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DE GOIÂNIA
Acorrentada, amordaçada e com hematomas pelo corpo. Assim a menina de 12 anos Lucélia
Rodrigues da Silva foi encontrada pela polícia na manhã do dia 17 de março passado. A
imagem apareceu em todos os jornais do país, denunciando um caso bárbaro de violência
contra a infância. Na esperança de entender o que leva uma pessoa a ter tanto ódio contra uma
criança, Marie Claire entrevistou Silvia Calabrese Lima, a principal acusada de ter aprisionado
e torturado Lucélia quase ao limite. O que você vai ler aqui é a versão que Silvia conta de seu
passado, da infância supostamente infeliz ao dia em que foi obrigada a deixar seu dúplex para
viver na cela de número 10 do presídio da cidade.
Eu errei, você errou, nós erramos... e só tem uma estrada a ser seguida, se você for andar na
mesma estrada que eu, Lucélia! Abandone o mau (sic), abandone a mentira. Na minha estrada
não há vaga para a maudade (sic)!" Esse é um trecho de uma estranha carta que Silvia
Calabrese Lima teria entregue a Lucélia Rodrigues da Silva, na Páscoa de 2007, um ano antes
de ser presa em flagrante. Diz mais: "... com essas atitudes, não terá futuro feliz... Sabe por
quê? Porque colhemos o que plantamos! E não está plantando o bem, não é mesmo?".
As duas folhas manuscritas são confusas e ameaçadoras, mas o que mais perturba é o P.S. da
"tia Silvia": "Pensou que iria ficar [com os] ovos, não é mesmo?". Será que, no lugar de
esconder chocolates, ela presenteou Lucélia com esse sádico recado? A carta dá apenas uma
pista de quem é Silvia, a mulher que ficou conhecida como a Carrasca de Goiânia, depois de
ser denunciada por vizinhos porque mantinha em cárcere privado e torturava Lucélia, de apenas
12 anos. Alicate, tesoura, ferro de passar roupa seriam alguns dos instrumentos usados nas
sessões de maus-tratos, segundo Lucélia e a polícia.
Fui ao encontro de Silvia na Casa de Detenção de Aparecida de Goiânia, onde está presa desde
17 de março. Antes, porém, reuni algumas informações sobre ela e soube que histórias
monstruosas envolvendo seu nome não eram propriamente uma novidade -em 2002, ela foi
processada por maus-tratos a outra menina, na época com 5 anos. Entrevistei a delegada do
caso, li o inquérito e vi as fotos do laudo de Lucélia: queimaduras nos quadris e nas coxas com
ferro de passar roupa, cortes na língua, unhas arroxeadas. A própria Lucélia me fez chorar ao
mostrar os sinais de agressão que ainda carregava no corpo e na mente.
Conversei com Lorena Coelho Reis Lopes, que afirma ter sido vítima de Silvia anos atrás, e
falei com antigos vizinhos de Silvia, moradores do prédio onde ela alugava um apartamento
dúplex por R$ 1.500 mensais. Eu estava prestes a ficar frente a frente com uma mulher que a
gente não encontra todos os dias por aí (ou encontra e não sabe).
Dormi mal a noite que antecedeu o encontro. Não sei se pela ansiedade de encarar Silvia ou
porque deveria estar às 8 horas no presídio, onde não conhecia ninguém. Já estive em cadeias
outras vezes, sempre por motivos profissionais, e, apesar de estar "acostumada", aquele abrir e
fechar de grades, a revista, o clima todo não é o melhor dos mundos.
Cheguei no horário, mas a entrevista com Silvia atrasou. Delegados da Polícia Federal iriam
interrogá-la naquela manhã por suspeita de "redução de crime análoga à escravidão" -em ou-
tras palavras, Silvia teria reduzido Lucélia à condição de coisa, objeto.
Mais de uma hora depois, encontrei Silvia em uma sala da área administrativa. Ela estava
acompanhada de Rogério Rodrigues de Paula, um de seus advogados. Minha intuição, somada
às informações sobre ela, dizia que eu estava indo ao encontro de uma mu-lher áspera, e a
primeira impressão que tive foi justamente essa. Sentada, não se levantou, nem me estendeu a
mão. Disse: "Essa é a última vez que falo com um jornalista". Fingi estar acostumada a esse
tipo de tratamento, expliquei rapidamente a intenção de minha visita e comecei a fazer
perguntas. Silvia parecia disposta a falar, o que era ótimo sinal.
Em pouco tempo, ela foi se apresentando como uma mulher frágil, dona de uma infância infeliz
e desastrosa, marcada pela ausência do pai, a morte da mãe, estadias em casas de desco-
nhecidos, episódios de abusos e passagens por orfanatos. De fato, Silvia viveu em dois
orfanatos e foi, a partir dos 12 anos, criada por uma mãe adotiva. De resto, é o que Silvia conta
ter vivido.
A maior parte do tempo, Silvia pouco me olhou nos olhos. Disse sentir "vergonha" de me
contar coisas que tinha prometido se esquecer. E chorou ao falar de Nerivaldo Gomes Coelho,
o homem que a teria violentado ainda criança. Em vários momentos, cheguei a pensar que
Silvia seria vítima de seu próprio destino. Isso, obviamente, não justificava as acusações de
agressão, mas, de certa forma, explicava. Não consegui sentir pena dela, mas pude enxergá-la
como uma sobrevivente.
A entrevista estava terminando, quando falamos de Lucélia. Nessa hora, Silvia mudou de tom.
De frágil passou a se mostrar segura. "A imprensa falou que eu fazia a menina comer bosta, que
eu deixava a menina sem comer. Exagerou." Em seguida, afirmou que "às vezes danava" com
Lucélia. "Se eu falar que nunca dei uns tapas nela, tô mentindo." E, com a firmeza de quem
quer se autoconvencer de que está livre da condenação, negou ter acorrentado a menina à
escada. "Não estava em casa no dia do flagrante." E defendeu-se, dizendo que Vanice Maria
Novaes, que trabalhava como sua empregada doméstica, "armou" tudo para se livrar de uma
dívida com a patroa.
Vanice também está presa e também negou a autoria do crime. Disse que só prendeu Lucélia
por que era ameaçada por Silvia. Além delas, Marco Antonio Calabrese, com quem a acusada
está casada há 23 anos, e Thiago, seu filho mais velho, estão enroscados. Devem responder por
omissão à tortura (sabiam o que acontecia no apartamento, mas não fizeram nada). Tentei falar
com os dois, que estão soltos, só que eles não atenderam aos meus pedidos. Silvia e Marco têm
outros dois filhos: Gustavo, de 20 anos, que não mora em São Paulo e por isso é insuspeito, e
Matheus, de 3, que agora vive com a avó paterna.
Depois de quase duas horas, deixei o presídio com a mesma sensação de quando li pela
primeira vez a carta que Silvia deu a Lucélia, ainda sem saber quem é essa mulher. Aqui, Silvia
conta o seu passado, revelando o que sente por Lucélia e dando detalhes do que aconteceu no
dia do flagrante.
MC Como foi a sua infância?
SC Eu tinha 6 pra 7 anos quando minha mãe morreu, mas já não morava com ela...
Éramos cinco irmãos, eu e mais quatro homens. Fui dada com 5 anos [gagueja] para
uma família que morava numa fazenda. Minha mãe era doente, meu pai já tinha
morrido, não lembro dele. Nessa fazenda, tinha uma senhora que me colocava para fazer
os afazeres da casa e, como eu não fazia direito, apanhava. Eu não queria ficar ali e
voltei para a minha mãe, mas fui dada novamente pra outra família.
MC Por quê?
SC O marido da Lurdes, o Nerivaldo, não me via como filha, me via como mulher
[chora]. Ele me violentava... Só não tinha penetração, mas o resto tudo ele fazia comigo
[com raiva]. Passava o pênis em mim, me fazia pegar, me fazia masturbar ele... Eu
contei pra minha prima, e foi aí que ela providenciou o orfanato Lar das Meninas de
Santa Gertrudes pra mim. Eu gostava desse orfanato, tinha escola, eu morava longe do
Nerivaldo. Só que, antigamente, não existia agência de empregada. Quem precisava de
babá, de doméstica, ia nos orfanatos...
MC Como assim?
"Procurava um pai e uma SC Eu comprava maçãs e dizia: "São duas pra cada".
mãe nas casas que eu ia,
mas só era tratada como
Lucélia pegava as duas, comia e depois falava para a
uma doméstica" -Silvia minha mãe que ela não tinha comido. Minha mãe, então,
dava a dela pra Lucélia. Eu não era miserável, era
econômica. Já passei muita fome... Mas errei. Às vezes eu danava com ela demais,
podia chamar e conversar, mas eu já gritava. Esse é o meu jeito. Deixava ela, às vezes,
de castigo, sem televisão, sem ir ao shopping comigo, e dava chineladas. Se eu falar que
eu nunca dei um tapa, tô mentindo.
MC E o dia do flagrante?
SC Eu não estava no flagrante. Tinha ido levar meu marido no serviço. Sabe o que
aconteceu? A Vanice tinha uma dívida comigo, me devia dinheiro. Montei uma casa pra
ela, paguei uma cirurgia de ligadura pra ela, vendi um celular pra ela... Ela queria se
livrar da dívida e armou. Tanto é que, quando a polícia chegou, a mala dela estava
pronta.
Entrevista Lucélia
Marquei uma visita a Lucélia sem me dar conta de que naquele dia fazia um mês que ela
estava em liberdade. Quando cheguei ao Centro de Valorização da Mulher, Cevam,
onde está provisoriamente abrigada, Lucélia estava toda arrumada para ir ao shopping
"comemorar" a data. Ainda confusa com o passado, ela falou pouco de Silvia e Vanice.
"Quero ser feliz, estudar, ser delegada." Lucélia foi dada a Silvia pela mãe, há dois anos.
Mas, segundo a própria menina, as sessões de tortura começaram em agosto do ano
passado, quando deixou de ir à escola. Ela conta que trabalhava "muito" na casa de
Silvia, até de madrugada. A polícia apreendeu uma agenda, em que estão descritas as
tarefas domésticas de Lucélia, que começavam às 5h40 e terminavam à 1h40. As
anotações, segundo a polícia, foram feitas por Vanice Maria Novaes, a empregada que
supervisionava a rotina de Lucélia. A menina foi libertada do cativeiro, depois de uma
denúncia feita por vizinhos. Aqui, ela conta o que pôde sobre sua vida.
MC Por quê?
LRS Sofri muito, caí no buraco e agora Deus está me ajudando a sair de dentro dele.
Foi muita violência.
Vanice Maria Novaes, de 24 anos, presa sob a acusação de tortura e cárcere privado, diz
ter trabalhado para Silvia em três ocasiões -na última, permaneceu um ano e dois meses.
Em nenhuma delas, segundo a própria, foi registrada ou recebeu seus salários. No
entanto, Vanice não sabe explicar os motivos que a levaram tantas vezes de volta para a
casa de Silvia. "Dessa última vez, queria ir embora, mas ela sumiu com minhas roupas,
meus documentos, e me ameaçava de morte."
A acusada diz que Silvia nunca a agrediu, só a ameaçava caso contasse o que ocorria na
casa. Afirma que Silvia organizou o parto de sua segunda filha, nascida em 20 de
outubro de 2007 -a primeira filha de Vanice tem 4 anos- e autorizou o médico a fazer
uma cirurgia de ligadura. "Foi decisão dela. Silvia pagou o parto e a operação. Não vi
papel, não vi nada." Acusa ainda a patroa de querer "adotar" a sua filha. "Ela não
deixava eu ter muito contato com a menina. Na hora em que eu ia amamentar, ela ficava
vigiando."
Sobre Lucélia, Vanice conta que Silvia "trancava a menina num quarto e ninguém sabia
o que acontecia". Diz que a menina deixou a escola "pra ninguém descobrir" que ela
estava cheia de hematomas. Mas, em mais de um ano de convivência, não chegou a
ficar amiga de Lucélia. "A Silvia não deixava a gente conversar."
Vanice conta detalhes do flagrante: "Levantei às 5h40, a hora que a gente levantava
todo dia. Eu dormia no quarto de empregada, e Lucélia dormia na área de serviço, no
chão. Uma hora, ela chamou Lucélia pra secar o banheiro. Ela não foi, e Silvia me
chamou. Também não fui porque tava arrumando o Matheus, o filho dela. Aí ela
começou com as ameaças e pediu pra mim (sic) amarrar a Lucélia. Ela que mandou eu
prender. Ela sempre obrigava eu a fazer isso. Silvia falou que ela ia ficar amarrada até o
meio-dia. Aí, ela saiu e eu avisei o vizinho, que denunciou pra polícia".
Em um discurso contraditório, Vanice ainda afirma: "Eu nunca torturei a Lucélia, nunca
bati nela". Não sabe o que o futuro lhe reserva, mas diz que torce para que a verdade
venha à tona: "Silvia sempre coloca a culpa em mim, que eu que torturava a Lucélia.
Em momento algum, ela tá falando que fez isso ou aquilo". Vanice pode pegar até 18
anos de prisão.