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Naquela tarde, Alex e Sabina pegaram uma carona com um fazendeiro local
até Aigues-Mortes, uma cidade-fortaleza à beira dos pântanos de água sal‐
gada. Sabina queria se afastar um pouco de seus pais e sentar em um café
francês, onde, ao lado de Alex, poderia observar os turistas e os moradores
locais confraternizando na rua. Ela havia inventado um sistema para dar no‐
tas aos adolescentes franceses de acordo com a aparência, tirando pontos
para pernas finas, dentes tortos ou péssima noção de moda. Até agora, ne‐
nhum deles tinha conseguido tirar mais do que sete — sendo que a nota má‐
xima era vinte. Em uma situação normal, Alex teria se divertido ao ficar
sentado ao lado dela, ouvindo enquanto Sabina ria alto.
Mas não naquela tarde.
Tudo parecia fora de foco. Os grandes muros e as enormes torres que o
cercavam estavam a quilômetros de distância, e os turistas pareciam estar se
movendo muito devagar, como num filme em câmera lenta. Alex queria
conseguir aproveitar o passeio, queria sentir-se de férias novamente. Mas
ter visto Yassen estragou tudo.
O garoto conhecera Sabina apenas um mês antes, quando os dois foram
gandulas no campeonato de tênis de Wimbledon. Mas eles logo se tornaram
amigos. Sabina era filha única. Sua mãe, Liz, trabalhava como designer de
moda, e seu pai, Edward, era jornalista. Alex não o via muito. O pai de Sa‐
bina chegara mais tarde para as férias, vindo de trem de Paris, onde estivera
trabalhando em uma matéria.
A família alugara uma casa nos arredores de Saint-Pierre, à beira do rio
Petit Rhône. Era uma construção simples, típica daquela área: paredes bran‐
cas com janelas azuis e telhado de terracota queimada pelo sol. Havia três
quartos na casa e, no térreo, uma cozinha antiga e arejada que se abria para
um grande jardim, com uma piscina e uma quadra de tênis, onde as ervas
daninhas tentavam abrir caminho no concreto. Desde o primeiro momento,
Alex adorou o lugar. Seu quarto tinha vista para o rio, e, toda noite, ele e
Sabina passavam horas estirados em um antigo sofá de vime, conversando
baixinho e observando a água ondular.
A primeira semana de férias pareceu passar em um piscar de olhos. Du‐
rante esse período, eles nadaram na piscina e no mar, que ficava a menos de
2 quilômetros de distância. Também fizeram caminhadas, escalada, canoa‐
gem. E até mesmo saíram para passear a cavalo, mas apenas uma vez — já
que esse não era o esporte favorito de Alex. O garoto realmente gostava dos
pais de Sabina. Eles eram o tipo de adulto que não se esqueceu de que um
dia já foi adolescente, e acabavam deixando Alex e Sabina fazerem sozi‐
nhos quase tudo o que quisessem. E, durante os últimos sete dias, tudo tinha
sido ótimo.
Até o garoto ver Yassen.
O endereço está confirmado, e tudo já foi arranjado.
Vamos agir esta tarde...
O que o russo estava planejando fazer em Saint-Pierre? Que má sorte o
tinha trazido até aqui, projetando sua sombra, mais uma vez, sobre a vida de
Alex? Mesmo sob o calor do sol da tarde, o garoto estremeceu.
— Alex?
Ele percebeu que Sabina estivera falando com ele e então olhou ao redor.
Ela o encarava do outro lado da mesa, com uma expressão preocupada no
rosto.
— No que você está pensando? — perguntou a jovem. — Está a quilô‐
metros de distância.
— Em nada.
— Você andou muito diferente durante toda a tarde. Alguma coisa acon‐
teceu essa manhã? Aonde foi quando desapareceu da praia?
— Eu disse que precisava beber alguma coisa — Alex odiava ter que
mentir para ela, mas não poderia contar a verdade.
— Eu só estava dizendo que nós deveríamos ir embora. Prometi estar em
casa às 17 horas. Ah, meu Deus! Olhe para aquele ali! — Ela apontou para
outro adolescente que passava. — Nota quatro. Será que não existe nenhum
garoto bonito na França? — Ela relanceou o olhar para Alex. — Além de
você, quero dizer.
— Então, qual seria a minha nota? — ele perguntou.
Sabina pensou um pouco antes de finalmente responder:
— Eu lhe daria 12,5. Mas não se preocupe, Alex. Mais dez anos e você
será perfeito.
O nome do homem era Franco. Ele descera do barco porque Yassen detesta‐
va o cheiro de fumaça de cigarro. Franco não gostava de Yassen. Mais do
que isso, tinha medo dele. Quando recebeu a notícia de que Edward Pleasu‐
re tinha ficado ferido, mas não estava morto, o russo não disse nada. Porém,
a expressão em seus olhos era feia e intensa. Por um momento, ele encarara
Raoul, o ajudante de bordo. Na verdade, fora Raoul quem colocara a bom‐
ba... longe demais do quarto do jornalista, conforme ficou provado. O erro
fora dele. E Franco sabia que Yassen quase matara o ajudante, tamanha era
sua raiva. Talvez ainda fizesse isso. Deus... que confusão!
Franco ouviu o barulho da sola de um sapato sobre o cascalho e viu um
garoto caminhando em sua direção. Era magro e bronzeado, usava short e
uma camiseta desbotada do Stone Age, e tinha um cordão de contas de ma‐
deira ao redor do pescoço. Seus cabelos eram loiros, com uma mecha cain‐
do sobre a testa. Devia ser um turista... parecia inglês. Mas o que estava fa‐
zendo ali?
Alex havia se perguntado quanto conseguiria se aproximar antes de des‐
pertar suspeitas no homem. Se fosse um adulto se aproximando do barco, as
coisas seriam diferentes, mas o fato de ter apenas 14 anos era a razão princi‐
pal para que tivesse sido útil ao MI6. As pessoas não o notavam até que fos‐
se tarde demais.
E era isso o que estava acontecendo agora. Quando o garoto se aproxi‐
mou mais, Franco ficou impressionado com os olhos castanhos-escuros que,
de algum modo, pareciam sérios demais para um jovem daquela idade.
Eram olhos que haviam visto demais.
Alex chegou perto do homem. Então, o garoto atacou de forma repenti‐
na, apoiando-se no pé esquerdo e chutando com o direito. Franco foi pego
totalmente de surpresa. O calcanhar de Alex o atingiu fortemente no estô‐
mago, mas, no mesmo instante, o garoto percebeu que subestimara o opo‐
nente quando esperou encontrar pouca resistência sob o terno frouxo. O pé
de Alex atingiu um conjunto de músculos, e, embora o homem tenha de‐
monstrado dor e perdido o fôlego, não foi derrubado.
Franco deixou cair o cigarro e reagiu, já com a mão no bolso do paletó.
Quando a puxou para fora, segurava alguma coisa. Um clique baixo se es‐
palhou, e uma lâmina prateada de cerca de 7 centímetros surgiu do nada. O
homem tinha um canivete. Movendo-se mais rapidamente do que Alex teria
imaginado ser possível, Franco acelerou pelo píer, seguindo na direção do
garoto. A mão do homem se abaixou em um arco, e Alex ouviu a lâmina
rasgando o ar. O menino girou novamente, e o canivete passou raspando por
seu rosto, não o acertando por uma questão de milímetros.
Alex estava desarmado. Franco obviamente já usara a faca várias vezes
antes, e, se não tivesse sido afetado pelo primeiro chute, aquela luta certa‐
mente já teria terminado. O garoto olhou ao redor, procurando alguma coisa
com que pudesse se defender. Não havia quase nada no píer, apenas algu‐
mas caixas velhas, um balde e uma rede de pescador. Franco agora se movia
mais lentamente. Estava lutando com uma criança, nada mais. O pirralho o
pegara de surpresa com o primeiro ataque, mas seria muito fácil terminar
logo aquela história.
Ele resmungou algumas palavras em francês: palavras baixas e feias. En‐
tão, um segundo depois, seu punho girou no ar, dessa vez segurando o cani‐
vete em um ângulo que teria cortado a garganta de Alex se o garoto não re‐
cuasse a tempo.
Alex gritou.
Tropeçou e caiu feio de costas, com um dos braços estendidos. Franco
sorriu, mostrando dois dentes de ouro, e caminhou na direção do jovem, an‐
sioso para terminar logo tudo aquilo. Então viu, tarde demais, que havia si‐
do enganado. O garoto segurava a rede de pesca. Quando Franco chegou
bem perto, Alex se levantou com um pulo, esticando o braço em toda a sua
extensão. A rede caiu sobre a cabeça do homem, cobrindo seus ombros e a
mão que segurava o canivete. Ele praguejou e remexeu o corpo, tentando se
libertar, mas o movimento só o fez ficar mais enredado.
Alex sabia que precisava acabar com aquilo rapidamente. Franco ainda
lutava com a rede, mas o garoto o viu abrir a boca para pedir socorro. Eles
estavam bem perto do iate. Se Yassen ouvisse alguma coisa, não haveria
mais nada que o jovem pudesse fazer. Alex mirou e chutou uma segunda
vez, acertando o pé bem no estômago do homem. Franco perdeu o ar e fi‐
cou com o rosto muito vermelho. Estava com metade do corpo para fora da
rede, e seus movimentos pareciam uma dança bizarra na beira do píer. En‐
tão, o homem perdeu o equilíbrio e caiu no chão. Como suas mãos estavam
presas, era impossível se proteger. A cabeça bateu no concreto com um es‐
talo ruidoso, e Franco ficou muito quieto.
Alex continuou de pé, com a respiração pesada. À distância, ouviu o to‐
que de uma trombeta e o som dos aplausos. A tourada começaria em dez
minutos. Uma pequena banda já havia chegado e começava a tocar. O jo‐
vem olhou para o homem inconsciente, sabendo que escapara por pouco.
Não havia sinal da faca, então talvez ela tivesse caído na água. Alex fez
uma rápida avaliação para saber se deveria continuar. Então, pensou em Sa‐
bina e no pai dela. E, quando se deu conta, já estava subindo pela prancha
até parar no deque do iate.
O barco fora batizado de Fer de Lance. Alex viu o nome enquanto subia
e se lembrou de já tê-lo visto em algum outro lugar. Claro! Em um passeio
com a escola ao zoológico de Londres. Era o nome de algum tipo de cobra.
Venenosa, obviamente.
Alex estava de pé em uma área larga, com um volante e controles, uma
porta em um dos lados e sofás de couro na parte de trás. Também havia uma
mesa baixa. Ele viu uma revista amassada, uma garrafa de cerveja e um re‐
vólver. O homem careca provavelmente estivera sentado ali antes de sair
para fumar.
O garoto reconheceu o celular. Era de Yassen. Ele vira o aparelho nas
mãos do russo mais cedo, no restaurante. O telefone era de uma cor estra‐
nha, um marrom esquisito, e só por isso Alex prestara atenção nele. Mas
agora via que o aparelho ainda estava ligado. Tomou-o nas mãos.
Examinou rapidamente o menu principal e foi até o registro de chama‐
das. Logo encontrou o que estava procurando: a lista de todas as ligações
que Yassen havia recebido naquele dia. Às 12h53, o russo falara com um
número que começava com 44207. O 44 era o código de discagem da Ingla‐
terra, e os números seguintes deixavam claro que ele falara com algum lu‐
gar na cidade de Londres. Aquela era a ligação que Yassen havia recebido
no restaurante. Alex memorizou rapidamente o número. Era o contato da
pessoa que dera as ordens a Yassen. Isso diria a ele tudo o que precisava sa‐
ber.
O garoto pegou o revólver.
Finalmente tinha uma pistola. Todas as vezes que trabalhava para o MI6,
Alex pedia para lhe darem uma arma, mas eles sempre recusavam. Em vez
disso, entregavam ao jovem dispositivos especiais, mas somente dardos
tranquilizantes, granadas de efeito paralisante, bombas de fumaça. Nada
com capacidade para matar. Alex sentiu o poder da arma que segurava. Me‐
diu seu peso com as mãos. Era um revólver Grach MP-443, com a boca pe‐
quena e a coronha com nervuras. Uma arma russa, é claro, de fabricação do
exército. Alex se permitiu envolver o gatilho com o dedo, e seu rosto se
abriu em um sorriso cruel. Agora ele e Yassen estavam empatados.
O garoto caminhou até a porta, entrou por ela e desceu um pequeno lance
de escadas que levava ao o deque inferior. Então, entrou em um corredor
que parecia seguir por toda a extensão do barco, com cabines de ambos os
lados. Alex vira uma sala de estar na parte de cima, mas sabia que estava
vazia. Não via luzes por trás daquelas escotilhas. Se Yassen estivesse em al‐
gum lugar, seria ali embaixo. O garoto segurou a arma com mais força e
continuou a caminhar cuidadosamente, os pés não fazendo barulho algum
no chão coberto por um carpete grosso.
O jovem chegou a uma porta e viu uma faixa de luz amarela escapando
por uma fresta. Cerrou os dentes e estendeu a mão para a maçaneta, imagi‐
nando que talvez estivesse trancada. Mas a maçaneta girou, e a porta abriu.
Alex entrou.
A cabine era surpreendentemente grande, um longo retângulo com o
chão coberto por um carpete branco e modernos painéis de madeira espa‐
lhados por todas as duas paredes. A terceira delas era ocupada por uma ca‐
ma de casal baixa com uma mesa de cabeceira e uma luminária em cada la‐
do. Havia um homem deitado sobre a coberta branca, os olhos fechados,
quieto como um cadáver. Alex se adiantou. Não havia som algum no quar‐
to, mas o garoto pôde ouvir, à distância, o som da banda que tocava na tou‐
rada: dois ou três trompetes, uma tuba e um tambor.
Yassen Gregorovich não fez movimento algum quando Alex se aproxi‐
mou segurando o revólver diante do corpo. O jovem chegou à beira da ca‐
ma. Era o mais perto que já estivera do russo, do homem que matara seu tio,
e ali podia ver cada detalhe daquele rosto: os lábios desenhados, as pálpe‐
bras quase femininas. O revólver estava a menos de dois centímetros da tes‐
ta de Yassen. Era ali que aquela história terminava. Tudo o que Alex preci‐
sava fazer era puxar o gatilho e estaria acabado.
— Boa noite, Alex.
Yassen não se levantou. Seus olhos, que antes estavam fechados, agora
não estavam mais. Simples assim. A expressão no rosto dele não mudara.
Ele soube imediatamente quem era Alex e, ao mesmo tempo, percebeu o re‐
vólver apontado para ele. Percebeu e aceitou.
Alex não disse nada. A mão que segurava o revólver estremeceu leve‐
mente e o garoto usou a outra para firmar a arma.
— Você está com o meu revólver — comentou Yassen.
Alex respirou fundo. Em seguida, o russo perguntou:
— Tem a intenção de usá-lo?
Nada.
Yassen continuou calmamente.
— Acho que você deveria pensar bem. Matar um homem não é como vo‐
cê vê na televisão. Se puxar esse gatilho, vai enfiar uma bala real em uma
pessoa de carne e osso. Eu não sentirei nada, morrerei no mesmo instante.
Mas você vai ter que viver com o que fez pelo resto da vida. E jamais es‐
quecerá.
Ele fez uma pausa, deixando as palavras pairarem no ar.
— Realmente tem essa capacidade dentro de você, Alex? Consegue fazer
seu dedo obedecê-lo? Consegue me matar?
Alex permanecia rígido como uma estátua. Toda a sua concentração esta‐
va focada no dedo ao redor do gatilho. Era simples. Havia um mecanismo,
uma mola, que faria o gatilho puxar o cão da arma, soltando-a. O cão dispa‐
raria a bala, uma pecinha mortal de apenas 19 milímetros de comprimento,
lançando-a em uma jornada curta e rápida até a cabeça do homem. Ele con‐
seguiria fazer isso.
— Talvez você tenha se esquecido do que eu lhe disse uma vez. Essa não
é a sua vida. Não tem nada a ver com você.
Yassen estava totalmente relaxado. Não havia emoção alguma em sua
voz. Ele parecia conhecer Alex melhor do que o próprio Alex se conhecia.
O garoto tentou desviar o olhar para evitar encarar os olhos azuis tranquilos
que o observavam com uma expressão muito próxima de pena.
— Por que fez aquilo? — Alex quis saber. — Você explodiu a casa. Por
quê?
Os olhos do homem vacilaram brevemente.
— Porque fui pago.
— Pago para me matar?
— Não, Alex — por um momento, Yassen pareceu estar quase se diver‐
tindo. — Não teve nada a ver com você.
— Então quem...
Mas já era tarde demais.
De repente ele compreendeu, pela expressão nos olhos de Yassen, que o
russo o estava distraindo. Então, um par de mãos o agarrou e o afastou com
violência da cama. Alex viu Yassen se movimentar com a rapidez de uma
cobra, rápido como uma fer de lance. O revólver disparou, mas Alex não
apertara o gatilho de propósito e a bala acertou o chão. O garoto foi jogado
contra a parede, e a arma caiu de sua mão. Alex sentiu gosto de sangue na
boca. O iate parecia estar se inclinando.
Uma fanfarra soou à distância, acompanhada pelo rugido da multidão. A
tourada começava.
3
TOUREIRO
... mas primeiro ele se encontrou com Cray para uma conversa informal
na embaixada americana em Londres. Cray é porta-voz do Greenpeace e
vem liderando um movimento para evitar que seja feita perfuração de pe‐
tróleo no Alasca, com receio do prejuízo ambiental que isso pode causar.
Embora não tenha feito promessas, o presidente americano concordou em
estudar o relatório que o Greenpeace...
A sra. Jones desligou a televisão.
— Está entendendo? O homem mais poderoso do mundo interrompeu
suas férias para se encontrar com Damian Cray. E viu o astro antes mesmo
de visitar o primeiro-ministro! Isso deve lhe dar a dimensão do poder desse
homem. Então me diga: que razão Cray teria para explodir uma casa e tal‐
vez assassinar uma família inteira?
— Isso é o que quero que descubram.
Blunt fungou e, em seguida, falou:
— Acho que devemos aguardar o retorno da polícia francesa. Eles estão
investigando a CST. Vamos ver o que nos dizem.
— Então vocês não vão fazer nada!
— Acho que já lhe explicamos a situação, Alex.
— Está certo — o garoto se levantou e nem tentou disfarçar a raiva que
sentia. — Vocês me fizeram passar por um completo idiota na frente de Sa‐
bina, fizeram com que eu perdesse uma das minhas melhores amigas. É
mesmo impressionante. Quando precisam de mim, sentem-se no direito de
me arrancarem do colégio e me mandarem para o outro lado do mundo.
Mas, quando sou eu que preciso de vocês uma única vez, fingem que nem
sequer existo e simplesmente me jogam na rua...
— Você está sendo excessivamente emocional — argumentou Blunt.
— Não, não estou. Mas vou lhes dizer uma coisa: se não forem atrás de
Cray, eu irei. Ele pode ser o Papai Noel, Joana D’Arc, e o Papa, todos esses
em uma só pessoa, mas era a voz dele ao telefone, e sei que, de algum mo‐
do, Cray está envolvido no que aconteceu no Sul da França. Vou provar isso
a vocês.
Sem esperar para ouvir nem mais uma palavra, Alex deixou o escritório.
Houve um longo silêncio.
Blunt pegou uma caneta e anotou algumas coisas em uma folha de papel.
Então, olhou para a sra. Jones.
— E então? — ele disse.
— Talvez devêssemos repassar os arquivos mais uma vez — ela sugeriu.
— Afinal, Herod Sayle fingiu ser amigo do povo britânico, e se não fosse
por Alex...
— Pode fazer como achar melhor — concordou Blunt. Ele circulou a úl‐
tima frase que escrevera. A sra. Jones viu as palavras Yassen Gregorovich
no pé da página. — É curioso que ele tenha esbarrado com Yassen uma se‐
gunda vez — resmungou o homem.
— E mais curioso ainda que Yassen não o tenha matado quando teve a
oportunidade.
— Eu não diria isso, considerando tudo.
A sra. Jones concordou.
— Talvez devêssemos contar a Alex sobre Yassen — ela sugeriu.
— É claro que não — Blunt pegou o pedaço de papel e o amassou. —
Quanto menos Alex Rider souber sobre Yassen Gregorovich, melhor. Tenho
esperança de que os dois não voltem a se esbarrar — ele jogou a bola de pa‐
pel amassado no cesto de lixo sob a escrivaninha. No fim do dia, todo o lixo
seria incinerado.
— E basta — acrescentou Blunt.
Querido Alex,
Provavelmente vou me meter em encrenca por causa disso, mas não gos‐
to da ideia de vê-lo ter que se virar sozinho, sem nenhum apoio. Venho tra‐
balhando nessa bicicleta para você e acho que deveria ficar com ela. Espe‐
ro que lhe seja útil.
Tome cuidado, garoto querido. Eu detestaria receber a notícia de que al‐
guma coisa fatal lhe aconteceu.
Tudo de bom para você,
Smithers
P.S. Essa carta se autodestruirá dez segundos depois que entrar em con‐
tato com o ar, portanto espero que você a leia rapidamente.
Alex só teve tempo de ler a última frase antes que as letras desapareces‐
sem e o papel se amassasse até virar uma espécie de cinza branca. O garoto
abriu as mãos, e o que sobrara da carta foi levado pela brisa. Nesse meio
tempo, os dois homens haviam voltado para a van e ido embora. Alex ficou
ali, parado, ao lado da bicicleta. Em seguida, folheou as primeiras páginas
do manual de instrução.
FOI APENAS NA LUZ FRIA da manhã que Alex começou a ver a impos‐
sibilidade da tarefa que se impusera. Como conseguiria investigar um ho‐
mem como Cray? Blunt mencionara que a celebridade tinha casas em Lon‐
dres e Wiltshire, mas não dera os endereços ao garoto. Alex não sabia nem
mesmo se Cray ainda estava na Inglaterra.
Mas, no fim, as notícias no jornal, de manhã, acabaram lhe dizendo por
onde começar.
Alex entrou na cozinha e se deparou com Jack lendo o jornal enquanto
tomava sua segunda xícara de café. Ela deu uma olhada para o garoto e des‐
lizou o periódico pela mesa, na direção dele.
— Isso vai fazê-lo deixar de lado os seus cereais.
Alex pegou o jornal e logo viu, na segunda página, Damian Cray olhan‐
do diretamente para ele. E havia uma legenda sob a foto.
Havia mesmo uma mensagem. Mas ela veio de uma forma completamente
inesperada para Alex.
Jack entrara primeiro na casa, checando tudo para se certificar de que
não havia ninguém esperando por eles. Então chamou Alex. Ela parecia fu‐
riosa quando apareceu na porta da frente.
— Está na sala de estar — disse a governanta.
O que estava na sala de estar era uma televisão de tela plana nova em fo‐
lha. Alguém estivera na casa, trouxera a TV e a deixara no meio da sala.
Havia uma webcam na parte de cima do aparelho.
— Um presente de Cray — murmurou Jack.
— Não acho que seja um presente — rebateu o garoto.
Havia um controle remoto perto da webcam. Alex o pegou com relutân‐
cia. Sabia que não ia gostar do que estava prestes a ver, mas não havia como
ignorar aquilo. Finalmente ligou a televisão.
A tela piscou, então clareou, e subitamente ele se viu cara a cara com
Damian Cray. De algum modo aquilo não surpreendeu Alex. Ele se pergun‐
tou se o astro havia voltado à Inglaterra ou se a transmissão estava sendo
feita de Sloterdijk. Sabia que estavam em tempo real, e que sua própria ima‐
gem estava sendo enviada de volta pela câmera. O garoto se sentou lenta‐
mente diante da tela, sem demonstrar nenhuma emoção.
— Alex! — Cray parecia relaxado e animado. Sua voz era tão clara co‐
mo se os dois estivessem na mesma sala. — Fico feliz por ter voltado para
casa em segurança. Estava esperando para conversarmos.
— Onde está Sabina?
— Onde está Sabina? Onde está Sabina? Que gracinha! Um amor juve‐
nil!
A imagem mudou. Alex ouviu Jack ofegar. Sabina estava deitada em
uma cama de campanha em um quarto vazio. Embora os cabelos da garota
estivessem despenteados, parecia ilesa. A menina levantou os olhos para a
câmera, e Alex viu o medo e a confusão naquele olhar.
Então a imagem voltou para Cray.
— Nós não a machucamos... ainda — disse. — Mas isso pode mudar a
qualquer momento.
— Não vou devolver o pen drive para você — garantiu o jovem.
— Escute-me, Alex — Cray se inclinou para a frente e pareceu chegar
mais perto da tela. — Os jovens de hoje são tão temperamentais! Já tive
muitos problemas e despesas por sua causa. E a questão é: você vai me de‐
volver o pen drive, porque, se não fizer isso, sua namoradinha vai morrer, e
você vai ver isso acontecer em vídeo.
— Não dê ouvidos a ele, Alex! — exclamou Jack.
— Ele está me dando ouvidos, e eu lhe pediria que não interrompesse!
— Cray sorriu. Ele parecia totalmente confiante, como se aquilo não fosse
nada além de outra entrevista de celebridades.
— Posso imaginar o que se passa em sua mente — ele continuou, voltan‐
do a falar com Alex. — Está pensando em ir até seus amigos do MI6. Eu o
desaconselho completamente a fazer isso.
— Como sabe que ainda não os procuramos?
— Espero sinceramente que não tenham feito isso — retrucou Cray. —
Porque sou um homem muito nervoso. Se achar que alguém está fazendo
perguntas demais a meu respeito, matarei a garota. Se perceber que estou
sendo observado por pessoas que não conheço, matarei a garota. Se um po‐
licial sequer relancear o olhar para mim na rua, posso muito bem matar a
garota. E lhe prometo uma coisa: se não me trouxer pessoalmente o pen dri‐
ve antes das 10 horas de amanhã, não tenha dúvida de que matarei a garota.
— Não! — Alex desafiou.
— Você pode mentir para mim, Alex, mas não pode mentir para si mes‐
mo. Você não trabalha para o MI6. Eles não significam nada para você. Mas
a garota significa. Se abandoná-la, você vai se arrepender pelo resto de sua
vida. E não vou parar nela. Iremos atrás de todos os seus amigos. Não su‐
bestime o meu poder! Destruirei tudo e todos que você conhece. Então irei
atrás de você. Portanto, não se iluda. Acabe com isso agora e me dê o que
eu quero.
Houve um longo silêncio.
— Onde posso encontrá-lo? — perguntou Alex. As palavras saíram com
dificuldade. Tinham gosto de fracasso.
— Na minha casa em Wiltshire. Você pode pegar um táxi na estação de
trem em Bath. Todos os motoristas sabem onde moro.
— Se eu levar o pen drive para você... — Alex se pegou lutando para en‐
contrar as palavras certas. — Como vou ter certeza de que a soltará? Como
vou saber se vai deixar todos nós em paz?
— Exatamente! — Jack voltou a se intrometer. — Como podemos confi‐
ar em você?
— Sou um cavaleiro da realeza! — exclamou Cray. — E se a Rainha
confia em mim, vocês certamente também podem confiar!
A tela ficou em branco.
Alex se virou para Jack. Daquela vez, sentia-se impotente.
— O que eu faço? — ele perguntou.
— Ignore-o, Alex. Vá ao MI6.
— Não posso, Jack. Você ouviu o que ele disse. Antes das 10 horas de
amanhã. O MI6 não conseguirá fazer nada antes disso, e, se eles tentarem
alguma coisa, Cray matará Sabina — ele apoiou a cabeça nas mãos. — Não
posso deixar isso acontecer. Ela só está metida nessa confusão por minha
causa. Eu não conseguiria viver comigo mesmo se não fizesse nada.
— Mas, Alex... muito mais pessoas podem ser afetadas se o Ataque à
Águia, seja lá o que isso for, seguir adiante.
— Não temos certeza disso.
— Você acha que Cray faria tudo isso se quisesse apenas roubar um ban‐
co ou coisa parecida?
Alex não disse nada.
— Cray é um assassino, Alex. Eu realmente sinto muito... Gostaria de
ser capaz de ajudar mais. Mas não acho que você deva simplesmente entrar
na casa dele.
Alex pensou a respeito. Por um longo período. Como Cray estava com
Sabina, ele dava as cartas. No entanto, talvez houvesse um modo de conse‐
guir tirá-la de lá. Mas, para isso, Alex teria que se entregar. Mais uma vez
seria prisioneiro de Cray. Porém, com Sabina livre, Jack poderia entrar em
contato com o MI6. E talvez, apenas talvez, o garoto conseguisse sair dessa
confusão com vida.
Ele explicou rapidamente sua ideia para Jack. Ela ouviu, mas quanto
mais ouvia, mais infeliz parecia.
— Isso é terrivelmente perigoso, Alex — ela advertiu.
— Mas pode funcionar.
— Você não pode entregar o pen drive a eles.
— Não entregarei, Jack.
— E se tudo der errado?
Alex deu de ombros.
— Então Cray ganha. O Ataque à Águia acontece — ele tentou sorrir,
mas não havia humor em sua voz. — Mas ao menos teremos descoberto
que diabo é isso.
Sabina o esperava perto da ponte. Alex sabia que seria um encontro breve.
Não restava muita coisa a ser dita.
— Como você está? — ela perguntou.
— Estou bem. Como está seu pai?
— Muito melhor — ela encolheu o ombro. — Acho que vai ficar bem.
— E ele não vai mudar de ideia?
— Não, Alex. Estamos indo embora.
Sabina havia lhe contado pelo telefone na noite anterior. Ela e os pais
deixariam o país. Queriam ficar sozinhos, para que o pai da família tivesse
tempo de se recuperar completamente. Haviam concluído que seria mais fá‐
cil para ele começar uma nova vida, e tinham escolhido a cidade de San
Francisco, nos Estados Unidos. Edward recebera uma oferta de emprego de
um grande jornal californiano. E havia mais boas notícias: ele estava escre‐
vendo um livro no qual narraria a verdade sobre Damian Cray. E com certe‐
za faria uma fortuna.
— Quando vocês vão? — perguntou Alex.
— Terça-feira — Sabina passou a mão nos olhos, e Alex se perguntou se
seria uma lágrima. Mas, quando ela olhou novamente para ele, estava sor‐
rindo. — É claro que manteremos contato. Podemos trocar e-mails. E você
sabe que sempre pode nos visitar quando quiser tirar umas férias.
— Desde que não sejam como as últimas... — falou Alex.
— Vai ser estranho frequentar uma escola americana — Sabina interrom‐
peu. — Você foi fantástico no avião, Alex. Não consigo acreditar em quão
corajoso foi. Quando Cray estava lhe contando todas aquelas coisas loucas,
você não parecia nem assustado.
A garota parou de falar novamente antes de perguntar:
— Você vai trabalhar novamente para o MI6?
— Não.
— Acha que eles o deixarão em paz?
— Não sei, Sabina. Na verdade, tudo foi culpa do meu tio. Ele começou
essa história, anos atrás. E agora quem está enrolado com isso sou eu.
— Ainda me sinto envergonhada por não ter acreditado em você — Sa‐
bina suspirou. — E agora entendo como deve ter se sentido, tudo por que
passou. Eles me fizeram assinar o Ato Secreto Oficial. Não tenho permissão
para contar a ninguém sobre você. — Mais uma pausa. — Nunca vou es‐
quecê-lo — ela disse.
— Vou sentir saudades de você, Sabina.
— Mas voltaremos a nos ver. Você pode ir à Califórnia. E eu avisarei
sempre que vier a Londres.
— Que bom.
Ela estava mentindo. Por algum motivo, Alex sabia que aquilo era mais
do que uma despedida, sabia que os dois jamais se veriam de novo. Não ha‐
via razão para isso. As coisas simplesmente seriam assim.
Sabina passou os braços ao redor dele e o beijou.
— Adeus, Alex.
Ele observou Sabina enquanto ela ia embora de sua vida. Então, deu
meia-volta e seguiu pela margem do rio, passando pelos cisnes e avançando
em direção ao campo. Alex não parou. E nem olhou para trás.