outro
instante eu estava ali, de cara para a mesa escutando alguém falar comigo “viu o quê
menino?”. Era Bárbara, e eu não conseguia me mover novamente. Então ela me deu um
tapa forte na cabeça que me fez ver pontos luminosos. Levantei o rosto tentando esboçar
uma expressão de demônio mas não conseguia, estava muito letárgico para isso. “O que
você viu?” Perguntava Bárbara novamente. “Ah, você tá tendo aqueles sonhos
novamente...”, concluiu ela. Acenei “sim” com a cabeça, então Bárbara me analisou
com seus olhos e me disse “Mais uns dias e sua olheira vai passar a fazer parte de seu
rosto, você será um vampiro. Andrew você precisa procurar alguém para resolver isso,
algum médico, ou...”, falava ela preocupada com minha situação até o momento que a
interrompi falando que “Um médico!? Um médico não vai ajudar minha condição Barb!
Olhe pra minha cara Barb...”, disse a ela irritado, “Calma, estava tentando ajudar”, me
falou ela defensivamente. “Me desculpe Bárbara, é que... isso não é bom... quase todas
as noites sonho com essas coisas, meu corpo não descansa, minha mente não descansa,
eu sou só cabeça e barriga, isso não é coisa pra um jovem Bárbara... ainda somos
crianças com pelos no corpo, e eu ainda tenho que passar por essas coisas, sonhar essas
coisas, eu não aguento mais isso...” falei para ela de forma desesperada enquanto tudo o
que ela podia fazer naquele momento era me olhar com dó em seus olhos... Não havia
nada que ela podia fazer por mim. Ao perceber isso eu parei, respirei e a questionei por
que estava alí. “Já tirei as fotos. Achei duas paisagens diferentes e trouxe logo. Já enviei
a sua por email caso precise de backup. Você tem cabo? Precisamos passar pro PC”.
Quando Bárbara queria, ela era muito objetiva e efetiva. Aos poucos os alunos entravam
no ônibus e iam descarregar suas imagens. Eu e bárbara já estávamos trabalhando nas
nossas, pelo menos fazendo uma base, o que eu queria era que estivesse quase pronta
para a próxima aula, pois não queria ter que ir no laboratório para ajustar. Além de que
estavam na mesma mesa que nós as novatas, isto me deixava mais nervoso e focado ao
mesmo tempo.

O último aluno indeciso entrou checando suas fotos em seu smartphone, e atrás dele, o
professor, que dá suas últimas orientações. Quando todos estavam acomodados em suas
mesas, com suas mesas digitalizadoras rabiscando, o professor saiu do ônibus para perto
do motorista, e lá ficaram conversando por um tempo. As novatas foram as primeiras a
parar sua atividade, foram pra a mesa de James e seu grupo, o mais popular da sala,
quisera da segunda série do ensino médio. Isso permitiu espaço à Bárbara e a mim, logo
iniciamos uma conversa. Bárb estava tentando me fazer falar mais sobre meus sonhos, o
porquê d’eu estar sempre com sono, d’eu sempre me entrar em uma enrascada com a
coordenação pedagógica e minha família. Sem ter respostas minhas, ela parou seu
trabalho e ficou do meu lado falando sobre si, enquanto eu tentava desenhar a paisagem
que ela escolhera para mim, que por sinal era linda: dava para ver o campo e a cidade se
encontrando, se fosse fim de tarde o sol estaria aparecendo próximo ao horizonte... de
noite deve ser muito lindo.

Bárbara estava empenhada em compartilhar seus pensamentos e vivências para mim, às


vezes o fazia para que eu pudesse confiar nela, para que pudéssemos exercitar a
amizade, mas eu sempre escutava mais que falava. Para ser sincero não era insegurança
nem nada, é só que sempre gostei mais de escutar que falar, e eu gostava de ouvir
Bárbara, Adam, meus outros amigos, minha família – mesmo sendo um porre –, e
outras pessoas, pelo menos as que não queriam me pôr pra baixo... Dessa forma eu
construía algum saber a partir das experiências dos outros... Bem, eu sou preguiçoso
enquanto a criar as minhas próprias, afinal de contas umas coisas bem malucas
acontecem quando eu durmo, e não sei o que é direito.

Enfim, Barb estava falando o porquê dela estar muito cansada nessa manhã. Ela estagia
com psicólogos, advogados, médicos, enfermeiros e assistentes sociais em um órgão
que faz acolhimento às mulheres vítimas de abuso sexual, estupro ou violência
doméstica... até as que são violentadas por namorados... mulheres em situação de risco
e/ou vulnerabilidade social mesmo, quanto a este quesito da violência dos parceiros. Eu
sabia, mas sempre estranhei, pois não é um ambiente para uma pessoa bem jovem como
ela. Barb havia me falado que mal começara o estágio e vários casos alarmantes
ocorrera desde então, e ela, juntamente com a secretária, são as primeiras pessoas que
recebem essas mulheres para acolhimento. Barb faz uma entrevista breve às mulheres e
encaminha para algum profissional. O primeiro caso é sempre assistente social, pois a
maioria dessas mulheres, mesmo fragilizadas, chegam no intuito de orientações
enquanto ao problema que estão passando. Elas sempre são indicadas aos psicólogos ou
à equipe médica depois. Todavia ontem chegara uma mulher que estava ensanguentada,
aparentemente ela tinha sido violentada pelo marido alcoolizado, ela não conseguia falar
direito, ela estava bem ferida e o sangue em seu corpo parecia ser o dela e do seu
marido, pois ela havia matado ele na tentativa de fazê-lo parar de agredi-la, e a situação
não se enquadrava em legítima defesa, não sei o porquê, Barb estava me explicando.

Nessa situação ela deveria ter ido à delegacia, até porque a própria delegacia que cuida
desses casos encaminha para lá, mas ela fora direto para lá, e Barb teve que acalmá-la
junto com a secretária e algumas mulheres que estavam esperando para serem atendidas.
Esta moça estava totalmente desesperada, Barb ficou com aquela imagem em sua
mente, seu corpo coberto de sangue, suas expressões faciais, sua fala desorientada, seu
estado, mas marcas de uma luta que imprimiram roxos, feridas e contusões ao longo do
corpo. Era muito para Barb, e os outros profissionais estavam indisponíveis, muitos
estavam com atestado, alguns em reunião com o prefeito, e um psicólogo e uma
assistente social haviam ido almoçar tarde. A secretária tentava ligar para todos aqueles
que ela podia enquanto Barb tinha que acolher a moça: Barb não dormiu pensando na
situação e no fato dela ser sim uma mulher e ter que lidar com mulheres mais velhas,
teoricamente mais capazes, vítimas de violências...
Não era algo bonito de se imaginar. Era fácil de se colocar no lugar do outro, eu acho
que nunca saberemos ao certo, 100%, a dor do outro, mas podemos imaginar, pois doe
viver, e também sofremos... Passo sofrimento na escola, em casa e com esses sonhos...
Não desejaria nenhum tipo de sofrimento a nenhuma pessoa, exceto a James, ele
poderia quebrar a perna e ficar quinze dias em casa, longe de mim. E com esse
pensamento eu parei, olhei para frente e vi uma parede de alvenaria sem reboco ou
pintura. Eu não estava entendendo direito o que estava acontecendo, eu estava dentro do
ônibus, desenhando, escutando as lamúrias de Barb, tentando refletir sobre dor e
sofrimento e em outro momento eu estava ali. Às vezes ainda escutava a voz de Barb, às
vezes eu via meu computador, às vezes via a parede. Então olhei para meu lado
esquerdo, Barb já não estava lá, no lugar estava a porta de um banheiro, eu não entendia
como sabia que era um banheiro, mas no momento que vi a porta de madeira desgastada
eu senti vontade de urinar, e fui até ela.

Abri a porta e a fechei por trás de mim. Tateei a parede atrás do interruptor e ascendi a
luz. Assim que a luz ascendeu eu pulei para trás de susto e me bati na porta. Era um
banheiro, mas havia no chão ao lado do vaso sanitário uma mulher de meia idade,
cabelo loiro escuro, com o rosto sujo, vestido vermelho desbotado rasgado e sujo, com
os pés descalços pretos de sujo e as unhas enormes, sujas e quebradas. Na parede à
minha direita havia um homem com as costas coladas na parede... na verdade ele estava
suspenso por um gancho, desses de açougue, presos em sua carne, fazendo pingar pelo
chão do banheiro; o homem aparentava ser de meia idade também, ele era grisalho,
corpo mediano, com uma camisa de botões rasgada e suja, uma calça marrom suja e pés
bem parecidos com os da mulher. O banheiro era enorme, mas esse casal parecia ter
tamanhos normais. O vaso sanitário era imenso, quase maior que eu.

Ao olharem para mim ambos abriram sorrisos mostrando seus dentes amarelos, alguns
pretos, tortos e com camadas espessas de sujeira. “Olá”, disse o homem amistosamente.
“Silêncio!”, reprimia a mulher. “Calma querida, ele é o escolhido”, advertia o homem.
“E se não for?” questionava a mulher. “Você sabe que ele é, você está sorrindo, veja”
falou o homem já gargalhando. Ambos gargalharam. Após parar, a mulher me
perguntou “Você precisa usar o banheiro criança? Vá em frente, não vamos espiar”. Eu
apenas acenei “não” com a cabeça. Em resposta o homem disse “Não seja rude, estamos
lhe oferecendo um lugar para você aliviar-se de suas tensões instintivas, vá, não vamos
espiar, você vai espiar”, falou o homem. “Sim, você vai espiar”, disse a mulher
gargalhando junto com o homem.

Subi no vaso, que era da altura de meus ombros, olhei para dentro dele e a água estava
suja... parecia marrom... parecia um chão ou uma parede. Abaixei minhas calças e
quando tentei por meu pênis para fora não havia um. Eu me desesperei, procurei, gritei,
o casal ficou gargalhando e falando coisas sem sentido. De repente eu comecei a me
olhar e eu estava diferente, eu era menor, mais fino, meu corpo estava todo sujo, minha
camisa era um vestido bege amarrotado e cheio de manchas pretas e nojentas. Eu gritei
e minha voz estava muito aguda, eu peguei no meu rosto e estava diferente, o formato
estava diferente, era redondo, tinha cabelos mais longos que o meu, passando um pouco
dos ombros. Então eu ouvi ruídos altos que me assustaram, eram da porta... alguém
estava batendo forte para entrar, eu sentia medo, dor nos músculos, desespero, cheiro de
sangue. O casal se pôs a me mandar entrar na privada para fugir, ficaram repetindo para
entrar, as batidas estavam cada vez mais forte, eu estava tenso, agora chorando de medo
e desolado, não pensei muito, pulei dentro do vaso “Eu dou descarga para você” disse a
mulher gargalhando.

Logo eu estava sendo sugado para baixo por um tubo largo que me continha de forma
bem apertada. A água entrava na minha boca, enchia meus pulmões os fazia arder...
ardia minha garganta, meu nariz, me sufocava, me causava mais desespero, então tentei
mexer meu corpo e acabei levantando de algo... tossindo e cuspindo água, eu estava
sentado em uma banheira cheia de água... estava em um banheiro imundo, marrom,
sujo, quase sem luz, mas suficiente para olhar para os meus braços e ver novamente que
não era meu corpo... não era meu cabelo, minha barriga... não era o meu pé. Não... não
novamente... isso não... não pode estar acontecendo novamente... não... eu tomei
precauções, eu estava um mês sem passar por isso e 72 horas sem dormir, só estando
entre um estado de sono e vigília, eu treinei um ano para isso, eu não poderia estar... eu
não aceitei isso! Eu chorei mais que qualquer criança que conheça, solucei, bati minha
cabeça contra a parede, que logo o sangue turvou minha visão. 

Eu não acreditei que eu estava ali... depois de um ano treinando, um ano me afastando,
um ano mais sofrido que os outros, com todos os meus órgãos com problemas, com meu
pai me batendo todas as vezes que me via por não entender porque eu parecia ser tão
frágil assim a ponto de ter problemas de saúde incompreendidos... depois de um ano
pior do que sua mãe, aquela que te carregou por nove meses e sangrou pra eu ter
nascido, meu tudo, ter olhado para mim com aqueles olhos de desprezo e
desaprovação... depois de tudo o que eu passei... depois de um ano com tantas vezes
indo para lugares como esses, incorporando dores, me viciando em analgésicos, eu
estava mais uma vez sonhando.

Engoli o choro, aceitei que estava em algum lugar no corpo de alguma menininha
apavorada. Me enxuguei com uma toalha suja que estava naquele banheiro, sai dele, e
comecei a andar devagar, sem fazer barulho. Não sei em que momento eu tinha
dormido, mas eu tinha certeza absoluta que estava dormindo, e, como sempre, deveria
resolver o que quer que estivesse sem solução. Não havia tempo para chorar, se eu
falhasse eu estaria pior assim que acordasse. Eu escutava roncos altos vindos da
cozinha, e imaginei que estava ali meu problema a ser resolvido.

Me deparei em uma sala. Tudo estava desgraçadamente bagunçado, revirado. Havia


sangue para todos os lados. Havia corpos desmembrados pelo chão, mastigados. O
cheiro de sangue e de merda no ar impregnava meu nariz. Não sei quem havia sido
morto, mas o cheiro pútrido era o perfume do ambiente. Eu andava entre os pedaços de
corpos e móveis... Havia mãos, pênis, crânios, vestidos e calças por aí. Era noite e algo
no chão da sala estava refletindo a luz cálida da cozinha... era uma lâmina de quatro fios
em espiral... parecia uma presa, e tinha o tamanho do meu antebraço. Eu a peguei e me
preparei para o que haveria de enfrentar.

O ronco cessou, logo escutei um animal relinchando. Parecia javali... ou um porco. Eu


parei de respirar por medo. Havia aparecido na porta da cozinha uma imagem estranha,
andava sobre duas patas, parecia um homem, era meio peludo e alto, seus pés eram
patas, suas mãos tinham três longos dedos, sua genitália estava à mostra, ele era gordo,
tinha pele branca cheia de sangue respingado. Sua barriga era imensa, e ele possuía três
pares de tetas grandes e caídas. No lugar de uma cabeça humana havia uma cabeça de
porco imensa, com presas enormes e um aro em uma de suas orelhas. A criatura me viu
e começou a relinchar mais alto, ela estava vindo em minha direção. Eu tomei atitude e
fugi dela.

Do meio da sala, corri para as escadas que ficavam acima do banheiro de onde saí, o
porco veio em minha direção, obviamente, grunhindo e relinchando. Meu corpo era de
uma menina de menos de aproximadamente dez ano de idade, então não servia muito
fugir, pois a criatura me alcançaria a qualquer momento... mas era esse o instinto...
mesmo com uma arma na mão, eu fugi.

Ao subir os primeiros degraus o porco já me alcançara, pegou meus pés com suas...
patas estranhas, me puxou, eu bati meu queixo no degrau, logo ele me arremessou para
trás. Meu corpo se chocou com a parede, logo senti dor não só na cabeça e costas, mas
dentro de mim, o choque havia me causado danos internos também. Caí de quatro no
chão, parti a pele na região do joelho direito, senti uma dor miserável no cotovelo
direito, então percebi que não havia largado a lâmina, pois caí segurando ela: meu pulso
havia estado na direção do seu cabo, logo, quando caí, o choque refletiu no cotovelo.

Estava com a lâmina na mão, isso me deu coragem pra fazer o que tinha que ser feito.
Eu não sabia onde estava, não sabia quem era aquela menina, só sabia que agora eu
estava cheio de dores e que quando acordasse eu teria que lidar com elas. Isso apenas
me irritou. Dei uma última olhada no chão, iluminado pela luz fraca e indireta da
cozinha, juntamente com a luz de uma lua imensamente cheia. Levantei na mesma hora
em que a criatura, que vinha em minha direção, desferiu um ataque com seu membro
superior direito projetando na diagonal em direção de minha cabeça, me joguei de
joelhos no chão e perfurei sua panturrilha... enquanto a criatura urrava de dor, eu passei
por debaixo dela, tirando rapidamente a lâmina, e voltei a correr para a escada.

Subi a escada enquanto o demônio estava gritando de dor. Lá em cima tentei me


esconder pra planejar algo, mas as portas estavam trancadas. Então voltei para a escada
porque havia perdido tempo, então me deparei com o porco novamente, estava
mancando, mas havia conseguido subir a escada. Estávamos lá, parados... um
analisando o outro... ele olhando para meus olhos e vendo minha alma, e eu olhava para
seu corpo tentando imaginar pontos fracos além das pernas pouco carnudas. Ele
começou a andar na minha direção olhando para minha lâmina, eu dei alguns passos pra
trás, olhei para baixo e via os destroços da sala... Havia um sofá logo abaixo que eu
poderia pular, depois fugir de alguma forma. Não era uma boa opção fugir, pois quando
acordasse... 

Droga de sonho. Droga de merda... Droga de porco... Droga de coroas pendurados e


lâminas de quatro fios... Eu só queria ter mais amigos, fazer sexo, experimentar
drogas... essas coisas idiotas de adolescentes que todos os adultos imbecis perdem
tempo dizendo que devemos ter cuidado desse mundo... ninguém me falou que eu teria
que tá enfrentando uma porra de um homem porco num corpo de uma garotinha
subnutrida de dez anos de idade, e que se eu me fudesse em sonho ia acordar fudido em
vida. Parei de pensar, o porco pulou em minha direção, eu me lancei de cima a baixo na
direção do sofá quebrado e cai com as costas no sofá, o quadril estendido, mas as pernas
estiradas no chão. 

Dor.

O desgraçado poderia descer as escadas, mas ele tinha que pular... caíra na minha frente,
estava muito estressado. Estava vindo em minha direção. Eu peguei novamente a lâmina
e ele bateu no meu braço antes mesmo d’eu poder a pôr em alguma posição de ataque.
A faca... a lâmina voou para longe, para perto da cozinha provavelmente. Ele mordeu o
meu braço esquerdo, o qual estava segurando a lâmina. Gritei de dor. Eu podia ver
através de seus olhos como ele estava se divertindo. Com minha mão direita eu dei um
soco em um de seus olhos. Ele soltou meu braço que agora estava com marcas de dentes
e ensanguentados. Ele subiu em mim e com seu peso esmagou meu corpo, deixando
meu braço direito livre. Consegui pegar um pedaço de madeira quebrada e tentei
furá-lo. Ele levantava e se abaixava tentando me esmagar, ali, sentado no chão com as
costas apoiadas no sofá quebrado.

Havia algo encima de minhas pernas... acho que estava ficando excitado. Que nojento...
não sabia se queria comer minha carne... se queria sexo, se queria me matar por
diversão... mas em uma das vezes em que ele levantara, eu coloquei rapidamente o
pedaço de madeira na direção de sua genitália, ele desceu direto e perfurou um de seus
testículos com o pedaço de madeira. Ele rinchou, urrou, gritou, se levantou e caiu pra
trás, se contorcendo de dor. “Quero ver ‘cê ter filhos, desgraçado”, eu falei... Minha voz
era fofa... quer dizer, a dessa menina que eu estava... possuindo? Dentro do corpo? Com
esse avatar? Não entendo ainda como isso é, mas pela primeira vez não estava gritando,
chorando ou respirando pesado, eu falei e a voz era fofa... talvez eu quisesse ter uma
filha com essa voz.

Enquanto pensava nessas coisas, o porco idiota rinchava, e eu estava arrastando meu
corpo para a direção da cozinha, a faca havia caído um pouco antes da porta. Eu estava
sentindo dores em todo o meu corpo, meu braço esquerdo era inútil de dor... eu só
poderia dar um fim nisso com aquela lâmina, a única que está a meu alcance.
Assim que peguei a faca, o porco estava logo atrás de mim, me virei para cima, deitado
no chão ainda, ele me deu uma cabeçada. Estava sendo esmagado novamente, e essa vez
estava com o meu nariz quebrado, aparentemente, e sangrando muito. Enquanto ele me
dava cabeçadas eu perfurei seu pescoço com a lâmina que estava segurando com minha
mão direita. Ele se jogou de lado, e de barriga para cima estava urrando de dor. Eu subi
nele, tirei a lâmina enquanto ele se debatia, a peguei com as duas mãos, mesmo com
tanta dor no braço esquerdo, elevei-a e enfiei em sua garganta. Eu podia ver todo o
medo do mundo em seus olhos. Ele estava desesperado, estava sentindo a morte vir. Eu
desferi vários golpes com a lâmina bem em sua cara, em sua garganta, focinho,
pescoço... até que ele parasse de se mexer... até que esse desgraçado parou.

Incrédulo, eu fiz mais furos ao redor de seu pescoço, pulei em seu pescoço e ouvi algo
quebrar. Tentei com todas as minhas forças arrancar a cabeça daquela coisa. Consegui
arrancar o suficiente para ver sua coluna vertebral quebrada no pescoço. Então pude
respirar em paz. Peguei a lâmina, andei cambaleando até o sofá quebrado e me deitei.
Logo, logo estaria no ônibus com todos e com muita dor. Mas eu sabia que estava com
algumas cartelas de analgésicos, só precisaria arranjar água discretamente e tomar sem
que ninguém percebesse. Bem, Bárbara ia perceber.

Eu abri os olhos desesperado após ouvir um barulho. Estava com meu coração
acelerado, sentia o sangue pulsando nos vasos de minha face. Escutava a pulsação em
minhas orelhas. Era barulho de porco. Vinha da direção da cozinha. Não podia ser, eu
havia matado ele. Talvez seja outro. Ouvi som de vidro quebrando, logo após eu ouvi
mais perto o som de um porco relinchando. Eu estava longe de um descanso, longe de
estar seguro. Me levantei, olhei para a cozinha e estava ali, flutuando na porta, um porco
grande e gordo, com oito patas grossas. Ele estava vindo em minha direção.

O porco me deu uma cabeçada na barriga me projetando para a porta da sala. Eu ainda
segurava a lâmina, tentei me levantar, mas a dor já estava vencendo. Me arrastei para à
direita, e o porco novamente veio em minha direção. Eu me virei, me pus de barriga
para cima, se eu teria uma oportunidade de ferir o porco seria de frente para o
desgraçado. Ele estava pairando em cima de mim, imaginei que ele iria me esmagar, eu
estava preparado para o perfurar no momento em que me esmagasse, ele era mais largo,
e eu estava segurando a faca com as duas mãos do meu lado direito, apoiando o cabo no
chão.
Para a minha surpresa o porco fez com que seu pênis crescesse de frente pra mim...
Qualquer coisa que ele pudesse fazer eu julguei que conseguiria acabar com ele, todavia
não sabia o que era que estava surgindo do porco, pois parecia um pênis nojento e
pontudo, mas não era de fato um... julguei que fosse por estar saindo de lá... mas o
porco não tinha mamilos ou testículos... não havia sexo descrito, e o que estava saindo
de dentro dele era cartilaginoso, ou tinha ossos... parecia uma garra. Rapidamente então
seu membro crescera, ele penetrara meu corpo de baixo para cima, com a ponta saindo
pela minha garganta. A dor era inimaginável... 

Eu estava com tantos danos que não conseguia nem gritar. Ele descera mais um pouco,
mordeu minha mandíbula e a arrancou fora. Eu estava quase desmaiando, então tentei
pela última vez perfurar sua cabeça enquanto comia minha carne, mas ele girou sua
cabeça batendo em minha mão, projetando a faca para fora da janela. Ele virou para
mim e mordeu meu pescoço fora, sacudiu no ar e jogou minha cabeça para cima. Eu
estava sufocando, perdendo a consciência, vendo a mim mesmo, no corpo de uma
garota de dez anos sendo comida por uma criatura sem explicação.

Quando pisquei os olhos eu estava olhando para Bárbara, a sala estava um alvoroço, as
pessoas estavam falando aquelas coisas horríveis novamente sobre mim. Bárbara
tentava me acalmar, eu estava em choque, tremendo, com formigamentos em todo meu
corpo, sentindo uma mordida no braço esquerdo, sentindo minha mandíbula queimando,
meu nariz doendo mais do que podia suportar, meus órgãos internos esmagados, meus
joelhos doendo e ardendo, minha garganta dilacerada. Estava com pouco ar em meus
pulmões.

“Você está bem?” Perguntava Bárbara enquanto James fazia brincadeiras com seu grupo
de seguidores. Jogando caderno e lixo em mim. O graduado mais antigo da sala tentava
conter a bagunça, gritando por respeito, pois ele era graduado. Os dois quase brigaram,
estava trocando ofensas. James de um lado e Michael do outro... Aproveitei que a
confusão havia desfocado de mim e peguei meus comprimidos na sacola, rezando para
que alguém não visse. Barb viu, me ofereceu água... eu entornei sua garrafa e engoli
quase uma cartela de analgésicos. Agora era só esperar os remédios fazerem efeito para
aliviar a dor. “Toma”, disse Barb me oferecendo uma barra de chocolate com amendoim
e caramelo, “Não se toma remédio de estômago vazio”. Mas meu estômago estava cheio
de sangue... eu podia sentir ele cheio ainda... E o gosto de sangue na boca... e a dor de
algo rasgando meu corpo de minha vagina, que eu nunca poderia ter tido, à minha
garganta. Eu ainda estava apavorado com tudo aquilo... havia dormido novamente e
aqui estava eu, com a mente e o corpo exaustos.

“Você tá bem?” insistia Bárbara no meio da confusão da sala. “Sim”, respondera eu.
“Cara, você apagou do nada, abaixou a cabeça uns cinco minutos e começou a gritar...
eu deixei você dormir porque parecia cansado, não sabia que iria ter esses... pesadelos,
sei lá o quê! O que aconteceu? Com o que você sonhou? Teve algum ‘sonho estranho’
qual você menciona?”, ela me disse preocupada comigo. Eu não queria falar, não podia
falar, ela não poderia entender... mas era bom haver alguém preocupado comigo... me
perdi olhando os cachos fechados de seu cabelo preso de rabo de cavalo e falei a ela “Eu
tô bem agora”. Ela sorriu aliviada, e então ouvimos alguém entrando pela porta do
ônibus, era Antonny, o graduado da outra turma que também estava nesse projeto, ele
entrara gritando algo em inglês. “Pronto Michael, agora temos alguém acima de você,
senta sua bunda na cadeira seu idiota”, disse James para Michael, pois Antonny possuía
uma patente mais alta, teoricamente a turma estaria abaixo de seu comando. “Você
ouviu o cara Michael, esse palco não precisa mais de você”.

Ficaram zoando com o Michael, enquanto isso alguns caras da outra turma entravam no
ônibus, pulavam, cantavam, abusavam os outros alunos. Ouvimos o nosso professor aos
gritos do lado de fora com a outra professora de Digital Art Design, algo havia
acontecido... Se não me engano ambos programaram a aula de campo no mesmo horário
com o mesmo ônibus, pois um dos dois ônibus equipados estavam com os softwares
sem funcionar, talvez algum problema de chave de produto, algo assim.

O nosso professor entrou no ônibus falando a gente que iríamos ter que descer para o
outro ônibus e voltar para escola. Nos mandou salvar os progressos e enviarmos para
nossos e-mails. Então descemos do ônibus, deixamos ele ali mesmo para a turma fazer o
mesmo procedimento, tirar fotos e desenharem a paisagem. Entramos no outro ônibus e
o motorista deu a partida. Por conta de dois ônibus próximos, ou o motorista sairia de ré
ou iria mais à frente para fazer a volta, pois a área de manobra dele estava
comprometida, não havia espaço. Então o ônibus fora até o meio da vila para poder
voltar.

James estava próximo ao professor dando uma de adolescente adulto, criticando a


postura de sua colega, o dando conselhos... fingindo que se importava. Ele era o
valentão clichê, uma coisa na frente dos adultos, outra coisa por trás. Tentei me distrair
olhando para a paisagem, precisava diminuir meu asco por James. Barb estava falando
sobre alguma coisa, e eu estava prestando atenção na vila. Era estranha, bem pequena,
como uma vila construída para um são joão. Era pequena, as casas pareciam fazer um
círculo. Iríamos entrar, estávamos nela, mas não havia ninguém. Algumas portas e
janelas estavam quebradas, outras abertas. Aos poucos os alunos iam parando de falar e
olhando ao redor. O motorista distraído entrou em uma grande poça de lama, logo o
ônibus atolou. Ele pediu que saíssemos do ónibus para reduzir o peso e assim tentar
desatolar, não imagino que ele vá conseguir tão cedo.

Ao descermos eu senti cheiro forte de sangue. Os alunos ficavam em grupos


murmurando sobre o ambiente. Parece que as pessoas fugiram às pressas de lá,
deixando tudo para trás. Eu tinha um palpite de onde eu poderia estar, simplesmente eu
me sentia em casa olhando para aquilo tudo. Alguém gritou, tinha visto uma mão no
chão. Nos aproximamos e sim, estava lá uma mão perdida no meio de muita lama e
pegadas. O professor estava apavorado.

Enquanto o pessoal decidia o que iriam fazer a respeito da mão, eu fui caminhando
devagar mais um pouco. Tateando o chão com os olhos eu a vi. A lâmina... a faca estava
lá! Suja e ensanguentada. Nesse momento meu palpite havia se tornado em uma certeza.
A única coisa que pude fazer era hiperventilar sentindo dores em minhas entranhas e
repetindo “não” obsessivamente em meus pensamentos. O sonho ainda não acabara, e
eu sabia disso, sabia que algo iria passar do lado de lá pra cá, sentia minha
responsabilidade me chamando. “O que foi maluquinho?”, uma frase que veio de James
rompendo minha cadência de pensamentos. Nunca imaginei que sua voz fosse me
ajudar a voltar a mim e me acalmar. Respirei tranquilo enquanto ouvíamos baques,
estouros... cada vez mais alto. Todos estavam já apavorados, Barb veio para perto de
mim sugerindo voltar para o ônibus. Começamos a ouvir um animal relinchando... eles
não sabiam o que era, eu sabia, eu sentia. Eu peguei a lâmina do chão, sacudi no ar para
limpar a lama e o sangue, sujando a calça de James. “Mas o que?”, ele perguntara com
espanto e ódio na fala. Alguma criatura se aproximava de dentro de uma casa,
relinchando cada vez mais alto... cada vez mais perto... Suspendi a lâmina, que parecia
ter metade do tamanho do meu antebraço agora. Me virei para a casa de onde estava
vindo os sons e comecei a andar em sua direção lentamente, “Mas o que você pensa que
está fazendo? Pra onde você está indo seu merda” continuou James a indagar...,
retruquei em bom tom: “Vou ali matar um porquinho, querida”.
02 Kubo

03 Dois anos e meio


Há dois anos e meio que desconheço a sensação de estudar através de artigos, livros e
professores com experiência na área. Há dois anos e meio que desconheço o significado
de estabilidade social, ou desenvolvimento progressista. Há dois anos e meio apenas sei
como mover uma grande katana como se fosse extensão de meus braços, parte de mim,
afiada e com uma missão: a de exterminar.

Eu costumava pensar mais, costumava conviver com minha “doença do pensamento”.


Hoje o fluxo de pensamentos está menor, aquilo que é mais puro de mim mesmo não
mais se esconde em discursos, mas em atos... o que há é apenas o ato. Apenas a katana
que me ajuda a sublimar toda a energia acumulada pelo choque de realidades; pelo fim
do mundo presumido… e pelo trauma da perda da pessoa mais significativa para mim.
Apenas a katana me ajuda a sublimar todas as frustrações sexuais, todo o desejo
proveniente de minha falta; todas as vontades de ser, todas as vontades de agir, todas as
coisas inefáveis para mim. No meio disso tudo - mesmo com minha perda - sinto um
prazer imenso nessa nova realidade que acomete o mundo, principalmente quando
penso nas pessoas que eu queria destruir há dois anos e meio atrás. Eu pondero a
possibilidade de estarem mortas, isso me alegra, ao mesmo tempo me entristece, pois eu
quem deveria matá-las, mas afinal é um alívio. 

Talvez minha “doença do pensamento” ainda esteja lá com seus efeitos, ao menos tenho
um ótimo instrumento para dispersar energia; um novo desejo pelo qual resolvi lutar,
pelo qual resolvi viver: escolhi buscá-la, procurá-la, e me abster de toda a possibilidade
de que ela esteja morta. Preciso encontrá-la e continuar a amar, pode ser uma fixação no
passado, mas não me importo em estar fixado em um desprazer que rege minha nova
vida.

Há dois anos e meio eu costumava cursar um nível superior. “O que vamos fazer
agora?”, me perguntou um amigo quando aquilo aconteceu. “Eu não sei, Cris… Eu
nunca soube antes, e não sei agora”. Estávamos desolados, o planeta sofreu um ataque
de uma raça alienígena e parecia que os governos sabiam, pois nos reorganizamos muito
rápido. Os grandes centros comerciais e empresariais das cidades foram ocupados por
eles, fomos obrigados a ir para os subúrbios. Aqui em Salvador a população
sobrevivente vive hoje no subúrbio ferroviário, e outra parte vive pela região das
cajazeiras e Mussurunga. Diariamente encontramos sobreviventes outrora “perdidos”, o
que é intrigante, pois levamos dois anos para conseguirmos contra atacar, e quem
sobreviveria dois anos no meio de combates, com toda a cidade prejudicada, sem
sistemas de saneamento, sistema de água e eletricidade danificados parcialmente…
Quem iria sobreviver este tempo todo com o antigo modo ocioso, ou operário, de se
viver? Ela! Ela iria, ela teria que! Ela deve estar viva! Precisa estar!

Não sabemos até hoje o que os de outro planeta procuram, eles apenas nos matam se
ficarmos em posição de defesa, e nos levam se nos aproximarmos. O que eles querem,
eu não sei. Eu não lembro as possibilidades, não lembro do que os relatórios estão
dizendo, eu apenas pratico. Não sei nem o que pratico, não sei o nome, não sei como se
chamam as técnicas, eu apenas sei que movo a katana em diversas direções em meus
treinamentos. Nunca saí à campo, mas matei quase 100 seres invasores. Não sou o
melhor, mas sou bom nisso, muito bom, diferente de Cris, coitado.

Cris fazia o mesmo curso que eu, ele não conseguiu finalizar. No último semestre eu fui
visitá-lo na faculdade, e numa quente noite de verão, antes do carnaval, eu olhei para o
céu e vi uma chuva de meteoros. Linda visão! Apontei para o céu, Cristian ficou irritado
pois algo além dele estava chamando minha atenção… Cris era um pavão… era de
escorpião com ascendente em leão. Algo estava chamando minha atenção, dizia eu para
vocês, e como estava, era lindo, parecia que uma estrela destruída havia viajado por
vários anos-luz pelo vasto universo apenas para beijar a terra. Eu ficava olhando, dois
minutos, cada vez mais perto, três minutos, “Você não está prestando atenção, vou
deixar você aí com essas estrelas”, murmurava Cris lutando por atenção. “Calma Cris,
olha só, o céu está lindo”. Quatro minutos e vários clarões surgiram. Naquele momento
eu falei “Está tão perto”, “É, e é lindo mesmo”, reforçou Cris. 

Não pensei, tive um impulso, puxei o braço de Cris e saí da praça da faculdade, que se
encontra ao lado de diversas salas com vidros, corri para o meio do estacionamento e
parei um pouco longe dos carros. Enquanto Cris me olhava com olhos tensos e
indagantes, ouvimos uma explosão forte, os alarmes dos carros começaram a soar.
Olhamos para o céu novamente e percebemos que haveriam explosões piores. Nos
olhamos por menos de um segundo e ambos nos jogamos no chão, havia “estrela” para
todo lado, uma maior concentração para a região da pituba, patamares, iguatemi e
caminho das árvores, não eram muito longe, não eram muito perto, mas o chão tremia e
gritava com os choques como se gaia estivesse sentindo dor.

Mais uma vez uma explosão. Mais outra. Mais e mais explosões. Cris estava apavorado,
ele estava à minha frente, deitado ao chão, com os olhos cheios de lágrimas, me
compadeci e puxei sua mochila para cobrir sua cabeça, queria que alguém cobrisse a
minha também, mas não era possível. Naquele momento eu apenas pensei “Preciso
dela”, onde ela estaria após aquilo tudo? Meu porto seguro.

As pessoas da faculdade se desesperaram, os vidros quebravam sozinhos, sentimos


tremores, algumas vezes que consegui levantar minha cabeça, eu via pessoas se jogando
no chão, pessoas cobrindo os ouvidos ensanguentados, eu não sentia sangue algum nos
meus, mas estava atordoado, cada vez mais atordoado a cada explosão. Depois de um
tempo cessou. Meus ouvidos estavam zunindo, me levantei lentamente e levantei Cris
junto, ele parecia estar mais atordoado que eu. Em minha cabeça eu apenas queria saber
de nossa segurança. 

Me dirigi para dentro da faculdade enquanto várias pessoas estavam desesperadas e


outras tentando acalmá-las. Eu coloquei Cris sentado em uma cadeira na praça de
alimentação e disse “Fique aqui”, apontando para ele, tentando fazê-lo entender que não
deveria sair dali imaginando que sua teimosia cederia uma vez na vida. Rapidamente fui
à escada do auditório em direção ao último pavimento, na escada haviam pessoas
desmaiadas, feridas, como se tivessem caído das escadas no meio dos tremores. Pessoas
sangrando, lâmpadas caídas  e fios de eletricidade faiscando. Eu segui até o último
pavimento, ignorando alguns gemidos, e procurei por toda parte, devia ter uma escada
que levasse até o telhado, mas onde? Eu não queria olhar pela janela, pois tinha medo
de saber o que poderia estar acontecendo além de vários meteoritos terem entrado na
atmosfera e atingido Salvador inteira.

Em uma das minhas idas e vindas, próximo à escada que estava procurando, eu me
deparei com Cris, “Eu disse que era para você ficar lá”, “Mas… Mas…” Antes que ele
pudesse completar a frase, vários ruídos metálicos foram escutados de longe. Meus
ouvidos doíam, cobri o ouvido esquerdo com minha mão, pois foi o que mais doeu, e
percebi que estava quente, ao olhar para minha mão, estava sangrando. Não era tempo
para eu pensar no ouvido. Subi as escadas para a cobertura e Cris veio atrás. Na
cobertura conseguimos ver luzes estranhas, corpos metálicos estranhos flutuando,
prédios caídos, fogo... muito fogo, um engarrafamento que havia se formado na avenida
principal com carros abandonados e pessoas assustadas nas ruas, elas não tinham noção
do que eu estava vendo, não tinham noção de que era muito pior o que aparentava ter
acontecido. Cris ficou encarando comigo aquele cenário da região do Iguatemi,
Caminho das Árvores e adjacências, até um pouco próximo da faculdade em que
estávamos, era possível perceber que nunca mais as nossas vidas seriam as mesmas.
Lamentei amargamente comigo mesmo por ter pensado que eram estrelas cadentes.
“Dan, e agora, o que vamos fazer?”, indagava Cris. “Eu não sei Cris… Eu nunca soube,
não sabia antes, e nem sei agora…”.

Desde então, a sociedade tenta se reerguer. Criaram um centro, uma academia para
treinar e formar soldados para guerrear contra os de fora, todavia é uma organização
civil, tendo em vista as mortes de soldados das forças armadas da capital da Bahia e de
sua polícia militar. Nem todos se foram, alguns pertencem a esta instituição, que foi
denominada, sem criatividade, Academia Civil, sem ligação com a Polícia Civil. Depois
da invasão,  eu fui atrás dela, mas não encontrei seu carro, seus celulares, ou sua
carteira, ela, que tinha dito que estaria em casa até a hora que eu saísse da faculdade,
não estava em casa naquele dia. Como eu sei? Sua cadela estava morta, a comida na
geladeira apodrecida, seus pais não estavam em bom estado, ela havia sumido, desde
então eu acompanhei Cris por todo o lugar, e logo quando abriu a Academia Civil no
Subúrbio Ferroviário de Salvador, eu cogitava a possibilidade de ser admitido.

Cris não queria, estava muito abalado com tudo aquilo. Após ver o cenário da casa
daquele que acabei de descrever, eu só tinha Cris, meu único amigo até então vivo. Se a
internet ou telefones funcionassem eu poderia descobrir se alguns outros amigos estão
ou estavam vivos. Cris não queria inicialmente entrar na Academia, que surgiu tão
rápido e de forma misteriosa quanto a invasão. Uma das coisas que fizeram Cris entrar
foi quando ele finalmente conseguiu chegar em casa e encontrar seu namorado, Felipe,
sendo cuidado por uma enfermeira, sem a perna direita, sem a mão esquerda. Ele foi
arrancado dos escombros na Ondina, e se você acha que foi na tentativa de alguém
salvá-lo, você está enganado. “Foram eles, os aliens”, Felipe só conseguia dizer isso,
repetidas vezes. O pai do Felipe estava lá, na casa do Cris, fugido de onde moram. A
família de Cris? Agora eram apenas seu namorado, o pai, e a enfermeira que estava
namorando o pai do Felipe.

Olhando a cena, eu que havia perdido o sentido da vida, tive esperança. Enquanto Cris
chorava em seu quarto, eu pensava sobre es... Resumindo, eu assumi uma nova
responsabilidade e a coloquei acima de todas as outras, abandonaria tudo e buscaria por
Ela, eu iria achá-la, eu tinha que achá-la. Não tinha mais família, quase nenhum amigo
estava comigo. Eu tinha que tentar uma expedição para achá-lo. Então eu subi ao quarto
de Cris, e o encontrei de pé com uma expressão horrível na face, raiva, e dissemos
quase ao mesmo tempo que queríamos entrar na academia. Era Março, 27, um mês e
meio após a invasão, demoraríamos 2 anos e uns meses para estarmos prontos, era o que
dizia o chamado de rádio, que funcionava de alguma forma. Entramos então.
Demoramos quase um mês para chegarmos à Sede da Academia, levamos a enfermeira,
Felipe e o Pai juntos, fomos de caravana escoltada por militares que foram morrendo
lentamente, ainda não sabíamos o porquê. Feridos? Infectados? Não dava para saber.

Desde então o tempo passou. O esforçado nos estudos agora cuidava só da parte física, e
o desleixado era estudioso. Éramos da primeira geração da Academia. Eu treinava com
minha katana, Cris com seu cajado, pistolas e os livros. Eu era ruim em teoria, pela
primeira vez, e Cris sempre lia, apesar de seu grande déficit de atenção, tentava se
concentrar. Às vezes ele me pergunta porque não tínhamos apresentado alguns
documentos e trabalhado como psicólogos, “Psicólogo hoje cedeu ao retrocesso, apenas
classifica e nivela trabalhadores, parece que estamos anos antes de 64”, eu respondia, ou
“psicólogo é um luxo ainda maior hoje, já que mal temos psicólogos para fazermos
acompanhamentos individuais e em grupos para diminuir a tensão, além de que na área
da saúde, enfermeiros e médicos estão sendo mais necessários do que nunca”.

Eu sabia que estava errado, frente a catástrofes um psicólogo junto com uma rede de
apoio faz milagres, mas eu não queria me envolver, não queria estar ali como estava no
passado. Eu era novo, ou diferente, pois apenas tinha um grande objetivo em mente eu
queria achá-lo, eu precisava Dele para me sentir em vida novamente. Apenas sendo um
agente, ou soldado, da academia eu iria encontrá-lo, e Cris, vingar a perna e a mão de
Felipe e pronto.

Faremos nossa primeira ronda antes de nos graduarmos. Vai ser à madrugada toda.
Felipe estava preocupado conosco, interessante pois nesses dois anos passados, mesmo
se negando ao convívio social, mesmo vivendo seus dias apenas cozinhando para quem
mora conosco, ele já considerava as pessoas ao seu redor, na casa que o governo nos
cedeu, como família.

Enquanto ele cozinhava solitariamente e em silêncio, Cris se gabava de suas notas nas
teóricas e de seu estilo de luta de bastão de aço ou ferro, que era sua arma principal. Eu
não entendia muito bem como era, apenas sabia como era balançar uma espada… e
claro, algumas facas como armas secundárias caso necessário. Naquela noite o Cris e eu
éramos o centro das atenções, já tínhamos contato com os aliens antes, já matamos eles
em treinamentos, Cris tentando causar danos para eu os finalizar. Nós sempre fazíamos
dupla. Ao dormir, Cris parecia estar preocupado com a primeira ronda. Após esta ronda,
iríamos ser escalados para fazer buscas pela cidade, era como se fosse a prova final.
Muito pouco tempo para muita coisa planejada e executada dessa “academia”.

Dormimos mais cedo, às 1:00 da manhã nos buscaram e nos deixaram próximo ao
antigo centro da cidade, em uma zona ainda tranquila porém devastada, separados em
quartetos. Desta vez eu estava sem o Cris por perto. No meu grupo havia um rapaz com
arma de fogo como principal, alguma do tipo especial, pois de alguma forma as nossas
armas de fogo causavam pouco dano nos aliens, ou o que quer que sejam essas coisas, e
era uma arma à distância; havia uma garota com armas também; havia um grandão
estilo hércules sem arma alguma; e eu com katana e umas facas escondidas pelo corpo.
Não tínhamos estratégia. Não nos comunicamos. Só sabia que eu e o grandalhão iríamos
combater de perto se aparecesse algum invasor, a menina iria ficar em uma distância de
médio alcance, ela carregava consigo algumas granadas e não havia nenhum lançador,
diga-se de passagem. O outro cara iria ficar à longa distância. Assim estávamos,
caminhando de forma dispersa. Se alguém se aproximasse, poderia talvez dispersar mais
ainda o grupo.

Eu acho que conhecia eles. Nenhum deles possuía formação superior, todavia eram
bons. Os boatos diziam. Não sei se deveria acreditar nos boatos, mas por incrível que
pareça, uma fagulha de medo estava em mim, e para apagá-la eu precisava acreditar que
eles eram bons.

A madrugada estava perto de acabar. Escutamos tiros bem de longe, várias vezes.
Alguns grupos tiveram encontro com alguns aliens. Não sei muita coisa sobre suas
táticas e comportamentos: não prestava muito atenção no curso das matérias teóricas. Já
falei isso. Só sabia que havia hipóteses sobre hipóteses e que ninguém que foi levado
conseguiu voltar para contar a história. Isso me angustiava, pois ele estava
desaparecido, não sabia se ele havia sido pego. Hoje eu agradeço aos céus não ter
encontrado seu corpo nos escombros de sua casa, ou seu carro na sua garagem ou pela
região, isso me deu esperança de viver. Apenas uma coisa poderia acontecer se eu o
visse morto.

Os primeiros raios de sol surgiram. Nos nossos radares falhos conseguimos ver cinco
pessoas com destaque diferente se aproximando, eram os ex-militares, os “zeros”,
chamamos assim porque eles se tornaram a segurança da sociedade antes de qualquer
outra turma da Academia se formar, afinal, eu fazia parte da primeira. Pela distância, os
zeros, que devem assumir a ronda pelo dia inteiro, demorariam mais algum tempo, o
qual não sabemos direito porque nossos radares estavam com mau funcionamento.
Então acatamos a sugestão do cara que estava à longa distância se escondendo em
pontos altos, pararíamos em uma região e esperaríamos pelo transporte de volta. Era a
segunda vez que nos falávamos, a primeira foi apenas um “e aí?”.

Enquanto o “sniper” trocava piadas sádicas com a moça do grupo, que aparentemente o
conhecia bem, comíamos um pouco e esperávamos pelo transporte. Em algum momento
minha mente entrou em um vazio de pensamentos, ouvia mas não escutava; via mas não
enxergava respirava mas não cheirava. A última coisa que me lembro foi de olhar para o
céu clareando e imaginar onde estaria naquele momento se nada daquilo tivesse
acontecido. 

“Estão atrasados”, falei saindo do vazio em que mergulhei. Olhei no relógio e eram
cinco e meia da manhã, eles deveriam ter chegado há uma hora. Meus companheiros
concordaram. “Não dá mais para esperar, estou faminto”, falou o sem armas. “O que
sugere então?”, questionou o sniper por rádio. “Talvez devêssemos voltar por nós
mesmos, fazendo o caminho de volta que eles fariam ao nos buscar” respondeu a moça.
“Mas levaria quase duas horas de caminhada”, retrucou o sniper. Ele estava certo. Era
muito longe. Além do mais recebemos ordens de aguardar no ponto de encontro caso
houvesse algum atraso. A moça ainda falou mais: “Vamos voltar só um pouco, só para
checar se eles estão a caminho, se não estiverem, voltamos. Não vamos muito longe,
ademais se eles estiverem próximos nós voltamos para o ponto de encontro, vamos
pegar a estrada à noroeste, ela é livre, reta, tem poucos obstáculos, eles virão do norte,
se ficarmos atentos poderemos perceber eles chegando de longe, há muitas ruas que
ligam as duas estradas, e também estamos no encontro de uma bifurcação, o que pode
dar errado?”. Não compreendi, mas os outros dois concordaram. Era uma pista e tanto.
Esperamos o sniper descer e fomos andando, olhando ao redor, olhando as ruas que
ligam as duas principais.

Andamos por meia hora aproximadamente, tudo estava terrivelmente silencioso. Nos
encontramos com um outro grupo, Cris estava nele. Eles estavam um pouco feridos, uns
cães os atacaram, teriam que tomar vacina contra raiva quando chegassem à academia.
Cris estava exausto, mas mesmo assim estava apoiando uma garota que estava com o
braço deslocado. Ela utilizava armas especiais de fogo. Havia um brutamontes com eles,
ele carregava armas pesadas, e uma moça bem alta com armas de curto e longo alcance.
O grupo de Cris nos contou que receberam ordens para nos encontrar e seguirmos
juntos a um outro lugar, onde havia um viaduto caído, pois o grupo de zeros que iria
buscar ambas as equipes tinham entrado em combate. Pelo tempo, eu deduzi que eles
estavam mortos, afinal de contas, quem sobrevive lutando por mais de uma hora com
essas “coisas”?

Andamos ainda mais. Nos cansamos, não tínhamos mais suprimentos. O sol estava
quente, já eram quase sete horas da manhã. Não sei se era a fome ou se outra coisa, mas
no horizonte eu conseguia ver algumas silhuetas e alguns sons metálicos, como de um
alien, não os humanóides, mas os outros, os batedores; aqueles que recolhem humanos,
que destroem coisas, que são parte organismo parte mecânicos. À medida que íamos
avançando ouvíamos metais sibilar. Olhávamos uns nos olhos dos outros e tateávamos o
ambiente com os olhos. Aos poucos os sons desvaneceram e nós relaxamos. A
caminhada seguiu. O número de ruas perpendiculares diminuíram. Eram sete e vinte e
cinco da manhã, o sol estava à nossa frente, o brutamontes da equipe do cris estava na
frente, o sniper e a moça alta estava atrás, eu e o hércules da minha equipe estávamos
logo atrás do brutamontes, Cris e a garota estavam atrás de mim. Olhamos para o lado
direito e vimos metade de um corpo e algumas cabeças sendo projetados em nossa
direção. Uma cabeça com um zero no capacete caiu ao meu pé; uma parte de um corpo
atingiu em cheio o brutamontes, que o desequilibrou e caiu; um braço acertou Cris; uma
viga atravessou a cabeça da mulher alta. Nossos níveis de noradrenalina e adrenalina
subiu estratosfericamente em dois segundos: corremos em direções diferentes e eu gritei
“fiquem juntos”.
Não tínhamos líder, não tínhamos patentes, não havia hierarquia, não havia sentimento
de grupo, pois nem todos nos conhecíamos. Não tínhamos estratégia. Perecemos um a
um. O sniper correu para uma casa abandonada, perto de onde eu fui. O batedor já
estava muito próximo, com um de seus braços-tentáculos ele conseguiu perfurar as
costas do sniper, que caíra e morrera. Peguei sua arma e sai do campo de visão do
batedor marrom de três metros de altura. A garota caiu sobre seu braço deslocado
tentando escapar, gritou de dor, chamando atenção do batedor. A moça de minha equipe
lançou granadas que deixaram o bicho tonto. O hércules aproveitou para ir ao combate,
surgindo entre a fumaça que as granadas haviam feito. Não era uma boa ideia, éramos
seis, um ferido, não estávamos junto a qualquer instrutor zero, não estávamos na
academia, que era um lugar com ambiente controlado para lutarmos contra essas coisas.
Hércules foi arremessado ao ar como uma boneca de plástico. 

O brutamontes e eu investimos atirando a distância média, enquanto isso nossa colega


investiu mais perto com suas pistolas alteradas. Cris deixou a garota em algum canto “se
proteja, eu volto”, disse ele e vou para cima do monstro. Minha munição acabara, o
resto estaria junto com o corpo do sniper. O brutamontes recarregava e atirava, parecia
que ele queria causar mais danos possíveis para no combate corpo a corpo ele não ter
dificuldades. Hércules surgiu de algum canto do qual estava caído e se uniu à moça, que
recebia pancadas certeiras. Avancei com Cris à minha diagonal direita, um pouco atrás
de mim.

O maldito era assimétrico, parecia uma aranha, era marrom. Seu corpo parecia feito de
material orgânico e metálico. Sua pele não parecia pele, pois víamos a textura do que
pareciam ser músculos a céu aberto. Ele excretava um líquido marrom avermelhado,
parecia sangue, pois era o que também saía dele quando o mesmo levava dano
substancial de nossos ataques.. 

Nossas investidas estavam sem muito sucesso: a moça quebrou seu braço esquerdo e
gritou de dor; hércules perdeu sua perna direita em um golpe do monstro que tinha
algumas lâminas em suas partes metálicas, que eu estava tentando me defender e
defender os outros com minha katana; o brutamontes levava cortes mas não perdia
membro algum, conseguia até acertar golpes que faziam o monstro emitir sons de dor,
não sabíamos quem era o real monstro nesses momentos; e Cris estava sendo
arremessado para os lados todas as vezes que ele mexia seu bastão e colocava na frente
de algum golpe do monstro.
Parei de focar nos outros e comecei a golpear para ferir. Cortei uma de suas pernas, o
que nos possibilitou investidas melhores. Cris saltou para golpear seu dorso, Hércules
estava imóvel, a moça estava dando tiros certeiros nas outras pernas enquanto se
esquivava das investidas do monstro, o brutamontes estava dando golpes na cara do
monstro, seja lá o que era aquilo na frente dele. Eu estava tentando me defender de seus
ataques cortantes e tentava atingir suas feridas causadas pela moça. Após umas pernas
cortadas, outras fragilizadas, algumas pancadas na cabeça e dorso, ele cedeu, dobrou-se,
berrou, caiu ao chão, e rapidamente cortei sua cabeça, e fiz questão de cortar todas as
suas pernas, fiz um furo profundo e pedi para a moça por explosivos. Em menos de um
minutos a sua carne estava quase em pedaços. “Para quê isso tudo Dan?”, Cris
perguntou sem obter respostas minha. Suspiramos, a moça amarrou seu braço quebrado,
e não havia dado três minutos que estávamos relaxados, ouvimos um tiro, olhamos para
trás, haviam mais dois deles, menores, quase humanóides. Um estava segurando a
garotinha, que estava com a cabeça estourada e com uma arma caindo de sua mão.

Eles jogaram seu corpo junto a outros dois, o do sniper e o da mulher alta. Pareciam
estar recolhendo os corpos, o que é estranho, pois batedores que recolhem corpos após e
durante batalhas. Eles eram a metade do tamanho do monstro que abatemos, mas eles
eram altos. Eles estavam vindo, tinham três braços, e formações de mãos que estavam
fechadas, como se fossem nos socar. Eles estavam vindo, “Eu estou sem munição”,
gritou a moça, a empurrei e quando virei de frente Cris havia parado o golpe de um
deles bem à minha frente. O brutamontes estava lutando com o outro. Cris virou o rosto
para mim e perguntou se eu estava bem, com seu cabelo colorido por toda sua face. Ele
recebeu um golpe no baço e eu gritei seu nome: “CRISTIAN”.

Cris caiu, enfiei minha katana no braço do maldito, recebi um golpe na barriga, segurei
bem a dor e a espada, fui lançado para longe. Vomitei sangue, levantei e fui para cima
novamente. O brutamontes estava tomando vários golpes enquanto eu percebia que duas
de suas mãos possuíam metal, sua cabeça era mais alongada para trás e a cor de seus
olhos eram pretos. Detalhes que não havia percebido em treinamentos da academia.
Esses mais humanóides eram mais difíceis de se derrotar, pois seu nível de inteligência
era maior que os batedores. Com tanta coisa acontecendo eu estava lembrando de
treinamentos e estava observando detalhes da anatomia deles. Do que eu estava
fugindo? Talvez eu estava alí pensando no pior, com medo de Cris poder ser capturado
ou morto, eu já havia perdido alguém muito importante e não queria que isso se
repetisse… Eu havia perdido alguém muito importante… eu havia esquecido disso, ele
estava perdido, ou capturado, ou morto, e eu estava lá para descobrir isso, custe o que
custasse. Era por isso que estava lutando.

O monstro abriu os braços superiores para dar socos com ambas as mãos em minha
cabeça, como se fosse esmagá-la, já tinha visto isso. Seu outro braço estava
diagonalmente em frente a seu corpo, com a mão próxima ao queixo, como um
pugilista. Eu estava próximo a ele, próximo demais, com minhas duas mãos no cabo da
katana. Projetei-me para frente abaixando meus ombros e cabeça, dobrando meu corpo
rapidamente para não receber o golpe em cheio. A espada entrou no meio de seu
abdômen, ele se assustou, suas mãos estavam distantes de minha cabeça, sua terceira
mão desceu em direção à espada para segurá-la, mas ela estava lá, atravessada. Ele
segurou a espada, tentou me golpear, esquivei, retirei duas karambits de minha roupa,
cravei em suas pernas e abri sua carne… Ele se dobrou. Sua cabeça estava um pouco
acima de mim, apoiei meu pé direito na espada, projetei meu corpo para cima, cravei as
facas nas partes expostas do pescoço do ser e rasguei de seu pescoço ao alto de sua
cabeça. Ele lentamente caiu, eu estava alcançando o chão, para trás, de pé, dobrei meus
joelhos, me projetei para frente, cravei as facas uma em cada olhos. Ele caiu para trás
com meu peso, a espada saiu de seu corpo, guardei as facas rapidamente, tirei a espada
completamente dele e acabei com seu sofrimento cortando sua cabeça.

Olhei para trás, Cris estava tonto e boquiaberto, olhei para frente, o brutamontes estava
quase caindo no chão, ele e seu oponente estavam com danos consideráveis, mas o alien
iria vencer. Corri em sua direção. Quando o brutamontes estava quase caindo, subi em
suas costas, saltei para cima do alien que ficou confuso com a surpresa, com meu corpo
levantado do chão, dividi sua cabeça em duas. Depois em quatro. Caí, enfiei a espada
em seu corpo que parou de se mover. Atrás de mim o brutamontes estava com lágrimas
no olhos esquerdo, sangue no direito e em quase todo seu corpo. Ele suspirou. Cris veio
ao nosso encontro. Senti uma dor miserável perto do baço, havia algo quebrado. Olhei
para o céu e pedi a qualquer deus que me desse força para continuar minhas batalhas e
encontrar aquele a quem jurei amor. Meus dias à frente seriam daquela forma.

Fizemos um reconhecimento na área. A moça havia morrido. O sniper, a garota, a


mulher alta, o hércules… todos… haviam corpos de zeros e corpos de cadetes como nós
que não conhecíamos por todo local. Cris me apresentou o brutamontes, por ironia do
destino, o seu nome era Hércules, seu cabelo era bem baixo e bem preto, ele era bem
queimado, muito musculoso. Parece que antes da invasão ele malhava e praticava lutas.
Ele tinha mais de trinta anos. Não dei muita atenção, pois estava olhando ao redor.
Quase morremos por não termos estudado o local adequadamente. 

“Recolham os corpos” falei e fui até uma van que estava com munições, armas e
suprimentos, era da equipe dos zero que possivelmente iria nos pegar. A trouxe para
perto de Cris e de Hércules “Vejam se há algum medkit aqui dentro. Cuidem de seus
ferimentos mais emergentes, ponham todos os corpos humanos aqui dentro, e rápido”,
falei. “Onde você vai?” Perguntou Hércules, “Eu vi um guincho em uma garagem, vou
checar se pode rodar. Vamos levar esses desgraçados para a base”. Não sei se eles
entenderam o que quis dizer, mas em 15 min eu estava de volta com o guincho.
Colocamos os monstros no guincho, amarramos. “Você está em condições de dirigir?”,
perguntei a Hércules, “Sim”, ele retrucou, “Cool, então dirija o guincho”. Fui na van
dos zero, achei um mapa, falei que eu dirigiria a van e o Cris iria comigo na frente
enquanto o Hércules iria atrás com o guincho. “Hércules, seu nome é trissilábico. É
muito estranho também, um Brasileiro com este nome”, comentei antes de subir à van.
“Meu avô era grego, o nome dele era este. Ele faleceu antes d’eu nascer, meus pais
puseram meu nome de Hércules em homenagem a ele, também porque nasci muito
grande”, ele respondeu. “É, to sabendo. Toma um rádio, vamos te chamar de Cool por
enquanto, pra encurtar”. “Adoro sua criatividade Dan”, ironizou Cris. “Faça melhor ou
foda-se”. Seguimos para a base.

Na academia chegamos com dois carros cheios de corpos, quando Cris se preocupou
com o fato de que talvez os aliens mortos estivessem com rastreadores. Nem pensei
nessa possibilidade. “Mas que porra é essa?” foi o que recebemos quando descemos do
carro, com alguns cadetes que voltaram de suas rondas sãos e salvos correndo para ver a
novidade; com instrutores vindo em nossa direção. “Relatório cadete”, um dos zeros
gritou na minha face enquanto eu andava em direção ao dormitório. Rodearam os
carros, ficaram assustados com a quantidade de corpos e com os monstros ali.
“Relatório cadete”, gritava novamente um zero puxando minha camisa por trás. “Seu
relatório tá lá”, retruquei apontando pra trás com o polegar e continuando a caminhar.
“Seu verme, eu vou te ensinar o que é respeito”, disse o instrutor insistente tentando me
imobilizar. Agachei rápido, derrubei-o com uma rasteira, girei meu corpo para ficar
frente-a-frente com ele e pus uma karambite com a ponta bem próxima à sua pupila
“Respeite se quiser ser respeitado”, falei baixo olhando para sua face de desespero.
“Calma jovens”, o coordenador dos instrutores falou próximo a nós. Levantei-me e
guardei a faca. “Só sobraram vocês três?” seguiu ele a perguntar. “Sim, fomos
surpreendidos, todos morreram”, respondeu Cris. “Não vejo nenhum Zero com vocês,
soube que a equipe que ia buscar o grupo 7 e o grupo 9 entraram em confronto…”
Continuou o coordenador. “Eles morreram antes de nós confrontarmos os aliens”
Explicou Cris. “Queremos saber como se deu essa batalha.” colocava o coordenador.
“Cinco de nós mataram o grandão, três de nós mataram os outros dois”, adiantei. “Vocês
estão dizendo que lutaram sozinhos e sozinhos derrotaram três deles?”, espantava-se o
instrutor esquentadinho. “Com licença, precisamos escrever nosso relatório final, nossa
avaliação ainda está em aberto e já são quase dez da manhã” Pontuei. “Filhos…”
introduziu o coordenador. “... me falem suas matrículas. Estão aprovados”.

Amanhã será a cerimônia. Tomara que tudo isto tenha valido a pena. Foram dois anos e
meio adiando a possibilidade dele estar morto. Preparei-me ao invés de buscá-lo,
procurá-lo… Foi uma escolha pensada ou foi uma resistência à real e possível morte
dele? Talvez tenha sido só covardia, mas aqui estou. Amanhã eu serei um membro da
Força Civil Nacional. Depois de amanhã eu irei te procurar, custe o que custar. Não sei
se vou te encontrar… Só sei que hoje faz dois anos e meio. 

04 Fre-ne-si

05 A Grande Invasão

06 Predadores e Cavaleiros

07 Krónos e Kairós

08 Game Tokyo II
09 Você Vai se Arrepender
-Sim, isso.

-Hey você!

-Vamos, levante.

-Acorde...

-Abra os olhos.

-Sim, isso.

-Hey você!

-Vamos, acorde.

-Levante...

-Abra sim.

-Os olhos, isso.

Eram todas a mesma voz se repetindo e embaralhando as mesmas palavras e em


entonações diferentes. Não podia ser Galadina, digo, não era possível que a própria
garota estava com sua boca salgada e dormente articulando essas palavras, pois a
mesma não conseguia mover um músculo sequer. Sua pele branca ardia, sua cabeça
doía, seus olhos não enxergava nada além de um clarão. 

-Hmmm - ela gemeu com suas cordas vocais. Assim podia diferenciar o que estava na
cabeça, e o que não estava.

A garota pensou então que estaria esquizofrênica enfim, mas poderia ser apenas
alucinações causadas pelo seu estado físico e mental de desordem... O que era
esquizofrenia mesmo? Ela já esquecera, mesmo tendo sentado no escritório do primo
mais velho que vivia com sua família antes mesmo dela nascer... Antes dela perceber
que era uma alma feminina dentro de um corpo XY... ela tinha estudado, estudado
muito, para entender o que ela era. Começara daí, por achar que ela estava louca,
mesmo aos 5 anos naquela época - sim, ela era uma garota prodígio. 
Gally, como gostava de ser chamada, estava acordando novamente jogada na praia ao
pôr do sol, queimando seu lado direito, enquanto seu lado esquerdo ardia com a água
que vinha e ia. A água do mar, que quando na sua pele tocava indicava uma lesão,
talvez por estar ali há muito tempo.

-L... - ela tentou articular sua língua seca em seus lábios murchos.

-Lev... le... - arfou, respirou fundo e sentiu seus pulmões doerem.

Tossiu.

Tossiu mais forte.

Ardeu.

Ardeu seu interior enquanto tossia forte. A água que saiu tinha gosto de derrota
misturada com sal. Ela não se lembra de muito do que aconteceu, mas se lembra que
precisa levantar e sente que precisa se esconder. 

Não tinha muito apoio, que não fosse seu primo, o mesmo que fazia exames na menina,
a deitando em seu colchão, a despindo e introduzindo canetas em seus orifícios, mesmo
que a mesma fosse apenas uma criança. Todas as vezes que ela queria falar... Todas as
vezes que ia dizer "me sinto como uma...", seu primo iniciava seu exame antes de mais
nada, e a escutava, a dava espaço de voz. 

"Não é hora para lembrar disso" - ela pensou. Mas ao mesmo tempo não sabia porque
lembrara disso. Ela não lembra de seu próprio rosto, não lembra de seu próprio corpo,
não lembra de seus próprios pais e sua mãe. Mas ela sabia que eram três. 

A garota então levanta tossindo e cospe o que restou de água em seu pulmão. Ela senta
e começa olhar a fantástica obra da natureza feita por Deus.

-Deus pai... - Ela fala recuperando sua memória de uma devoção a Deus - se tu és pai e
mãe de todos, tu há de me perdoar...

A garota chorava enquanto falava, apertando seu corpo contra suas pernas e agora
escondia sua face, em vergonha a deus.

-Então... - ela continua tentando entender o que está acontecendo - Então... - logo lhe
vem em mente a imagem de uma mulher com o dedo apontado para seu nariz - Então...
- Ela esquecera o que iria falar. E chorou.
Chorou até a noite. Estava doendo e ardendo... Seu corpo... Sua mente... Seu coração...
Doeu de tal jeito que nem as estrelas que pintam o céu estavam sendo suficientes para
chamar a sua atenção. 

Gally ficou com vontade de urinar. Então levantou, andou com dificuldades para um
lugar mais afastado, dessa vez longe do mar. Encontrou um árvore rodeada de folhas, se
agachou, inclinou seu corpo de forma a seu pênis retraído ficar apontado para o chão e
direcionar seu jato de urina. 

A garota não queria nem olhar para baixo, mas ao mesmo tempo teria que ter cuidado
para não molhar os pés... de urina, pois esses estavam já molhados. 

Gally se balançou, enxugou a glande com a ponta de sua saia úmida e azul clara, que ia
até seus joelhos lisos de pelos e cheios de ferida. Assim guardou seu presente diferente
que Deus a deu em sua calcinha de renda.

"Já sou velha de mais para isso" - Gally pensou olhando para seu vestido e calcinha, de
renda, com babados, rodados, como de uma garotinha de cinco anos, mas a menina
possuía 16, mesmo aparentando 13 anos de idade. Logo correu para a água do mar para
tentar se enxergar. A luz da lua talvez pudesse mostrar para ela seu rosto. Seu rosto que
estava então obscuro em sua mente, com tanta coisa vindo à tona aos poucos, com
tantas dores e ardores, sabores salgados desaborados de um despertar confuso à beira da
praia.

Ao chegar à margem, Gally caiu de joelhos, e sentiu mais uma vez a dor das feridas,
mas para ela não importa: precisava se olhar. 

Era difícil então, pois a água estava se movendo, e ela não possuía uma visão clara da
imagem que aparecia ali. Então se levantou revoltada, deu as costas, e ficou de pé na
areia, quase de frente ao início da vegetação. 

Gally começou a se despir. Logo, começou a se tocar e de olhos fechados e


sincronizando sua respiração… Inspirando por quatro segundos… expirando por oito
segundos… Inspirando pelo nariz, expirando pela boca…

Os toques começaram pela cabeça. Seus cabelos eram curtos, talvez iam até o ombro,
mas estavam com muito frizz e inchados, formando a moldura de seu rosto ovalado. Seu
queixo era pontudo, suas mandíbulas bem marcadas, com sensação um pouco áspera de
seu cavanhaque que já se formava sutilmente, pra seu descontentamento. Seus lábios
eram estranhos, pois o inferior era muito grosso e o superior era muito fino. Havia um
bigode muito ralo que a fez estremecer de tristeza - pensou em arrancar, mas precisava
de um espelho digno e de ferramentas para isso.

Gally voltou para suas bochechas macias e sorriu. Seus olhos eram grandes, e suas
sobrancelhas eram grossas, espessas... Ela se entristeceu novamente, pois lembrava que,
mesmo que algumas pessoas elogiassem, ela não se sentia bem. Seu primo uma certa
vez se prontificou para levá-la numa clínica de estética que possuíssem designer de
sobrancelhas para tirarem dela. De certa forma Gally sabia que isso não era bom... Por
que o primo que a apoiava iria...

"Nossa!" - ela pensou - "Meu primo me..." - defendia em casa. Era estranho alguém que
te defende dos outros não te defender de você mesmo quando estás em momentos em
que o inimigo é você mesmo.

A garota continuou com seu momento solene e de olhos fechados. Voltou aos seus
cabelos e descobriu que havia um coque malfeito no oco de sua cabeça. Sorriu então,
lembrara que era para se sentir mais feminina. Que bobagem, nem todas as garotas
precisam disso Gally. Assim ela retirou a xuxinha da cabeça e a colocou no pulso. 

Gally subiu novamente as mãos, dessa vez as levou ao seu colo e percebeu uma corrente
fina que levava a um medalhão. Ela lembrou a origem daquele medalhão sem precisar
abrir os olhos, ou o medalhão, que enchia a palma de sua mão.

Então lhe surgiu uma lembrança: Seu primo parou de tocá-la quando chegara aos dez
anos, e tudo ficou diferente, até seu escritório saiu da casa de seus tios e tia. Ele havia a
deixado. Ela estava magoada no início… Talvez por Estocolmo,... mas depois de dois
anos, ela foi a seu escritório o surpreendê-lo. Ele estava de branco, de jaleco, e muito
assustado. Eles brigaram por u período assim, de fim de uma tarde e o início de uma
noite. 

Gally perdera seu protetor, apesar de sentir raiva e de, inclusive expor a ele naquela
briga, ter sido... abusada com canetas e masturbações quase todas as noites do ano em
que completara doze, apenas pensando naquilo com sensualidade, inocência, amor,
raiva, sentimento de culpa e depressão.

A garota questionava, quem era aquele que a protegia do mundo mas não dela mesma?
Quem era aquele que a protegia do mundo mas não desse próprio protetor? 
Aquela noite, a dessa memória específica, foi intensa... "Eu vou te esperar", gritava o
primo... "Isso não está certo, agora não está, antes não estava, eu preciso esperar mais"...
E ela? Julgava que não ia conseguir sustentar-se na casa de seus pais e mãe por muito
tempo se não houver algum cúmplice. Seu primo a usou e a deixou, com a promessa de
uma paixão futura. Ela precisava daquilo no presente, mesmo que fosse rejeitar no
futuro... era apenas por enquanto... era apenas por agora que Gally julgava não ter forças
nem aliados ou aliadas para a ajudar a crescer, já que ninguém se aproximava dela por
causa de seus genitores e criador.

-Sigh! - Gally suspirou com aquela lembrança. 

Apertou o medalhão, que era tudo o que restara de seu primo. Ela a deu naquela noite,
para se defender de qualquer um, inclusive dele. O medalhão possuía uma lamina curva
e afiada, feita para fazer a maior quantidade de dano possível, mesmo que curta. E era
grossa, quase na espessura do medalhão. Só era destampar e projetar no agressor com
sua mão. Seria essa a lembrança física de seu primo suicida, que não aguentara a afronta
da garota... 

Mais uma culpa que carregava.

Após fechar novamente suas memórias na cabeça, Gally continuou a tocar-se. Foi aos
ombros, largos e delgados, ela sempre desejou-os mais estreitos. Como mel suas mãos
escorreram para seus braços finos e sem nenhum traço de músculo. Eles ardiam por
conta do sol, mais até que seu rosto.

Gally esfregou as mãos, as unhas, algumas quebradas, algumas grandes... Seus dedos
curtos, em contraste com seus braços e ombros de um biotipo que não resultaria nesses
dedos. 

Suas mãos subiram novamente, para seu peitoral agora. Ela sentia as costelas, mas
também uma fina capa de gordura que as cobria. Em seus peitos os mamilos eram
redondos e estufados para frente, como de uma menina quase saindo da infância, uma
menina que começa a desenvolver seios, mas o tamanho de suas mamas pareciam meia
ameixa cada.

A garota riu aliviada e feliz. Continuou ali, apalpando suas pequenas bolinhas, com um
fio muito fino de lamentação, pois elas demoraram de surgir, seu corpo demorava de
aparecer... Ela parecia uma criança mesmo com seus dezesseis anos completos. Mas era
tudo o que sempre imaginou antes mesmo de chegar aos cinco, uma menina. 

Desceu então para sua cintura um pouco mais larga, apertou os pneuzinhos tímidos e
sorriu... Gargalhou baixinho, com classe. Foi conferir sua barriguinha, que quase fazia
uma dobrinha de leve sobre si mesma. Tentou medir enquanto ria mais alto. Ela
apertava com dois dedos... Não era grande coisa, mas uma modelo poderia se matar por
possuir uma barriguinha daquelas.

Gally estava gargalhando. Achava aquilo engraçado. "Nossa, como estou gorda!" - ela
pensava enquanto ria.

Balançou a cabeça para um lado e para o outro, como quem tenta se dizer um "não" para
se concentrar. Assim, deixou de rir e continuou a tatear seu corpo.

Foi para sua bunda. Lá ficou apertando... Apertando... Se lamentando não ser maior,
mas agradecendo por ser um tamanho que podia se orgulhar... Suas curvas, sua maciez...
Mesmo suas estrias e celulites. 

Então a empinou e separou as bandas. Esteve muito envergonhada daquilo... Não sabe
se foi a vergonha ou se foi o ato... que a fizera... Sentir o sangue no rosto... 

Algumas lembranças quentes dela com seu primo começou uma série de alterações em
seu corpo… A menina começou a respirar de forma ofegante... Ainda nem chegara em
suas pernas roliças porém finas, que a mesma lembrar que não gostava delas...

Ela não queria fazer aquilo... Ela não queria seguir com aquilo... Precisava ver suas
pernas, não lembrar de momentos de um amor proibido e descabido... Mas então não
resistira. Seus toques se dirigiram a lugares eróticos, para continuar a sensação que as
memórias le ofereciam. 

-Hm... - gemeu baixinho.

-Mas que linda - uma voz misteriosa fez seu corpo gelar, paralisou de medo e vergonha.
Tudo o que conseguiu foi perceber a respiração a um espaço pequeno dela.

Assim, Gally abriu os olhos.


O que viu não importava muito, inicialmente. Mas a sensação de estar sendo vigiada em
seu momento particular... A sensação de estar vulnerável ali, na noite com outra pessoa
à frente... 

-Erh... te assustei? – perguntou o estranho se afastando.

Era um rapaz com a pele cor de canela. Seu cabelo alcançava a cintura, e isso fez Gally
ficar mais curiosa que afugentada. Ele possuía um corpo queimado, com músculos
destacados, mas peitoral, coxas e barriga mais flácida e caindo. Seus pelos pretos e
grossos pelo peito, rosto e pernas se destacavam, mesmo na noite, entravam em
contraste com sua pele.

Ele estava vestido apenas com um short surrado, e com exceção de seu cabelo negro,
ondulado e imenso, todo o resto de seu ser estava maltrapilho e... cheirando mal.

Gally se afastou até perto da água em um grito abafado de timbre dúbio.

-Espera – o rapaz caminhou aceleradamente em sua direção – Eu não quis... não quis
assustá-la.

-Sai de perto de mim – bradou Gally com a voz tremendo.

-Está bem – disse o rapaz levantando os braços – olha, eu não vou te fazer mal algum.

-Saia – Gally sustentou sua posição.

-Você não... – o rapaz disse engolindo à seco – quer ao menos saber meu nome e o que
faço aqui?

Ele estava estupefato com a imagem de Gally, e queria se atirar para a moça

-Já viu onde estamos guri? – Se enfureceu Gally, agora de verdade, após relaxar na
presença de um possível agressor.

-Em uma ilha no meio do nada que mal possui animais e pessoas situada em algum
lugar do equador e por alguma razão ninguém vem aqui há anos?

-Mas o quê? – Gally se questionou se virando de lado, coçando a cabeça ao invés de


tampar seus pequenos seios que ficaram à mostra com a alça de seu vestido que caira.

-Não entendi o que você quis dizer com sua pergunta, não essa, a de antes – pontuou o
rapaz – mas eu não vou fazer nada com você, apenas... – disse ele se aproximando.
-Não se aproxime – Gally abriu o medalhão e o apontou para o misterioso rapaz,
mostrando a lamina curvada.

-Olha, eu juro que não vou fazer nada, eu só estou tentando entender a situação.

O medo havia se dissipado, principalmente por ter cruzado a imagem de seu primo no
rapaz. 

-Espera, o que você disse? – perguntou Gally parando para pensar.

-Olha, eu juro…? – repetiu o rapaz olhando para cima – eu te...

-Não isso, imbecil... – disse Gally recuando o medalhão e relaxando o corpo – o que
você estava falando... sobre a ilha…

-Que parece uma ilha na linha do equador, com dia longo e noite curta, deserta, sem
animais… e que você é…

- Que eu sou…?

-Linda – ele disse virando o rosto.

Gally achou fofo, não era possível que aquele menino não tivesse visto certo lugar que
ela estava tocando ao ar livre… mas ele ainda usava o pronome feminino… Era um
tolo, pois seu pronome poderia ser outro. Ainda assim, ela estava preocupada com muita
coisa. Mal conseguia lembrar de tudo e estava então aqui, como uma náufraga, talvez,
em uma ilha qualquer com um rapaz estranho a vendo em situação erótica se
aproximando. Sentiu vergonha novamente e se agachou na água, molhando suas roupas.

-Qual é seu nome então – ela perguntou para desviar a atenção.

-Eu sou Derek, mas pode me chamar de Dery – disse o rapaz sorrindo e tirando sua
bermuda, deixando tudo à mostra.

-NÃO SE APROXIME – gritou Gally virando o rosto. “Ele é cis?”, pensou.

-Garota, esse é meu local, vim tomar banho aqui... faço isso há mais tempo que me
lembro... Você que não deveria se aproximar – ele disse ríspido - E cá pra nós, agora
estamos quites, sua exibicionista.
-O quê?

-Perdão... Eu sou um pouco territorialista, tive que aprender isso aqui – ele disse já
agachado, com suas vergonhas sob a água e mais próximo de Gally. 

Ele queria falar dos perigos daquele lugar, mas a garota tinha outros planos. Ela parecia
se sentir livre nessa noite. Ela admirava seu cabelo movendo no mesmo ritmo da água...
Cabelos bem negros, volumosos, ondulados, que cobriam toda a extensão de suas
costas.

-Você... Esta bem? – ele perguntou a ela.

-Sim, você já não me assusta mais – Gally respondeu – apesar d’eu achar que você está
próximo demais... Apesar d’eu achar que eu não tinha intenção de vir a esse lugar, ou
algo parecido... Apesar d’eu não saber o que é que eu estou realmente fazendo aqui...
apesar d’eu... – ela começou a chorar.

-Calma – ele se aproximou para abraçá-la

-Pare! – ela falou alto de olhos fechados e chorosos.

A imagem de seu primo ainda pairava em suas lembranças. Alguém que a protegia e a
abusava. Essa ambiguidade a deixava sem liberdade de contato com esse outro que lhe
aparecera.

-Mas que linda... – Dery falou novamente.

Gally abriu os olhos e viu o rapaz afastado. “Não vou me aproximar apenas porque ele
me chamou de linda”, pensou.

-Você acha? – perguntou divergentemente de seu pensamento.

-Sim.

-Mesmo sabendo que...

-Que...?

Gally não respondeu. Apenas relaxou o corpo e se concentrou nos movimentos das
águas. Enquanto isso Dery estava cantando alguma música estranha, e o cheiro de coco
pairava no ar.

-O que é isso? – Perguntou Gally virando seu rosto para Dery.


-O quê?

-Sabão? – Gally estava surpresa.

-Sim, com coco. Eu mesmo quem fez! – respondeu o rapaz – Não fiquei cinco anos com
meu traseiro gordo numa universidade por nada! Eu sei fazer saponificação! Yes! –
falou como se tivesse cinco anos de idade.

Gally riu. Riu mais alto do que quando estava sozinha.

-Há quanto tempo você está aqui, idiota? – ela perguntou a ele.

-Não sei, mas cheguei aqui com uns dezanove anos. Tinha terminado a faculdade de
química... De certa forma eu sou um prodígio sabia? Dery é sabidinho – disse com tons
de inocência.

Gally queria ficar assustada com cada coisa que o rapaz dissera, mas ela estava muito
ocupada achando tudo aquilo engraçado. Estava rindo. Rindo de tudo. Da situação, do
local, das feridas, das queimaduras, daquele cara. Do fato que ela mal lembrava das
coisas, e mal lembrava de seu rosto.

Parou de rir

-Ei, volta rir – Derek se aproximou dela com as mãos levantadas, como as de quem quer
consolar mas não quer tocar naquele que precisa ser consolado.

-É que eu... só queria olhar meu reflexo novamente... Não sei de nada que tá
acontecendo, só queria me ver... Não quero saber de nada... Só de...

-Hum... essa água conosco aqui está muito agitadinha – disse Derek pondo uma cara de
pensativo – Ah, já sei! Vem comigo, vou te mostrar outro lugar. Mas lá não podemos
nos banhar, só... nos olhar e beber a água.

Gally ficou com sede.

-Quem disse que eu vou andar com você daqui até esse tal lugar misterioso? Eu nem te
conheço – disse Gally com tom arrogante.

-Você vai andar porque você disse que queria ver seu reflexo – respondeu Dery – Tu
deve estar bastante preocupada com isso, não foi à toa que estava se tocando tanto de
olhos fechados à luz do céu estrelado parecendo outra estrela. 
Gally corou de vergonha.

-Se você tentar qualquer coisa comigo eu te mato – disse segurando o medalhão.

-Fechado, já terminei meu banho mesmo.

-Axilas, rosto, barriga e... genitais? – perguntou Gally – que banho foi esse?

-Não consigo ficar tão à vontade com mais alguém por perto – respondeu Dery
envergonhado - Então foi a versão encurtada de banho… sabe, o banho dos meninos.

-Você ainda parece um bobo adolescente, sabia? – Gally disse séria. Enquanto Dery ria
nervosamente – Levante primeiro, eu vou atrás.

E assim fizeram. O rapaz foi na frente, se sacudiu, torceu o cabelo para tirar o excesso
de água. Vestiu sua bermuda, jogou o sabão por aí e se virou para Gally.

-Gally é meu apelido – disse ela terminando escorrer a água de seu vestido.

-Apelido bonito.

-É, meu... – seu primo que dera.

-Meu...? – perguntou Dery curioso.

-Não encontro minha calcinha – Gally desviou o assunto.

Na verdade ela não lembrava que havia tirado sua calcinha em momento algum, pensou
que talvez tenha ido embora com a correnteza. Será que era folgada?

-Não há tempo, vamos, temos que ir – disse Dery como uma criança correndo mata à
dentro puxando Gally pelo braço.

-Me solta! – disse ela sendo praticamente arrastada – Seu imbecil, vai me ferir! – Mas
não a feriu.

Gally estava preocupada com sua pele queimada, mas tudo o que havia eram traços em
seu braço que brilhavam dentro da mata, contrastando sua pele com tons amarelos, de
uma oriental. A menina ficou olhando para seu braço enquanto seu vestido subia e
descia, e seu pênis retraído mal balançava. Ela não estava mais sentindo vergonha por
algum motivo. Estava gostando de Dery.
Depois de correrem por um tempo, e arfar bastante, Dery gritou de alegria, soltou a mão
de Gally e correu em uma direção. Sumiu. 

-Dery!? – Gally começou a ir em sua direção com medo de estar sozinha naquele lugar
estranho.

-Aqui! – gritou o rapaz.

Gally começou a correr na direção de sua voz e se deparou com um lago. Derek estava
de joelhos, com seu traseiro parcialmente aparecendo, virado pra lua, com a cara
enterrada na água e o cabelo preso em um coque imenso. A menina se aproximou
achando a cena bonita, e Dery levantou a cabeça fazendo um som daqueles que damos
após bebermos água. 

-Vem, prova – Dery falou se virando para trás.

A menina se aproximou lentamente, admirando a cor da água, um azul turquesa


brilhante, possivelmente refletindo a luz da lua e as estrelas. Gally abaixou, colocou o
rosto na água e bebeu um gole. Levantou a cabeça olhando para os olhos negros de
Derek... Voltou a beber aquela água. E lá esteve por um tempo considerável.

-Vai se engasgar assim – advertiu Dery.

-Eu não me importo – disse Gally levantando – A água está ótima!

-Não só a água... Olhe ao redor.

Gally foi lentamente olhando ao redor. Percebendo os detalhes que não sabia identificar
direito... Era como se ali houvessem coisas que ela não sabia detalhar.

Ela percebera que do outro lado havia animais tímidos bebendo água à margem do
lago... Que as árvores pareciam estar ajoelhadas em círculo, como os adoradores
daquele lago... As flores pareciam brilhar e nasciam voltadas para o lago. Os vagalumes
iluminavam o que estava obscuro... Pássaros dormiam em suas tocas. Grilos cantavam
junto com os sapos... Era uma cena linda que Gally nunca vira na vida.

-Lindo não é? – disse Derek com olhos fechados e um sorriso cheios de dentes.

Gally sorriu pacificamente.

-Só não mais lindo que eu – disse a menina.


Ambos começaram a gargalhar e caíram para trás.

Derek ficou deitado de lado e colocou sua mão sobre o ombro de Gally.

-Você ainda tem aquele... troço com a lamina? – perguntou Dery olhando dentro dos
olhos de Gally.

-Sim, não tente nada engra... – ela foi interrompida por um beijo inesperado de Derek.

Gally fechou os olhos, respirou fundo, e quando Derek se afastou, ela disse:

-Podia ter sido na boca.

-Achei que seria mais adequado ter sido na bochecha.

-Foi fofo – disse Gally – mas podia ter sido na boca – ela falou olhando para Derek.

Não falaram nenhuma palavra. Se aproximaram, acariciando um o cabelo do outro.


Beijaram-se. Derek focado nos lábios inferiores e carnudos de Gally, enquanto ela
focava no de cima. Ambos não sabiam beijar, era a primeira vez. Mas sentiram que
podiam fazer isso, mesmo sem perícia. 

As carícias dos dois começaram a ficar mais intensa. Gally e Derek estavam ambos
excitados e envolvidos em um sentimento estranho.

Derek subiu em Gally, abaixou a alça de seu vestido e começou a mordiscar seu corpo.
Gally apenas gemia baixo enquanto admirava as estrelas. Ela sentiu um volume de
Derek roçando em sua barriga, ainda dentro da bermuda do rapaz.

Gally puxou a bermuda de Derek para trás, Dery então se despiu e voltara a sentar sobre
o corpo de Gally para estimular lábios e outras regiões.

A menina estava com muita excitação, ela ficava imaginando o rosto de Derek enquanto
seus olhos estavam fechados, mas esquecera do seu, mesmo tendo acabado de vê-lo no
reflexo do lago. Na verdade não prestara atenção de novo, pois focou na água e em
Derek. Ela deixou isso para lá... Não queria se ocupar disso... Queria curtir o momento
que estava com Derek.

Gally soltou o cabelo úmido de Derek, empurrou seus ombros e ficou admirando seus
traços, seus pelos, seu cabelo, sua imagem, seu som, e seu cheiro misturado com coco. 
-Gally – falou Derek fechando os olhos.

Ambos estavam sintonizados... Pois Gally, mesmo sem imaginar, levantou o vestido,
Derek se posicionou sob a púbis de Gally e então forçou uma conexão entre os dois.
Ambos começaram a gemer baixo, enquanto Dery fazia os movimentos, Gally apenas
esticava suas pernas e segurava a cintura do rapaz com muita força, sentindo os cabelos
longos dele molharem suas mãos.

Ambos não sentiam dor... Ambos não sentiam mais culpas. Era só os dois.

Derek sobre Gally fazendo movimentos, e Gally percebera que a pele do rapaz se
mexia, como se ele houvesse emagrecido rapidamente. Ela então desviou-se desse
detalhe e focou-se em seu prazer, até ambos…

Gally sorriu babando, Dery abaixou a cabeça com olhos cheios de lágrimas, com seu
cabelo caindo sobre o rosto de Gally, com algumas lágrimas gotejando.

Inda que chorando, Dery não estava triste, e Gally sabia disso. Ele desceu seu rosto
grudou seus lábios com os de Gally em um beijo prolongado, para celebrar o ápice de
tudo aquilo.

Após o beijo, ambos estavam ofegantes, um olhando para o outro. Riram. Se abraçaram.
Se morderam. Deitaram. Olharam as estrelas. Falaram do céu, das águas, dos animais,
da terra, do amor, da dor.

A menina estava hipnotizada pelo rapaz.

-Eu quero me banhar – pontuou Gally.

-Vamos à praia – respondeu Dery.

-Não, eu quero me banhar aqui.

-Então vamos esperar mais um pouco, venha – chamou Dery.

-Dery, em lugar nenhum no mundo eu vi e senti algo parecido. Eu, não me importo
mais, eu quero...

-Gally, então vamos esperar mais um pouco, ok?


-Por que você de repente ficou tão chato? – Perguntou Gally – eu nem lembro ao menos
do meu rosto. Essa experiência toda é estranha a mim... Sendo assim, não devo fazer
coisas de forma livre?

-Gally – Dery olhou para a garota preocupado.

-Ademais, por que você não se banha aqui? – perguntou a garota.

-Eu não sei...

-Então... meu primo dizia que devemos saber das coisas, questioná-las, experimentá-las
– Gally falou como se tivesse dito essa frase antes. Ao mesmo tempo a menina se
entristeceu em colocar o primo nessa situação novamente... ele já não merecia ser
lembrado.

-Eu entro com você então – respondeu Derek.

Entraram sem roupas no lago magnífico. Não antes de Gally ver novamente seu rosto.
Mas estranhamente não o guardou na memória... 

Eles estiveram abraçados, na água. Jogando jatos um no outro. Rindo alto, beliscando,
puxando cabelo.

Em mais um momento Gally e Dery se aproximaram sensualmente e inocentemente.


Dessa vez Dery estava por trás, forçando-se a se conectar com Gally, que gemia contida
enquanto a mesma puxava o cabelo de Dery para ele mordê-la no pescoço.. 

Juntos estavam bem. Juntos eram tudo o que precisavam naquele momento. Juntos era o
que importava. Nada mais era importante. Nada mais. Nem os riscos do braço de Gally
se abrindo em cortes na vertical, seguindo suas veias e derramando todo o seu sangue na
água. Nem a gordura de Derek saindo pelo nariz juntamente com drágeas e
comprimidos. Gally estava os engolindo, os tirando da água, pois estavam boiando,
enquanto Dery tentava chupar o sangue de Gally diretamente de seu braço.

Seus corpos estavam grudados sob a luz do céu estrelado e da lua.

-Sim, isso – Falou Gally

-Vamos – estimulou Dery.

-Sim – Disse a menina.


-Isso, abra – gemeu Derek enfiando sua língua no profundo e imenso corte no braço de
Gally, o que ia da mão ao ombro.

-Vamos acorde… - Gally ouviu uma voz.

Não podia ser só a Galadina, digo, não era possível que a própria garota estava com sua
boca salgada e dormente articulando essas palavras, pois a mesma não conseguia mover
um músculo sequer. Sua pele ardia, sua cabeça doía, seus olhos não enxergava nada
além de um clarão.

-Hmmm – ela gemeu com suas cordas vocais.

Tossiu.

Tossiu mais forte.

Ardeu.

-Deus pai…

Gally estava deitada à praia, sentido parte de seu corpo queimado do sol, sem saber
onde estava, sem memórias daquele lugar misterioso. Ao longe da paisagem, um
homem de estatura mediana se aproximava. Ele usava terno, gravata, sapato social mas
com aspecto surrado nas roupas.

Aos poucos o homem se aproximou de Gally, sem conseguir falar, com uma imensa dor
de cabeça. A menina se levantou e olhou no fundo dos olhos do homem com uma
sensação estranha de familiaridade.

- Eu te conheço? – perguntou o homem com voz rouca enquanto segurava o fundo da


cabeça pela dor que sentia.

Gally olhou novamente para ele... olhou a sua volta, mal sabia que quem estava à sua
frente era um outro que deveria passar pelo mesmo ritual, mas dessa vez era alguém de
seu passado. A garota irá se lembrar?

10 Protessividade
11 Eus
Era domingo. Estávamos todos saindo de lá, aquela igreja da infância, que minha mãe
congregava enquanto meu pai era um beberrão. Apenas duas coisas me vêm à mente, a
primeira é como puderam nos encontrar para fazer esse convite estranho de
participarmos do culto de confraternização dessa igreja? Digo, há vinte anos não temos
mais contato com ninguém daqui, por mim nós não viríamos, cada um iria para cada
igreja que congrega – todos congregamos em igrejas diferentes hoje... a família parece
dividida.

Bem, a segunda coisa que vem à mente é esse homem. Ele parece com meu pai, fala
como meu pai, só que um pouco mais calmo. Come como meu pai, é extremamente
sistemático e cheio de... como chama mesmo? Frescuras com a vida, com as coisas da
casa e com a alimentação... Assim como meu pai. A questão é que: ele não é meu pai! E
não importa o quanto eu fale, todos apenas me silenciam, todos estão felizes porque
meu pai estava novamente conosco após seis anos... bem... ele havia morrido há seis
anos.

Ninguém achava estranho estarmos em plena Cidade Baixa de Salvador, caminhando


nas ruas que marcaram minha infância. Aqui estávamos nós quatro: Meu pai – ou o que
quer que seja isso –, minha mãe, minha irmã e meu irmão. Caminhando para casa... Ou
para um ponto de ônibus.

Estávamos subindo uma ladeira aleatória e eu não conseguia mais me segurar, tinha
passado a manhã inteira sem falar por um momento sobre o fato estranho de que nosso
pai falecido estava entre nós. Deixei meus pais, que estavam de mãos dadas, andando
mais um pouco à nossa frente, enquanto atrasei os passos com meus irmãos, fazendo
sinal de que queria falar com eles.

–Vocês não vão mudar de ideia mesmo, não é? – perguntei no meio dos meus dois
irmãos.

–Henrique – disse meu irmão Otávio – Para com isso! Olhe só pra eles, estão juntos de
novo, estão conversando, curtindo... Indo para igreja, caminhando de mãos dadas...
Ambos passando mais tempo em casa, você quer estragar isso?
–Eu não quero esse... cara em casa Otávio – disse olhando para meu pai – Ele... Não é
nosso pai!

–Não fale isso, você sabe como foi quando... – disse Jessica, minha irmã, quase
gaguejando.

–Quando? – perguntei com acidez na voz

–Eu não vou falar de novo, se pra minha mãe estiver tudo bem, para mim também! –
Avisou Otávio apressando os passos.

–Você sempre foi assim, sempre! – Reclamou Jéssica – Nunca se deu bem com meu pai!
Além do mais, nunca esteve conosco, sempre se esquivando de ficar com sua família!
Sabe Henrique, você é muito egoísta mesmo, estamos todos felizes, você não pode ficar
feliz também!?

E Jéssica apressou os passos para alcançar os outros.

Eu não queria saber se era o egoísta ou não! Além de que, não importa! Não importa
que eu e meu pai nunca fomos bons um com o outro. Eu senti sua falta, chorei lágrimas
que nunca iam secar... Fiquei vazio por dentro... Mas aqui ele está, dentre os vivos – os
quais eu tenho mais preocupação que os mortos.

Isso não era normal. Estou falando isso há dias... Semanas... Isso não é normal. Não tem
como alguém simplesmente aparecer em casa após seis anos morto e agir como se nada
tivesse acontecido.

–Paulo!? – uma voz rouca rompeu meus pensamentos – É você?!

Eu olhei a cena de meu pai fazendo festa. Era Ed, um antigo amigo de bar de meu pai.

Enquanto minha mãe sorria de ver a cena dos dois, eu olhei bem para a cara de Ed, ele
estava amedrontado, com olhos arregalados, pálido como se estivesse vendo um
fantasma, logo ali em sua frente. Ele balbuciava coisas como “não pode ser” e como
“você morreu, eu fui ao seu enterro”!

–Morri e renasci em Cristo! – dizia o cara que dizia ser meu pai – Sou um novo homem
agora Ed!

–Mas não é possível... Não é normal... – Ed continuou falando enquanto meu pai
pousava sua mão em seu ombro.
Finalmente alguém além de mim disse isso... Não, não é normal mesmo Ed!

–Não diga isso! – Gritou Otávio com raiva de Ed.

Eu não queria me meter na confusão. Comecei a andar para trás e me afastar deles.
Todos pareciam estranhos para mim, agora mais que nunca. Não aceito isso; não
acredito nisso.

Quando eu estava longe o suficiente, virei uma rua que me levaria a um caminho mais
longo para chegar em casa. Ou era na parada de ônibus mesmo? Não conseguia me
lembrar. Mas as coisas começaram a ficar estranhas. Eu havia passado por Ed
novamente, e dessa vez ele não me reconheceu.

Mas Ed estava com minha família em outra esquina.

Eu parei de caminhar e fiquei assustado. Ed tinha um irmão gêmeo? Havia anos que não
o via, não possuía intimidade com ele ou sua família desde sempre... mas nunca soube
desse irmão gêmeo.

Dei meia volta e resolvi segui-lo.

Seu caminho nos levou novamente onde nossa família estava. Todos estavam lá...
Esse... meu pai, minha mãe e meus dois irmãos... Além de Ed, tremendo, agora gritando
apontando para o irmão gêmeo dele... que estava paralisado da cabeça aos pés, olhando
fixamente para Ed.

Não eram irmãos gêmeos... Algo me dizia isso!

As pessoas ao redor deles não estavam entendendo a reação desmedida de Ed. Meu pai
estava tentando acalmá-lo, mas ele estava histérico: se debatia, gritava, apontava...

E eu... Sem entender coisa alguma...

Se Ed parece estar estupefato olhando para meu pai; se Ed estava histérico olhando para
seu “gêmeo” como se fosse algo macabro, e seu “gêmeo” estava pálido olhando de
volta... Eu, que vejo filmes demais, pensei comigo mesmo: as pessoas estão sendo
duplicadas.

Isso era ridículo, mas eu estava convicto de que, por mais que possa ser um delírio era
melhor delirar que aceitar que meu pai havia voltado.
O gêmeo de Ed começou a se mover na direção contrária, passou por mim e desceu a
ladeira como se fosse um robô sendo reprogramado. Eu não pensei novamente, desci
atrás dele, apesar de minha família ter ficado lá, no topo da ladeira gritando para eu
voltar.

“Eu preciso ver até onde esse cara está indo, talvez tenha alguma pista para me explicar
o porquê de meu pai ter voltado” – eu pensava enquanto o seguia.

Ele entrava em becos, em ruas, dobrava esquinas, descia escadas... Eu seguia seu
percurso errático como um religioso segue uma procissão de seu santo.

Ele parou, se virou... Olhou para mim, e paralisou.

Eu estava há uma distância segura dele, haviam muitas pessoas, mas ele parecia saber
que eu tinha o seguido.

“Droga! Ele percebeu” – pensei.

Fingi que estava perdido. Olhei as horas, olhei ao redor, virei as costas e comecei a
andar na direção contrária. Eu iria dar vinte passos e olhar novamente para trás. Queria
testá-lo; talvez ele voltasse a caminhar, caso sim, eu voltaria a segui-lo.

E fiz isso.

Um, dois...

Catorze, quinze...

Vinte! Virei!

Meus olhos tentaram procurá-lo, mas o que eu vi me deixou ainda mais confuso: minha
mãe estava vindo em minha direção sorrindo e olhando dentro de meus olhos...

–Mas o que você está fazendo aqui? – perguntei a ela – Você estava lá encima, com...

–Vocês me esqueceram – disse ela rindo sem graça.

Eu estava por dentro deveras estupefato. O homem o qual eu estava perseguindo já


havia sumido da região. Seu nome? Eu esqueci. Suas feições? Eu esqueci. Quem era
mesmo?

–Não, nós subimos juntos... e meu pai...


–Seu pai? – perguntou ela – Ainda com saudades, não é? Eu ainda sinto também.

Ela me deu as mãos e saímos andando. Sim... de vez em quando ando de mãos dadas
com minha mãe, ou com a mão direita em seu ombro direito. Algo que não aconteceu
durante esse período em que esse homem estava presente, que parecia ser meu pai.

Ela estava falando sobre o culto de confraternização, de como havia sido muito belo...
As músicas escolhidas, as crianças cantando... O pastor lendo a bíblia... A visita de um
padre para simbolizar união entre denominações do Cristianismo... Que nunca havia
sentido tanto amor e união.

–Houve um padre! – falei surpreso – Incrível, não percebi!

Comecei a me culpar por ter participado de uma confraternização nessa igreja e nem ao
menos ter prestado atenção nela, digo, minha mãe queria muito vir... Ela veria antigas
amigas da época que era mais jovem... Que era uma jovem mãe com filhos bem
pequenos, batalhando dia a dia em casa.

Antes que ela falasse mais alguma coisa, ambos conseguimos ver algo que nossos olhos
não estavam acreditando. Havia outra dela vindo na direção contrária falando sozinha.

–Esqueci a bíblia! Meu Deus, perdi minha espada! – dizia ela apressada como o coelho
branco de Alice.

Olhei para o braço de minha mãe, a que estava comigo, e ela estava com a bíblia.
Lembrei que minha mãe, a que subiu antes, estava com a bíblia quando saiu. E quem era
aquela? Espera, se minha mãe estava com o resto de minha família, como ela podia
estar voltando da igreja por termos deixado ela lá? E quem é essa...?

–Meu Deus, mas o que está acontecendo? – perguntou minha mãe que estava comigo
olhando a minha mãe que passou por nós sem nos perceber

–Há outra de você... – eu disse embasbacado

Minha mãe foi atrás dela mesma, me deixando parado na rua.

–Espera – disse a seguindo, ainda estupefato.

O que estava acontecendo?!

Nós apressamos nossos passos, e até corremos. Quando alcançamos essa... Mãe
apressada, a minha mãe e eu ficamos parados, olhando ela da cabeça aos pés.
Elas estavam vestidas de forma idêntica!

–Quem é você? – perguntei a ela sem resposta – Me diz, quem é você!? – perguntei a
balançando.

Olhei para a mãe que estava comigo, no intuito de dizer algo, entretanto ela estava
paralisada: nenhum centímetro dela mexia. Eu a balancei, mas ela não se mexia nem
falava. Eu balancei as duas, enquanto as pessoas olhavam para nós três, e nenhuma das
duas reagiam.

Eu puxei a minha mãe, a que estava comigo, a que disse que a gente tinha esquecido ela
na igreja. Arrastei-a dali, então ela começou a se mexer.

–Ei, menino! – disse ela reclamando – Você está me machucando!

–Desculpa – disse deixando-a em paz.

–Vocês me esqueceram – ela disse sorrindo

–A gente não esqueceu você – falei pegando a mão dela e caminhando de volta em
nosso caminho – A gente achou que estávamos todos juntos – disse sorrindo.

Algo estava errado. O que eu estava fazendo mesmo? Isso era estranho! Por um
momento agi como se minha memória havia sumido. Mas eu me lembro! Eu me lembro
o que estava fazendo! Estava perseguindo pessoas duplicadas! Eu precisava saber o que
estava acontecendo, mas não queria olhar para trás... não queria saber quem era aquela
que passou apressada.

–Mãe, meu pai está estranho... quero dizer... ele voltou... – falei para testá-la.

–Como assim seu pai voltou? – ela perguntou assustada.

Eu soltei as mãos dela

–Mãe, meu pai está de volta, ele foi para a igreja conosco – disse esperando a sua
reação.

–Menino você está bem?! – ela perguntou – Seu pai nunca voltou na verdade... Você
nunca conheceu ele...
Meus olhos se encheram de lágrimas, minhas mãos começaram a tremer, minhas pernas
começaram a cambalear. O que eu queria mesmo? Que qualquer uma mulher de meia
idade e sobrepeso que tivesse o rosto de minha mãe fosse ela mesma?

–Você não é minha mãe – disse assustado, me virando em qualquer direção.

Corri.

Corri a esmo... Sem olhar para onde ia, sem olhar para onde estava. Minha mãe sabia
que meu pai havia falecido; minha mãe sofreu a morte de meu pai; eu sofri o luto de
minha mãe... Como assim? O que estava acontecendo? O que estava...

Eu parei cansado em uma rua, pus minhas mãos no joelho enquanto arfava atrás da
maior quantidade de ar possível.

Meus cabelos caíram sobre meus olhos, e as pontas estavam me espetando. “Meu cabelo
não é assim, curto e liso... É médio e cacheado” – pensei, mas não queria atestar o fato,
já não sabia o que fazer...

Levantei minha cabeça e vi uma atriz conhecida... Era ela paulista e estava falando um
bom bainês, além de que, seu cabelo estava cacheado. De repente passou outra dela,
com cabelo liso. As duas pararam, se encararam... Eu parei de olhar para elas e comecei
a olhar as pessoas em volta: todos comentando haver duas delas... Uns falavam que
eram gêmeas, outras diziam que eram sósias... Outras pessoas falavam que era
impossível estarem ali, a não ser que estivessem gravando alguma novela.

–Droga! – falei baixinho – Surtei, estou fazendo delírio e alucinação... Droga... Droga...

Voltei a andar extremamente cansado, lendo as placas nas ruas, procurando um caminho
conhecido... Estava próximo do fim das linhas de ônibus do bairro de Vila Ruy
Barbosa... Eu conhecia aquele lugar, mas tudo parecia igual.

Cansado, assustado, achando que estava enlouquecendo... Olhando para os lugares e


achando tudo parecido... Assim estava.

Passei a olhar para os rostos das pessoas, procurando qualquer evidência de uma nova
alucinação, pois era a única opção de se pensar: estou perdendo a sanidade... Venham,
pessoas duplicadas, mortos ressuscitados, padres e pastores dando as mãos! Venham! O
que viria agora? Super atrizes falando que se importam com a população negra?
Presidente caminhando em ruas esburacadas e chamando atenção de prefeitos? A rainha
da Inglaterra teria uma irmã gêmea que me adotou e criou como filho e sou dono de
parte da herança real do Reino Unido?

–Droga Henrique! Você está ficando louco – disse baixinho comigo mesmo.

Finalmente estava chegando no final das linhas de ônibus, e vi algumas colegas da


faculdade ali, conversando em bancos abaixo das árvores, como se conhecessem o
lugar. Nenhuma delas moravam na Cidade Baixa, algumas delas vieram de outro estado,
não havia possibilidade de serem reais.

“O que estão fazendo aqui?” – pensei.

Assim que terminei de falar isso em minha cabeça, todas elas, umas quatro, viraram o
rosto diretamente para mim, como se tivessem escutado minha voz. E ficaram me
encarando e sorrindo.

“Agora é que sintoma? Publicação do pensamento?” – pensei comigo – “Calma


Henrique, talvez elas conhecem o lugar; talvez elas vieram visitar alguém... não seja
paranoico assim!”

Mas isso não explicava o fato de que estávamos longo, e todas olharem para mim ao
mesmo tempo e sorrirem após eu terminar alguma frase em minha cabeça.

–Ah, que se dane! – disse voltando a andar em direção à avenida principal.

Cansado, suado, ofegante, e um pouco prostrado. Imaginando que teria que falar com
minha analista essa experiência, com toda a certeza. Imagino que ela irá pensar que há
algo de errado comigo, pois claramente há... Minha memória, meu juízo, minha
realidade... minha mente... Há algo de errado comigo... Algo de MUITO errado.

Enquanto caminhava, voltei a olhar os rostos das pessoas. Talvez eu quisesse muito
achar alguma evidência de realidade naquela experiência maluca. Então um cara sem
capacete estacionou uma moto preta e laranja à porta de uma mercearia.

“Que idiota, sem capacete” – pensei.

Logo, eu vi outra moto igual, parada de pé no passeio. Era estranho, pois não vi seus
descansos. Será que era a mesma moto duplicada? Ri por fora, pensando em estar
paranoico e louco! Automóveis são fabricados de formas iguais, para serem iguais! A
moto deveria estar na moda.
“Acontece, é normal seu idiota!” – pensei comigo mesmo.

Mas não era normal uma moto andar sozinha. Eu podia ver, com minha visão periférica,
uma moto me perseguindo, sem ninguém pilotando, ali ao meu lado... Era a segunda
moto, a que estava parada em um passeio – bem, não era uma tecnologia popular.

“Nada para estranhar” – pensei – “Siga seu caminho... para onde você está indo
mesmo?”

–Você percebeu também, não é? – uma voz masculina saiu da moto.

Minha espinha gelou, minhas pernas se enfraqueceram e eu quase caí – uma moto está
falando comigo.

–Eu sei que você está me ouvindo, sei que também notou os outros... – a voz continuou
– Se quiser saber o que está acontecendo, suba nessa moto e segure firme.

Ah, era alguém falando através dela. Mas... Eu...

Não havia nada a perder... Estava paranoico, estava alucinando, delirando, quase
morrendo de falta de ar... Meu pai levantou dos mortos e uma moto está falando que
sabe o que está acontecendo... que é só eu subir... O que eu tenho a perder?

“Idiota” – falei comigo mesmo, subindo em uma moto sem capacete.

Em dois segundos eu estava quase cego... A moto saiu de zero à duzentos quilômetros
por hora. Bem, era assim que me sentia.

O vento congelava meus olhos, eu apenas os fechei, segurei o mais forte que podia no
guidom, e travei minhas pernas no corpo do veículo.

Em três minutos a moto começou a diminuir a velocidade e parou.

Eu estava morrendo de frio, tonto, enjoado. Acabei por vomitar no chão, sujando um
pouco o meu sapato esquerdo.

–Merda!

Sai cambaleando, quase caindo ao chão, logo uma mão me amparou. Era um cara, com
ascendência oriental, com calça jeans e casaco de couro, segurando meu braço bem
firme.

–Não imaginava que você viria – ele disse com uma voz mais rouca que pela sua moto.
–Quem é você, o que está acontecendo afinal? – perguntei apressado enquanto tentava
ficar de pé.

Ele se afastou, abriu a porta do que parecia ser um cyber café e me chamou de lá de
dentro. Após eu pôr os dois pés dentro do recinto, a porta se fechou e os computadores
ligaram.

–Sente-se – ele disse apontando para uma cadeira.

Então sentei-me, enquanto ele também estava sentando e abrindo um programa estranho
em outro computador.

Ele ligou o retroprojetor com um controle remoto, e na parede do fundo da sala algumas
imagens começaram a aparecer. Fotos de lugares da cidade, que pareciam ser diferentes,
mas eram Salvador.

–Eu não sou daqui – ele voltou a falar – Nem desse país. Vivi por muito tempo sem
conseguir voltar, não tinha dinheiro suficiente, não ia conseguir, e meu país está em
guerra, bem, ao menos lá estava.

–Não estou entendendo você – falei olhando para seu rosto sem expressão.

–Ouça com atenção, meu tempo está acabando, alguém precisa saber do que eu sei antes
que eu suma, eles não podem nos calar!

“Eles?” – pensei comigo mesmo “Meu Deus, eu me meti em uma conspiração?!?”

–Eu não sou daqui, eu sou de uma dimensão à parte – ele revelou – E talvez você
também nãos seja daqui, mas escute...

E ele começou a falar:

Haviam várias dimensões, dentre elas, algumas falhas ocorriam, essas falhas faziam
com que as pessoas viajassem de um lugar a outro e ficavam por anos presas. Uma
dessas dimensões é um lugar onde nós, dessa dimensão, chamamos de Sete Além.

Esse homem não era de Sete Além, apesar de ter escutado história aqui nessa dimensão
sobre isso. Ele veio de uma dimensão cujo país Twandian existia, e era próximo de
Macau, um lugar da China que falava Português. Ele disse que não existe esse País aqui,
assim como outros, mas ele nunca conseguiu chegar em nenhuma conclusão plausível,
pois todas as vezes que pesquisava, ele perdia os arquivos e se esquecia o que buscava.
Apenas sabia de poucas coisas, e alguém como eu deveria guardar o que ele passou
pesquisando e tentando lembrar o tempo inteiro.

Ele comentou que além das falhas tempoespaciais, existem falhas de pessoas, como se
fossem programas duplicados em um sistema. Disse que tem me seguido, e que percebia
que eu não aceitava a duplicada de meu pai, mas que ficou preocupado com a duplicada
de minha mãe. Ele diz que quando alguém percebe de verdade, se torna um vírus, como
se fizessem os outros ao redor se contaminarem e virarem pessoas duplicadas.

Ele era assim. Ele era um duplicado que percebeu que era um duplo, de outra dimensão
morando aqui. Seu duplicado é um empresário chinês no Brasil, mas não lembra do
nome... Do próprio nome. E que ele está para perder seu Eu a qualquer momento.

Eu tinha dúvidas, essa era uma conversa vazia de alguém que poderia estar em surto
psicótico, mas o que eu passei hoje era uma simples evidência...

–Mas o que podemos fazer para concertar? – perguntei.

–Acho que eu descobri, mas eu não sei... – ele respondeu – Eu nãos ei como vou voltar
para minha dimensão, eu não sei como posso parar com essa duplicação... Eu sei como
retardá-la...

–Como assim? – perguntei.

–Se você confrontar as informações, você consegue... ou... erh... se você não
confrontar?

–Você está mesmo com problemas de memória, ou está apenas surtando?

–EU NÃO SOU MALUCO, ENTENDEU!?! – ele gritou pulando da cadeira.

Eu quase caí para trás... Ele sentou e se desculpou, disse que passou por maus bocados
em hospitais psiquiátricos, e não superou ainda.

Mas várias coisas dessa história não estavam claras. Por que as pessoas eram duplicadas
mesmo? Por que haviam erros? Como assim sistema? Como assim programa? Por que
as duplicadas paralisavam umas de frente a outras?

Ele respondeu essa última pergunta... A consciência começa a vazar entre si. Tenta
buscar uma forma de reescrever a realidade, reconfigurando ou eliminando os erros... O
mal está se caso reconfigurasse o erro, pois não era apenas uma reconfiguração de
memória, mas possíveis mortes em massa, incluindo pessoas ao redor, que poderiam
serem lidas como falhas, como duplicadas, enquanto elas não são.

–Mas como saber quem é ou não duplicado, digo, eu sei que hoje confrontei minha mãe,
mas se isso não acontecesse eu não saberia.

–Se você conhecer o original, você pode confrontar o duplo com informações que só o
original sabe – ele me explicou.

–Mas se a gente se encontrar com alguém de outra dimensão aqui – comecei a perguntar
– quer dizer... se eu e minha mãe formos de outra dimensão, se formos ambos
duplicados, como saberemos?

–Confrontarão as informações atuais em relação à dimensão que vocês vieram... – ele


respondeu – uma forma é, por exemplo, o que você estava fazendo hoje?

–Eu vim da igreja... com minha família – respondi.

–Você se lembra de ter ido para igreja?

–Claro que eu me lembro! - Eu...

–De onde você veio? Digo, antes da Igreja? – ele perguntou...

–De casa, que é...

–Para onde você vai?

–Para o ponto de ônibus ou para casa... o ponto de ônibus fica... A minha casa é...

–Você pode ser um duplicado, um erro... Viu?! – ele respondeu.

–Não... Não pode ser... – falei olhando para mim mesmo, olhando para meu corpo,
tocando em meu rosto...

Levantei-me da cadeira, olhei para minhas pernas, para meus pés... Pus a mão na
cabeça, arranquei um tufo de cabelo... Aquele cabelo não era meu... Aquele corpo não
era meu, aquela dimensão não era minha... Impossível... Era minha dimensão... Era
minha vida... era eu... Meu corpo...

Minhas mãos... Meus braços... Meus cortes...


“O quê?” – pensei olhando para as cicatrizes em meus pulsos, de alguém que se
automutilava.

–Notado algo de diferente? Como se não fosse seu corpo? – ele perguntou com a voz
cada vez mais baixa – É isso... É assim... Você é uma falha... Você não pode se
encontrar consigo mesmo, se não, você pode até morrer... ou perder a memória, ou
perder sua vida...

–Não... Você... Só pode estar mentindo – disse a ele desesperado.

–Eu vou deixar de existir, cara... Se você ficar na sua, quieto, viver longe... Você vai...
Poder viver por mais tempo... Eu fiz isso... Desisti de criar sentido para tudo... – disse
ele – Fique tranquilo.

–Mas você não me chamou aqui para isso, cara, você me chamou para...

–Está começando – ele me interrompeu.

–O quê? – perguntei.

–Não podemos estarmos juntos... – me disse – minhas memórias estão se deteriorando


cada vez mais rápido... Eu temia isso... Duas duplicadas conscientes não podem
interagir afinal...

–Por isso que minhas mães ficaram em choque... as duplicadas.

–Espere, como assim duplicadas, duas mães em choque? – ele perguntou confuso –
Uma original e uma duplicada?

–Não, na verdade eu estava conversando com uma, com minhas memórias bagunçadas,
e outra apareceu, mas a original estava bem distante, havia a deixado com a família...

–Como assim? – ele gritou novamente – Três?!

–Sim – eu o disse.

–Você tem sentido como se pessoas estivessem convenientemente aparecendo ao seu


redor sem terem ligação com o lugar ou com você? – ele perguntou.

–Sim... – respondi – Quer dizer, apareceram outros, durante o meu percurso... de onde
eu estava até... onde você... onde você me encontrou mesmo?
–É pior que eu pensava... Seu idiota... No dia de seu despertar você saiu contaminando
todos por aí! – ele disse gritando – Eu vivi minha vida durante um mês, mesmo sabendo
que não era desse lugar, antes que eu pudesse começar a me... começar a me...

Ele começou a ficar cada vez mais paralisado, sem reação alguma, nem expressão
facial.

–Cara, você está bem? – perguntei a ele

–Você talvez seja o original.

–Como assim? – perguntei mais confuso ainda

–Você costuma observar objetos iguais aparecendo ao seu redor? Pessoas saindo de
nenhum lugar? Lugares idênticos em mais de um bairro sem serem construídos pelos
mesmos engenheiros e arquitetos?

–Eu não sei, cara – eu disse tentando pensar – Talvez lugares duplicados... Há um mês
na verdade... prédios gêmeos existindo do nada... Eu não sei... Hoje... Hoje parecia que
eu estava correndo em um labirinto com ruas iguais...

–Talvez você seja o original, e talvez você esteja... infectado... – disse ele cada vez mais
baixo – se você for... Se você não for... Não importa... Eu vou... A duplicação de
pessoas é o último estágio...

–De que?! Do que você está falando? Como assim? – eu estava de pé, cada vez mais
tenso.

-As pessoas vão morrer, Henrique – ele me disse sem eu ter contado meu nome a ele –
Saia daqui...

Eu não entendi quase nada... Como ele sabia de meu nome, como era essa história de
estágios, como era essa história d’eu ser ou não ser o duplicado ou o original, ou de
estar infectado. Mas que história mais estranha, eu não poderia acreditar nisso... Mas
tudo o que eu vivenciei hoje...

–Se eu estiver... – ele voltou a falar lentamente - ...aqui ainda... traga... amigos... não
duplicados... certeza... você... perceberá a con... veniência... Se for... então você é...

Eu saí de lá, me virei para a rua e comecei a hiperventilar...


Olhava para todas aquelas pessoas transeuntes. Elas não eram reais, não poderiam ser...
Eu tive impressão delas estarem olhando para mim... Não era possível que eu estava... E
que elas...

–PAREM DE OLHAR! – eu comecei a gritar várias vezes, enquanto me agachava no


chão de olhos fechados.

“Começou Henrique” – A voz do homem estavam em meus pensamentos – “Começou,


você não conseguirá parar... Apenas...”

–Henrique? – ouvi uma voz familiar na multidão.

Levantei os olhos e visualizei na minha frente o que parecia ser Kate, uma grande amiga
minha.

–Henrique você está bem? – ela me perguntou novamente, me puxando do chão.

–Man, é você gritando assim? – essa era a voz de Luan, ele também estava aqui.

Kate mora na Cidade Baixa, mas Luan, não...

“Pessoas aparecendo de forma conveniente” – lembrei que ele disse isso - “Traga
amigos que não estejam duplicados e que você saiba”.

Enquanto eu pensava em tudo o que o cara da moto tinha me dito, meus amigos, que
não se conheciam, estavam na minha frente perguntando se eu estava bem, por que o
surto, e se perguntavam um ao outro quem era e tudo mais.

–Não perguntem, apenas venham comigo! – disse puxando os dois pelo braço porta à
dentro do Cyber Café.

“Você vê pessoas aparecendo em lugares de forma conveniente?” – ouvi a voz dentro de


minha cabeça novamente.

–Henrique me solta – disse Kate se soltando de mim enquanto entrávamos – Você está
muito estranho amigo.

–Sentem – eu disse

–O que esse cara tem? Quem ele é? – Luan perguntou

Eu sentei com a mão na cabeça e comecei a contar as coisas que o cara me contou,
enquanto ambos olhavam para minha face e para ele, de forma intercalada.
–Mas se isso é verdade... – Kate começou a falar – Então o que assegura que a gente
seja ou não seja um duplicado? E por que chamar de duplicado quando o que aconteceu
com esse cara foi uma viagem... interdimensional...?

Um silêncio se manteve enquanto todos olhávamos para ele, paralisado, só mexendo os


olhos.

–Essa loucura de ficção está doendo minha cabeça – Falou Luan.

–Viajantes são duplicados – disse pausadamente o cara

–Ele fala – disse Kate pulando da cadeira

–Duplicados são duplicados... – continuou a falar o viajante – Simples... quem está onde
não deveria estar é um duplicado, quer seja por viagem interdimensional, quer seja por
aparição espontânea como uma sósia no mundo, no mesmo tempo em espaço próximos.

–Mas ainda não responde o que o amiguinho perguntou – disse Kate com desconfiança
no rosto – O que assegura nossa originalidade ou cópia?

–Duplicados não têm muita memória de acesso às suas ações... – começou respondendo
de forma lenta – Duplicados esquecem o que estavam fazendo, onde estavam antes de
chegar em algum lugar... como se entrassem em um sonho e não soubessem de onde
vieram e para onde estão indo... não sabem o que vão viver... apenas vivem
automaticamente.

–Você está bem cara? – perguntou Kate – Toda vez que você fala parece que nunca vai
acabar... não mexe, não senta, sempre pausado... O que aconteceu com ele mesmo,
Henrique? – perguntou ela virando-se para mim.

–Ele vai deixar de existir, segundo ele – respondi.

–Ah, você disse isso – ela respondeu incrédula.

–Exato! – falou Luan intrigado, como se tivesse achado uma resposta, como se fosse um
físico experimental falando “eureka” – Se esse maluco é duplicado, então o que explica
essa memória dele, de saber de tudo isso?

–Os dados que ele têm coletado, escrito, salvo... que eu mostrei a vocês – disse a eles.

–Ah... – ambos disseram


–Isso é um surto, Henrique... – disse Luan

–Henrique... – falou o cara – Você tem que se lembrar disso, se você for um duplicado...
quando eu parar de viver, minha pesquisa também irá... meu conhecimento... Já não
lembro de como vivia, de como era... de onde vim de fato... Minha moto... antes d’eu
sumir... cheque minha moto... Você não pode esquecer...

–E você acha que eu vou esquecer ter visto três mães? – perguntei – Meu pai voltando à
vida após seis anos?

–Espera um momento... – disse Luan – Seu pai voltando à morte? Seu pai morreu?

–Ele faleceu há seis anos, um pouco depois de sua mãe Luan – respondi

–Minha mãe... morreu?! – Luan disse com cara de espanto – Ela está viva cara!

Eu comecei a pensar que talvez eu não fosse mesmo daqui. Esse Luan não sabe que meu
pai morreu, e a mãe dele ainda está viva... Mas minha família sabe que meu pai morreu,
ou...

Eu não me lembro como cheguei aqui, se eu cheguei aqui, ou se vivi sempre aqui... As
informações que eu e Luan tínhamos eram conflitantes... Será que ele é daqui, ou...

–Será que eu sou daqui? – perguntei em voz alta.

–Investigue sua história, Henrique – ele dizia.

–Olha aqui! – eu falei mostrando a todos – Eu não lembro desses cortes, eu não devo ser
eu!!! Kate!

–Amigo, você está me assustando – disse ela se levantando.

–Kate, eu te disse que me cortava? – a perguntei

–Não, nunca me disse isso! – ela falou assustada

-Eu não sou eu! – dizia em voz alta – Luan! – me virei para Luan na esperança dele me
responder a mesma pergunta de Kate, mas ele estava em choque, tremendo, olhando
para baixo, balbuciando que sua mãe não morrera.

“Eu não sou eu” – eu ouvi outra voz na minha cabeça, parecia minha voz.

Eu não sou eu!


–Eu preciso ser eu mesmo, eu preciso saber se sou eu mesmo – disse começando a
hiperventilar.

–Amigo você está estranho – disse Kate se afastando – É melhor ficar longe desse
homem catatônico.

Kate me puxou pelo braço, saiu de lá de dentro comigo. Ela não queria ficar perto de
mim, mas não queria ficar muito próxima.

–Amigo, o que está acontecendo com você? – perguntou ela preocupada.

–Kate, me responde novamente – disse mostrando meus pulsos – Eu te contei que me


cortava?

–Não, Henrique, nunca contou – ela respondeu com grande preocupação na face.

–Mas meu pulso está cortado e eu não me lembro – respondi ainda mostrando os pulsos.

–Não, Henrique, eles não estão – ela disse encarando meus pulsos

Quando olhei para os pulsos, estavam limpos, sem cicatrizes...

–NÃO! ELES ESTAVAM... ELES... – gritei incrédulo – Mas Kate, eu devo ter contado,
mostrado, dito... sei lá... Não se lembra?! Eu tenho certeza!!!!

–Seus pulsos estão ótimos, você nunca me contou que fazia isso – ela falou dando um
passo para trás – Olha, está tudo bem...

–Mas... – eu falei me acalmando e olhando para os pulsos – há um momento atrás


estavam bons...

“Será que Kate é duplicada? Ou eu sou? Talvez eu seja...” – pensei “...não tenho sentido
eu mesmo...”

–Amigo, você precisa ir em um psicólogo, você parece que está enlouquecendo... – ela
disse.

Eu levantei meu olhar, mirei meus olhos dentro dos dela e disse:

–Kate, eu faço análise...

–Desde quando? – ela perguntou


–Kate, desde quando estava no meio da faculdade – contei – Estava cheio de
demandas... elas nunca paravam... cobrança... estresse... estresse na família...
pensamentos negativos, tremores, ansiedade... Kate eu te contei isso!

–Henrique, você não fez faculdade! – ela disse como se eu estivesse louco

–Kate, me responde uma coisa – pedi estranhando – Lembra que eu estava tendo
dificuldades no relacionamento com meu pai e você me contou a história do seu pai?
Dos abusos físicos que você teve, da cicatriz de infância de maus tratos? Seu pai te
queimou com uma colher quente... Na barriga...

–Meu pai e eu nunca fomos assim, Henrique – ela disse com raiva – Nos damos super
bem!

–Ai meu Deus – eu disse.

–O que foi? – ela perguntou

–Kate como você veio parar aqui? – perguntei a ela

–Você me chamou para entrar...

–Kate, eu digo, nessa rua... nesse horário, nesse dia...

–Ah, eu Estava... Eu... – ela começou a gaguejar e pensar, mas não tinha resposta.

–Kate, você é duplicada! – eu disse

–AMIGO! VOCÊ ESTÁ NA CIDADE BAIXA E NÃO ME AVISOU QUE VIRIA!? –


ouvi alguém gritando de alegria...

Era a voz de Kate vindo de trás de mim.

Eu e a Kate que estava na minha frente nos olhamos assustados. Ela começou a virar a
cabeça, se esgueirar, e seu rosto perdeu a cor quando se viu atrás de mim.

Eu me virei e vi Kate embasbacada olhando a outra Kate... As duas ficaram se olhando


estarrecidas.

Eu puxei a Kate recém chegada para dentro do Cyber Café por impulso.

–Fique aqui – disse a ela

–Começou – o cara disse – Não faça isso!


–Por quê? – perguntei

–Tarde demais – ele disse.

E assim, sumiu dali.

Eu sai correndo atrás de Kate...

–O QUE FOI ISSO!? – ela gritou enquanto as pessoas olhavam para a gente

–Eu não sei dizer – respondi

–Agora entendi o que você quis dizer com três mães... Eu... Estou enlouquecendo? – ela
perguntou.

–Eu não sei Kate! – respondi.

–Amigo!? Você na Cidade Baixa?! – era outra Kate, mas era sobrepeso.

Eu e a Kate mais antiga, pegamos a Kate sobrepeso e levamos para a sala. Luan ficou
catatônico quando viu duas Kates magras e uma sobrepeso. Talvez ele fosse um
duplicado. Apenas sei que ele não ajudaria em muita coisa.

–O que vamos fazer? – Kate perguntou ansiosa.

–Eu não sei! – disse a ela – Talvez devêssemos fugir!

–Do quê, Henrique... do quê?! – perguntou Kate enquanto novamente estávamos saindo

“De mim” – minha voz disse dentro da cabeça.

–O que está acontecendo?! – gritou a segunda Kate saindo do Cyber Café.

–Meu Deus! – eu disse – Você está triplicada...

–Amigo!! – ouvimos mais uma Kate aparecendo, correndo em nossa direção, dessa vez
com um cabelo cacheado.

Assim que todas as Kates se notaram, começaram a encarar umas às outras. Isso não
parou... apareceram mais Kates... uma morena, uma ruiva, uma mais alta ainda... Todas
paralisavam quando se notavam, se olhavam, apenas mexendo os olhos, sem mover
outro músculo sequer.

Eu comecei a puxar algumas das Kates para dentro do espaço, pois achei que as pessoas
na rua iriam estranhar. Assim que entrei com duas, uma sendo puxada em cada mão, as
outras vieram atrás, questionando o que estava acontecendo. Irritadas, estressadas,
amedrontadas, confusas.

Luan não mexia, as Kates caíram e começaram a ter convulsões. Eu não sabia o que
fazer... Eram seis delas, todas no chão.

Saí desesperado para respirar, mas mais e mais ainda apareciam. Uma com sotaque
carioca, outra com sotaque paulista, outra vestida até os pés, outra grávida... Mais umas
doze...

Eu estava sem saber o que fazer... E a cena era sempre a mesma: “amigo, você está na
Cidade Baixa...”, chagavam correndo, se notavam, paralisavam...

Quando as Kates pararam de chegar, elas começaram a convulsionar e cair no chão.


Todas tremendo, se debatendo, vomitando sangue, pela boca e nariz. Eu não consegui
fazer nada além de me desesperar!

Ele disse que algo iria começar.

Ele disse que era tarde demais.

“Escreva tudo” – a voz dele ecoou em minha cabeça.

Como posso escrever isso? Pra quê deveria eu escrever esse acontecimento? Se eu fosse
o duplicado, tudo iria sumir mesmo... minha memória, tudo o que eu soubesse ou que
construísse, iria padecer.

Eu comecei a andar a esmo novamente... Para me afastar de tudo o que estava


acontecendo ali. Eu estava assustado demais para fazer qualquer coisa. E tudo o que eu
pensava não traria efeito algum, afinal de contas, é algo que foge de mim...

Meu Deus, eu era um duplicado? Um original? Mas o que estava acontecendo?

Eu caminhei por alguns poucos minutos, me esbarrando nas pessoas, sem que elas
reclamassem. Então meu pulso começou a arder.

Parei de caminhar para olhar o que estava acontecendo. Minha carne estava sendo
cortada, o sangue descia, sumia, apareciam cicatrizes de cortes – vários deles... Esse
ciclo se repetia de forma hipnótica.

Eu olhava ao redor, queria pedir socorro, mas minha voz não saia; queria correr, mas
meus pés não mexiam. Então pude perceber que algumas pessoas paravam no meio de
seus caminhos. As ruas começavam a se movimentar, mas sem me tirar do chão: elas
estavam se reformando... a realidade parecia estar se remodelando ao redor das pessoas.

Ruas se duplicaram em minha frente, casas implodiam, casas apareciam... Animais e


pessoas caiam ao chão, se transformando em poças de sangue e sumindo. Pássaros
parados no ar... Pessoas caindo e se levantando como um loop, uma falha.

“Eu sou uma falha” – ouvi minha voz em minha cabeça.

“Você é uma falha” – ouvi a voz daquele cara em minha cabeça após escutar a minha.

–EU NÃO SOU UMA FALHA – eu consegui gritar desesperado – EU NÃO SOU UM
DUPLICADO!

Meu cabelo começou a cair, eu voltei a me mexer, então corri... Corri enquanto as ruas
se reconfiguravam em minha frente... Corri enquanto cresciam e caiam vários tipos de
cabelo em minha cabeça... Corri enquanto meus pulsos se cortavam, sangravam e
cicatrizavam... Corri enquanto sentia minhas pernas crescerem e encurtarem...

“Eu sou uma falha” – ouvi minha voz em minha cabeça.

“Você é uma falha” – ouvi a voz daquele cara em minha cabeça após escutar a minha.

Eu corria.

Corria enquanto via pessoas paralisadas nas ruas, sem rostos, virando seus rostos para
mim.

Eu corria.

Eu corria enquanto ouvia a voz de cada uma em minha cabeça: “você é apenas uma
falha, Henrique”.

Seus rostos brotaram, era o meu rosto estampado na face de cada transeunte paralisado
sob a luz do sol, sob as reconfigurações das ruas e espaços.

Eu gritei, e tudo o que senti foi que o espaço passava por mim, mas eu não saia do
lugar...

Mas continuei correndo.

Eu corria, enquanto me via nos rostos dos outros e ouvia em minha cabeça: “Você é
uma falha Henrique”.
–Eu não sou uma falha! – eu disse desesperado.

“Eu preciso ser eu mesmo” – minha voz dizia dentro de minha cabeça.

As pessoas passavam por mim, com seu movimento paralisado, apenas como se o
espaço estivesse a continuar sua passagem, como se o espaço estivesse me levando a
algum lugar. As pessoas viravam os rostos para me contemplar, e ainda estavam com o
meu rosto no lugar dos dela.

Eu sentia que iria encontrar a verdade... A verdade se eu era ou não duplicado, se eu era
ou não uma falha...

Kate sempre chegava falando “Você está na Cidade Baixa”... Eu não moro aqui há
anos... Moro muito longe daqui. Eu fiz faculdade, eu faço análise, meu pai morreu, a
mãe de meu amigo morreu... Não podia ser... Nada daquilo fazia sentido algum... Eu
não podia ser o duplicado... Mas se eu fosse o original, como eu saberia?

Como sei se sou original?

Como sei se sou eu mesmo?

Como eu sei se estou vivendo?

Como eu sei se estou passando?

A verdade estava chegando cada vez mais rápido. O espaço passava por mim, e eu vi as
minhas costas... Mi meu cabelo...

“Você é uma falha” – a voz das pessoas estavam em minha cabeça me dizendo.

“Não pode ser” – pensei

Eu vi ele. Ele sou eu. Mas eu não sou ele.

Ele estava próximo, começou a se virar... mas no fim das contas, não vi seu rosto.

Eu não sou...

12 A 100 km/h
Era noite e estava frio. Essas histórias macabras sempre são assim, digo, começam
assim: era noite e estava frio. Fabrício, eu e David estávamos viajando para a casa de
minha avó materna. Ela havia tido um AVC e minha mãe - que já estava na cidade
porque fez um concurso ontem - estava muito angustiada. Nesse momento David
aproveitou para dar uma de gentil.

Ele era um hipócrita, ou o problema estava em nós, ou... Eu não sei. Eu sempre me
pergunto o porquê. A gente sempre culpa o abusador, mas dentro de nós há algo ou
alguêm internalizado que nos culpa! Como um diabinho... E isso acontecia. Desde que
David começou os abusos... Ah, perdão, eu ia falar que ele e minha mãe são namorados
há 5 anos, e ela é a única pessoa nesse mundo que ele considera como ser humano. Ele
estava deixando o serviço dele para ir até ela, confortá-la. Acho que eu acabo mantendo
isso por conta dela também.

Você deve estar confuso, mas eu já tenho 19, nossos pais se separaram quando Fabrício
tinha 3. Um ano depois, David e minha mãe começaram a namorar. E... No primeiro
ano de relacionamento, ele já dormia com ela em casa...

Num dia chuvoso como esse, minha mãe estava de plantão e eu acordei em meio a
trovões. Fab não estava na cama. Fui ao quarto de minha mãe e David não estava lá. Eu
nunca confiei no David, então comecei a procurá-los na casa. Dando passos leves, na
ponta dos pés para não chamar atenção, para não ranger a madeira.

A cada passo que dava meu coração parava. Porque eu não queria imaginar na
possibilidade de David e Fab estarem juntos a sós. Era mais um ciúmes, uma relação de
proteção a meu irmão mais novo... Tinhamos 10 anos de diferença, eu tratava meu
irmãozinho como o meu bebê. Meu sexto sentido me dizia para ter cuidado com ele...
Gentil de mais, atencioso apenas com minha mãe. Grava todas as datas, sabe de tudo
que ela precisa. Faz tudo o que ela quer. Ajuda em tudo... E etc. Alguém assim não
existe sem ter um lado horroroso e podre. Não existe!

E não existia. Fab estava sentado no colo de David. Meu irmão caçula estava nu
assistindo televisão. David estava acariciando seus peitos, suas coxas, suas costas.

_Que porra é essa!?!? - eu berrei, fazendo Fab chorar e David pular do sofá. _O que
você tem moleque!? - me indagou David - olha o que você fez com seu irmão!
Fab estava tremendo de susto. Na hora eu não havia entendido, mas depois de muito
tempo, pensando sobre aquele incidente, imaginei que sua inocência não deixou ele
perceber que estava prestes a ser molestado: para ele poderia ser carinho por carinho e
eu interditei esse carinho. Bem, uma criança pode não ver um carinho como um abuso
ou estupro, a depender de como é administrado. Mas quando souber do que se trata, seu
mundo cairá; isso se ela tiver a sorte de não ter sido obrigada a fazer ou permitir coisas
que venham ferí-la físicamente; isso sem contar com as que estranhan o toque.

Eu acho isso tudo doente. Sempre achei. E esses toques não são de pessoas doentes, de
pedófilos. Eles são de pessoas próximas, aquelas que você mais confia seus filhos a
ela... Pessoas sacanas, que sabem que muitas crianças são presas fáceis. Como David.

Nesse incidente eu surtei. Quebrei coisas ao redor. Xinguei David. Tentei bater nele.
Fab nunca mais foi o mesmo comigo, essa ferida ecoa até hoje. Ele nunca me deu
espaço de colocá-lo no colo, segurar sua mão, apontar uma estrela comigo... Eu era um
transtorno para ele. Meu toque seria traumático, e o toque do David não... Interditei
abruptamente uma relação de um pai de faz de conta e isso tudo foi uma fossa para
mim, mesmo sabendo da verdade; sabendo do que David queria.

David não me impediu de contar a minha mãe. Ele me chantageou, colocou a culpa de
Fab estar assustado em mim. Fab se urinou no episódio. David queria tirar proveito de
mim para ser cúmplice dele através da culpa que ele imputou a mim. Droga, por mais
que não seja minha culpa, eu sempre vou me culpar disso.

Desesperado com aquilo tudo, depois de me acalmar... Depois de Fab dormir... Eu fiz
um apelo:

_Faz comigo.

_O quê moleque?!

_Faz comigo... Eu sei o que você quer.

_Foi por isso que você ficou tão histérico assim? Queria um pedaço do papai? _...

Apenas fomos para o quarto de minha mãe. Eu deitei de costas. Ele deitou por cima de
mim. _Não toca no Fab por favor. Eu faço o que você quer.

Ele riu. Abaixou minhas calças.


_Me chame de papai quando você estiver debaixo de mim - disse no meu ouvido. _Eu
faço o que você quiser papai. - eu comentei.

_Isso. Bom menino.

Ele desceu para minhas nádegas, enfiou a sua língua nojenta em meu ânus. Eu achei
aquilo muito sujo. Eu chorei de raiva. Em meio a isso, o pênis dele estava sendo
empurrado contra minha entrada. Ele cospia por cima de seu pedaço de carne e
empurrava contra mim. Até que entrou.

Eu gritei e tentei me esquivar, mas ele era mais forte. Aquele homem suado e nojento,
sobre meu corpo, rindo no meu ouvido, empurrava seu pênis em mim enquanto tapava
minha boca para eu não fazer barulho. Lembro que o cobertor ficou coberto de sangue,
e eu, de lágrimas.

E a série de estupros e abusos seguiu acontecendo até hoje. Após me buscar da escola.
Após voltarmos de uma saída. Me levando para um parque na mentira de se fazer
atividade física como se fóssemos pai e filho e minha mãe achando lindo. No caminho
para a natação. Na volta do shopping. Nas férias da escola. Na volta do pré-vestibular
todas as noites em seu carro.

Sexo oral. Engasgar. Gozar dentro. Gozar na cara. Tapas na cara. Me obrigar a chamar
de papai. Sexo anal. Sem camisinha. Com camisinha. Fisting. Beijo. Romântico.
Violento. De quatro. De frente. De lado. De pé.

Era por meu irmão mais novo. Era eu ou ele. Minha mãe nunca acreditaria. Minha mãe
o ama tão cegamente quanto amava meu pai. Eu teria que esperar o amor se esvaziar,
ou ele morrer... Ou Fab sair de casa... Era por eles.

_Você está muito pensativo - falou David interrompendo meus pensamentos.

_Ham.

_Meu menino. - me chamou ele, do jeito quando me chama quando quer de mim sexo.
_Aqui não David.

_É por causa de Fabinho? - me perguntou.

_Ponha os olhos na estrada David - respondi rispidamente.


_Fabinho está dormindo, não vai perceber - disse ele a 100km/h sacando seu pênis já
ereto e melado de líquido pré-seminal. Nojento.

_David, aqui não.

_Segura ele, tá assim por causa de você!

David pegou minha mão à força e colocou no pênis dele. Eu comecei a masturbá-lo, na
esperança de que aquilo acabasse logo.

_Chupa! - ordenou ele para a minha desgraça.

_Aqui... Nã- antes que eu completasse, David me deu um soco com a parte de baixo da
mão, bem em minha boca.

Eu me assustei, senti vontade de chorar. Mas eu não era um menino, não mais. Engoli o
choro e continuei olhando para frente e o masturbando.

_Eu já mandei você chupar! - falou ele com raiva - por que você precisa me contrariar?
Te trato tão bem, te cuido tão bem.

Quando eu tentei namorar uma garota, contei para ele. Ele ameaçou a menina, ela só
queria me usar para subir as notas na sala, ela tinha namorado. Eu no início fiquei com
raiva dele, mas quando descobri, foi no colo dele que chorei.

Quando Fabrício disse que me odiava na frente da família em pleno natal, fui para meu
quarto. Foi ele quem levou comida e suco para mim, e foi no colo dele que chorei.

Quando disse que queria fazer pré-vestibular e prestar prova para medicina, foi ele
quem pagou e me incentivou. Quando eu reprovei, foi no colo dele que chorei.

Quando fugi de casa e caí de um vale, foi ele quem me achou, me deu banho, cuidou de
minhas feridas, mal me tocava sexualmente nessa época. Cheguei a imaginar que ele me
amava, e de culpa, foi no colo dele que chorei.

Era uma lista de coisas que ele fez por mim. Mas abusadores de menores que são
próximos de você, de sua família, podem ser assim. Carinhosos. Afetivos. Protetores.
Ele era um pai para mim... Estou certo... Me protegia, cuidava de mim, me amava, me
mostrava que amava, e desgraçava minha vida, me ferrava no sentido literal da palavra.
Pai hoje é isso... Essa desgraça que ronda de forma ambígua que te sustenta com a mão
direita e enfia os dedos da mão esquerda em seus buracos...
Ainda não entendeu? Quando chorei no colo dele por uma menina, eu engoli seu pênis
em lágrimas, e fiquei de quatro pedindo sua carne para me fazer esquecer... Ele o fez.

Quando chorei por que Fabrício disse que me odiava, ele me alimentou, tirou minha
roupa dizendo que me amava, e deixou suas sementes fundo, dentro de mim.

Quando cheguei em casa desolado por perder no vestibular e chorei no colo dele, ele me
deu um consolo, como um pai dá uma chupeta para o bebê parar de chorar.

Depois de ter curado as feridas de quando eu caí do vale, ele enfiou minha cara em seu
colo para engolir mais uma vez seu pênis, e me abrir em dois, me batendo nas nádegas
como se fosse um castigo.

Eu achei muito bom muito disso. Eu achei que era o que eu merecia. Eu achei que era
mesmo o que eu merecia. Culpa. Ódio. Raiva. Desespero. Desesperança. Afeição.
Prazer. Era tudo o que eu sentia. Mas lembre-se de que o maior sentimento era o de
culpa. Eu me culpava por tudo, mesmo sabendo que não era minha essa cruz.

Mas eu quem disse que faria isso, eu quem começou... Eu tenho responsabilidade
nisso... Eu não estava em um campo de flores e chamei atenção de um estuprador por
esse estuprador ser.... Doente... A culpa não era minha?

Essa confusão me consumia.

_Já mandei você chupar - disse ele novamente.

Eu o obedeci, mas depois se olhar para trás e ter certeza de que Fabrício estava
dormindo.

_Seu irmão não vai acordar - disse ele dirigindo enquanto eu estava com a glande de seu
pênis abrindo minha garganta - eu dei um pouco de clonazepam de sua mãe a ele antes
de sair.

Eu parei de apertar minha garganta... Fiquei quente, digo, me senti quente... Ouvi meu
sangue pulsar na orelha. Toda a raiva subiu até minha cabeça. Eu não tinha me dado no
lugar de meu irmãozinho? Eu não já tinha dito que era eu quem faria papel de sua
garotinha de quatro na cama?

_Eu sempre gostei de ferrar sua boquinha dirigindo, é uma delícia.


Ele havia drogado meu irmão para fazer sexo na estrada comigo a caminho da casa de
minha avó, numa situação delicada para minha mãe. Por que eu ainda sinto culpa disso
tudo? Por que eu ainda eximo esse traste de tudo que ele me fez?

Eu levantei a cabeça até perto da divisória da glande de seu pênis e o corpo, e mordi
com todas as minhas forças.

David gritou alto. O carro virou uma... Duas... Três... Algumas vezes. Eu estava com
sangue na boca e um zumbido no ouvido. Era noite, estava escuro, eu estava de cabeça
para baixo.

_Fab... - falei gemendo e não obtive resposta...

_Fabrício! - gritei desesperadamente por meu irmão.

_Fabrício! – gritei mais alto ainda, com a garganta falhando, quente, com o gosto de
sangue inundando minha boca.

Virei para o lado esquerdo e David estava inconsciente, preso ao cinto, com a barguilha
aberta e pingando sangue de lá e saindo sangue de seu rosto. Eu retirei um canivete de
dentro de meu bolso, por sorte preparei bem a lâmina da faca para ocasiões necessárias:
aquela era um. Cortei o cinto e tentei me soltar. Assim que tive sucesso, saí do carro,
me arrastando para longe, pelo menos até meu corpo inteiro sair. Eu sentia dores nas
pernas, na cabeça, nas costelas; estava sangrando, e em algum lugar havia alguma coisa
quebrada! Eu podia sentir isso.

Tentei ficar de pé, mas meu pé esquerdo doía muito quando tocava o chão. Minhas
costelas sangravam, havia uma dor que me dilacerava a alma: sim, era aqui que algo
havia quebrado.

Na minha mente eu apenas pensava uma coisa, a coisa mais importante talvez... Fab!
Fui ao banco de trás e Fab estava pendurado de cabeça para baixo fazendo sons como
se estivesse murmurando: Ele estava acordado! Pelo efeito da medicação, talvez, não
conseguia falar ou se mexer, apenas balbuciar palavras inexprimíveis de sua boca.

Fui até a parte de trás do carro, os vidros estavam quebrados. Entrei assim mesmo,
furando meus joelhos com cacos de vidro. Eu TINHA que tirar meu irmão de lá, antes
que acontecesse o que esses filmes escrotos mostram.
Aquilo tudo era culpa minha. Se eu não tivesse interferido na direção... Se eu não
tivesse cedido ao David esses anos... Se eu não tivesse sido um irmão negligente... Eu
não teria precisado me dispor no lugar de Fab... Eu não teria cedido esses anos todos ao
David... Eu não teria feito o que eu acabei de fazer.

Eu consegui, mesmo em meio às minhas lamúrias melancólicas, retirar Fab do banco de


trás. Usei alguns cacos de vidro para cortar desesperadamente o cinto de segurança...
Minhas duas mãos estavam cortadas, e o sangue pingava. O cheiro de ferrugem, sal e
gasolina me embriagava, enquanto eu carregava balançava os ombros de Fab para ele
acordar...

_Fab! – gritava próximo a seu ouvido – Por favor! Acorda!

Eu estava desesperado. Mas para meu alívio ele acordou e começou a chorar de susto. A
bater em minhas mãos, a virar o rosto. Bem, eu sabia que fisicamente ele estava bem,
eu quem estava mal. Mas ser rejeitado por meu irmão caçula depois de ter tirado ele de
dentro do carro de ponta cabeça foi... Eu... Já não sei o que sentir.

_Precisamos sair daqui – disse a ele.

_David... – ele falou com a voz falhando, mas com o choro já sumindo. _Deixe aquele
demônio lá! – falei firme com meu irmão.

Puxei meu caçula pelo braço e fui em direção da estrada, voltar ao curso. Se não me
engano, se seguíssemos andando, daqui há umas duas horas iríamos conseguir chegar
na próxima cidade. Lá eu poderia ligar para minha mãe, levar Fab a um hospital e
cuidar dele enquanto esperaria minha mãe vir buscá-lo. Tomara que David tenha
morrido.

No caminho da estrada Fab estava agitado, com voz manhosa pedindo para parar. Eu
sabia que fazê-lo caminhar tanto depois de sofrer um acidente era demais para o garoto.

_Fique quieto! – eu o repreendi – A gente precisa chegar logo na cidade, sair da estrada,
se cuidar... Você não entende que está gastando suas energias à toa?

_Eu não aguento mais... – ele me falava – para... Eu não aguento mais. Eu não quero
mais andar...

Eu cedi aos pedidos de meu irmãozinho. Entramos no mato e fui procurar algum abrigo
com ele, apenas para ele descansar um pouco e voltarmos a caminhar. Por um momento
me preocupei com o meu sangue, será que iria atrair predadores? Se isso acontecesse
como iríamos nos proteger? Não temos nada em mãos... Não pensei nem em pegar o
revólver de David.

Mais do que predadores... Eu não havia pensado na possibilidade de aparecer humanos.


Os piores do mundo...

_O que cês dois estão fazendo aqui? – a voz rompeu meus pensamentos.

Era um homem de meia idade, alto, magro com uma barriga saliente. Com duas pistolas
na mão, branco encardido, com a barba estranhamente grande, dentes amarelos e
afastados. Nariz imenso e largo, cheio de cravos pretos e grandes. Sua roupa era suja e
fedia... Seus detalhes apareciam abaixo da luz da lua e eu os olhava atônito com Fab.

_O gato comeu a língua de vocês? – outro homem surgira ao lado do primeiro.

Esse era mais baixo, cintura larga. Mais cheio, gordo. Com um sapato marrom bem
largo. Rosto achatado, moreno. Cabelo preto. Uma arma maior nas mãos e com voz
menos tenebrosa que o primeiro.

_O que é que tá acontecendo? – disse uma terceira voz de longe.

_A gente achou dois cervos chefe! – o primeiro homem disse.

_Trás eles pra cá Raimundo!

_Tá bom! – o homem feioso gritou de volta.

O tal de Raimundo puxou Fabrício à força e eu fui atrás. Ambos gritávamos e não nos
importávamos com as armas dos dois homens, que pareciam apenas capangas.

_Nos deixe ir! – eu gritava sem sucesso – Deixe-o ir!

_Me solta! – chorava Fab repetitivamente o caminho inteiro.

_Cala a boca! – gritou Raimundo – Se não eu lhe dou aos coiotes!

Estávamos próximos a uma cabana no meio da floresta. A ameaça de Raimundo soava


deveras real, ele podia cumprir o que prometera, já que escutamos uivos estranhos, de
coiotes. Estar dentro de uma cabana com homens armados seria uma boa opção agora,
bem, eu estava sangrando e podia chamar, como havia pensado antes, predadores. E o
Raimundo poderia ter já batido em Fab ou atirado na gente, mas ele não o fez. Nem me
amarrou. Apenas puxou Fab.

_Ora, ora, ora – falou um cara sentado em uma cadeira encarando a gente – o que temos
aqui?

Ele era ruivo, sujo, branco, sardento, cabeçudo, corpo desproporcional, com ombros
largos demais e braços longos e finos. Pernas longas, pés enormes. Olhos puxados,
lábios bem grossos, e uma barba expessa.

_Estavam escondidos aqui perto, chamando atenção de coiotes, chefe – falou o


gordinho. _Fedelhos desgraçados – o ruivo bradou – além de invadir minha região,
atraiu coiotes.

_Eu não – comecei a falar gaguejando temendo o pior novamente – Não sabíamos que
há coiotes nessa região senhor, por favor, nos deixe, iremos em bora!

_Raimundo cala a boca desse imbecil.

_Com prazer chefe – Raimundo me segurou por trás, amarrou minhas mãos e boca, e eu
gritava desorientado olhando nos olhos de Fab.

_Ninguém entra aqui e pensa que vai se safar – continuou o chefe – e que diabos
aconteceu com vocês, seus moleques? Estão mais maltrapilhos que nós! Cairam de um
helicóptero? Bateram um carro? Estão só? Esse menino é seu... Brinquedinho?

Essa última pergunta me transformou em um cão raivoso. Comecei a gritar, mesmo que
abafado. Tentei me soltar de Raimundo, mas ele me deu uns socos no estômago para eu
me aquietar e me amarrou numa viga de ferro que ia do chão ao teto.

_Ora, ora, ora – continuou o chefe – vejo que a resposta é sim! Vai nos repartir seu
brinquedinho rapaz?

Meus olhos estavam ardendo. Eu estava chorando de raiva. Minha face era de um
demônio, eu não estava vendo mas sentia os músculos todos contraídos.

_Não adianta me olhar assim – disse o ruivo – você também é um degenerado. Usando
esse menino para se satisfazer. Mas se aquiete pois depois de usarmos ele, será sua vez,
e então teremos que decidir, ou ele ou você será jogado aos coiotes... Precisamos
alimentar os coitados para nos deixar em paz, não vê que estamos presos aqui rapaz?
Eles nos rondam... Rondam toda a região, e nós que deveríamos estar alí, no topo da
cadeia alimentar. E pensar que nosso grupo era grande. Tinhamos até putas para nos
satisfazermos... Não me leve a mal, há muito tempo que não meto em um buraco.

Ele realmente iria fazer aquilo. Eu tinha escapado do David com Fab nesse instante...
Tinha poupado Fab a vida inteira do demônio do David... Agora ele estava alí na minha
frente, prestes a ser estuprado por um estranho qualquer no meio desse fim de mundo,
por culpa minha.

Eu estava gritando enquanto eles despiam meu irmão para o tal chefe.

_Olhe para seu irmão pequeno – disse o ruivo virando o rosto de Fabrício para mim – é
daquele rosto que você vai se lembrar quando pensar nessa noite... Do rosto que já te
fode há anos, hein?

Fab começou a gritar. Gritava e se debatia, enquanto estava nu, com três homens ao seu
redor. Dois o segurando como se ele fosse uma animal, e outro com seu pênis nojento já
roçando no meu irmão. Eu gritava de volta, querendo que o David estivesse aqui.

E parece que ele me ouviu, pois o chefe caiu para trás com um buraco na cabeça.

_O que foi isso? – perguntou o gordinho, que caíra também com um tiro dado por um
anônimo.

Não, não era anônimo. Ninguém iria nos salvar naquela noite, apenas David estava
perto o suficiente. E sim, era ele. Não havia morrido.

O Raimundo foi abatido depois de correr assustado. Aparentemente eles nunca haviam
trocado tiros com ninguém. A reação dos capangas deixou isso claro.

A porta se abriu após escutarmos chutes. De alguma forma eu me soltei... Pude avistar
David entrando se arrastando, atrás dele havia um rastro de sangue.

Ele não olhou para a minha cara, e eu não podia reclamar, principalmente depois do que
fiz. David colocou as roupas em Fab, ao menos as que não estavam rasgadas. Fab
tremia, e David o arrastou para onde havia uma escada de madeira.

_Sobe – ele falou para o menino em choque.

Fab subiu, quando estava na parte de cima, ele olhou fixadamente para mim, com muito
medo na face. Eu apenas fui atrás... Subi as escadas depois do David.
_O que estamos fazendo aqui ainda? – perguntei a David sem respostas.

Fab olhava para mim e as vezes fingia que eu não estava lá. Essa reação apenas cortava
meu coração.

_Feche os olhos filho – disse David para Fabrício – o que está para acontecer não deve
ser assistido por crianças.

Enquanto estávamos lá de cima, coiotes entraram no recinto. Eram seis deles. Magros,
com perversidade em seus olhos e dentes molhados de saliva. Eles começaram a
morder os corpos com a maior vontade do mundo. Arrancavam pedaços de carne das
coxas, virilhas, face e braços dos homens. Um dos animais olhou para nós, rosnou e
voltou a se esbanjar em seu banquete. Não iríamos interrompê-los. Não ousaríamos.

Depois de um tempo, os coiotes arrastaram os corpos para fora da cabana. David ainda
esperou bastante antes de descer e nos chamar. Aparentemente estaríamos salvo dos
coiotes, eles estavam de barriga cheia.

Andamos a rodovia, com Fab sem pregar os olhos, cansado, assustado e traumatizado.
David se arrastava, ele feriu a perna de alguma forma. Depois de algumas horas
chegamos na primeira cidade, nos levaram para um hospital, e pra minha surpresa,
minha mãe estava lá.

A aurora chegou enquanto minha Mãe abraçava Fab, o choroso, e David. _Mas e o... –
ela falou olhando para David.

_Ele não conseguiu – disse David.

_Se ao menos eu tivesse atendido sua ligação mais cedo, querido – disse minha mãe aos
prantos.

Como assim não consegui? Eu estava ali.

_Mãe! – eu gritei – Mãe! Que merda, eu estou aqui!

Comecei a rodear os três, tentei me aproximar mas não conseguia. Os olhos de Fabrício
não saiam de mim, ele estava pálido. Eu olhei para David uma vez mais, e o vi sorrindo
perversamente. Aquele desgraçado estava sem mim, ninguém iria impedí-lo de fazer
mal a Fabrício agora!
_David, seu... Desgraçado! – eu gritei sentindo sua intensão malígna e sexual em
Fabrício. _Filho, não há mais tempo – ouvi a voz de minha avó atrás de mim.

_Vó?! – era ela de fato.

_Venha, vamos – ela falou estendendo a mão direita.

_Mas eu não entendo... – a senhora já está boa?

_Sim – disse ela sorrindo.

Eu estendi minha mão direita e notei que eu estava sumindo. Me questionei um milhão
de vezes porque aquilo estava acontecendo. Olhei para trás e Fabrício estava ainda me
encarando.

_Não tente, ele não te ouve, apenas te vê – disse ela – você perdeu muito tempo, meu
filho, não pode mais se despedir adequadamente.

_Mas eu estou...

_Vamos, você verá – disse minha avó estendendo mais uma vez a mão.

Eu olhei para trás mais uma vez e vi meu corpo deitado ao lado do carro virado de
cabeça para baixo. Num flash eu voltei a conseguir ver Fabrício, que não mais me
encarava.

Eu virei para minha avó, falando “não pode ser” repetidas vezes. Tentei pegar sua mão,
mas era intangível.

_Oh, meu pequeno – disse ela com um tom de pesar na voz – agora é realmente tarde
para você. Não deveria ter olhado para trás.

Fabrício... Me perdoe

13 Santos 2055

14 No Fundo do Poço
15 Pecado

Sandro era apenas um jovem de 27 anos. Há muito tempo Sandro sofre de pouco tempo.
Sempre resta pouco tempo para ele; sempre em pouco tempo os fenômenos aconteciam
para ele. Cedo nasceu, cedo desmamou, cedo foi à escola, cedo alcançou a puberdade,
cedo perdeu a mãe, o irmão mais velho, o irmão mais novo, o pai. Hoje, há muito
tempo, mora com a avó, mas nem sempre: pois frequentemente está internado, desde
cedo também.

Magro, baixo, subnutrido, precoce em estudos, precoce em vida, ele teme precocemente
da morte, que o assiste sempre que se interna. O que ele tem ninguém foi capaz de, com
precisão, dizer. Fez análise 10 anos, mas cedo desistiu: ele dizia que era um homem
histérico, fadado a morrer, ou se matar, de tanto sintoma que tinha; e tanto diagnóstico
que tinha.

Não se dava muito bem com Deus, em seus pensamentos essa era a segunda justificativa
de ter tanto e tão pouco do que queria; de estar próximo por várias vezes, desde cedo, de
cruzar o véu entre o mundo dos vivos e dos mortos. Por isso não aceitava visitas de
religiosos todas as vezes que estava internado.

O que ele fez para merecer tamanha punição? Sua mãe morrera no parto de seu irmão
mais novo, que nasceu morto. Era um dia frio, mas era verão, Sandro corria do caminho
da escola para casa, estava com pressa pois queria mostrar sua conquista a sua mãe,
mesmo com seu pulmão doendo e suas pernas ardendo. Sandro conquistou o primeiro
lugar nas olimpíadas de xadrez – sua escola estava lançando a novidade, um clube de
xadrez –, sua categoria era de 6-7 anos, mesmo tendo 5 ele participou, pois fazia parte
da turma do primeiro ano da escola... Ele venceu todos os seus coleguinhas de turma, e
sua mãe o ensinara a jogar.

Em casa, seu irmão mais velho, já adolescente, não conseguia dizer uma palavra, apenas
chutava um objeto todas as vezes em que Sandro o questionava sobre sua mãe ou seu
pai. Seu pai não conseguia desgrudar de sua mamadeira de adultos, sua avó não estava
em casa cuidando de sua mãe como de costume. Sua mãe tinha entrado em trabalho de
parto para dar luz a Joãozinho no meio da madrugada. Na manhã em questão Sandro
não queria questionar onde estava sua mãe que aprontava seu café todos os dias de
manhã, só pensava nas finais das olimpíadas de xadrez. Então, no almoço, graças aos
gritos de seu pai ao telefone, descobriu que sua mãe estava morta, seu irmão mais novo
também. Naquele almoço Sandro comeu um vazio de sabor amargo. Sua crise de asma o
deixou internado por alguns dias, mas o vazio amargo ainda se fazia presente naquele
ano, o vazio que o levou a voltar a fazer acompanhamento psicológico, por insistência
de sua avó.

Ainda parecia ontem que ele estava com paralisia nas pernas e tendo crises de asma.
Mas foi há muito tempo que, com pouco tempo, ele começara sua jornada em dores.

Sandro olhava pela janela de seu leito, aquela que ele sempre abria na ausência de uma
enfermeira durantes esses últimos três anos, e lembrava de quando ficou hospitalizado
com anemia, asma e algumas costelas quebradas. Uma fria tarde de inverno de céu
limpo, depois de suas tentativas de muito tempo sem comer o que lhe ofereciam em
casa ou em qualquer lugar, seu pai, ainda sem desgrudar de sua mamadeira de adultos, o
bateu pela primeira vez. Aquele homem que jurou amor incondicional a um pedaço dele
que vivia doente, frágil e dependente, deu uma lição de amor a seu filho: o ensinou que
o amor pode doer às vezes, doer tanto que poderíamos comparar a dor com a de um
mastro de madeira um navio sendo projetado de forma violenta contra suas costelas a
ponto de atravessar seu corpo e deixar um furo, vazando sangue para todos os lados.

Sandro só estava com 12 anos, era muito jovem, era internado três vezes por semestre
por conta de alguma dor, alguma crise, alguma paralisia misteriosa, alguma suspeita de
câncer de pele, alguma hemorragia no intestino ou estômago. Dessa vez teria que voltar
por conta de umas costelas direitas quebradas e com suspeita de hemorragia interna.
Dessa vez não desmaiou, estava sentindo tudo sem mover um músculo voluntário de
seu corpo.

Em seu terceiro dia internado, já conseguia caminhar de forma precária. Foi uma
recuperação rápida. As enfermeiras que estavam de plantão sumiram de repente, então
Sandro aproveitou a oportunidade para se arrastar, com suas dores, até a lanchonete e
tomar um suco... Qualquer um. Apenas para lembrá-lo do lado bom de ser internado:
quando sua mãe era viva, comprava sucos, sem açúcar, na lanchonete do hospital em
que ele estava; qualquer um suco ou mistura que ele pedia, não sabia ele que sua mãe
conseguia por conhecimento do dono, que era seu amante.
Quanto desceu o elevador, após mentir para a recepcionista de seu andar, falando que
foi orientado a andar para não ficar com escaras, ouvia e via um tumulto à frente do
hospital, próximo onde funcionava a lanchonete. Havia uma multidão revoltada
espancando um homem, batendo nas enfermeiras e médicos que tentassem parar o
tumulto. No meio daquelas pessoas, ele pôde ver o homem sem camisa, de calça
rasgada, urrando de dor, desorientado e ensanguentado: era seu pai. Na tentativa de
correr até seu pai, no meio de um tumulto na porta do hospital do lado de dentro, seus
pontos que já estavam partidos, Sandro cai no chão, desmaia talvez de choque, ou de
perda de sangue, ou da dor. Foi pisado, levado para cima, em seu leito. Acordou de
noite sem saber que horas eram exatamente, ou que dia era. Do seu lado, um homem
enfaixado, imóvel, com um olho tampado e outro aberto. Sandro sabia de quem era o
olho. Do outro lado da sala, sua avó dormindo sentada.

Sandro levantou-se sentindo muita dor. Tirou seu cateter e andou para o leito ao lado,
assumindo ser seu pai. Passaram se vários minutos, o menino olhava o homem e o
homem, o menino. O homem chorava e o menino sorria. Então, sem pensar ou duvidar,
o menino desligara o aparelho que ajudava seu pai a respirar. O seu pai chorava,
murmurava baixinho, sem forças para um escândalo. O menino olhava o homem e o
homem, o menino. Passaram-se quase uma hora. Sandro ficou de pé, com lágrimas e
sorriso no rosto, e seu pai mantinha seu olho aberto sem esboçar nenhuma expressão.
Então Sandro ligou o aparelho, que estava familiarizado por tantas internações, e deitou
em seu leito. Se furou até conseguir por o cateter em sua veia, olhou para o teto e
percebeu que estava em um quarto diferente o qual estava internado anteriormente.
Fechou os olhos e dormiu. O menino matara o homem.

Sandro sonhou naquela noite com a morte do seu irmão mais velho, ocorrida há dois
anos e meio atrás. Seu irmão fez uma incisão vertical em seu antebraço percorrendo o
caminho de suas artérias, deitou-se em sua cama de solteiro, deixou suas pernas
elevadas, tomou trinta comprimidos do benzodiazepínico que roubara no hospital, em
umas das internações de Sandro, para garantir sua viagem entre os mundos. Quando
Sandro acordou, havia um alvoroço em seu quarto. Sua avó chorava, de forma falsa,
pois nunca gostou de seu genro. No dia seguinte cremaram seu pai.

Essas lembranças deixaram Sandro se sentindo um pouco culpado. Ele nunca contou a
ninguém que matou seu pai, ou que sabia que seu irmão roubava remédios, ou que sabia
que sua mãe conversava muito com outro homem... Mal sabia que sua mãe morrera, foi
muito rápido, assim quanto ao intervalo de internações nos últimos 3 anos. Ele já estava
com 27, como te disse antes. Os médicos suspeitavam de diversas coisas, inclusive
Aids. Não era possível um rapaz ter tantas entradas em UTIs, ou ter tantas internações
em pouco tempo de vida.

Sandro olhou para a janela novamente, queria vê-la uma ultima vez. Queria olhar a
cidade. Era o 10º andar. Ele levantou, arrastando seu suporte de soros e ficou olhando o
movimento dos carros. A farmácia do outro lado da avenida. Lembrou que era a terceira
vez que o hospital que se internara tantas vezes mudou de local. Sandro olhou para o
alto, e perguntou para a Lua o que foi que ele havia feito. O que foi que ele havia feito
de tão ruim assim para estar um terço de sua vida em hospitais e o resto doente?

Com sua alma adoecida, ele olhou mais uma vez para baixo e se jogou com o suporte de
soro junto, sob a luz do luar. Seu único pecado foi abrir a janela.

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