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DOIS PILARES DA PESQUISA

CIENTÍFICA: DEDUTIVISMO E
FALSEABILIDADE
29 De Março De 2018 Germer G. M. Comments 4 Comments
Na bandeira do Brasil, lemos: “Ordem e Progresso”. Trata-se de uma
abreviação do lema Positivista de Comte: “o Amor por princípio, a
Ordem por base e o Progresso por fim“. Não é muito comum que
bandeiras estampem palavras, talvez porque mesmo os vocábulos mais
interessantes, como “Sabedoria”, “Beleza”, e “Liberdade”, podem
facilmente se desgastar sobre o pano nacionalista.

No entanto, vivemos em um país positivista, e em um mundo


positivista. E isso nossa bandeira exibe muito bem. O Positivismo,
conforme Sabato, foi o ápice do otimismo ao qual chegou o homem
moderno. Em seu século natal, o XIX, até que fez sentido: Darwin provou
a evolução, o liberalismo “descobriu” a solução das imperfeições da
economia, a tecnologia prometeu alcançar o céu, com as máquinas a
vapor e a eletricidade.

Logo na sequência, porém, o século XX despertou o homem de seu


prazeroso sonho positivo. Nas palavras de Sabato:

“El siglo XX esperaba agazapado como un asaltante nocturno a una


pareja de enamorados un poco cursis. Esperaba con sus carnicerías
mecanizadas, el asesinato en masa de los judíos, la quiebra del
sistema parlamentario, el fin del liberalismo económico, la
desesperanza y el miedo. En cuanto la Ciencia, que iba a dar solución
a todos los problemas del cielo y de la tierra, había servido para
facilitar la concentración estatal y mientras por un lado la crisis
epistemológica atenuaba su arrogancia, por el otro se mostraba al
servicio de la destruición y de la muerte. Y así aprendimos
brutalmente una verdad que debíamos haber previsto, dada la
esencia amoral del conocimiento científico: que la ciencia no es por
sí misma garantía de nada, porque a sus realizaciones les son ajenas
las preocupaciones éticas”[i].

Sabato afirma que o Espírito Moderno nasceu, no Renascimento, com


o individualismo, o naturalismo e o humanismo, mas se reverteu, no
Século XX, em seus extremos opostos: a massificação, a
“maquinização” e a desumanização. O argentino está completamente
certo de que esse desenvolvimento contraditório foi impulsionado por
duas forças dinâmicas: “o capitalismo e a ciência positiva”[ii].

Desde uma perspectiva não mais humanista, mas epistemológica, Karl


Popper (1902 – 1994) também criticou o Positivismo, em A Lógica da
Pesquisa Científica (1959). Apresentado o pano de fundo anterior,
comentaremos, nesse artigo, a concepção de ciência que Popper
desenvolveu nesse livro, e que o forçou a se opor ao prisma da escola
comtiana. Mais especificamente, dois conceitos basilares serão
analisados aqui: o dedutivismo, que o autor opôs
ao indutivismo positivista; e a falseabilidade, antagônica
à verificabilidade definitiva. Não pensem, porém, que ensejo, aqui,
qualquer oposição à bandeira brasileira, que por sinal, além de ter
palavras está entre as poucas do mundo que omitem a cor rubra bélica.

O “Problema da Indução”

Popper sustenta que muitos autores, e em especial os positivos,


acreditam que “as ciências empíricas se caracterizam pelo fato de
empregarem os chamados métodos indutivos”[iii]. Segundo essa
concepção, as ciências começariam com a observação de inúmeros
fatos. Sobre estes fatos observados se anotariam enunciados singulares
(ou particulares) e, por meio da indução, se “generalizariam” os
enunciados singulares, criando assim proposições universais.

Newton, por exemplo, teria observado inúmeras maçãs caindo do pé e,


dessa observação junto com alguns outros experimentos controlados,
teria estabelecido as leis da mecânica e a teoria da gravitação universal.
Tal procedimento é chamado “indutivismo”. Contra ela, Popper
argumenta que a observação de casos singulares, por mais numerosos
que sejam, não autoriza, com rigor lógico, a inferência de conclusões
universais. O indutivismo não se justifica, portanto, logicamente, como
método científico confiável.

Por exemplo, que eu tenha observado que muitos cisnes sejam brancos,
não me legitima a dedução necessária de que todos os cisnes são
brancos. A fundamentação indutivista é, portanto, falha, e deve ser
descartada pela epistemologia contemporânea.

Nesse mesmo problema de falta de validação lógica do indutivismo


incorremos, por exemplo, quando afirmamos que a verdade de
enunciados universais científicos é “conhecida por experiência”[iv]. Essa
asserção, muito típica do positivismo (e usada frequentemente em sua
obstinada crítica à metafísica e ciências humanas), se baseia no
“indutivismo”, de modo que, ao empregá-la, derrapamos no problema
da impossibilidade de inferirmos enunciados universais a partir de
enunciados singulares. Para Popper, “a descrição de uma experiência (…)
só pode ser um enunciado singular, e não um enunciado universal”[v], e
não há fundamento lógico algum que conduza do primeiro ao segundo.

Para evitarmos o problema do “indutivismo”, Popper entende que as


ciências empíricas precisam assumir uma outra lógica, a saber, o
“método dedutivo de provas” ou “dedutivismo”.

Conforme essa lógica, as ciências não se iniciam com a observação


factual, mas sim com ideias. Essas ideias são formuladas em um sistema
preliminar, onde não se encontram ainda “justificadas de algum
modo”[vi]. Nesse estágio inicial, apresentam-se, portanto,
“antecipações, hipóteses, sistemas teóricos ou algo análogo”[vii], e com
base nas regras da lógica, se deduzem, agora sim com necessidade, uma
série de proposições subsequentes.

O segundo passo para a ciência é o de submeter à prova o sistema


teórico proposto, o que pode ser realizado de quatro modos diferentes.
Nas palavras do autor:
“Há, em primeiro lugar, a comparação lógica das conclusões umas
às outras, com o que se põe à prova a coerência interna do sistema.
Há, em segundo lugar, a investigação da forma lógica da teoria, com
o objetivo de determinar se ela apresenta o caráter de uma teoria
empírica ou científica, ou se é, por exemplo, tautológica. Em
terceiro lugar, vem a comparação com outras teorias, com o
objetivo sobretudo de determinar se a teoria representará um
avanço de ordem científica, no caso de passar as várias provas.
Finalmente, há a comprovação da teoria por meio de aplicações
empíricas das conclusões que dela se possam deduzir”[viii].

De acordo com o filósofo, essa última etapa é de extrema importância e


ocorre da seguinte maneira: “Com o auxílio de outros enunciados
previamente aceitos, certos enunciados singulares” são deduzidos da
teoria, e especialmente aqueles “suscetíveis de serem submetidos
facilmente à prova”[ix], isto é, aplicáveis à prática.

Somente nessa etapa é que entra em cena o famoso “método empírico”:


o cientista deve realizar os experimentos mais detalhados e rigorosos,
com o fim de falsificar (contradizer) sua teoria. Apenas nos casos em
que a falsificação buscada não for bem sucedida, diz-se que a teoria é
aceitável e foi provisoriamente comprovada: pois “não se descobriu
motivo para rejeitá-la”[x].

Se por ventura qualquer um dos enunciados singulares deduzidos da


teoria forem contraditos pelos experimentos, conclui-se, então, que o
conjunto teórico do qual derivam é problemático e deve ser reformulado
ou abandonado. “Na medida em que a teoria resista a provas
pormenorizadas e severas”, porém, e não for “suplantada por outra no
curso do progresso científico, poderemos dizer que ela ‘comprovou sua
qualidade’ ou foi ‘corroborada’ pela experiência passada”[xi].

Diferentemente dos positivistas, portanto, que colocavam seu acento na


observação factual primordial, e depois tinham que lançar mão de uma
lógica falha, Popper prefere proteger a rigorosidade lógica do sistema
científico, mesmo que, com isso, deva renunciar ao orgulho científico-
positivista de criticar a metafísica e ciências humanas como campos que
não parte da observação da experiência. Conforme Popper, as ciências
empíricas também não partem da observação factual, pois o método
empírico serve apenas para testar uma teoria, que, em sua totalidade,
jamais pode ser completamente comprovada. Em outras palavras, não
existe verificabilidade conclusiva no caso das ciências empíricas. O
que as distingue da metafísica, bem como da lógica e matemática, é
apenas sua capacidade de serem falseadas. Esses conceitos serão
esclarecidos na sequência.

O “Problema da Demarcação”:

Popper denomina de o “problema da demarcação” a questão de


estabelecer um critério confiável para se distinguir as ciências empíricas,
de uma parte, e a matemática, a lógica e a metafísica, de outro lado.

Segundo o autor, os “velhos positivistas” defendiam que só são


legítimos ou científicos os conceitos “derivados da experiência”. Em
última instância, eles entendiam por derivados da experiência os
conceitos “logicamente reduzíveis a elementos da experiência sensorial,
tais como sensações (ou dados sensoriais), impressões,
percepções”[xii] e afins.

Os positivistas modernos, por sua vez – diferencia o autor – já postulam


como científicos ou legítimos os “enunciados reduzíveis a enunciados
elementares (ou ‘atômicos’) da experiência – a ‘juízos de percepção’, ou
proposições atômicas’”[xiii] e similares.

Em ambos os casos, porém, o filósofo entende que o mesmo critério de


demarcação é assumido, a saber, exatamente o da Lógica Indutiva,
criticada anteriormente. Isto é, as ciências empíricas partiriam, segundo
eles, do particular (seja esse particular entendido como elementos
sensoriais ou enunciados elementares), e depois, por meio da indução,
se chegariam a leis universais empíricas. Por outro lado, as ciências
formais e a metafísica não partiriam de elementos particulares, mas de
universais-formais, incondicionados e etc. – isto é, de coisas não
encontráveis a olho nu na natureza – de modo que se a matemática e a
lógica mereceriam – conforme essa concepção – ser consideradas
ciências por sua utilidade ou por quaisquer outras razões, a metafísica
poderia ser lançada direto ao fogo.

Em poucas palavras, Popper afirma que o critério de demarcação do


indutivismo é naturalista, isto é, os positivistas “acreditam estar
obrigados a descobrirem uma diferença decorrente da natureza das
coisas”[xiv]. Essas coisas, se observadas positivamente, ensejariam
conceitos e enunciados dignos de incorporação científica; e quando isso
não acontecesse, produziriam pseudossentenças sem sentido.

Popper, porém, se opõe duplamente a essa concepção de ciência. Em


primeiro lugar, porque, como vimos, ela não explica como juízos
universais podem ser deduzidos de conceitos ou enunciados singulares
com rigorosidade. E em segundo lugar, porque certas ideias metafísicas
são inevitáveis, e inclusive, favoráveis ao avanço da ciência, como por
exemplo, o atomismo especulativo.

Conforme seu entendimento, certos positivistas tentaram contornar o


problema da indução com a defesa (cética) de que a ciência não tem por
objetivo o conhecimento de leis naturais universais. A ciência se limitaria,
portanto, a compilar dados particulares, e apenas arriscar algumas
previsões, no máximo, prováveis sobre objetos. Com isso, esses
positivistas, segundo o autor, renunciariam ao que, para Einstein,
“constitui o trabalho mais elevado”[xv] de um cientista (o conhecimento
de leis naturais universais). De modo que se não peca por dogmatismo,
como naquele caso (por meio do indutivismo), se peca por ceticismo,
como nesse caso. Conforme Popper, o problema do ceticismo repousa
em sua falta de fertilidade, enquanto dedutivismo mostra sua
fertilidade “quando se trata de elucidar questões de teoria do
conhecimento”[xvi].

Qual é, portanto, o critério de demarcação que, segundo Popper, melhor


separa as ciências empíricas da matemática, lógica e metafísica?

O critério da Lógica Indutiva – concluamos essa questão – é o


da verificação conclusiva, isto é, o que conduz à concepção de que
“todos os enunciados da ciência empírica” devem ser suscetíveis de
serem julgados conclusivamente com respeito à sua verdade e falsidade.
Como o critério da verificação conclusiva é incabível no caso de teorias
universais – pois afinal – como argumenta Popper – como
conseguiríamos verificar que todos os corpos se submetem, por
exemplo, às leis da mecânica? – sua proposta de demarcação não pode
ser a da “verificabilidade, mas sim a da falseabilidade de um
sistema”[xvii]. Em termos mais claros e nas palavras do epistemólogo
contemporâneo, em relação ao critério de verificação a ser adotado:

“Não exigirei que um sistema científico seja suscetível de ser dado


como válido, de uma vez por todas, em sentido positivo; exigirei,
porém, que sua forma lógica seja tal que se torne possível validá-lo
através de recurso a provas empíricas, em sentido negativo: deve
ser possível refutar, pela experiência, um sistema científico
empírico”[xviii].

Com base no critério de demarcação da falseabilidade, Popper afirma


que uma tautologia (por exemplo, “‘choverá ou não choverá amanhã”),
não pode ser considerada empírica e científica, “porque não admite
refutação. Da mesma maneira, teses como “2+3=5” (da matemática), “a
= – a = 0” (da lógica) e “a alma é imortal” (da metafísica) também não
incorporam o conteúdo de uma ciência empírica, pois não admitem
falsificação.

Por outro lado, as teorias capazes de falsificação, e que não forem


contraditas pelos experimentos mais severos e detalhados, poderão
representar um avanço na ciência, caso além de não serem falsificados,
não apresentem contradições internas e não sejam englobadas por
sistemas mais amplos e pormenorizados.

Se todos esses critérios são atendidos, teremos produção, isto é, criação


científica, pois essa comprovou, provisoriamente (nunca
definitivamente), seu valor, ou em termos mais precisos: “não se
descobriu [ainda] motivo para rejeitá-la”[xix].
Também ainda não descobrimos motivo para substituir nossa bandeira,
de resto tão tropical e atrativa. Mas assim como o positivismo, todo
nacionalismo, no sentido de maior ética com os patriotas do que com
os não patriotas, deve ficar no passado.

BIBLIOGRAFIA

SABATO, Ernesto. Hombres y Engranajes. Buenos Aires: Seix Barral,


edición especial para La Nación, 2006.

POPPER, K.. A Lógica da Pesquisa Científica. Trad.: L. Hegenberg e O.


Silveira da Mota. São Paulo: Editora Cultrix. 2016.

[i] SABATO, E.. Hombres y Engranajes. Buenos Aires: Seix Barral, edición
especial para La Nación, 2006. P. 17.

[ii] SABATO, E.. Idem. P. 18.

[iii] POPPER, K.. A Lógica da Pesquisa Científica. Trad.: L. Hegenberg e O.


Silveira da Mota. São Paulo: Editora Cultrix. 2016. P. 27.

[iv] POPPER, K.. Idem. P. 28.

[v] POPPER, K.. Idem. P. 28.

[vi] POPPER, K.. Idem. P. 31.

[vii] POPPER, K.. Ibidem.

[viii] POPPER, K.. Ibidem.

[ix] POPPER, K.. Idem. P. 32.


[x] POPPER, K.. Ibidem.

[xi] POPPER, K.. Ibidem.

[xii] POPPER, K.. Idem. P. 33.

[xiii] POPPER, K.. Ibidem.

[xiv] POPPER, K.. Ibidem

[xv] POPPER, K.. Idem. P. 35.

[xvi] POPPER, K.. Idem. P. 36.

[xvii] POPPER, K.. Idem. P. 38.

[xviii] POPPER, K.. Ibidem.

[xix] POPPER, K.. Idem. P. 32.

https://www.blogs.unicamp.br/openphilosophy/2018/03/29/dois-conceitos-fundamentais-da-
pesquisa-cientifica/

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