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2014, Editora Fundamento Educacional Ltda.

Editor e edição de texto: Editora Fundamento


Editoração eletrônica: Adalbacom Design Gráfico e Comunicação CTP e impressão: Benvenho & Cia. Ltda.
Tradução: Ana Lúcia Guilherme Rodrigues
Publicado originalmente em 2003 por Walker Books Ltd.
87 Vauxhall Walk, London SE 11 5HJ
Copyright © Stormbreaker Productions Ltd 2003
Texto © 2003 Anthony Horowitz
Capa © 2005 Walker Books Ltd.
Alex Rider®; Boy with Torch Logo® são marcas registradas © 2010 Stormbreaker Productions Ltd.
Copyright em língua portuguesa © 2014 Editora Fundamento Educacional Ltda.
O direito de Anthony Horowitz de ser identificado como o autor deste livro está assegurado de acordo com o Copyright, Designs
and Patents Act de 1988.
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Horowitz, Anthony
Alex Rider 04 : O ataque à águia / Anthony Horowitz; [versão brasileira da editora] . — 1. ed. — São Paulo, SP : Editora Funda‐
mento Educacional Ltda., 2014.
Título original: Alex Rider 04 : eagle strike.
1. Literatura infantojuvenil I. Título. II. Série.
12-10481 CDD-028.5
índices para catálogo sistemático:
1. Literatura infantojuvenil 028.5
2. Literatura juvenil 028.5
Fundação Biblioteca Nacional
Depósito Legal na Biblioteca Nacional, conforme Decreto n° 1.825, de dezembro de 1907. Todos os direitos reservados no Brasil
por Editora Fundamento Educacional Ltda.
Digitalização e Revisão: Yuna (Toca Digital)
PRÓLOGO

SELVA AMAZÔNICA. Quinze anos atrás.


Foram cinco dias de viagem, abrindo caminho através da vegetação den‐
sa e sufocante, lutando para respirar o ar pesado, úmido e parado. Árvores
altas como catedrais os cercavam, e uma luz verde estranha — quase místi‐
ca — cintilava por entre a vasta abóbada de folhas. A floresta parecia ter
uma inteligência própria. Sua voz era o grito súbito de um papagaio, o far‐
falhar das folhas quando um macaco se pendurava nos galhos altos. Ela sa‐
bia que eles estavam ali.
Mas, até então, a sorte estivera ao lado deles. Haviam sido atacados, é
claro, por sanguessugas, mosquitos e formigas. Entretanto, as cobras e os
escorpiões vinham deixando-os em paz. Os rios que cruzaram não tinham
piranhas. Haviam recebido permissão para sobreviver.
Estavam viajando com pouca bagagem. Carregavam apenas o básico:
mapa, bússola, garrafas de água, pastilhas de iodo, mosquiteiros e facões. O
único item mais pesado era um rifle Winchester 88 com mira telescópica,
que usariam para matar o homem que vivia ali, naquele lugar impenetrável,
160 km ao sul de Iquitos, no Peru.
Os dois indivíduos sabiam os nomes um do outro, mas não os usavam.
Era parte de seu treinamento. O mais velho dos dois chamava a si mesmo
de Caçador. Era inglês, mas falava sete línguas tão fluentemente que pode‐
ria se passar por nativo em vários países. Caçador tinha cerca de 30 anos.
Era bonito, com os cabelos cortados bem curtos e os olhos atentos de um
soldado treinado. O outro homem era magro, de cabelos claros e irradiava
uma energia nervosa. Ele escolhera chamar-se Cossaco. Tinha apenas 19
anos. Aquele seria seu primeiro assassinato.
Os dois usavam roupas cáqui, a camuflagem padrão na floresta. Seus
rostos estavam pintados de verde, com tiras marrom escuras na altura das
bochechas. Eles haviam alcançado seu destino assim que o sol começou a
nascer, e estavam ali, parados, agora muito quietos, sentindo o sabor do pró‐
prio suor, ignorando os insetos que zumbiam ao redor de seus rostos.
Diante dos dois havia uma clareira aberta por mãos humanas, separada
da selva por uma cerca de 9 metros de altura. Bem no centro da clareira, er‐
guia-se uma elegante casa colonial com varandas de madeira, persianas nas
janelas, cortinas brancas e ventiladores de teto que giravam lentamente.
Cerca de 20 metros atrás da casa estavam outras duas construções baixas de
tijolos. Acomodações para os guardas de segurança. Devia haver cerca de
uma dúzia deles patrulhando o perímetro e observando do alto de torres de
metal enferrujadas. Talvez houvesse mais daqueles homens dentro da pro‐
priedade. Mas os guardas eram preguiçosos. Andavam arrastando os pés,
sem a menor concentração no que supostamente deveriam fazer. Estavam
no meio da selva e, por isso, acreditavam estar seguros.
Um helicóptero de quatro lugares aguardava, pousado em uma área as‐
faltada. O proprietário da casa só precisaria dar cerca de 20 passos para an‐
dar da porta principal até o veículo. Aquele era o único momento em que fi‐
caria exposto. E era nesse momento que teria que morrer.
Os dois assassinos sabiam o nome do homem que precisavam matar, mas
também não o usavam. Cossaco o pronunciara uma vez, mas Caçador o re‐
preendera.
— Nunca chame um alvo por seu nome verdadeiro. Isso o personaliza.
Abre uma porta para a sua vida, e, quando chega o momento, você pode
acabar sendo lembrado do que está fazendo. E, como consequência, acabar
hesitando.
Essa foi apenas uma das muitas lições que Cossaco aprendera com Caça‐
dor. Eles se referiam ao alvo apenas como Comandante. Era um militar. Ou
havia sido. Ainda usava roupas em estilo militar. E, com tantos guarda-cos‐
tas a seu serviço, estava mesmo no comando de um pequeno exército. O no‐
me combinava com ele.
Comandante não era um homem bom, mas um traficante de drogas, um
exportador de enormes quantidades de cocaína. E também controlava um
dos bandos de criminosos mais cruéis do Peru, torturando e matando qual‐
quer um que se metesse no seu caminho. Porém, tudo isso não significava
nada para Caçador e Cossaco. Eles estavam ali porque haviam recebido 30
mil dólares cada para acabar com o homem — e, sendo assim, não teria fei‐
to a menor diferença para eles se Comandante fosse um médico ou um pa‐
dre.
Caçador relanceou o olhar para o relógio. Eram 7h58 da manhã, e havi‐
am lhe dito que o Comandante partiria para Lima às 8 horas em ponto. Ca‐
çador também sabia que o alvo era um homem pontual. Então, carregou a
Winchester com um único cartucho .308 e ajustou a mira telescópica. Um
tiro. Era tudo de que precisava.
Enquanto isso, Cossaco examinava a propriedade com a ajuda de um par
de binóculos, procurando qualquer sinal de movimento. O rapaz não sentia
medo, mas estava tenso e ansioso. Um fio de suor escorreu da parte de trás
da sua orelha e desceu pelo pescoço. Ele sentia a boca seca. Alguma coisa o
tocou levemente nas costas. Cossaco pensou que fosse Caçador, avisando-o
para ficar calmo, mas seu colega estava a certa distância, concentrado na ar‐
ma.
Alguma coisa se moveu.
Cossaco só teve certeza disso quando sentiu o movimento subir por seu
ombro, até finalmente alcançar seu pescoço. Mas então já era tarde demais.
Ele virou a cabeça bem devagar. E lá estava, no limiar do seu campo de vi‐
são. Uma aranha subia pela lateral do pescoço, bem embaixo do queixo.
Cossaco engoliu em seco. Pelo peso, pensou que fosse uma tarântula. Mas
era pior, muito pior. O bicho era bem preto e tinha a cabeça pequena e o
corpo inchado, agressivo, como uma fruta prestes a explodir. O jovem sabia
que, se pudesse virá-la de cabeça para baixo, encontraria uma marca verme‐
lha no formato de uma ampulheta no abdômen.
Aquela era uma viúva negra. Latrodectus curacaviensis. Uma das ara‐
nhas mais letais do mundo.
O animal se moveu, subindo as patas dianteiras de modo que uma delas
já quase tocasse o canto da boca de Cossaco. As outras patas ainda estavam
coladas ao pescoço do jovem, e a maior parte do corpo da aranha agora se
dependurava sob sua mandíbula. Ele teve vontade de engolir em seco nova‐
mente, mas não ousou fazer isso. Qualquer movimento poderia assustar a
criatura, que não precisava de desculpa para atacar. Cossaco imaginou que
essa fosse uma fêmea da espécie, mil vezes pior do que o macho. Se deci‐
disse picá-lo, suas pequenas presas injetariam no corpo do rapaz uma neu‐
rotoxina venenosa que paralisaria todo o seu sistema nervoso. A princípio,
ele não sentiria nada. Só haveria duas marquinhas vermelhas em sua pele. A
dor, muita dor, viria cerca de uma hora depois. As pálpebras inchariam, a
respiração se tornaria difícil, as convulsões começariam. E era quase certo
que ele morreria.
Cossaco considerou a hipótese de levantar a mão e tentar jogar aquele bi‐
cho detestável para longe. Se a aranha estivesse em qualquer outro lugar do
seu corpo, ele teria arriscado. Mas ela se acomodara no pescoço, como se
estivesse fascinada pela pulsação ali existente. Cossaco queria chamar Ca‐
çador, mas não podia correr o risco de mover os músculos do pescoço. Ele
mal respirava. Caçador ainda não havia percebido o que estava acontecen‐
do. O que ele poderia fazer?
O jovem acabou assobiando. Foi o único som que ousou emitir. Estava
terrivelmente consciente daquela criatura colada ao seu corpo. Sentiu o ro‐
çar de outra pata, dessa vez tocando seu lábio. O animal subiria por seu ros‐
to?
Caçador levantou os olhos e percebeu que alguma coisa estava errada.
Cossaco estava parado, quieto demais, com a cabeça contorcida, o rosto
muito pálido. Caçador se adiantou e agora seu colega estava entre ele e a
propriedade. Então, abaixou o rifle, apontando o cano para baixo.
E nesse momento viu a aranha.
No mesmo instante, a porta da casa foi aberta, e Comandante saiu. Era
um homem baixo e robusto, que vestia uma túnica escura com o colarinho
aberto. E não tinha se barbeado. Carregava uma pasta e fumava um cigarro.
Eram vinte passos até o helicóptero, e o homem já caminhava rapida‐
mente enquanto conversava com os dois seguranças que o acompanhavam.
Cossaco relanceou os olhos para Caçador. Ele sabia que a organização que
os contratara não perdoaria um fracasso, e essa era a única chance que teri‐
am para fazer o trabalho. A aranha se moveu novamente e, ao olhar para
baixo, Cossaco viu aquela cabeça com um monte de olhinhos brilhantes, de‐
via ter uns seis, todos o encarando. E aquela era a coisa mais feia que ele já
vira na vida. Sua pele coçava; um dos lados de seu rosto parecia querer se
descolar do corpo. Mas Cossaco sabia que não havia nada que Caçador pu‐
desse fazer. Seu colega precisava atirar naquele instante. Comandante esta‐
va a apenas dez passos do helicóptero. As pás da aeronave já haviam come‐
çado a girar. O jovem teve vontade de gritar para o companheiro: Faça o
que tem que fazer! O som do tiro assustaria a aranha, e ela morderia seu
rosto, mas isso não tinha importância. A missão precisava ser bem-sucedi‐
da.
Caçador considerou rapidamente suas opções. Ele poderia usar a ponta
da arma para afastar a viúva negra. Poderia conseguir jogá-la longe antes
que mordesse seu colega. Mas então o Comandante já teria entrado no heli‐
cóptero e estaria protegido pelos vidros à prova de balas. Ou poderia atirar
no Comandante. Mas assim que atirasse, teria que se virar e correr imedia‐
tamente, desaparecendo na selva. Não haveria tempo para ajudar seu cole‐
ga, não haveria nada que ele pudesse fazer.
Caçador tomou uma decisão. Ergueu a arma, mirou e atirou.
A bala quente, veloz, passou raspando pelo pescoço de Cossaco. A viúva
negra se desintegrou no mesmo instante, arrebentada pela força do tiro. A
bala continuou sua trajetória através da clareira e da cerca, ainda carregando
consigo fragmentos da viúva negra, até finalmente acertar em cheio o peito
do Comandante.
O homem prestes a subir no helicóptero parou, como se estivesse surpre‐
so. Então levou as mãos ao coração e dobrou o corpo em consequência da
dor. Os seguranças se espalharam ao redor, gritando, olhando na direção da
selva para tentar ver o inimigo.
Mas Caçador e Cossaco já não estavam à vista. A selva os engolira em
segundos, embora mais de uma hora tivesse se passado quando eles final‐
mente pararam de correr para recuperar o fôlego.
Cossaco estava sangrando. Uma linha vermelha — que poderia ter sido
traçada com uma régua — descia pela lateral do seu pescoço, e o sangue já
encharcava sua camisa. Mas a viúva negra não o mordera. Ele ergueu a
mão, aceitando a garrafa de água de Caçador, e bebeu.
— Você salvou a minha vida — falou o rapaz.
Caçador considerou o que o outro dissera.
— Tirar uma vida e salvar outra com a mesma bala... Isso não é nada
mal!
Cossaco teria uma cicatriz pelo resto da vida. Mas não seria uma vida
longa. Assassinos profissionais normalmente não duram muito. Caçador
morreria primeiro, em outro país, em outra missão. Mais tarde, seria a vez
de Cossaco.
Naquele exato momento, o homem mais jovem não disse nada. Eles ti‐
nham cumprido seu trabalho. Isso era tudo o que importava. Cossaco devol‐
veu a garrafa de água, e, enquanto o sol forte os castigava e a selva observa‐
va e refletia sobre o que acontecera, os dois homens seguiram juntos, abrin‐
do seu caminho através da manhã quente de mais um dia.
1
NÃO É PROBLEMA MEU

ALEX RIDER ESTAVA DEITADO DE COSTAS, secando o corpo ao


sol do meio-dia.
Ele podia sentir a água salgada de seu último mergulho escorrendo de
seus cabelos e evaporando de seu peito. O short de banho, ainda molhado,
colava-se ao corpo. Naquele momento, o garoto estava tão feliz quanto po‐
deria estar. Uma semana de férias perfeitas desde o momento em que o
avião tocara o solo de Montpellier, e ele saíra para o seu primeiro dia radi‐
ante no Mediterrâneo. Alex amava o sul da França, as cores intensas, os
cheiros, o ritmo da vida que parecia se agarrar a cada minuto sem querer
deixá-lo se perder. Ele não tinha ideia de que horas eram, mas estava famin‐
to e, por isso, imaginou que logo seria a hora do almoço. Houve uma súbita
explosão de música quando uma garota passou por perto carregando um rá‐
dio. Alex virou a cabeça para acompanhá-la e, neste instante, o sol se apa‐
gou, o mar congelou, e o mundo inteiro pareceu prender a respiração.
O jovem já não estava olhando para a garota com o rádio. Estava olhan‐
do além dela, na direção do dique que separava a praia do quebra-mar, onde
um iate acabava de atracar. Era um veículo enorme, quase do tamanho de
uma dessas barcas que carregam turistas para cima e para baixo na costa.
Mas nenhum turista jamais colocaria os pés naquilo. A embarcação não era
nada convidativa. Atravessava silenciosamente a água, ostentando vidros
escuros nas janelas e uma proa enorme que se erguia como um muro bran‐
co. Um homem estava parado bem na ponta do veículo, olhando direto para
a frente, com um rosto sem expressão. Alex reconheceu aquela face imedia‐
tamente.
Yassen Gregorovich.
O garoto ficou sentado, muito quieto, apoiando-se em um dos braços,
com a mão parcialmente enterrada na areia. Enquanto ele observava, uma
pessoa de cerca de 20 anos saiu da cabine e se adiantou para ancorar o bar‐
co. Era um homem baixo, com uma expressão corporal que lembrava a de
um macaco. Usava uma camiseta que deixava à mostra as várias tatuagens
cobrindo completamente seus braços e ombros. Um ajudante de bordo?
Yassen não se ofereceu para auxiliá-lo com o trabalho. Um terceiro homem
apareceu no píer para receber o iate. Era gordo e careca, e vestia um terno
branco com aspecto de barato. O topo de sua cabeça estava queimado de
sol, e a pele se tornara de um vermelho feio e canceroso.
Yassen viu o homem e desceu, movendo-se com agilidade. Usava calça
jeans e uma camisa branca aberta no pescoço. Outros homens poderiam ter
dificuldade em manter o equilíbrio enquanto desciam por uma prancha ins‐
tável, mas ele nem sequer hesitou. Havia alguma coisa inumana nele. Com
os cabelos cortados muito rentes, os olhos azuis frios e o rosto pálido e sem
expressão, aquela criatura obviamente não estava ali de férias. Mas apenas
Alex sabia a verdade sobre ele. Yassen Gregorovich era um matador de alu‐
guel, o homem que assassinara o tio de Alex e mudara a vida do garoto para
sempre. E era procurado por todo o mundo.
Então o que o homem estava fazendo ali, naquela cidadezinha à beira-
mar que fazia fronteira com os pântanos e lagos característicos da região de
Camarga? Não havia nada em Saint-Pierre além de praias, acampamentos,
muitos restaurantes e uma igreja de tamanho exagerado que mais parecia
uma fortaleza.
— Alex? O que você está olhando? — murmurou Sabina.
O garoto teve que se forçar a desviar o olhar para lembrar que ela estava
ali.
— Estou... — As palavras não vinham. Ele não sabia o que dizer.
— Você pode passar mais um pouco de filtro solar nas minhas costas?
Estou ficando queimada demais...
Aquela era Sabina. Esguia, de cabelos escuros, e algumas vezes parecen‐
do muito mais velha do que os seus 15 anos. O tipo de garota que provavel‐
mente trocara os brinquedos pelos garotos antes de completar 11 anos. Em‐
bora estivesse usando filtro solar fator 25, Sabina parecia precisar passar
mais do creme a cada 15 minutos, e sempre acabava sendo Alex quem fazia
isso para ela. Ele relanceou o olhar rapidamente para as costas da garota,
que exibiam um bronzeado perfeito. Ela vestia um biquíni feito com tão
pouco tecido que não sobrava espaço nem para uma estampa. Os olhos de
Sabina, mergulhados na leitura de O Senhor dos Anéis, estavam protegidos
por um par de óculos de sol falsificados (que ela comprara por um décimo
do preço do verdadeiro).
O garoto voltou a olhar para o iate. Yassen estava apertando a mão do
homem careca. O ajudante de bordo permanecia parado perto dele, esperan‐
do. Mesmo daquela distância, Alex podia ver que Gregorovich estava com‐
pletamente no controle da situação; que, quando ele falava, os dois homens
escutavam. Em uma ocasião, Alex assistira ao assassino matar um homem
com um tiro simplesmente porque o infeliz deixara um pacote cair. Yassen
ainda ostentava uma frieza tão grande que conseguia neutralizar até mesmo
o sol quente do Mediterrâneo. O mais estranho era que havia muito poucas
pessoas no mundo capazes de reconhecer o russo. Alex era uma delas. Será
que a presença de Gregorovich por ali poderia ter alguma coisa a ver com o
garoto?
— Alex...? — chamou Sabina.
Os três homens se afastaram do barco e se encaminharam na direção da
cidade. O garoto ficou de pé subitamente.
— Volto logo — ele avisou.
— Eu trouxe água.
— Não, quero um refrigerante.
Enquanto pegava a camiseta e a enfiava pela cabeça, Alex tinha plena
consciência de que aquela não era uma boa ideia. Yassen Gregorovich podia
ter vindo a Camarga para tirar férias. Ou podia ter vindo para matar o pre‐
feito da cidade. Fosse o que fosse, o garoto não tinha nada a ver com isso, e
seria loucura se envolver novamente com aquele homem. Alex se lembrou
da promessa que fizera na última vez em que os dois se encontraram, no to‐
po de um prédio no centro de Londres.
Você matou Ian Rider. Um dia, eu vou matar você.
Na época, Alex falava sério... Mas isso foi naquela época. Agora, não
queria nada com Yassen ou com o mundo que aquele homem representava.
E ainda assim...
O russo estava ali. Alex precisava descobrir o porquê.
Os três homens caminhavam pela rua principal, à beira-mar. Alex os se‐
guiu pela areia, passando pela arena de touros de concreto branco que ele
achara bizarra quando chegou à cidade, até se lembrar de que estava a ape‐
nas algumas centenas de quilômetros da Espanha. Haveria uma tourada na‐
quela noite. As pessoas já faziam fila nas bilheterias para comprar entradas,
mas ele e Sabina haviam decidido ficar longe. “Espero que o touro vença”,
foi o único comentário de Sabina.
Yassen e os dois homens viraram à esquerda e desapareceram no centro
da cidade. Alex acelerou o passo, pois sabia o quão fácil seria perdê-los na
confusão de becos e vielas que cercavam a igreja. O garoto não precisava
tomar cuidado para não ser visto. O russo acreditava estar seguro. Era pou‐
co provável que, em uma estação de férias lotada, ele percebesse que al‐
guém o seguia. Porém, quando se tratava de Yassen, nunca se podia ter cer‐
teza de nada. Alex sentia o coração acelerar mais a cada passo. Sua boca es‐
tava seca, e, pelo menos dessa vez, ele não podia culpar o sol.
Yassen havia desaparecido. Alex olhou para a direita, depois para a es‐
querda. Havia pessoas cercando-o por todos os lados, saindo de lojas e se‐
guindo para restaurantes ao ar livre que já serviam o almoço. O cheiro de
paella enchia o ar. O garoto praguejou por ter ficado tão para trás, por não
ter se arriscado a chegar mais perto. Os três homens haviam desaparecido
dentro de um prédio qualquer. Será que Alex havia imaginado ter visto os
três? Era um pensamento agradável, mas que foi afastado um instante de‐
pois, quando o garoto os avistou sentados na varanda de um dos restauran‐
tes mais procurados na praça. O homem careca já pedia os cardápios.
Alex seguiu até uma loja que vendia cartões-postais, e usou os mostruári‐
os como escudo entre seu corpo e o restaurante. Logo adiante, havia um ca‐
fé que servia petiscos e drinques sob guarda-sóis largos e multicoloridos. O
garoto se esgueirou até lá. Yassen e os dois homens agora estavam a menos
de 10 metros de distância, e Alex pôde perceber mais detalhes.
O ajudante do barco levava o pão à boca com voracidade, como se não
comesse há mais de uma semana. O homem careca falava baixo, com uma
expressão de urgência no rosto, acenando com o punho fechado para enfati‐
zar o que dizia. Yassen escutava pacientemente. Com o barulho da multidão
ao redor, Alex não conseguia ouvir uma palavra do que estavam dizendo.
Então, aproximou-se mais de um dos guarda-sóis, e um garçom quase es‐
barrou nele. O homem deixou escapar uma série de xingamentos em um
francês cheio de ira. Yassen relanceou o olhar na direção dos dois, e Alex se
abaixou, com medo de ter atraído a atenção para si.
Uma fileira de plantas em jardineiras de madeira separava o café da va‐
randa do restaurante, onde os homens estavam comendo. Alex passou entre
elas e avançou rapidamente para o interior do estabelecimento, escondendo-
se nas sombras. Ali ele se sentia mais seguro, menos exposto. A cozinha es‐
tava bem às suas costas. De um lado, havia um bar e, em frente a esse bar,
cerca de uma dúzia de mesas, todas vazias. Os garçons entravam e saíam
com pratos de comida, mas todos os fregueses haviam escolhido comer do
lado de fora.
Alex olhou pela porta. E prendeu a respiração. Yassen havia se levantado
e caminhava determinado para mais perto do jovem. Será que o vira? Mas
foi então que o garoto se deu conta de que o russo segurava alguma coisa:
um telefone celular. Ele provavelmente recebera uma ligação e estava en‐
trando no restaurante para falar com um pouco de privacidade. Mais alguns
passos e alcançaria a porta. Alex olhou em volta e percebeu uma reentrância
na parede, oculta por uma cortina de contas. O garoto entrou ali e se desco‐
briu em um depósito do tamanho exato para escondê-lo. Agora estava cer‐
cado por baldes, esfregões, caixas de papelão e várias garrafas de vinho. As
contas da cortina balançaram quando ele passou, mas logo pararam.
E então Yassen entrou no restaurante.
— Cheguei há vinte minutos — disse. Falava em inglês com um leve so‐
taque russo. — Franco estava à minha espera. O endereço está confirmado,
e tudo já foi arranjado.
Houve uma pausa. Alex tentou não respirar. Estava a poucos centímetros
de Yassen, separado apenas por uma frágil barreira de contas brilhantes e
coloridas. Se não fosse pelo fato de dentro do restaurante estar muito escu‐
ro, o russo com certeza já o teria visto.
— Vamos agir esta tarde. Você não precisa se preocupar com nada. É
melhor que não nos comuniquemos. Entrarei em contato quando voltar à In‐
glaterra.
Yassen Gregorovich desligou o telefone e subitamente ficou muito quie‐
to. Alex percebeu o instante em que algum instinto animal pareceu alertá-lo
de que estava sendo ouvido. O telefone na mão daquele homem poderia
muito bem ser uma faca que ele estava prestes a arremessar. Sua cabeça es‐
tava parada, mas seus olhos olhavam de um lado para o outro, procurando o
inimigo. Alex permaneceu onde estava, atrás da cortina de contas, não ou‐
sando se mover. O que deveria fazer? Sentiu-se tentado a sair correndo para
fora do restaurante. Não. Estaria morto antes que conseguisse dar dois pas‐
sos. Yassen o mataria antes mesmo de saber quem ele era ou por que estava
ali. Movendo-se bem devagar, o garoto procurou uma arma, alguma coisa
com a qual pudesse se defender.
Então a porta da cozinha foi aberta, e um garçom saiu, passando por Yas‐
sen ao mesmo tempo em que chamava outra pessoa. O silêncio do momento
havia sido rompido. O russo guardou o celular no bolso da calça e saiu no‐
vamente para se juntar aos outros homens.
Alex deixou escapar um enorme suspiro de alívio.
O que descobrira?
Yassen Gregorovich estava ali para matar alguém. Disso Alex tinha cer‐
teza. O endereço está confirmado, e tudo já foi arranjado. Mas ao menos
Alex não ouvira a menção de seu próprio nome. Portanto, estava certo. O
alvo provavelmente seria algum francês que morava ali, em Saint-Pierre. O
crime aconteceria em algum momento daquela tarde. Um tiro de revólver,
ou talvez uma faca cintilando ao sol. Um rápido ato de violência e alguém,
em algum lugar, relaxaria, sabendo que tinha um inimigo a menos no mun‐
do.
O que ele, Alex, poderia fazer?
O garoto passou pela cortina de contas e saiu pelos fundos do restauran‐
te. Estava aliviado por se ver na rua, longe da praça. Só então Alex conse‐
guiu começar a organizar seus pensamentos. Poderia ir à polícia, é claro.
Poderia contar a eles que era um espião, que já havia trabalhado três vezes,
até aquele momento, para o MI6, o Serviço Secreto Britânico. Poderia dizer
que havia reconhecido Yassen, que sabia quem ele era, e que, quase com
certeza, um assassinato aconteceria na cidade, naquela tarde, a menos que o
russo fosse detido.
Mas de que adiantaria isso? A polícia francesa poderia até compreender
o que o garoto dizia, mas jamais acreditariam nele. Era um estudante inglês,
de 14 anos, com areia nos cabelos e bronzeado do sol. Os policiais o olhari‐
am e cairiam na gargalhada.
Também poderia recorrer a Sabina e aos pais dela. Mas tampouco queria
fazer isso. Alex só estava ali porque eles o haviam convidado. Por que levar
uma morte às férias daquela família? Não que eles fossem acreditar nele
mais do que a polícia acreditaria. Uma vez, quando viajara com Sabina e
sua família para a Cornualha, Alex tentou contar a verdade à garota. Ela
achou que ele estava brincando.
Alex olhou ao redor, para as lojas cheias de turistas, as sorveterias, as
pessoas passeando felizes pelas ruas. Era a imagem típica de um cartão-pos‐
tal. O mundo real. Então o que ele, Alex, estava fazendo ao se meter nova‐
mente com espiões e assassinos? Estava de férias. Nada daquilo era proble‐
ma dele. Que Yassen fizesse o que quisesse fazer. O garoto não conseguiria
detê-lo, nem se tentasse. Era melhor esquecer que sequer vira o homem.
Alex respirou fundo e voltou por onde viera, caminhando em direção à
praia, para encontrar Sabina e os pais da garota. Enquanto andava, tentava
descobrir o que diria a eles, como explicaria seu sumiço repentino e porque,
agora que voltara, já não sorria mais.

Naquela tarde, Alex e Sabina pegaram uma carona com um fazendeiro local
até Aigues-Mortes, uma cidade-fortaleza à beira dos pântanos de água sal‐
gada. Sabina queria se afastar um pouco de seus pais e sentar em um café
francês, onde, ao lado de Alex, poderia observar os turistas e os moradores
locais confraternizando na rua. Ela havia inventado um sistema para dar no‐
tas aos adolescentes franceses de acordo com a aparência, tirando pontos
para pernas finas, dentes tortos ou péssima noção de moda. Até agora, ne‐
nhum deles tinha conseguido tirar mais do que sete — sendo que a nota má‐
xima era vinte. Em uma situação normal, Alex teria se divertido ao ficar
sentado ao lado dela, ouvindo enquanto Sabina ria alto.
Mas não naquela tarde.
Tudo parecia fora de foco. Os grandes muros e as enormes torres que o
cercavam estavam a quilômetros de distância, e os turistas pareciam estar se
movendo muito devagar, como num filme em câmera lenta. Alex queria
conseguir aproveitar o passeio, queria sentir-se de férias novamente. Mas
ter visto Yassen estragou tudo.
O garoto conhecera Sabina apenas um mês antes, quando os dois foram
gandulas no campeonato de tênis de Wimbledon. Mas eles logo se tornaram
amigos. Sabina era filha única. Sua mãe, Liz, trabalhava como designer de
moda, e seu pai, Edward, era jornalista. Alex não o via muito. O pai de Sa‐
bina chegara mais tarde para as férias, vindo de trem de Paris, onde estivera
trabalhando em uma matéria.
A família alugara uma casa nos arredores de Saint-Pierre, à beira do rio
Petit Rhône. Era uma construção simples, típica daquela área: paredes bran‐
cas com janelas azuis e telhado de terracota queimada pelo sol. Havia três
quartos na casa e, no térreo, uma cozinha antiga e arejada que se abria para
um grande jardim, com uma piscina e uma quadra de tênis, onde as ervas
daninhas tentavam abrir caminho no concreto. Desde o primeiro momento,
Alex adorou o lugar. Seu quarto tinha vista para o rio, e, toda noite, ele e
Sabina passavam horas estirados em um antigo sofá de vime, conversando
baixinho e observando a água ondular.
A primeira semana de férias pareceu passar em um piscar de olhos. Du‐
rante esse período, eles nadaram na piscina e no mar, que ficava a menos de
2 quilômetros de distância. Também fizeram caminhadas, escalada, canoa‐
gem. E até mesmo saíram para passear a cavalo, mas apenas uma vez — já
que esse não era o esporte favorito de Alex. O garoto realmente gostava dos
pais de Sabina. Eles eram o tipo de adulto que não se esqueceu de que um
dia já foi adolescente, e acabavam deixando Alex e Sabina fazerem sozi‐
nhos quase tudo o que quisessem. E, durante os últimos sete dias, tudo tinha
sido ótimo.
Até o garoto ver Yassen.
O endereço está confirmado, e tudo já foi arranjado.
Vamos agir esta tarde...
O que o russo estava planejando fazer em Saint-Pierre? Que má sorte o
tinha trazido até aqui, projetando sua sombra, mais uma vez, sobre a vida de
Alex? Mesmo sob o calor do sol da tarde, o garoto estremeceu.
— Alex?
Ele percebeu que Sabina estivera falando com ele e então olhou ao redor.
Ela o encarava do outro lado da mesa, com uma expressão preocupada no
rosto.
— No que você está pensando? — perguntou a jovem. — Está a quilô‐
metros de distância.
— Em nada.
— Você andou muito diferente durante toda a tarde. Alguma coisa acon‐
teceu essa manhã? Aonde foi quando desapareceu da praia?
— Eu disse que precisava beber alguma coisa — Alex odiava ter que
mentir para ela, mas não poderia contar a verdade.
— Eu só estava dizendo que nós deveríamos ir embora. Prometi estar em
casa às 17 horas. Ah, meu Deus! Olhe para aquele ali! — Ela apontou para
outro adolescente que passava. — Nota quatro. Será que não existe nenhum
garoto bonito na França? — Ela relanceou o olhar para Alex. — Além de
você, quero dizer.
— Então, qual seria a minha nota? — ele perguntou.
Sabina pensou um pouco antes de finalmente responder:
— Eu lhe daria 12,5. Mas não se preocupe, Alex. Mais dez anos e você
será perfeito.

Às vezes o horror se anuncia das menores formas.


Naquele dia, veio sob a forma de um único carro de polícia passando pe‐
la estrada larga e vazia que serpenteava até Saint-Pierre. Alex e Sabina esta‐
vam sentados na traseira do mesmo caminhão que os trouxera. Os dois ob‐
servavam as vacas que pastavam em um dos campos quando uma viatura
azul e branca com a luz da sirene piscando passou por eles e se afastou.
Alex ainda estava com Yassen em mente, e a visão do carro de polícia fez
com que sentisse um frio na barriga. Todavia, era apenas um carro de polí‐
cia. Não significava nada.
Mas então eles perceberam um helicóptero, vindo de algum lugar não
muito distante, movendo-se em um arco pelo céu brilhante. Sabina viu a ae‐
ronave e apontou naquela direção.
— Alguma coisa aconteceu — ela disse. — O helicóptero está vindo da
cidade.
O helicóptero estava, mesmo, vindo da cidade? Alex não tinha certeza.
Ele observou o veículo vasculhar o céu e desaparecer na direção de Aigues-
Mortes. Enquanto isso, sentia sua respiração se tornar cada vez mais curta;
sentia seu peito mais apertado por conta de um medo sem nome.
Então eles dobraram uma curva, e Alex percebeu que seus piores medos
tinham se tornado realidade, mas de um modo que ele jamais poderia pre‐
ver.
Pedras, tijolos e concreto arrebentados, aço retorcido. Uma fumaça negra
subindo na direção do céu. A casa deles havia sido bombardeada. Apenas
uma parede permanecia intacta, dando a cruel ilusão de que os danos não
haviam sido tão sérios. Mas o resto se fora. Alex viu uma cama de ferro
pendurada em um ângulo estranho, em pleno ar. Um par de persianas azuis
jazia na grama, a uns 50 metros de distância. A água da piscina estava mar‐
rom e suja. A explosão provavelmente fora enorme.
Havia muitos carros e vans estacionados ao redor da área. Eram veículos
da polícia, do hospital, dos bombeiros, do esquadrão antiterrorismo. Para o
garoto, nada daquilo parecia real. Era como se fossem brinquedos de cores
brilhantes. Em um país estrangeiro, nada parecia mais estrangeiro do que
esses serviços de emergência.
— Mamãe! Papai!
Alex ouviu Sabina gritar as palavras e viu quando ela saltou do caminhão
antes que pudesse ser contida. A garota logo começou a correr pelo chão de
cascalho, abrindo caminho entre os oficiais em diferentes uniformes. O ca‐
minhão parou, e Alex desceu, sem saber se seu pé se apoiaria no chão ou se
a terra o engoliria. Sentia a cabeça girar e pensou que desmaiaria.
Ninguém falou com o garoto, e então ele seguiu em frente. Era como se
não estivesse ali. À sua frente, viu a mãe de Sabina aparecer de forma re‐
pentina, com o rosto sujo de cinzas e lágrimas. E então Alex imaginou que,
se a mulher estava bem, se estava fora da casa quando a explosão aconte‐
ceu, então talvez Edward Pleasure também tivesse escapado. Foi quando
viu Sabina começar a tremer, antes de se jogar nos braços da mãe, que o ga‐
roto se deu conta de que o pior havia acontecido.
Ele chegou mais perto a tempo de ouvir as palavras de Liz, que agora
abraçava a filha com força.
— Ele está vivo, Sabina, mas gravemente ferido. Vamos vê-lo agora. Vo‐
cê sabe que seu pai é um guerreiro. Mas os médicos não sabem se vai resis‐
tir. Nós simplesmente não sabemos...
O cheiro de queimado alcançou Alex e pareceu engolfá-lo. A fumaça ha‐
via bloqueado o sol. Os olhos do garoto começaram a lacrimejar e respirar
tornou-se difícil.
Minha culpa...
Ele não sabia por que aquilo acontecera, mas tinha absoluta certeza de
quem era o responsável.
Yassen Gregorovich.
Não é problema meu. Era isso que Alex tinha pensado anteriormente. E
ali estava o resultado.
2
O DEDO NO GATILHO

O POLICIAL QUE ENCARAVA Alex era jovem, inexperiente e se esfor‐


çava para encontrar as palavras certas. O problema não era só ele estar ten‐
do dificuldades com o inglês, percebeu o garoto. Ali, naquele canto tranqui‐
lo e afastado da França, o pior com que o rapaz costumava lidar era um mo‐
torista bêbado ocasional, ou talvez algum turista que perdera a carteira na
praia. Aquela era uma situação nova e para a qual o jovem policial estava
completamente despreparado.
— Foi uma coisa horrível — dizia o rapaz. — Você conhece monsieur
Pleasure há muito tempo?
— Não. Não há muito tempo — respondeu Alex.
— Ele receberá o melhor tratamento — o policial lançou um sorriso en‐
corajador. — Madame Pleasure e sua filha estão indo agora para o hospital,
mas pediram que cuidássemos de você.
Alex estava sentado em uma cadeira de armar, à sombra de uma árvore.
Era pouco mais de 17 horas, mas o sol continuava quente. O rio corria a al‐
guns metros de distância e o garoto teria dado qualquer coisa para mergu‐
lhar naquelas águas e nadar, nadar sem parar, até que aquilo tudo ficasse pa‐
ra trás.
Sabina e sua mãe haviam partido cerca de dez minutos antes, e agora
Alex estava sozinho com o jovem policial. Além da cadeira que havia sido
montada na sombra para o garoto se sentar, também lhe entregaram uma
garrafa de água. Porém, era óbvio que ninguém sabia o que fazer com ele.
Aquela não era a sua família. Alex não tinha direito de estar ali. Mais ofici‐
ais apareceram: um policial mais velho e um bombeiro também mais velho.
Eles vieram caminhando lentamente através dos escombros, ocasionalmente
virando uma placa de madeira ou afastando uma peça quebrada de mobília,
como se pudessem descobrir uma única pista sequer que lhes esclarecesse o
que acontecera.
— Nós telefonamos para o consulado do seu país — o policial explicou.
— Eles virão para levá-lo de volta. Mas devem mandar um representante de
Lion, que fica um pouco longe. Portanto, essa noite você deve esperá-los
aqui, em Saint-Pierre.
— Sei quem fez isso — falou Alex.
— Comment?
— Sei quem foi o responsável pela explosão — o garoto lançou um olhar
na direção da casa. — Vocês precisam ir até a cidade. Há um iate ancorado
no píer. Não guardei o nome, mas seria impossível não vê-lo. É enorme...
branco. Há um homem nesse iate. O nome dele é Yassen Gregorovich. Vo‐
cês precisam prendê-lo.
Espantado, o policial encarou Alex. O garoto se perguntou quanto do que
dissera o homem teria realmente compreendido.
— Desculpe... O que você está dizendo? Esse homem, Yassen...
— Yassen Gregorovich.
— Você o conhece?
— Sim
— Quem é ele?
— É um assassino. Ele é pago para matar pessoas. Eu o vi essa manhã.
— Por favor! — O policial ergueu a mão. Ele não queria ouvir mais. —
Espere aqui.
Alex o viu caminhar em direção aos carros estacionados, provavelmente
para encontrar algum oficial de maior patente. O garoto tomou um gole de
água e se levantou. Não queria ficar ali, observando os acontecimentos, sen‐
tado em uma cadeira de armar como se estivesse em um piquenique. Então,
caminhou na direção da casa. Uma brisa noturna soprava, mas o cheiro de
madeira queimada ainda era forte. Um pedaço de papel retorcido e escuro
voou por sobre o cascalho. Em um impulso, Alex abaixou-se e o pegou. En‐
tão leu:

... caviar para o café da manhã, e há rumores de que a piscina em sua


mansão em Wiltshire foi construída no formato de Elvis Presley. Mas Dami‐
an Cray é mais do que um dos artistas pop mais ricos e bem-sucedidos do
mundo. Seus negócios, que incluem hotéis, emissoras de TV e jogos de com‐
putador, acrescentaram mais alguns milhões à sua fortuna pessoal.
A dúvida permanece. Por que Cray estava em Paris essa semana e por
que marcou uma reunião secreta com...

E era só. A partir dali o papel estava chamuscado, e as palavras haviam


desaparecido.
Alex se deu conta do que havia lido. Com certeza era uma página do arti‐
go em que Edward Pleasure vinha trabalhando desde que chegara àquela ca‐
sa. E tinha alguma coisa a ver com a megacelebridade Damian Cray.
— Excusez-moi, jeune homme...
O garoto levantou os olhos e viu que o policial retornara com um segun‐
do homem, alguns anos mais velho, com a boca curvada para baixo e um
pequeno bigode. Alex sentiu o coração afundar no peito. Reconhecera o ti‐
po antes mesmo de o homem abrir a boca. Seboso e prepotente, usando um
uniforme arrumado demais e com uma expressão que deixava claro o seu
descrédito.
— Você tem alguma coisa para nos contar? — perguntou o policial, fa‐
lando um inglês melhor do que o colega.
Alex repetiu o que já havia dito.
— Como sabe sobre esse homem? Digo... sobre o homem do barco —
insistiu o oficial.
— Ele matou meu tio.
— Quem era o seu tio?
— Um espião que trabalhava para o MI6 — Alex respirou fundo. — Tal‐
vez eu fosse o alvo da bomba. Acho que aquele homem estava tentando me
matar...
Os dois policiais conversaram entre si brevemente e voltaram a se virar
para Alex. O garoto sabia o que estava por vir. O homem mais velho havia
recomposto as feições e agora olhava para Alex com uma mistura de bonda‐
de e preocupação. Mas também havia arrogância naquele olhar, como se
dissesse: “Eu estou certo. Você está errado. E nada irá me convencer do
contrário”. Ele era como um professor ruim, em uma escola ruim, corrigin‐
do como errada uma resposta certa.
— Você passou por um terrível choque — disse o policial. — A explo‐
são... nós já sabemos que foi causada por um vazamento de gás.
— Não... — Alex balançou a cabeça.
O policial ergueu a mão.
— Não há razão alguma para um assassino querer causar mal a uma fa‐
mília em férias. Mas eu entendo. Você está chateado, é possível até que es‐
teja em choque. Não sabe o que está dizendo...
— Por favor...
— Nós já entramos em contato com o consulado do seu país e um res‐
ponsável logo chegará. Até lá, seria melhor que você não interferisse.
Alex abaixou a cabeça.
— O senhor se importa se eu der uma caminhada? — perguntou com pa‐
lavras que saíram em um tom baixo e abafado.
— Uma caminhada?
— Apenas por cinco minutos. Quero ficar um pouco sozinho.
— Tudo bem. Mas não vá muito longe. Gostaria que alguém o acompa‐
nhasse?
— Não. Vou ficar bem.
Alex se virou e saiu andando. Evitou encontrar os olhos do policial, e os
oficiais acabaram achando equivocadamente que ele estava envergonhado.
Não tinha problema. Alex não queria que vissem sua fúria, a raiva negra
que corria por seu corpo como um rio gelado. Os dois homens não tinham
acreditado nele! E o haviam tratado como se fosse uma criança tola!
A cada passo que Alex dava, imagens se sucediam em sua mente. Os
olhos de Sabina se arregalando ao ver a casa em ruínas; Edward Pleasure
sendo levado às pressas para o hospital da cidade; Yassen Gregorovich no
deque do iate, afastando-se sob o pôr do sol, certo de haver executado outro
trabalho. E era tudo culpa de Alex! Isso era o pior. A parte imperdoável.
Bem, ele não iria simplesmente ficar ali sentado e aceitar isso. Então, per‐
mitiu que sua raiva o dominasse. Agora era hora de assumir o controle.
Quando alcançou a estrada principal, Alex olhou para trás. Os policiais o
haviam esquecido. Deu uma última vislumbrada no que sobrara da casa ar‐
rasada pelo fogo, a casa que fora seu refúgio de férias, e a escuridão pare‐
ceu crescer em seu peito mais uma vez. O garoto virou-se novamente e co‐
meçou a correr.
Saint-Pierre ficava a apenas dois quilômetros de distância. Era início da
noite quando Alex chegou à cidade, e as ruas estavam cheias de pessoas em
clima festivo. Na verdade, a cidade parecia mais movimentada do que nun‐
ca. Então ele se lembrou: haveria uma tourada naquela noite, e, por isso, os
espectadores chegavam de toda parte.
O sol já estava quase se escondendo no horizonte, mas sua luz ainda pai‐
rava no ar, como se tivesse sido deixada acidentalmente para trás. As luzes
da rua estavam acesas, formando manchas chamativas, de cor laranja, nas
calçadas cheias de areia. Um antigo carrossel rodava sem parar, girando em
um borrão de luzes elétricas e música metálica. Sem se deter, Alex abriu ca‐
minho através de tudo aquilo. Subitamente se viu do outro lado da cidade,
onde as ruas estavam novamente tranquilas. A noite chegara, e tudo estava
um pouco mais cinza.
Ele não esperava ver o iate. Achava, inconscientemente, que Yassen já
teria partido há muito tempo. Mas o barco ainda estava lá, ancorado onde o
garoto o vira mais cedo naquele mesmo dia, em um momento que parecia
ter acontecido em outra vida. Não havia ninguém à vista. Era como se toda
a cidade estivesse na tourada. Logo em seguida, uma figura saiu da escuri‐
dão, e Alex viu o homem careca e queimado de sol. Ele ainda usava o terno
branco e estava fumando um cigarro, a ponta incandescente lançando um
brilho vermelho em seu rosto.
Luzes cintilavam através das escotilhas do barco. Yassen estaria atrás de
uma delas? Alex não sabia exatamente o que estava fazendo. A raiva o le‐
vava a agir cegamente. Tudo o que sabia era que precisava entrar no iate, e
que nada o deteria.

O nome do homem era Franco. Ele descera do barco porque Yassen detesta‐
va o cheiro de fumaça de cigarro. Franco não gostava de Yassen. Mais do
que isso, tinha medo dele. Quando recebeu a notícia de que Edward Pleasu‐
re tinha ficado ferido, mas não estava morto, o russo não disse nada. Porém,
a expressão em seus olhos era feia e intensa. Por um momento, ele encarara
Raoul, o ajudante de bordo. Na verdade, fora Raoul quem colocara a bom‐
ba... longe demais do quarto do jornalista, conforme ficou provado. O erro
fora dele. E Franco sabia que Yassen quase matara o ajudante, tamanha era
sua raiva. Talvez ainda fizesse isso. Deus... que confusão!
Franco ouviu o barulho da sola de um sapato sobre o cascalho e viu um
garoto caminhando em sua direção. Era magro e bronzeado, usava short e
uma camiseta desbotada do Stone Age, e tinha um cordão de contas de ma‐
deira ao redor do pescoço. Seus cabelos eram loiros, com uma mecha cain‐
do sobre a testa. Devia ser um turista... parecia inglês. Mas o que estava fa‐
zendo ali?
Alex havia se perguntado quanto conseguiria se aproximar antes de des‐
pertar suspeitas no homem. Se fosse um adulto se aproximando do barco, as
coisas seriam diferentes, mas o fato de ter apenas 14 anos era a razão princi‐
pal para que tivesse sido útil ao MI6. As pessoas não o notavam até que fos‐
se tarde demais.
E era isso o que estava acontecendo agora. Quando o garoto se aproxi‐
mou mais, Franco ficou impressionado com os olhos castanhos-escuros que,
de algum modo, pareciam sérios demais para um jovem daquela idade.
Eram olhos que haviam visto demais.
Alex chegou perto do homem. Então, o garoto atacou de forma repenti‐
na, apoiando-se no pé esquerdo e chutando com o direito. Franco foi pego
totalmente de surpresa. O calcanhar de Alex o atingiu fortemente no estô‐
mago, mas, no mesmo instante, o garoto percebeu que subestimara o opo‐
nente quando esperou encontrar pouca resistência sob o terno frouxo. O pé
de Alex atingiu um conjunto de músculos, e, embora o homem tenha de‐
monstrado dor e perdido o fôlego, não foi derrubado.
Franco deixou cair o cigarro e reagiu, já com a mão no bolso do paletó.
Quando a puxou para fora, segurava alguma coisa. Um clique baixo se es‐
palhou, e uma lâmina prateada de cerca de 7 centímetros surgiu do nada. O
homem tinha um canivete. Movendo-se mais rapidamente do que Alex teria
imaginado ser possível, Franco acelerou pelo píer, seguindo na direção do
garoto. A mão do homem se abaixou em um arco, e Alex ouviu a lâmina
rasgando o ar. O menino girou novamente, e o canivete passou raspando por
seu rosto, não o acertando por uma questão de milímetros.
Alex estava desarmado. Franco obviamente já usara a faca várias vezes
antes, e, se não tivesse sido afetado pelo primeiro chute, aquela luta certa‐
mente já teria terminado. O garoto olhou ao redor, procurando alguma coisa
com que pudesse se defender. Não havia quase nada no píer, apenas algu‐
mas caixas velhas, um balde e uma rede de pescador. Franco agora se movia
mais lentamente. Estava lutando com uma criança, nada mais. O pirralho o
pegara de surpresa com o primeiro ataque, mas seria muito fácil terminar
logo aquela história.
Ele resmungou algumas palavras em francês: palavras baixas e feias. En‐
tão, um segundo depois, seu punho girou no ar, dessa vez segurando o cani‐
vete em um ângulo que teria cortado a garganta de Alex se o garoto não re‐
cuasse a tempo.
Alex gritou.
Tropeçou e caiu feio de costas, com um dos braços estendidos. Franco
sorriu, mostrando dois dentes de ouro, e caminhou na direção do jovem, an‐
sioso para terminar logo tudo aquilo. Então viu, tarde demais, que havia si‐
do enganado. O garoto segurava a rede de pesca. Quando Franco chegou
bem perto, Alex se levantou com um pulo, esticando o braço em toda a sua
extensão. A rede caiu sobre a cabeça do homem, cobrindo seus ombros e a
mão que segurava o canivete. Ele praguejou e remexeu o corpo, tentando se
libertar, mas o movimento só o fez ficar mais enredado.
Alex sabia que precisava acabar com aquilo rapidamente. Franco ainda
lutava com a rede, mas o garoto o viu abrir a boca para pedir socorro. Eles
estavam bem perto do iate. Se Yassen ouvisse alguma coisa, não haveria
mais nada que o jovem pudesse fazer. Alex mirou e chutou uma segunda
vez, acertando o pé bem no estômago do homem. Franco perdeu o ar e fi‐
cou com o rosto muito vermelho. Estava com metade do corpo para fora da
rede, e seus movimentos pareciam uma dança bizarra na beira do píer. En‐
tão, o homem perdeu o equilíbrio e caiu no chão. Como suas mãos estavam
presas, era impossível se proteger. A cabeça bateu no concreto com um es‐
talo ruidoso, e Franco ficou muito quieto.
Alex continuou de pé, com a respiração pesada. À distância, ouviu o to‐
que de uma trombeta e o som dos aplausos. A tourada começaria em dez
minutos. Uma pequena banda já havia chegado e começava a tocar. O jo‐
vem olhou para o homem inconsciente, sabendo que escapara por pouco.
Não havia sinal da faca, então talvez ela tivesse caído na água. Alex fez
uma rápida avaliação para saber se deveria continuar. Então, pensou em Sa‐
bina e no pai dela. E, quando se deu conta, já estava subindo pela prancha
até parar no deque do iate.
O barco fora batizado de Fer de Lance. Alex viu o nome enquanto subia
e se lembrou de já tê-lo visto em algum outro lugar. Claro! Em um passeio
com a escola ao zoológico de Londres. Era o nome de algum tipo de cobra.
Venenosa, obviamente.
Alex estava de pé em uma área larga, com um volante e controles, uma
porta em um dos lados e sofás de couro na parte de trás. Também havia uma
mesa baixa. Ele viu uma revista amassada, uma garrafa de cerveja e um re‐
vólver. O homem careca provavelmente estivera sentado ali antes de sair
para fumar.
O garoto reconheceu o celular. Era de Yassen. Ele vira o aparelho nas
mãos do russo mais cedo, no restaurante. O telefone era de uma cor estra‐
nha, um marrom esquisito, e só por isso Alex prestara atenção nele. Mas
agora via que o aparelho ainda estava ligado. Tomou-o nas mãos.
Examinou rapidamente o menu principal e foi até o registro de chama‐
das. Logo encontrou o que estava procurando: a lista de todas as ligações
que Yassen havia recebido naquele dia. Às 12h53, o russo falara com um
número que começava com 44207. O 44 era o código de discagem da Ingla‐
terra, e os números seguintes deixavam claro que ele falara com algum lu‐
gar na cidade de Londres. Aquela era a ligação que Yassen havia recebido
no restaurante. Alex memorizou rapidamente o número. Era o contato da
pessoa que dera as ordens a Yassen. Isso diria a ele tudo o que precisava sa‐
ber.
O garoto pegou o revólver.
Finalmente tinha uma pistola. Todas as vezes que trabalhava para o MI6,
Alex pedia para lhe darem uma arma, mas eles sempre recusavam. Em vez
disso, entregavam ao jovem dispositivos especiais, mas somente dardos
tranquilizantes, granadas de efeito paralisante, bombas de fumaça. Nada
com capacidade para matar. Alex sentiu o poder da arma que segurava. Me‐
diu seu peso com as mãos. Era um revólver Grach MP-443, com a boca pe‐
quena e a coronha com nervuras. Uma arma russa, é claro, de fabricação do
exército. Alex se permitiu envolver o gatilho com o dedo, e seu rosto se
abriu em um sorriso cruel. Agora ele e Yassen estavam empatados.
O garoto caminhou até a porta, entrou por ela e desceu um pequeno lance
de escadas que levava ao o deque inferior. Então, entrou em um corredor
que parecia seguir por toda a extensão do barco, com cabines de ambos os
lados. Alex vira uma sala de estar na parte de cima, mas sabia que estava
vazia. Não via luzes por trás daquelas escotilhas. Se Yassen estivesse em al‐
gum lugar, seria ali embaixo. O garoto segurou a arma com mais força e
continuou a caminhar cuidadosamente, os pés não fazendo barulho algum
no chão coberto por um carpete grosso.
O jovem chegou a uma porta e viu uma faixa de luz amarela escapando
por uma fresta. Cerrou os dentes e estendeu a mão para a maçaneta, imagi‐
nando que talvez estivesse trancada. Mas a maçaneta girou, e a porta abriu.
Alex entrou.
A cabine era surpreendentemente grande, um longo retângulo com o
chão coberto por um carpete branco e modernos painéis de madeira espa‐
lhados por todas as duas paredes. A terceira delas era ocupada por uma ca‐
ma de casal baixa com uma mesa de cabeceira e uma luminária em cada la‐
do. Havia um homem deitado sobre a coberta branca, os olhos fechados,
quieto como um cadáver. Alex se adiantou. Não havia som algum no quar‐
to, mas o garoto pôde ouvir, à distância, o som da banda que tocava na tou‐
rada: dois ou três trompetes, uma tuba e um tambor.
Yassen Gregorovich não fez movimento algum quando Alex se aproxi‐
mou segurando o revólver diante do corpo. O jovem chegou à beira da ca‐
ma. Era o mais perto que já estivera do russo, do homem que matara seu tio,
e ali podia ver cada detalhe daquele rosto: os lábios desenhados, as pálpe‐
bras quase femininas. O revólver estava a menos de dois centímetros da tes‐
ta de Yassen. Era ali que aquela história terminava. Tudo o que Alex preci‐
sava fazer era puxar o gatilho e estaria acabado.
— Boa noite, Alex.
Yassen não se levantou. Seus olhos, que antes estavam fechados, agora
não estavam mais. Simples assim. A expressão no rosto dele não mudara.
Ele soube imediatamente quem era Alex e, ao mesmo tempo, percebeu o re‐
vólver apontado para ele. Percebeu e aceitou.
Alex não disse nada. A mão que segurava o revólver estremeceu leve‐
mente e o garoto usou a outra para firmar a arma.
— Você está com o meu revólver — comentou Yassen.
Alex respirou fundo. Em seguida, o russo perguntou:
— Tem a intenção de usá-lo?
Nada.
Yassen continuou calmamente.
— Acho que você deveria pensar bem. Matar um homem não é como vo‐
cê vê na televisão. Se puxar esse gatilho, vai enfiar uma bala real em uma
pessoa de carne e osso. Eu não sentirei nada, morrerei no mesmo instante.
Mas você vai ter que viver com o que fez pelo resto da vida. E jamais es‐
quecerá.
Ele fez uma pausa, deixando as palavras pairarem no ar.
— Realmente tem essa capacidade dentro de você, Alex? Consegue fazer
seu dedo obedecê-lo? Consegue me matar?
Alex permanecia rígido como uma estátua. Toda a sua concentração esta‐
va focada no dedo ao redor do gatilho. Era simples. Havia um mecanismo,
uma mola, que faria o gatilho puxar o cão da arma, soltando-a. O cão dispa‐
raria a bala, uma pecinha mortal de apenas 19 milímetros de comprimento,
lançando-a em uma jornada curta e rápida até a cabeça do homem. Ele con‐
seguiria fazer isso.
— Talvez você tenha se esquecido do que eu lhe disse uma vez. Essa não
é a sua vida. Não tem nada a ver com você.
Yassen estava totalmente relaxado. Não havia emoção alguma em sua
voz. Ele parecia conhecer Alex melhor do que o próprio Alex se conhecia.
O garoto tentou desviar o olhar para evitar encarar os olhos azuis tranquilos
que o observavam com uma expressão muito próxima de pena.
— Por que fez aquilo? — Alex quis saber. — Você explodiu a casa. Por
quê?
Os olhos do homem vacilaram brevemente.
— Porque fui pago.
— Pago para me matar?
— Não, Alex — por um momento, Yassen pareceu estar quase se diver‐
tindo. — Não teve nada a ver com você.
— Então quem...
Mas já era tarde demais.
De repente ele compreendeu, pela expressão nos olhos de Yassen, que o
russo o estava distraindo. Então, um par de mãos o agarrou e o afastou com
violência da cama. Alex viu Yassen se movimentar com a rapidez de uma
cobra, rápido como uma fer de lance. O revólver disparou, mas Alex não
apertara o gatilho de propósito e a bala acertou o chão. O garoto foi jogado
contra a parede, e a arma caiu de sua mão. Alex sentiu gosto de sangue na
boca. O iate parecia estar se inclinando.
Uma fanfarra soou à distância, acompanhada pelo rugido da multidão. A
tourada começava.
3
TOUREIRO

ALEX ESTAVA SENTADO, OUVINDO OS TRÊS homens decidirem


seu destino, tentando entender o que diziam. Eles falavam em francês, mas
com um sotaque de Marselha quase impenetrável, além de usarem uma lin‐
guagem chula que o jovem não aprendera.
Ele fora arrastado até o salão principal no andar de cima e jogado em
uma poltrona larga de couro. Agora já tinha se dado conta do que acontece‐
ra. O ajudante de bordo, Raoul, voltara da cidade com mantimentos e en‐
contrara Franco desacordado no píer. Entrou rapidamente no barco para
alertar Yassen e o ouviu conversando com Alex. Fora Raoul, é claro, quem
se esgueirara para dentro da cabine e agarrara Alex por trás.
Franco estava sentado em um canto, o rosto distorcido de ódio. Havia
uma mancha roxa em sua testa, fruto da pancada contra o chão. Quando o
homem falou, suas palavras pareceram destilar veneno.
— Entregue o pirralhinho para mim. Vou matá-lo pessoalmente e depois
o jogarei pela borda, para servir de comida aos peixes.
— Como ele nos descobriu, Yassen? — Agora era Raoul falando. — Co‐
mo ele soube quem éramos?
— Por que estamos perdendo nosso tempo com ele? — acrescentou
Franco. — Deixe que eu acabe com ele agora.
Alex relanceou o olhar para Yassen. Até então, o russo não dissera nada,
embora claramente ainda estivesse no comando. Era curioso o modo como
ele olhava para Alex. Os olhos azuis vazios não deixavam escapar nada, e,
ainda assim, o garoto sentia que estava sendo avaliado. Era como se o russo
o conhecesse há muito tempo e até mesmo esperasse encontrá-lo novamen‐
te.
Yassen ergueu a mão para pedir silêncio, e então se voltou para Alex.
— Como você soube que nos encontraria aqui? — perguntou.
Alex não disse nada. Um lampejo de irritação passou pelo rosto do russo.
— Você só está vivo porque estou permitindo. Por favor, não me faça
perguntar uma segunda vez.
Alex deu de ombros. Não tinha nada a perder. Eles provavelmente iriam
matá-lo de qualquer modo.
— Eu estava de férias — o garoto finalmente disse. — Estava na praia. E
o vi no iate, quando chegou.
— Você não está trabalhando para o MI6?
— Não.
— Mas me seguiu até o restaurante.
— É verdade — Alex assentiu.
Yassen deu um meio-sorriso para si mesmo.
— Achei que havia alguém — então, voltou a ficar sério. — Você estava
hospedado na casa.
— Fui convidado por uma amiga — disse Alex. Subitamente lhe ocorreu
uma ideia. — O pai dela é jornalista. Era ele quem você queria matar?
— Isso não é da sua conta.
— Agora é.
— Foi azar o seu estar hospedado com eles, Alex. Já lhe disse. Não é na‐
da pessoal.
— Com certeza — o garoto olhou bem dentro dos olhos de Yassen. —
Com você, nunca é.
O russo se voltou para os dois homens, e, no mesmo instante, Franco
voltou a falar bobagens, cuspindo as palavras. Ele se servira de um uísque e
o tomou de um só gole, sempre com os olhos grudados em Alex.
— O garoto não sabe nada e não pode nos fazer mal algum — garantiu
Yassen, agora falando em inglês.
Por minha causa, pensou Alex.
— O que fará com ele? — perguntou Raoul, também em um inglês ca‐
penga.
— Mate-o! — era Franco novamente.
— Não mato crianças — retrucou Yassen, mas Alex sabia que ele estava
falando uma meia-verdade. A bomba na casa teria matado qualquer pessoa
que estivesse ali, e Gregorovich não teria se importado.
— Ficou louco? — Franco voltou a falar em francês. — Não pode sim‐
plesmente deixá-lo ir embora daqui. Ele veio para matá-lo. E, não fosse por
Raoul, teria conseguido.
— Talvez — Yassen examinou Alex uma última vez antes de finalmente
tomar uma decisão. — Não foi inteligente da sua parte aparecer por aqui,
pequeno Alex. Esses rapazes acham que eu deveria silenciá-lo e estão cer‐
tos. Se eu acreditasse ser qualquer outro motivo além do acaso que o trouxe
até mim, se você soubesse de alguma coisa, já estaria morto. Mas sou um
homem razoável. Você não me matou quando teve a oportunidade, por isso
agora também vou lhe dar uma chance.
Ele falou rapidamente com Franco em francês. A princípio, Franco pare‐
ceu aborrecido, questionador. Mas, conforme Yassen continuava, Alex viu
um sorriso se espalhar lentamente pelo rosto daquele homem.
— Como vamos conseguir isso? — perguntou Franco.
— Você conhece pessoas. Tem influência. Precisa apenas colocar dinhei‐
ro na mão das pessoas certas.
— O garoto será morto.
— Então você terá o que deseja.
— Ótimo! — concordou Franco com raiva. — Vou gostar de ver!
Yassen foi até onde o garoto estava e parou ali perto.
— Você tem coragem, Alex — elogiou. — Admiro essa sua característi‐
ca. Agora vou lhe dar uma oportunidade para exibi-la.
Ele olhou para Franco.
— Leve-o!

Eram 21 horas. A noite se estendera sobre Saint-Pierre, trazendo consigo a


ameaça de uma tempestade de verão. O ar estava parado e nuvens pesadas
encobriam as estrelas.
Alex permanecia imóvel sobre o chão forrado de areia sob a sombra de
um arco de concreto, incapaz de entender o que estava acontecendo. Fora
forçado, sob a mira de uma arma, a trocar suas roupas de férias por um uni‐
forme tão bizarro que, se não fosse pela consciência aguda do perigo que
estava prestes a encarar, teria se sentido simplesmente ridículo.
Primeiro, a camisa branca e a gravata preta. Então, veio um paletó com
ombreiras enormes e a calça muito apertada nas coxas e na cintura, mas
bem mais curta do que o normal. As duas peças eram cobertas por lantejou‐
las douradas e por milhares de pequenas pérolas, assim, quando Alex entra‐
va e saía da luz, tornava-se uma explosão de fogos de artifício em miniatu‐
ra. Por fim, lhe deram sapatos pretos e um chapéu curvo, esquisito, além de
uma capa de um vermelho brilhante que devia usar pendurada no braço.
O uniforme tinha um nome. Traje de luces. O traje de luz usado pelos
matadores de touros, os toureiros, na arena. Aquele era o teste de coragem
que Yassen conseguira arranjar. Ele queria que Alex enfrentasse um touro.
Agora Gregorovich estava parado perto do garoto, ouvindo o barulho da
multidão nas arquibancadas. Em uma tourada típica, ele havia explicado, na
qual seis touros seriam mortos. O terceiro deles normalmente era desafiado
por um toureiro menos experiente, um jovem que muitas vezes estava en‐
trando pela primeira vez na arena. Não havia nenhum novato no programa
daquela noite... não até que o russo sugerira o contrário. O dinheiro compra‐
va tudo, e Alex acabou recebendo um uniforme. Era uma insanidade, mas a
multidão iria amá-lo. Quando estivesse dentro da arena, ninguém saberia
que ele nunca fora treinado. Seria apenas uma figura miúda no meio de um
espaço muito iluminado. As roupas que usava disfarçariam a verdade. Nin‐
guém perceberia que ele tinha apenas 14 anos.
Houve uma explosão de gritos e assovios dentro da arena. Alex imaginou
que o toureiro provavelmente acabara de matar o segundo touro.
— Por que está fazendo isso? — perguntou Alex.
Yassen deu de ombros.
— Estou lhe fazendo um favor, Alex.
— Não vejo as coisas desse jeito.
— Franco queria enfiar uma faca em você. Foi difícil dissuadi-lo da
ideia. Por fim, resolvi dar a ele um pouco de diversão. Por acaso, ele é um
grande admirador das touradas. Ou seja, Franco fica satisfeito, e você tem
uma escolha.
— Uma escolha?
— Você poderia dizer que é uma escolha entre um touro e uma bala de
revólver.
— Serei morto de qualquer maneira.
— Sim. Acredito que esse seja o resultado mais provável. Mas ao menos
você terá enfrentado uma morte heroica. Milhares de pessoas vão estar as‐
sistindo. Suas vozes empolgadas serão a última coisa que ouvirá.
— É melhor do que ouvir a sua voz — resmungou Alex.
E de repente estava na hora.
Dois homens usando calças jeans e camisas pretas correram para abrir
um portão. Era como se uma cortina de madeira estivesse sendo aberta para
um palco e revelasse uma cena fantástica acontecendo ali. Primeiro, havia a
própria arena, um círculo alongado coberto por uma areia amarelada e cinti‐
lante. Como Yassen prometera, Alex estava cercado por milhares de pesso‐
as apertadas nas arquibancadas. Os espectadores estavam comendo e beben‐
do, e muitos deles se abanavam com o programa da tourada, tentando agitar
o ar parado, enquanto se acotovelavam e conversavam. Embora todos esti‐
vessem sentados, ninguém permanecia quieto. No canto mais afastado, uma
banda tocava, cinco homens usando uniformes militares, parecendo brin‐
quedos antigos. O brilho dos refletores era ofuscante.
Vazia, a arena era moderna, feia e morta. Mas agora, nessa noite quente
mediterrânea, estava lotada, e Alex podia sentir a energia se agitando por
toda parte. Percebeu que toda a crueldade dos romanos contra gladiadores e
animais selvagens sobrevivera por séculos e estava plena ali.
Um trator veio na direção do portão onde Alex estava parado, arrastando
atrás de si uma massa negra desfigurada que até alguns segundos atrás fora
um touro vivo e orgulhoso. Cerca de 12 lanças de cores fortes estavam enfi‐
adas no lombo da criatura. Conforme o trator chegava mais perto, Alex viu
que deixava um rastro vermelho brilhante no chão. O garoto se sentiu nau‐
seado, sem saber se era de medo pelo que estava por vir, ou de nojo e o hor‐
ror pelo que acontecera. Ele e Sabina haviam concordado que nem em um
milhão de anos assistiriam a uma tourada. Alex com certeza não esperara se
ver forçado a quebrar a promessa.
Yassen assentiu com a cabeça na direção dele.
— Lembre-se — ele falou. — Raoul, Franco e eu estaremos perto da
barrera, que fica bem ao lado da arena. Se falhar em sua performance, se
tentar fugir, atiraremos em você e desapareceremos na noite — ele ergueu a
camisa e mostrou a Alex o revólver Grach enfiado no cós da calça. — mas,
se concordar em lutar, nós partiremos depois de dez minutos. Se por algum
milagre você ainda estiver de pé, poderá fazer o que quiser. Está vendo? Es‐
tou lhe dando uma chance.
As trombetas voltaram a soar, anunciando a próxima luta. Alex sentiu
uma mão em suas costas e se adiantou, ainda incrédulo. Como aquilo podia
estar acontecendo? Com certeza alguém perceberia que, sob aquela roupa
típica estava um estudante inglês, e não um toureiro, ou um novato, ou
qualquer que fosse o nome que dessem. Alguém iria parar a tourada.
Mas os espectadores já gritavam suas aprovações. Algumas flores foram
jogadas na direção do garoto. Ninguém conseguia perceber o que realmente
estava acontecendo, e Franco pagara uma boa soma para garantir que as
pessoas não descobrissem até que já fosse tarde demais. Ele precisava con‐
tinuar com aquilo. Seu coração estava disparado. O cheiro de sangue e de
suor animal se ergueu até suas narinas. Alex nunca sentira tanto medo na
vida.
Um homem em um exuberante terno de seda preta com botões de madre‐
pérola e ombreiras levantou-se no meio da multidão e ergueu um lenço
branco. Era o presidente da tourada, dando o sinal para a próxima luta. As
trombetas soaram. Outro portão se abriu, e o touro contra o qual Alex teria
que lutar disparou para dentro da arena com a velocidade de uma bala. O
garoto o encarou apavorado. A criatura era enorme, o corpo maciço e negro,
os músculos vibrando. Devia pesar pelo menos uns 700 quilos. Se viesse
para cima de Alex, seria como se o jovem fosse atropelado por um ônibus
— a não ser pelo detalhe de que ele seria primeiro empalado pelos chifres
que saíam da cabeça do touro e se destacavam como duas armas letais. Na‐
quele exato momento, o bicho ignorava Alex e corria enlouquecido em um
círculo irregular, escoiceando com as patas traseiras, enraivecido com as lu‐
zes fortes e com os gritos da multidão.
O garoto se perguntava por que não haviam lhe dado uma espada. Os
matadores não tinham nada com que se defender? Havia uma lança jogada
no chão, que restara do último confronto. Aquilo era uma banderilla. Tinha
cerca de 1 metro de comprimento, o punho decorado com muitas cores e
uma ponta curta e afiada. Se tudo corresse bem, dezenas delas seriam enfia‐
das na altura do pescoço do touro, destruindo seus músculos e enfraquecen‐
do-o antes do ataque final. Mas Alex já tomara uma decisão. Não importava
o que acontecesse, ele tentaria não machucar o touro. Afinal, o animal tam‐
bém não escolhera estar ali.
Precisava escapar. Os portões haviam sido fechados, mas a murada de
madeira que cercava a arena — a barrera, como Yassen a chamara — não
era mais alta do que Alex. Ou seja, era possível correr e pular sobre ela.
Alex relanceou o olhar para o local de onde acabara de sair. Franco havia
ocupado seu lugar na fileira da frente e mantinha a mão sob o paletó. Alex
não tinha dúvidas do que o homem estava segurando. O garoto também po‐
dia ver Yassen na outra ponta, com Raoul mais à direita. Entre eles, os três
homens cobriam todo o perímetro da arena.
Precisava lutar. Tinha que dar um jeito de sobreviver por 10 minutos.
Talvez apenas 9 minutos agora. Era como se uma eternidade tivesse passado
desde que ele entrara na arena.
A multidão ficou silenciosa. Milhares de rostos esperavam que ele fizes‐
se algum movimento.
Logo o touro o percebeu.
De repente, o animal parou de correr em círculos e começou a andar pe‐
sadamente na direção de Alex. Então, parou a cerca de 20 metros de distân‐
cia, a cabeça baixa e os chifres apontados na direção do garoto. Alex sentiu
o estômago se revolver com a certeza de que seria atacado. Com relutância,
deixou a capa cair no chão. Deus... devia estar parecendo um idiota com
aquela fantasia, sem ter a menor ideia do que deveria estar fazendo. O garo‐
to ficou surpreso ao se dar conta de que a tourada ainda não havia sido in‐
terrompida. Mas Yassen e os dois homens observavam cada movimento de‐
le. Franco não necessitaria de um grande motivo para apertar o gatilho.
Alex precisava fazer seu papel.
Silêncio. O calor da tempestade que se aproximava era opressivo. Nada
se movia.
O touro atacou. Alex ficou chocado com a repentina transformação do
animal, que há um segundo se mostrava estático e com a expressão distante.
Agora a criatura avançava ameaçadoramente, como se Alex já houvesse en‐
fiado uma espada em seu corpo. Os flancos maciços se aproximavam, cada
músculo concentrado no alvo que esperava desarmado e só. Agora o animal
estava perto o bastante para que Alex visse seus olhos. Neles, o branco, o
negro e o vermelho se misturavam à fúria.
Tudo aconteceu muito rapidamente. O touro estava quase em cima de
Alex, os chifres cruéis mirando o estômago do garoto. O fedor do animal
parecia cada vez mais próximo. O jovem deu um pulo para o lado e levan‐
tou a capa ao mesmo tempo, imitando os filmes que já vira... talvez na TV,
ou no cinema. Chegou a sentir o touro roçar em seu corpo e, nesse breve
contato, pôde perceber o tamanho da força e do poder do animal. Viu-se um
lampejo vermelho quando a capa voou. Toda a arena pareceu se virar junta,
a multidão se levantou e gritou. O touro passara direto. Alex estava ileso.
Embora não soubesse, o garoto havia realizado uma imitação bem razoá‐
vel do verônica, que é o primeiro e mais simples movimento de uma toura‐
da, mas também aquele que dá ao toureiro informações vitais sobre seu
oponente: velocidade, força, qual chifre prefere usar. Alex, porém, só des‐
cobriu duas coisas: toureiros eram mais corajosos do que ele imaginava
(eram insanamente corajosos por escolherem fazer uma coisa daquelas!), e
ele seria muito sortudo se sobrevivesse a um segundo ataque.
O touro parou na extremidade da arena. O animal sacudia a cabeça, e fios
cinzentos de saliva escorriam pela lateral de sua boca. Ao redor, os especta‐
dores ainda aplaudiam. Alex viu Yassen Gregorovich acomodado entre eles.
O homem estava sentado sozinho, e não se juntara aos aplausos. Com raiva,
o garoto levantou a capa uma segunda vez, imaginando quantos minutos ha‐
viam passado. Perdera completamente a noção do tempo.
O jovem realmente sentiu o público prender a respiração quando o touro
partiu para o segundo ataque. O bicho se movia ainda mais rápido dessa
vez, seus cascos levantando poeira. Os chifres mais uma vez estavam apon‐
tados na direção do garoto. Se o atingissem, cortariam seu corpo ao meio.
No último instante, Alex se afastou para o lado, repetindo o movimento
que fizera antes. Só que, dessa vez, o touro já esperava aquele movimento.
E, embora estivesse avançando rápido demais para mudar de direção, o ani‐
mal movimentou a cabeça, e Alex sentiu uma dor aguda na lateral do abdô‐
men. O animal pareceu voar, deu uma cambalhota para trás e aterrissou no
chão. Um rugido explodiu da multidão. Alex esperou que o touro desse a
volta e fosse para cima dele, mas mais uma vez teve sorte. O animal não o
viu cair e continuou correndo até o outro lado da arena, deixando Alex sozi‐
nho. E ferido.
O garoto cambaleou até ficar de pé e colocou a mão no abdômen. A ja‐
queta estava rasgada, e, quando ele retirou a mão, ela estava vermelha de
sangue. Alex estava zonzo e trêmulo, e a lateral do seu corpo parecia em
chamas. Mas o corte não era profundo. De certo modo, o jovem se sentiu
desapontado. Se o machucado fosse mais grave, teriam que interromper a
tourada.
Pelo canto do olho, percebeu um movimento. Yassen se levantara e esta‐
va indo embora. Os dez minutos já haviam se passado? Ou o russo decidira
que a diversão tinha chegado ao fim e que não havia motivo para ficar e as‐
sistir ao fim sangrento? Alex correu o olhar pela plateia. Raoul também es‐
tava partindo, mas Franco ficara em seu lugar. O homem estava na primeira
fileira, a apenas 10 metros de distância. E sorria. Alex então se deu conta de
que Yassen o enganara. Franco ficaria ali. Mesmo se Alex conseguisse esca‐
par do touro, Franco sacaria o revólver e acabaria com tudo.
Já sem muita energia, Alex se inclinou e pegou a capa. O tecido estava
rasgado, e isso fez uma ideia brotar em sua mente. Tudo estava no lugar
certo: a capa, o touro, a única banderilla... até mesmo Franco.
Ignorando a dor na lateral do corpo, Alex começou a correr. Num primei‐
ro momento, o público murmurou, mas logo os murmúrios se transforma‐
ram em um rugido incrédulo. Era papel do touro atacar o toureiro, mas, su‐
bitamente, diante deles, as coisas pareciam estar acontecendo ao contrário.
Até mesmo o touro foi pego de surpresa e olhou para Alex como se o garoto
tivesse esquecido as regras ou decidido trapacear. Antes que o animal tives‐
se a chance de se mover, Alex jogou a capa. Havia um punho de madeira
costurado ao tecido, e o peso fez com que a capa caísse exatamente sobre os
olhos do touro. O bicho tentou sacudir a capa para se libertar, mas um de
seus chifres passou pelo buraco no tecido. Ele fungou enfurecido e bateu
com os cascos no chão. Apesar dos esforços, todavia, a capa permaneceu no
lugar.
Agora todos gritavam. Metade da plateia se levantara, e o presidente da
tourada olhava ao redor, sem saber o que fazer. Alex correu e pegou a ban‐
derilla, percebendo a ponta horrorosa, manchada com o sangue do último
touro. Em um único movimento, girou-a e arremessou-a.
Seu alvo não era o touro. Franco começou a se levantar assim que perce‐
beu o que Alex estava prestes a fazer, sua mão já procurava o revólver. Mas
era tarde demais. O desespero havia aperfeiçoado a mira de Alex. A bande‐
rilla girou no ar uma vez antes de se enterrar no ombro de Franco. O ho‐
mem gritou. A ponta não era longa o bastante para matá-lo, mas o gancho
retorcido manteve a banderilla no lugar, tornando impossível arrancá-la. O
sangue se espalhou pela manga do terno.
Toda a arena estava em polvorosa. A multidão nunca vira nada assim an‐
tes. Alex continuou correndo. Viu quando o touro conseguiu se livrar da ca‐
pa vermelha. E o animal já procurava pelo toureiro, determinado a se vin‐
gar.
Conquiste sua vingança em outro dia, pensou Alex. Eu não tenho motivo
algum para brigar com você.
O garoto chegou à murada, pulou para alcançar o topo e sair do outro la‐
do. Franco estava tão chocado e sentia tanta dor que não reagiu. De qual‐
quer modo, o homem agora já estava cercado de espectadores que tentavam
ajudar. Jamais conseguiria alcançar o revólver e mirar. Todos pareciam
prestes a entrar em pânico. O presidente sinalizava furiosamente para que a
banda voltasse a tocar, mas cada músico começou em um momento diferen‐
te, e nenhum deles parecia estar tocando no mesmo tom.
Um dos homens usando jeans e camiseta preta disparou na direção de
Alex, gritando alguma coisa em francês. O garoto o ignorou, pulou para o
outro lado da murada e correu.
No mesmo instante em que Alex saiu correndo pela noite, a tempestade
desabou. A chuva caía com tanta força que era como se o oceano se derra‐
masse do céu. Ela atingiu a cidade, espalhou-se pelas calçadas e, no mesmo
instante, formou rios que corriam pelas sarjetas e desafiavam a capacidade
dos ralos. Não havia trovões, apenas uma avalanche de água que ameaçava
afogar o mundo.
Alex não parou. Em segundos, seus cabelos estavam ensopados. A água
cobria seu rosto, e ele mal conseguia enxergar. Enquanto corria, arrancava
partes de sua roupa de toureiro — primeiro o chapéu, depois a jaqueta e a
gravata — e os atirava para longe, um de cada vez, deixando para trás a
lembrança que aquelas peças carregavam.
O mar estava à sua esquerda, a água negra e agitada sendo atingida pela
chuva. Alex disparou pela estrada, sentindo a areia sob seus pés. Ele estava
na praia, a mesma praia em que estivera deitado ao lado de Sabina quando
tudo aquilo começou. O quebra-mar e o píer estavam mais além. Alex al‐
cançou o quebra-mar e subiu nas rochas. Sua camisa estava para fora da
calça, já toda encharcada, colando em seu peito.
O barco de Yassen partira.
O garoto não tinha certeza, mas acreditou ter visto uma forma vaga desa‐
parecendo na escuridão e na chuva. Então se deu conta de que o perdera por
uma questão de minutos. Alex parou, ofegante. O que estava pensando, afi‐
nal? Se o Fer de Lance ainda estivesse ali, ele realmente subiria a bordo
uma segunda vez? É claro que não. Tivera sorte por sobreviver à primeira
tentativa. Chegou ali bem a tempo de ver o barco partindo e não descobriu
nada.
Não, isso não era verdade.
Havia alguma coisa.
Alex ficou parado por mais alguns instantes, com a chuva escorrendo em
seu rosto, e então se virou e voltou para a cidade.
Ele encontrou um telefone público na rua, bem atrás da igreja principal.
Não tinha dinheiro algum consigo, por isso se viu forçado a fazer uma liga‐
ção a cobrar enquanto se perguntava se ela seria atendida. Discou o número
da telefonista e deu o número que encontrara no celular de Yassen, e que
havia decorado.
— Quem está falando? — perguntou a atendente.
Alex hesitou. Então...
— Meu nome é Yassen Gregorovich — falou.
Houve um longo silêncio enquanto a ligação era completada. Será que
alguém atenderia? Por conta do fuso-horário, na Inglaterra era uma hora
mais cedo do que na França, mas mesmo assim já estava tarde.
A chuva agora caía com menos força, mas ainda batia no teto da cabine
telefônica. Alex esperou. Em seguida a telefonista voltou a falar.
— Sua ligação foi aceita, senhor. Pode falar.
Mais silêncio. Então Alex ouviu uma voz pronunciar apenas duas pala‐
vras.
— Damian Cray.
O garoto não disse nada.
A voz voltou a falar.
— Alô? Quem é?
Alex tremia. Talvez fosse a chuva, talvez fosse uma reação a tudo o que
acontecera. Ele não conseguiu falar e ficou ouvindo a respiração do homem
do outro lado da linha.
Em seguida ouviu um clique, e o telefone foi desligado.
4
VERDADE E CONSEQUÊNCIA

LONDRES RECEBEU ALEX como uma amiga antiga e confiável. Ôni‐


bus vermelhos, táxis pretos, policiais de uniformes azuis e nuvens cinzas...
ele poderia estar em algum outro lugar? Enquanto descia a Kings Road, per‐
cebeu que estava a milhões de quilômetros de Camarga. Agora se sentia não
apenas em casa, mas também de volta ao mundo real. O garoto ainda sentia
dor na lateral do abdômen e a pressão do curativo sobre a pele, mas, de res‐
to, Yassen e a tourada já começavam a deslizar para um passado distante na
mente dele.
Alex parou do lado de fora de uma livraria que, como tantas outras, cha‐
mava a atenção para si pelo cheiro de café que pairava no ar. Ficou parado
ali por um momento e, então, resolveu entrar.
E logo encontrou o que procurava. Havia três livros sobre Damian Cray
na seção de biografias. Dois deles mal podiam ser chamados de livros — na
verdade, não passavam de folhetos cintilantes publicados pelas gravadoras
para promover o homem que já lhes rendera tantos milhões. O primeiro se
chamava Damian Cray — Ao vivo! Estava empilhado perto de outro livro
chamado Crayzee! A vida e a época de Damian Cray. O mesmo rosto es‐
tampava todas as capas. Os cabelos muito pretos, curtos como o de um estu‐
dante. Um rosto muito redondo, com bochechas proeminentes e olhos ver‐
des brilhantes. Um nariz pequeno, quase perfeito demais, bem no centro do
rosto. Os lábios grossos e os dentes perfeitamente brancos.
O terceiro livro fora escrito poucos anos antes. O rosto estava um pouco
mais velho, os olhos escondidos atrás de óculos de lentes azuis. Esse Dami‐
an Cray estava saindo de um Rolls Royce branco, usando um terno Versace
e gravata. O título do livro mostrava o que mais havia mudado: Sir Damian
Cray: o homem, a música, os milhões. Alex passou os olhos pela primeira
página, mas o texto complicado, pesado, logo o fez desistir. Parecia ter sido
escrito por alguém que, para se divertir, lia o sisudo jornal Financial Times.
No fim, o jovem não comprou o livro. Ele queria saber mais sobre Cray,
mas não achou que aqueles livros lhe diriam nada que já não soubesse. E
certamente não esclareceriam por que o número do telefone particular de
Cray aparecia na memória do telefone celular de um assassino de aluguel.
Alex caminhou na direção de Chelsea e entrou na rua bonita, de casas
brancas, onde seu tio, Ian Rider, morara. O garoto agora dividia a casa com
Jack Starbright, uma jovem americana que já fora a governanta da casa,
mas que recentemente se tornara a guardiã legal de Alex e sua melhor ami‐
ga. Era ela a razão pela qual o garoto a princípio concordou em trabalhar
para o MI6. Ele fora mandado disfarçado para espionar Herod Sayle e seus
computadores Stormbreakers. Como recompensa, Jack recebera um visto
que lhe permitia permanecer em Londres e tomar conta de Alex.
Ela o esperava na cozinha quando ele entrou. Alex havia combinado que
estaria de volta às 13 horas e, por isso, Jack preparara um almoço rápido. A
jovem era uma boa cozinheira, mas se recusava preparar qualquer prato que
levasse mais do que dez minutos para ficar pronto. Jack tinha 28 anos, era
esguia, tinha cabelos vermelhos e rebeldes e o tipo de rosto que parecia es‐
tar sempre alegre, mesmo quando ela estava de mau humor.
— Teve uma boa manhã? — perguntou Jack quando Alex entrou.
— Sim — Alex se sentou devagar, segurando a lateral do corpo.
Jack percebeu alguma coisa, mas não disse nada.
— Espero que esteja com fome — ela continuou.
— O que tem para o almoço?
— Comida chinesa.
— O cheiro está bom.
— É uma receita antiga da culinária chinesa. Pelo menos era o que esta‐
va escrito na embalagem. Sirva-se com o refrigerante, que vou preparar seu
prato.
A comida estava boa, e Alex tentou comer, mas a verdade era que o ga‐
roto não tinha apetite e, portanto, logo desistiu. Jack não disse nada quando
levou o prato dele ainda com metade da comida para a pia. Então, ela subi‐
tamente se voltou para o garoto.
— Alex, você não pode continuar a se culpar pelo que aconteceu na
França.
O garoto estava prestes a deixar a cozinha, mas voltou para a mesa. En‐
tão, a jovem continuou.
— Já está na hora de você e eu conversarmos a respeito. Na verdade, está
na hora de conversarmos sobre tudo! — Afastou o próprio prato de comida
para o lado e esperou até que Alex se sentasse. — Muito bem. Então o seu
tio não era um gerente de banco. Era um espião. Está certo, teria sido bom
se ele houvesse me contado isso, mas agora é tarde demais. Afinal, ele se
foi, está morto, o que acabou me deixando enfiada aqui, tomando conta de
você — a jovem levantou a mão no mesmo instante. — Não foi isso que
quis dizer. Adoro estar aqui. Adoro Londres. E adoro até mesmo você. Mas
você não é um espião, Alex. Sabe disso. Mesmo que Ian tenha tido alguma
ideia maluca de treiná-lo. Até agora, você foi arrancado da escola em três
ocasiões, e a cada vez voltou mais arrebentado. Não quero nem mesmo
imaginar no que esteve envolvido, mas fiquei doente de preocupação!
— Não foi escolha minha... — falou Alex.
— É exatamente disso que estou falando. Espiões, tiros de revólver, ho‐
mens loucos que querem dominar o mundo... Esse tipo de coisa não tem na‐
da a ver com você. Por isso estava certo ao ir embora de Saint-Pierre. Você
fez a coisa certa.
Alex balançou a cabeça.
— Eu deveria ter feito alguma coisa. Qualquer coisa. Se houvesse feito,
o pai de Sabina jamais teria...
— Você não tem como ter certeza disso. Mesmo se chamasse os guardas,
o que eles poderiam ter feito? Lembre-se: ninguém sabia que havia uma
bomba. Ninguém sabia quem era o alvo. Não acho que, no fim das contas,
teria feito qualquer diferença. E se não se importa que eu diga, Alex, ir atrás
de Yassen sozinho foi... bem, foi muito perigoso. Você tem muita sorte por
não ter sido morto.
Ela sem dúvida estava certa sobre isso. Alex se lembrou da tourada e viu
novamente os chifres e o sangue nos olhos do animal. Pegou o copo e to‐
mou um gole de refrigerante.
— Ainda preciso fazer uma coisa — disse Alex. — Edward Pleasure es‐
tava escrevendo um artigo sobre Damian Cray. Alguma coisa sobre uma
reunião secreta em Paris. Talvez aquele homem compre drogas ou alguma
coisa assim.
Mas Alex sabia que aquilo não podia ser verdade. O astro havia empres‐
tado seu nome e seu rosto para campanhas publicitárias, cartazes e anúncios
de TV. Seu último álbum, White Lines, tinha quatro músicas com letras anti‐
drogas. Ele fizera disso uma questão pessoal.
— Talvez esteja envolvido com pornografia — sugeriu o garoto, sem
muita convicção.
— Seja o que for, vai ser difícil de provar, Alex. O mundo todo ama Da‐
mian Cray — Jack suspirou. — Talvez você devesse conversar com a sra.
Jones.
Alex sentiu o coração afundar no peito. Ele não gostava nem de pensar
na possibilidade de voltar ao MI6 e na ideia de se encontrar com a mulher
que era chefe de Operações Especiais. Mas sabia que Jack estava certa. Pelo
menos a sra. Jones poderia investigar.
— Acho que eu deveria ir vê-la — concordou Alex.
— Ótimo. Apenas procure garantir que ela não vai envolvê-lo em tudo
isso. Se Damian Cray realmente for parte de alguma coisa, isso é problema
dela e não seu.
O telefone tocou.
Havia um aparelho sem fio na cozinha e Jack atendeu. Ela escutou por
um momento, antes de passar o fone para Alex.
— É Sabina — falou Jack. — Para você.

Eles se encontraram do lado de fora da Tower Records, em Piccadilly Cir‐


cus, e caminharam até a cafeteria mais próxima. Sabina usava calça jeans
pretas e um colete largo. Alex imaginou que ela estaria diferente depois de
tudo o que acontecera, e a garota realmente parecia mais jovem, menos se‐
gura de si. E estava obviamente cansada. Todos os traços do bronzeado ad‐
quirido no Sul da França haviam desaparecido.
— O papai vai sobreviver — falou quando os dois se sentaram, cada um
com duas garrafas de suco. — Os médicos estão confiantes disso. Ele é for‐
te e se mantém em boa forma. Mas... — A voz de Sabina tremeu. — Vai le‐
var um bom tempo, Alex. Ele ainda está inconsciente... e ficou gravemente
queimado — parou e bebeu um pouco do suco. — A polícia disse que foi
um vazamento de gás. Você consegue acreditar nisso? Minha mãe disse que
vai entrar com um processo.
— Quem ela vai processar?
— As pessoas que alugaram a casa para nós. A companhia de gás. O país
inteiro. Ela está furiosa.
Um vazamento de gás. Exatamente a mesma coisa que a polícia havia di‐
to a ele.
— Seu pai tinha acabado de chegar de Paris, não é? — Alex não sabia se
aquele era o momento certo para perguntar, mas precisava da informação.
— Ele contou alguma coisa sobre o artigo que estava escrevendo?
Sabina pareceu surpresa.
— Não. Ele nunca fala sobre trabalho. Nem com minha mãe, nem com
ninguém.
— Onde ele ficou em Paris?
— Ficou com um amigo. Um fotógrafo.
— Você sabe o nome desse fotógrafo?
— Marc Antonio. Por que você está fazendo todas essas perguntas sobre
o meu pai? Por que quer saber?
Alex evitou responder.
— Onde ele está agora? — perguntou o garoto.
— Em um hospital na França. Ainda não está forte o bastante para viajar.
Mamãe está lá com ele. Voltei para casa sozinha.
Alex pensou por um instante. Aquela não era uma boa ideia, mas não po‐
dia ficar em silêncio. Não quando sabia o que sabia.
— Acho que seu pai deveria ter uma escolta policial — ele falou.
— O quê? — Sabina o encarou, espantada. — Por quê? Você está dizen‐
do que... que não foi um vazamento de gás?
Alex mais uma vez não respondeu.
A garota o examinou cuidadosamente e, então, tomou uma decisão.
— Você fez um monte de perguntas — ela falou. — Agora é minha vez.
Não sei o que realmente está acontecendo, mas minha mãe me contou que,
depois do que aconteceu, você fugiu da casa.
— Como ela soube?
— A polícia contou a ela. Eles disseram que você achava que alguém ha‐
via tentado matar meu pai... e que era alguém que você conhecia. Então de‐
sapareceu. O policial o procurou por toda parte.
— Eu fui até a delegacia de polícia de Saint-Pierre — explicou Alex.
— Mas isso foi só depois da meia-noite. E a essa altura você estava en‐
sopado, machucado e vestido com umas roupas muito estranhas...
Alex fora interrogado por uma hora depois que finalmente apareceu na
delegacia. Um médico havia dado três pontos e feito um curativo em seu fe‐
rimento. Então o policial lhe trouxera uma troca de roupas. As perguntas só
cessaram com a chegada de um homem do consulado britânico em Lyon. O
homem, já um senhor e muito eficiente, parecia saber tudo sobre Alex.
Acompanhou o garoto até o aeroporto de Montpellier para que Alex pegas‐
se o primeiro voo no dia seguinte. O homem não demonstrou nenhum inte‐
resse no que havia acontecido. Seu único desejo parecia ser tirar Alex do
país.
— O que estava fazendo? — perguntou Sabina. — Você disse que meu
pai precisa de proteção. Sabe de alguma coisa?
— Não posso contar... — Alex começou a dizer.
— Bobagem! — retrucou Sabina. — É claro que pode me contar!
— Não posso. Você não acreditaria em mim.
— Se não me contar, Alex, vou sair daqui, e você nunca mais me verá
novamente. O que sabe sobre o meu pai?
Alex acabou contando. Foi muito simples. Sabina não lhe dera escolha.
E, de certa forma, ele ficou satisfeito. Guardara aquele segredo por tempo
demais, sozinho, e estava começando a sentir o peso disso.
Alex começou com a morte do tio, depois falou sobre o modo como fora
apresentado ao MI6, seu treinamento, e seu primeiro encontro com Yassen
Gregorovich na fábrica onde eram produzidos os computadores Stormbrea‐
ker, na Cornualha. Ele descreveu, o mais breve possível, como fora forçado,
por mais duas vezes, a trabalhar para o MI6 (uma vez nos Alpes Franceses e
outra na costa da América). Então contou a Sabina o que sentiu no momen‐
to em que vira Yassen na praia, em Saint-Pierre, relatou que seguira o ho‐
mem até o restaurante, e por que, no fim, acabou não fazendo nada.
Alex achou que havia resumido tudo, mas na verdade falou por uma hora
antes de chegar ao seu encontro com Yassen no Fer de Lance. Durante a
maior parte do tempo, ele evitava olhar diretamente para Sabina, mas, quan‐
do chegou à parte da tourada e começou a descrever como fora vestido de
toureiro e se apresentara diante de uma multidão, o garoto levantou os olhos
e encarou sua colega. Ela o olhava como se o estivesse vendo pela primeira
vez. Parecia estar quase o odiando.
— Eu avisei que não seria fácil acreditar — concluiu Alex sem jeito.
— Alex...
— Sei que tudo isso parece uma loucura. Mas foi o que aconteceu. Sinto
muito sobre o seu pai. Sinto muito por não ter conseguido evitar o que
aconteceu. Mas ao menos sei quem foi o responsável.
— Quem?
— Damian Cray.
— O astro pop?
— Seu pai estava escrevendo uma matéria sobre ele. Encontrei na casa
uma parte do que foi escrito. E o número do celular de Damian estava no
celular de Yassen.
— Então Damian Cray queria matar meu pai.
— Sim.
Houve um longo silêncio. Longo demais, pensou Alex.
Finalmente Sabina voltou a falar.
— Desculpe, Alex — ela disse. — Nunca ouvi tanta besteira na minha
vida!
— Sab, eu disse para você que...
— Sei que disse que eu não acreditaria. Mas isso não significa que tudo
o que falou é verdade! — ela balançou a cabeça. — Como pode esperar que
alguém acredite em uma história dessas? Por que não pode me contar a ver‐
dade?
— Essa é a verdade...
De repente ele se deu conta do que precisava fazer.
— E eu posso provar.
Eles pegaram o metrô e atravessaram Londres até a estação Liverpool
Street. Depois caminharam até o prédio onde Alex sabia que funcionava a
Divisão de Operações Especiais do MI6. Os dois adolescentes se viram pa‐
rados diante de uma porta alta, pintada de preto, do tipo projetado para im‐
pressionar as pessoas que entravam ou saíam. Próximo à porta havia uma
placa de latão presa aos tijolos, na qual se lia:

ROYAL & GENERAL


BANCO S. A.
LONDRES

Sabina viu a placa e olhou desconfiada para Alex.


— Não se preocupe — falou o garoto. — O banco Royal and General
não existe. Essa é apenas a placa de disfarce que eles colocam na porta.
Os dois entraram no prédio. O saguão de entrada era frio, de aparência
profissional, com os tetos altos e o chão de mármore marrom. De um lado
havia um sofá de couro, e Alex se lembrou de ter se sentado ali na primeira
vez que viera ao prédio, enquanto esperava para subir até o escritório do tio,
no 15o andar. Ele caminhou direto até a mesa de vidro da recepção, onde
uma jovem estava sentada com um microfone curvado sobre a boca, rece‐
bendo ligações e atendendo os visitantes ao mesmo tempo. Próximo a ela
estava um segurança, mais velho, vestindo um uniforme, com um quepe na
cabeça.
— Posso ajudá-los? — perguntou a moça, sorrindo para Alex e Sabina.
— Sim — ele respondeu. — Eu gostaria de ver a sra. Jones.
— Sra. Jones? — a jovem franziu a sobrancelha. — Você sabe em que
departamento ela trabalha?
— Ela trabalha com o sr. Blunt.
— Sinto muito... — ela virou-se para o guarda. — Você conhece alguma
sra. Jones?
— Há uma srta. Johnson — sugeriu o segurança. — Ela trabalha como
caixa.
Alex correu o olhar do homem para a moça.
— Vocês sabem de quem estou falando — ele falou. — Simplesmente
diga a ela que Alex Rider está aqui...
— Não há nenhuma sra. Jones trabalhando nesse banco — a recepcionis‐
ta o interrompeu.
— Alex... — Sabina começou a falar.
Mas ele se recusava a desistir. Inclinou o corpo para a frente, de modo
que pudesse falar confidencialmente.
— Sei que isso aqui não é um banco — afirmou. — É a Divisão de Ope‐
rações Especiais do MI6. Por favor, você poderia...
— Isso é algum tipo de brincadeira? — dessa vez quem falou foi o segu‐
rança. — Que bobagem é essa sobre MI6?
— Alex, vamos sair daqui — disse Sabina.
— Não!
Ele não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Nem mesmo sa‐
bia exatamente o que estava acontecendo. Só podia haver algum engano.
Aqueles funcionários deviam ser novos ali. Ou talvez precisassem de algum
tipo de senha para o deixarem passar. É claro. Em suas visitas anteriores ao
prédio, Alex só fora até ali quando era esperado. Ou então trazido contra a
sua vontade. Dessa vez, apareceu sem avisar. Era por isso que não estavam
deixando que entrasse.
— Escutem — falou o garoto. — Entendo por que não querem deixar
ninguém entrar, mas não sou uma pessoa qualquer. Sou Alex Rider. Traba‐
lho com o sr. Blunt e com a sra. Jones. Poderiam, por favor, avisá-la que es‐
tou aqui.
— Não há nenhuma sra. Jones — a recepcionista repetiu desconsolada.
— E também não conheço nenhum sr. Blunt — acrescentou o segurança.
— Alex, por favor — o tom de voz de Sabina era cada vez mais desespe‐
rado. Ela realmente queria ir embora.
O garoto se virou para a amiga.
— Eles estão mentindo, Sabina. Vou lhe mostrar.
Alex agarrou o braço dela e a puxou para o elevador, onde apertou o bo‐
tão e ficou aguardando que a porta se abrisse.
— Pare aí mesmo! — gritou o segurança.
A recepcionista esticou a mão e apertou um botão, provavelmente pedin‐
do ajuda.
A porta do elevador não abriu.
Alex viu o guarda caminhando em sua direção. Olhou ao redor e viu um
corredor mais adiante, com portas basculantes no final. Talvez houvesse
uma escada, ou mais elevadores em algum outro lugar do prédio. Continuou
puxando Sabina atrás de si e disparou para o corredor. O segurança estava
cada vez mais perto. Alex acelerou o passo enquanto buscava algum cami‐
nho para subir.
Ele passou pelas portas basculantes.
E parou.
Estava no saguão de um banco. Era enorme, com o teto abobadado e car‐
tazes nas paredes anunciando hipotecas, contas de poupança e empréstimos
pessoais. Havia sete ou oito guichês de vidro lado a lado, com caixas carim‐
bando documentos ou descontando cheques enquanto cerca de uma dúzia
de clientes — pessoas comuns, que entravam da rua — esperavam na fila.
Dois consultores financeiros, rapazes em ternos elegantes, permaneciam
sentados atrás de mesas na área aberta do banco. Um deles conversava so‐
bre planos de aposentadoria com um casal de idade. Alex ouviu o outro
atendendo ao telefone.
— Olá. Aqui é do banco Royal and General, da Liverpool Street. É
Adam falando. Como posso ajudar?
Uma luz se acendeu sobre um dos guichês. Número quatro. Um homem
de terno listrado foi até lá, e todos na fila se adiantaram.
Alex viu tudo isso em um relance. E olhou para Sabina. Ela o encarava
com uma mistura de emoções no rosto.
Então o segurança apareceu.
— Você não vai querer entrar no banco desse jeito — falou o homem. —
Essa é a entrada de serviço. Agora quero que saia, antes que arrume proble‐
mas de verdade para você. Estou falando sério! Não quero ter que chamar a
polícia, mas esse é o meu trabalho.
— Estamos indo — Sabina se adiantou com uma voz fria e definitiva.
— Sab...
— Estamos indo agora.
— Você precisa tomar conta do seu amigo — o segurança disse a ela. —
Ele pode achar esse tipo de coisa engraçada, mas não é.
Alex saiu — ou melhor, permitiu que Sabina o levasse para fora. Eles
passaram pela porta giratória e chegaram à rua. O garoto se perguntou o que
acontecera. Por que nunca vira o banco antes? Então ele entendeu. O prédio
na verdade ficava entre duas ruas, e a frente e os fundos eram completa‐
mente separados. Ele sempre entrara pelo outro lado.
— Escute... — Alex começou a dizer.
— Não. É você quem vai escutar! Não sei o que está acontecendo com a
sua cabeça. Talvez seja porque seus pais morreram. Você precisa chamar
atenção para si, criando essas... fantasias! Mas pare e escute o que está di‐
zendo, Alex! É doentio. Estudantes espiões e assassinos russos, e tudo o
mais...
— Isso não tem nada a ver com os meus pais — rebateu Alex, sentindo a
raiva crescer em seu peito.
— Mas tem tudo a ver com os meus. Meu pai foi ferido em um aciden‐
te...
— Não foi um acidente, Sab — ele não conseguiu se controlar. — Você é
mesmo tão burra a ponto de achar que eu inventaria tudo isso?
— Burra? Você está me chamando de burra?
— Só estou dizendo que achei que éramos amigos. Achei que você me
conhecia...
— Sim! Eu achei que o conhecia. Mas agora vejo que estava errada. Vou
lhe dizer o que é burrice. Em primeiro lugar, escutar o que você disse foi
uma grande burrice. Vir procurá-lo também. Até mesmo conhecer você...
essa foi a maior burrice de todas.
Ela se virou e saiu andando em direção à estação do metrô. Em segundos
já desaparecera na multidão.
— Alex — disse uma voz atrás dele. E era uma voz que o garoto conhe‐
cia muito bem.
A sra. Jones estava parada na calçada. Tinha visto e ouvido tudo o que
acontecera.
— Deixe sua amiga ir — falou a mulher. — Acho que precisamos con‐
versar.
5
SANTO OU CANTOR?

O ESCRITÓRIO CONTINUAVA COMO SEMPRE. A mesma mobília


comum e moderna, a mesma vista, o mesmo homem atrás da mesma escri‐
vaninha. Não pela primeira vez, Alex se pegou imaginando a respeito de
Alan Blunt, presidente da Divisão de Operações Especiais do MI6. Como
fora a sua jornada para o trabalho naquele dia? Havia uma esposa suburba‐
na com um belo sorriso e duas crianças acenando quando ele partiu para pe‐
gar o trem? A família sabia a verdade sobre ele? Teria Alan Blunt lhes con‐
tado que não trabalhava para um banco ou para uma companhia de seguros
ou qualquer coisa assim, e que carregava consigo — talvez em uma peque‐
na pasta de couro, que ganhara de presente de aniversário — arquivos e do‐
cumentos cheios de morte?
O garoto tentou visualizar o adolescente que o homem de terno cinza te‐
ria sido — afinal, Blunt já tivera a idade de Alex. Provavelmente frequenta‐
va uma escola, preocupava-se com provas, jogava futebol, experimentou
seu primeiro cigarro e ficava entediado nos fins de semana, como qualquer
outra pessoa. Mas não havia nem um traço de criança nos olhos cinza vazi‐
os, nos cabelos sem cor, na pele manchada e ressecada. Então, quando isso
acontecera? O que o havia transformado em um funcionário público, chefe
de um serviço secreto, um adulto sem remorsos e sem nenhuma emoção
clara?
Então Alex se perguntou se a mesma coisa aconteceria com ele um dia.
Era para isso que o Serviço Secreto Britânico o estava preparando? Primei‐
ro o tinham transformado em um espião, depois o transformariam em um
deles. Talvez até já tivessem um escritório esperando, com o nome do garo‐
to na porta.
As janelas permaneciam fechadas, e estava quente na sala, mas mesmo
assim Alex tremeu. Aparecer ali com Sabina tinha sido um erro. O escritó‐
rio na Liverpool Street era venenoso e, de um modo ou de outro, acabaria
destruindo-o se ele não se mantivesse distante.
— Não poderíamos permitir que trouxesse aquela garota aqui, Alex —
disse Blunt. — Você sabe perfeitamente bem que não pode simplesmente se
exibir para os seus amigos sempre que...
— Eu não estava me exibindo — Alex o interrompeu. — O pai de Sabi‐
na quase foi morto por uma bomba no Sul da França.
— Sabemos tudo sobre o que aconteceu em Saint-Pierre — murmurou
Blunt.
— E sabem que foi Yassen Gregorovich quem plantou a bomba?
Blunt suspirou irritado.
— Isso não faz nenhuma diferença. Não é problema seu. E com certeza
não é problema nosso.
Alex o encarou, sem acreditar no que ouvira. Então, seguiu com as expli‐
cações.
— O pai de Sabina é jornalista. Ele estava escrevendo sobre Damian
Cray. Se Cray o queria morto, deve haver uma razão para isso. Não é traba‐
lho de vocês descobrir qual é essa razão?
Blunt ergueu a mão pedindo silêncio. Seus olhos, como sempre, não
mostravam nada. Alex se pegou pensando que, se aquele homem sentado à
escrivaninha estivesse morto, ninguém perceberia a diferença.
— Recebi um relatório da polícia de Montpellier e outro do consulado
britânico — contou Blunt. — É um procedimento padrão quando um dos
nossos está envolvido.
— Eu não sou um dos seus — resmungou Alex.
— Sinto muito que o pai de sua... amiga tenha sido ferido. Mas você de‐
ve saber que a polícia francesa investigou o que aconteceu... E o seu racio‐
cínio está certo. Não foi um vazamento de gás.
— Era isso o que eu eslava tentando dizer a vocês.
— Acontece que uma organização terrorista local, a CST, assumiu a res‐
ponsabilidade pelo atentado.
— A CST? — Alex sentiu a cabeça girar. — Quem são eles?
— São uma organização terrorista nova — explicou a sra. Jones. — CST
é a abreviatura para Camargue Sans Touristes, ou seja, “Camarga sem turis‐
tas” em francês. Basicamente são nacionalistas franceses que querem impe‐
dir que as casas da cidade sejam vendidas para turistas ou alugadas como
casa de veraneio.
— O que aconteceu não tem nada a ver com essa CST — insistiu Alex.
— Foi Yassen Gregorovich. Eu o vi, e ele admitiu isso. E também me con‐
tou que o verdadeiro alvo era Edward Pleasure. Por que não escutam o que
estou dizendo? Aquilo aconteceu por causa da matéria que Edward estava
escrevendo. Alguma coisa sobre uma reunião em Paris. Era Damian Cray
quem o queria morto.
Houve uma breve pausa. A sra. Jones relanceou o olhar para o chefe, co‐
mo se precisasse de permissão para falar. Ele assentiu quase imperceptivel‐
mente.
— Yassen mencionou Damian Cray? — ela perguntou.
— Não. Mas descobri o número particular dele no telefone do russo. Li‐
guei para o número e foi o próprio Cray que atendeu.
— Você não tem como saber que era Damian Cray.
— Bem, foi o nome que ele deu.
— Isso é um absurdo! — exclamou Blunt, e Alex ficou espantado ao ver
que ele estava zangado.
Era a primeira vez que o garoto via aquele homem demonstrar qualquer
emoção, e lhe ocorreu que certamente pouquíssimas pessoas ousavam dis‐
cordar do presidente da Divisão de Operações Especiais. Ainda mais assim,
bem na cara dele.
— Por que é um absurdo?
— Porque você está falando de um dos artistas mais admirados e respei‐
tados do país. Um homem que já arrecadou milhões e milhões de dólares
para instituições de caridade. Porque está falando de Damian Cray! —
Blunt voltou a afundar o corpo na cadeira. Por um momento, pareceu inde‐
ciso. — Muito bem. Já que você nos foi de alguma utilidade no passado, e
como quero esclarecer essa questão de uma vez por todas, vou lhe contar
tudo o que sabemos sobre Cray.
— Temos arquivos extensos sobre ele — complementou a sra. Jones.
— Por quê?
— Mantemos arquivos extensos sobre todas as pessoas famosas.
— Continuem.
A sra. Jones assumiu o controle da conversa. Ela parecia saber todas as
informações de cor. Ou lera os arquivos recentemente ou, mais provável,
era o tipo de pessoa que nunca se esquecia de nada.
— Damian Cray nasceu no norte de Londres, em 5 de outubro de 1950
— começou. — A propósito, esse não é o nome verdadeiro dele, que foi ba‐
tizado Harold Eric Lunt. Seu pai era Sir Arthur Lunt, que fez fortuna cons‐
truindo edifícios-garagem. Quando criança, Harold demonstrou ter uma voz
impressionante quando cantava, e aos 11 anos foi mandado para a Real
Academia de Música de Londres, onde costumava cantar regularmente com
outro garoto que também se tornou famoso, Elton John. Mas, quando tinha
13 anos, um terrível desastre aconteceu. Seus pais foram mortos em um es‐
tranho acidente de carro.
— Por que estranho?
— O carro caiu em cima deles. Rolou do topo de um dos edifícios-gara‐
gem. Como você pode imaginar, Harold ficou muito perturbado. Deixou a
Real Academia e foi viajar pelo mundo. Então mudou de nome e se tornou
budista por algum tempo. Também se tornou vegetariano. Até hoje não co‐
me carne. Os ingressos para seus shows são feitos de papel reciclado. Ele
tem valores muito arraigados e os segue rigidamente — ela fez uma pausa.
— Ele voltou à Inglaterra nos anos 1970 e formou uma banda, a Slam!, e o
grupo foi um sucesso instantâneo. Tenho certeza de que o resto da história
vai lhe parecer bastante familiar, Alex.
Fez uma pausa e disse:
— No final dos anos 1970, a banda se separou e Cray deu início a uma
carreira solo que o levou a novas alturas. Seu primeiro álbum solo, Fire‐
light, recebeu disco de platina. Depois disso, ele frequentemente estava pre‐
sente na lista dos 20 mais ouvidos na Inglaterra ou nos Estados Unidos.
Cray ganhou cinco prêmios Grammy e um Oscar de Melhor Canção Origi‐
nal. Em 1986, visitou a África e decidiu fazer alguma coisa para ajudar as
pessoas de lá. Organizou um show no estádio de Wembley, e toda a renda
foi revertida para a caridade. Esse show recebeu o nome de Chart Attack.
Foi um enorme sucesso. No Natal daquele mesmo ano, lançou uma música
chamada Something for the Children, que vendeu 4 milhões de cópias. Tudo
o que Damian Cray recebeu com a música também foi doado.
Continuou:
— Isso foi apenas o começo. Desde o sucesso de Chart Attack, Cray tem
se envolvido em várias das principais questões mundiais. Proteção das flo‐
restas equatoriais e da camada de ozônio, luta pelo fim da dívida mundial.
Ele construiu seus próprios centros de reabilitação para ajudar jovens envol‐
vidos com drogas e passou dois anos lutando para que fechassem um labo‐
ratório que usava animais como cobaias.
Acrescentou:
— Em 1989, Cray se apresentou em Belfast, e muitas pessoas acreditam
que o show gratuito foi um passo na direção da paz na Irlanda do Norte.
Um ano mais tarde, fez duas visitas ao Palácio de Buckingham, sendo uma
delas em uma quinta-feira para fazer solo no aniversário da princesa Diana.
No dia seguinte, Cray estava de volta para receber o título de cavaleiro da
rainha. Apenas um ano mais tarde, Damian Cray estava na capa da revista
Time, acompanhado da manchete “O homem do ano. Santo ou Cantor?”. E
é por isso que suas acusações são absurdas, Alex. O mundo todo sabe que
Damian Cray é o mais próximo que temos de um santo vivo.
— Ainda assim, era dele a voz ao telefone — rebateu o garoto.
— Você ouviu alguém dizendo o nome de Damian, mas não sabe se era
realmente ele.
— Não consigo entender! — agora era Alex que estava zangado e confu‐
so. — Está certo, todos gostamos de Damian Cray. Sei que ele é famoso.
Mas, se há uma chance de ele estar envolvido com a bomba, por que vocês
não podem ao menos investigar?
— Porque não podemos. — foi Blunt quem falou agora, e as palavras fo‐
ram pronunciadas em um tom direto e definitivo. Ele limpou a garganta an‐
tes de continuar. — Damian Cray é um multimilionário. Ele tem uma cober‐
tura enorme de frente para o Tâmisa e outra casa em Wiltshire, logo depois
de Bath.
— E daí?
— Pessoas ricas têm ligações importantes, e pessoas extremamente ricas
têm ligações ainda mais poderosas. Desde os anos 1990, Cray vem aplican‐
do seu dinheiro em uma variedade de empreendimentos comerciais. Com‐
prou sua própria rede de TV e produziu vários programas que agora são exi‐
bidos ao redor do mundo. Então ampliou seus investimentos para hotéis, e
finalmente para a área de jogos de computador. Cray está prestes a lançar
um novo videogame, chamado Gameslayer, que aparentemente vai arrasar
todos os outros, seja Playstation, Gamecube, ou o que for.
— Ainda não entendo...
— Ele é um grande investidor, Alex, um homem de enorme influência.
E, além do mais, doou 1,5 milhão de dólares ao governo pouco antes da úl‐
tima eleição. Entende agora? Se descobrissem que o estamos investigando,
ainda mais por causa de uma simples suposição sua, seria um tremendo es‐
cândalo. O primeiro-ministro já não gosta de nós. Detesta o fato de não po‐
der nos controlar. E pode até mesmo usar um ataque a Damian Cray como
desculpa para fechar o MI6.
— Cray apareceu ainda hoje na TV — disse a sra. Jones. Ela pegou o
controle remoto. — Dê uma olhada nisso e me diga o que acha.
O aparelho de TV em um canto da sala foi ligado, e Alex se viu assistin‐
do a uma gravação do telejornal do meio da manhã. Ele imaginou que a sra.
Jones provavelmente gravava os telejornais todo dia. Ela adiantou a grava‐
ção até chegar à parte que queria.
E lá estava Damian Cray, com os cabelos cuidadosamente penteados e
usando um terno escuro, formal, com camisa branca e uma gravata de seda
lilás. Permanecia parado do lado de fora da embaixada americana na Lon‐
don Grovesnor Square.
A sra. Jones aumentou o som.

... o cantor pop e agora ativista incansável de um grande número de


questões políticas e ambientais, Damian Cray. Ele esteve em Londres para
encontrar o presidente dos Estados Unidos, que acabara de chegar à Ingla‐
terra para passar parte de suas férias.

A imagem mudou para um avião jumbo aterrissando no aeroporto de He‐


athrow, e em seguida um close mostrando o presidente diante da porta aber‐
ta, acenando e sorrindo.

O presidente chegou ao Aeroporto de Heathrow no Air Force One, o


avião presidencial. Ele tem um almoço formal agendado com o primeiro-
ministro em sua residência oficial, no número 10 da rua Downing, hoje...

Outro corte. Agora a imagem mostrava o presidente parado perto de Da‐


mian Cray e os dois homens trocando um aperto de mão — mais longo do
que o normal, para o benefício das câmeras, que espocavam ao redor deles.
Cray havia prendido a mão do presidente entre as suas duas mãos e parecia
não querer soltá-la. Ele disse alguma coisa, e o presidente americano riu.

... mas primeiro ele se encontrou com Cray para uma conversa informal
na embaixada americana em Londres. Cray é porta-voz do Greenpeace e
vem liderando um movimento para evitar que seja feita perfuração de pe‐
tróleo no Alasca, com receio do prejuízo ambiental que isso pode causar.
Embora não tenha feito promessas, o presidente americano concordou em
estudar o relatório que o Greenpeace...
A sra. Jones desligou a televisão.
— Está entendendo? O homem mais poderoso do mundo interrompeu
suas férias para se encontrar com Damian Cray. E viu o astro antes mesmo
de visitar o primeiro-ministro! Isso deve lhe dar a dimensão do poder desse
homem. Então me diga: que razão Cray teria para explodir uma casa e tal‐
vez assassinar uma família inteira?
— Isso é o que quero que descubram.
Blunt fungou e, em seguida, falou:
— Acho que devemos aguardar o retorno da polícia francesa. Eles estão
investigando a CST. Vamos ver o que nos dizem.
— Então vocês não vão fazer nada!
— Acho que já lhe explicamos a situação, Alex.
— Está certo — o garoto se levantou e nem tentou disfarçar a raiva que
sentia. — Vocês me fizeram passar por um completo idiota na frente de Sa‐
bina, fizeram com que eu perdesse uma das minhas melhores amigas. É
mesmo impressionante. Quando precisam de mim, sentem-se no direito de
me arrancarem do colégio e me mandarem para o outro lado do mundo.
Mas, quando sou eu que preciso de vocês uma única vez, fingem que nem
sequer existo e simplesmente me jogam na rua...
— Você está sendo excessivamente emocional — argumentou Blunt.
— Não, não estou. Mas vou lhes dizer uma coisa: se não forem atrás de
Cray, eu irei. Ele pode ser o Papai Noel, Joana D’Arc, e o Papa, todos esses
em uma só pessoa, mas era a voz dele ao telefone, e sei que, de algum mo‐
do, Cray está envolvido no que aconteceu no Sul da França. Vou provar isso
a vocês.
Sem esperar para ouvir nem mais uma palavra, Alex deixou o escritório.
Houve um longo silêncio.
Blunt pegou uma caneta e anotou algumas coisas em uma folha de papel.
Então, olhou para a sra. Jones.
— E então? — ele disse.
— Talvez devêssemos repassar os arquivos mais uma vez — ela sugeriu.
— Afinal, Herod Sayle fingiu ser amigo do povo britânico, e se não fosse
por Alex...
— Pode fazer como achar melhor — concordou Blunt. Ele circulou a úl‐
tima frase que escrevera. A sra. Jones viu as palavras Yassen Gregorovich
no pé da página. — É curioso que ele tenha esbarrado com Yassen uma se‐
gunda vez — resmungou o homem.
— E mais curioso ainda que Yassen não o tenha matado quando teve a
oportunidade.
— Eu não diria isso, considerando tudo.
A sra. Jones concordou.
— Talvez devêssemos contar a Alex sobre Yassen — ela sugeriu.
— É claro que não — Blunt pegou o pedaço de papel e o amassou. —
Quanto menos Alex Rider souber sobre Yassen Gregorovich, melhor. Tenho
esperança de que os dois não voltem a se esbarrar — ele jogou a bola de pa‐
pel amassado no cesto de lixo sob a escrivaninha. No fim do dia, todo o lixo
seria incinerado.
— E basta — acrescentou Blunt.

Jack estava preocupada.


Alex voltara de Liverpool Street com um humor péssimo e, desde então,
não havia falado uma palavra sequer. Ele entrou na sala de estar, onde Jack
estava lendo um livro, e só conseguiu saber que o encontro com Sabina não
correra bem e que Alex provavelmente não a veria de novo. Mas, durante a
tarde, a governanta acabou conseguindo persuadi-lo a falar mais e acabou
formando uma visão geral da história.
— São todos uns idiotas! — exclamou Alex. — Sei que estão errados,
mas, só porque sou mais novo do que eles, não me escutam.
— Já lhe disse antes, Alex. Você não deve se misturar com eles.
— Não vou me misturar. Nunca mais. Eles não me dão a menor atenção.
A campainha tocou.
— Eu atendo — falou Alex.
Havia uma van estacionada na rua. Dois homens abriam a parte de trás
do veículo, e Alex os viu retirarem uma bicicleta novinha e trazerem-na pa‐
ra a casa. O garoto examinou a bicicleta. Era uma Cannondale Bad Boy,
uma mountain bike que fora adaptada para a cidade, com quadro em alumí‐
nio muito leve e rodas finas. Prateada, parecia estar equipada com todos os
acessórios que ele poderia ter desejado: faróis Digital Evolution, uma mini‐
bomba para os pneus da marca Blackburn... tudo o que havia de melhor.
Apenas a buzina prateada no guidão parecia antiquada e deslocada. Alex
passou a mão pelo selim de couro com um desenho celta e então por todo o
quadro, admirando o trabalho. Não havia sinal de solda. A bicicleta era arte‐
sanal e provavelmente custava centenas de libras.
Um dos homens foi até onde o garoto estava.
— Alex Rider? — perguntou.
— Sim. Mas acho que deve haver algum engano. Não encomendei ne‐
nhuma bicicleta.
— É um presente. Tome aqui...
O segundo homem deixou a bicicleta apoiada contra a grade da varanda.
Alex se viu segurando um envelope grosso. Jack apareceu no degrau atrás
dele.
— O que é isso? — ela perguntou.
— Alguém me deu uma bicicleta.
Alex abriu o envelope. Dentro, havia um manual de instruções e uma
carta presa a ele.

Querido Alex,
Provavelmente vou me meter em encrenca por causa disso, mas não gos‐
to da ideia de vê-lo ter que se virar sozinho, sem nenhum apoio. Venho tra‐
balhando nessa bicicleta para você e acho que deveria ficar com ela. Espe‐
ro que lhe seja útil.
Tome cuidado, garoto querido. Eu detestaria receber a notícia de que al‐
guma coisa fatal lhe aconteceu.
Tudo de bom para você,
Smithers
P.S. Essa carta se autodestruirá dez segundos depois que entrar em con‐
tato com o ar, portanto espero que você a leia rapidamente.

Alex só teve tempo de ler a última frase antes que as letras desapareces‐
sem e o papel se amassasse até virar uma espécie de cinza branca. O garoto
abriu as mãos, e o que sobrara da carta foi levado pela brisa. Nesse meio
tempo, os dois homens haviam voltado para a van e ido embora. Alex ficou
ali, parado, ao lado da bicicleta. Em seguida, folheou as primeiras páginas
do manual de instrução.

BOMBA DA BICICLETA — CORTINA DE FUMAÇA


FAROL DIANTEIRO — BOMBA LUMINOSA DE MAGNÉSIO
GUIDÃO — EJETOR DE MÍSSEIS
ROUPA DE CICLISTA (À PROVA DE BALAS)
PRENDEDORES PARA CALÇA MAGNÉTICOS

— Quem é Smithers? — perguntou Jack.


Alex nunca havia contado a ela sobre ele.
— Eu estava errado — disse o garoto. — Achei que não tivesse amigos
no MI6. Mas parece que tenho um.
Ele levou a bicicleta para dentro de casa. Sorrindo, Jack fechou a porta.
6
O PLEASURE DOME

FOI APENAS NA LUZ FRIA da manhã que Alex começou a ver a impos‐
sibilidade da tarefa que se impusera. Como conseguiria investigar um ho‐
mem como Cray? Blunt mencionara que a celebridade tinha casas em Lon‐
dres e Wiltshire, mas não dera os endereços ao garoto. Alex não sabia nem
mesmo se Cray ainda estava na Inglaterra.
Mas, no fim, as notícias no jornal, de manhã, acabaram lhe dizendo por
onde começar.
Alex entrou na cozinha e se deparou com Jack lendo o jornal enquanto
tomava sua segunda xícara de café. Ela deu uma olhada para o garoto e des‐
lizou o periódico pela mesa, na direção dele.
— Isso vai fazê-lo deixar de lado os seus cereais.
Alex pegou o jornal e logo viu, na segunda página, Damian Cray olhan‐
do diretamente para ele. E havia uma legenda sob a foto.

CRAY LANÇA GAMESLAYER,


UM INVESTIMENTO DE 150 MILHÕES DE DÓLARES

Esse é definitivamente o assunto mais quente de Londres. Hoje os jogadores


de videogames vão poder ver o tão ansiosamente aguardado Gameslayer,
desenvolvido a um custo aproximado de mais de 150 milhões de dólares pe‐
la Cray Software Technology, uma empresa com sede em Amsterdã. O vide‐
ogame de última geração será apresentado pelo próprio Sir Damian Cray
diante de uma plateia de convidados que inclui jornalistas, amigos, celebri‐
dades e especialistas da indústria.
Nenhum gasto foi poupado no lançamento, que acontecerá às 13 horas e
incluirá um bufê regado a champanhe dentro do Pleasure Dome, construído
com alumínio e revestido com tecido de PTFE (politetrafluoretileno), o
mesmo material usado na 02 Arena (antes chamada de Millennium Dome).
É uma estrutura futurística, que Cray construiu dentro do Hyde Park. Essa
é a primeira vez que um Parque Real de Londres será usado para um em‐
preendimento puramente comercial, apesar das críticas surgidas após a
concessão da permissão, no início do ano.
Mas Damian Cray não é um homem de negócios qualquer. Ele já anun‐
ciou que 20% dos lucros do Gameslayer irão para a caridade, dessa vez
para ajudar crianças deficientes em todo o Reino Unido. Ontem, Cray se
encontrou com o presidente dos Estados Unidos para discutir a extração de
petróleo no Alasca. Dizem que a própria rainha aprovou a construção tem‐
porária do Pleasure Dome, cujo projeto sem dúvida vem deixando de olhos
arregalados os londrinos que passam pelo local.

Alex parou de ler.


— Temos que ir — ele disse.
— Quer ovos mexidos ou cozidos?
— Jack...
— Alex, é um evento apenas para convidados. O que vamos fazer lá?
— Vou pensar em alguma coisa.
A governanta olhou de cara feia para ele.
— Tem certeza de que quer fazer isso?
— Eu sei, Jack. É Damian Cray. Todos o adoram. Mas aqui está uma coi‐
sa que as pessoas não devem ter percebido — ele dobrou o jornal e passou
de volta para ela. — O grupo terrorista que assumiu a responsabilidade pela
bomba na França se chamava Camargue Sans Touristes.
— Eu sei.
— E esse novo jogo de computador foi desenvolvido pela Cray Software
Technology.
— E daí, Alex?
— Talvez seja apenas outra coincidência. Mas CST... são as mesmas le‐
tras.
Jack concordou.
— Está certo. Então, como vamos fazer para conseguir entrar?

Eles pegaram um ônibus para Knightsbride e atravessaram o Hyde Park.


Antes mesmo de os dois cruzarem os portões e realmente entrarem no par‐
que, Alex pôde perceber quanto havia sido investido no lançamento. Cente‐
nas de pessoas se espalhavam pelas calçadas, saindo de táxis e limusines.
Eram tantos visitantes dentro do parque que pareciam cobrir cada centíme‐
tro de grama. Policiais a pé e a cavalo permaneciam parados em cada esqui‐
na, orientando as pessoas e tentando organizá-las em filas. Alex ficou im‐
pressionado ao ver os cavalos se mantendo tão tranquilos, mesmo cercados
por todo aquele caos.
Então, lá estava o Pleasure Dome. Era como se uma fantástica nave espa‐
cial houvesse aterrissado no meio do lago no centro do Hyde Park. A estru‐
tura parecia flutuar na superfície da água, uma mancha negra cercada por
uma moldura de alumínio cintilante, e vigas prateadas que se cruzavam em
um padrão atordoante. Holofotes com luz azul e vermelha giravam, os raios
brilhando em plena luz do dia. Uma única ponte de metal se estendia da
margem até a entrada, mas mais de uma dúzia de seguranças barravam o ca‐
minho. Ninguém tinha permissão para cruzar o lago sem mostrar o ingresso.
E não havia outro modo de entrar.
A música retumbava de alto-falantes escondidos: Cray cantando uma
música de seu último álbum, White Lines. Alex caminhou até a beira da
água. Ouviu gritos e, mesmo sob o sol forte da tarde, ficou quase cego com
a centena de flashes que explodiram ao mesmo tempo. O prefeito de Lon‐
dres acabara de chegar e estava acenando para a imprensa — no mínimo
uma centena de pessoas reunidas em uma área cercada perto da ponte. O
garoto olhou ao redor e percebeu que conhecia alguns dos rostos que se en‐
caminhavam para o Pleasure Dome. Havia atores, personalidades da TV,
modelos, DJs, políticos... todos acenando com seus convites e fazendo fila
para entrar. Aquilo era mais do que o lançamento de um novo videogame.
Era a festa mais exclusiva que Londres já vira.
E, de algum modo, Alex precisava dar um jeito de entrar.
Ele ignorou o policial que tentava afastá-lo do caminho e continuou se‐
guindo na direção da ponte, andando com confiança, como se houvesse sido
convidado. Jack estava a alguns passos de distância, e Alex olhou para ela.
Ian Rider, é claro, ensinara ao sobrinho noções de como bater uma cartei‐
ra. Na época, aquilo foi apenas uma brincadeira ocorrida pouco antes do
10o aniversário de Alex, quando os dois foram juntos a Praga. Eles estavam
conversando sobre o livro Oliver Twist, de Charles Dickens, e o tio explica‐
ra as técnicas usadas pelo personagem conhecido como Artful Dodger, in‐
clusive fazendo uma rápida demonstração ao sobrinho. Apenas muito tem‐
po mais tarde, Alex viria a descobrir que tudo aquilo era outro aspecto de
seu treinamento, que, durante todo o tempo, o tio estava secretamente trans‐
formando-o em algum coisa que o jovem nunca quis ser.
Mas o que aprendera seria útil agora.
Alex estava perto da ponte. Podia ver os homens musculosos em seus
uniformes de segurança verificando os convites: cartões prateados com a lo‐
gomarca da Gameslayer estampada em negro. Havia uma aglomeração na‐
tural, conforme a multidão chegava ao gargalo da entrada e se organizava
em uma fila única para atravessar a ponte. Alex relanceou os olhos uma úl‐
tima vez para Jack. Ela estava pronta.
O garoto parou e berrou:
— Alguém roubou meu ingresso!
Mesmo com a música ressoando, o grito foi alto o bastante para alcançar
as pessoas que estavam próximas. Era um clássico truque dos batedores de
carteira. Ninguém se importou com ele, mas subitamente todos estavam
preocupados com seus próprios ingressos. Alex viu um homem abrir o pale‐
tó e procurar dentro do bolso interno. Próximo a ele, uma mulher abriu e fe‐
chou rapidamente a bolsa de mão. Várias outras pessoas pegaram seus in‐
gressos e os seguraram com força. Um homem gorducho, de barba, levou a
mão ao bolso de trás da calça jeans. Alex sorriu. Agora ele sabia onde esta‐
vam os ingressos.
O garoto fez um sinal para Jack. O homem gorducho, de barba, era o al‐
vo escolhido. Estava no lugar perfeito, apenas alguns passos à frente de
Alex. E a ponta de seu ingresso encontrava-se inclusive visível, um pouco
para fora do bolso traseiro. Jack se responsabilizaria pela parte de distrair o
homem enquanto Alex já avançava. Estava tudo preparado.
A jovem se adiantou e fingiu reconhecer o homem de barba.
— Harry! — ela exclamou, e jogou os braços ao redor do pescoço dele.
— Eu não sou... — ele começou a dizer.
Nesse exato momento, Alex deu dois passos adiante, desviou de uma
mulher que reconhecera vagamente de uma série de televisão, pegou o in‐
gresso do bolso do homem e guardou-o rapidamente dentro de seu próprio
casaco, mantendo-o no lugar com a lateral do braço. Toda a ação levou me‐
nos de três segundos, e Alex nem sequer precisou ser especialmente cuida‐
doso. A arte de bater carteiras era assim, requeria organização e talento. O
alvo estava distraído. Toda a sua atenção estava voltada para Jack, que ain‐
da o abraçava. Segure alguém pelo braço, e a pessoa não vai perceber se, ao
mesmo tempo, você tocar sua perna. Fora isso que Ian Rider ensinara a
Alex tantos anos atrás.
— Você não se lembra de mim? — perguntou Jack. — Nós nos conhece‐
mos no Savoy!
— Não, sinto muito, mas você está falando com a pessoa errada.
Alex já se adiantava, a caminho da ponte. Em poucos momentos o alvo
tentaria pegar o ingresso e, quando percebesse que não estava mais com ele,
mesmo se segurasse Jack e a acusasse, não haveria evidências. Alex e o in‐
gresso já teriam desaparecido.
O garoto mostrou o ingresso ao segurança e subiu na ponte. Uma parte
dele se sentia mal pelo que fizera e esperava que o homem de barba conse‐
guisse entrar. Praguejou baixinho contra Damian Cray, por transformá-lo
em um ladrão. Mas sabia que, a partir do momento em que Cray atendera
ao telefonema que Alex fizera do Sul da França, não havia mais volta.
Ele atravessou a ponte e entregou o ingresso do outro lado. À sua frente
havia uma entrada triangular. Alex seguiu adiante e entrou no domo: uma
área enorme, equipada com iluminação moderna e com um palco no qual se
erguia uma tela de plasma gigantesca com as letras CST. Já havia cerca de
500 convidados espalhados na frente da tela, bebendo champanhe e comen‐
do canapés. Garçons circulavam com garrafas e bandejas. Uma sensação de
euforia parecia dominar o espaço.
A música parou. A luz mudou, e a tela ficou branca. Então, ouviu-se um
murmúrio baixo e nuvens de gelo seco começaram a se erguer do palco.
Uma única palavra — GAMESLAYER — apareceu na tela, e o burburinho
aumentou. As letras que formavam a palavra Gameslayer se quebraram e
deram espaço para um personagem animado, um guerreiro ninja, vestido de
negro da cabeça aos pés, pendurado na tela como uma versão menor do Ho‐
mem Aranha. O burburinho agora era ensurdecedor como uma ventania ru‐
gindo no deserto, com uma orquestra atrás. Ventiladores escondidos aparen‐
temente tinham sido ligados, porque um vento de verdade subitamente co‐
meçou a soprar pela cúpula, afastando a fumaça e revelando Damian Cray
(usando um terno branco, com uma gravata larga listrada de rosa e prata)
parado sozinho sobre o palco, sua imagem aumentada várias vezes na tela
atrás.
Aplaudindo, o público se moveu na direção dele. Cray ergueu a mão para
pedir silêncio.
— Sejam bem-vindos, sejam bem-vindos!
Alex se pegou fazendo como as outras pessoas e se aproximando do pal‐
co. Queria ficar o mais perto possível de Cray. Já enfrentava aquela estranha
sensação de estar no mesmo lugar que um homem que conhecera toda a sua
vida... mas um homem que não o conhecia. Na vida real, Damian Cray era
menor do que parecia nas fotos. Esse foi o primeiro pensamento de Alex.
No entanto, o homem estava na lista das principais celebridades do mundo
há 30 anos. Sua presença era poderosa, e ele irradiava confiança e poder.
— Hoje é o dia em que vou lançar o Gameslayer, meu videogame —
continuou Cray. — Gostaria de agradecer a todos por terem vindo. Mas se
os meus rivais... produtores de videogames estiverem aqui, receio ter más
notícias para vocês — ele fez uma pausa e sorriu. — Vocês são parte do
passado.
A plateia riu e aplaudiu. Até mesmo Alex se pegou sorrindo. Cray tinha
um jeito de falar que fazia as pessoas se sentirem incluídas, como se ele co‐
nhecesse cada um na multidão.
— O Gameslayer oferece gráficos com um nível de qualidade e de deta‐
lhes que não há igual em nenhum outro console do planeta — continuou. —
Isso permite que se criem mundos, personagens e simulações físicas muito
complexas em tempo real, graças ao poder do microprocessador que é, em
uma palavra, colossal. Outros consoles criam bonecos de plástico ou perso‐
nagens que parecem desenhos recortados. Com Gameslayer, cabelos, olhos,
tons de pele, água, madeira, metal e fumaça, tudo isso parece de verdade.
Obedecemos às regras da gravidade e da fricção. Mais do que isso, cons‐
truímos algo dentro do sistema que chamamos de “síntese da dor”. O que
isso significa? Vocês vão descobrir em um minuto.
Ele fez outra pausa, e o público voltou a aplaudir.
— Antes que eu continue a demonstração, imagino que alguns dos jorna‐
listas entre vocês devem ter perguntas.
Um homem que estava bem na frente levantou a mão.
— Quantos jogos você vai lançar esse ano?
— Nesse momento, só temos esse único jogo — respondeu Cray. — Mas
teremos mais doze nas lojas até o Natal.
— Como se chama o primeiro jogo? — alguém perguntou.
— Serpente Emplumada.
— É um jogo de tiro? — perguntou uma mulher.
— Bem, sim. É um jogo de espionagem — admitiu o astro.
— Portanto envolve tiros?
— Sim.
A mulher sorriu, mas sem humor. Tinha cerca de 40 anos, cabelos grisa‐
lhos e uma expressão severa no rosto.
— Você é conhecido por repudiar a violência — ela insistiu. — Então,
como justifica vender jogos violentos para as crianças?
Uma onda de desconforto se espalhou pela plateia. A mulher devia ser
jornalista, mas por algum motivo parecia errado questionar Cray daquela
maneira. Principalmente ali, bebendo do champanhe dele e comendo a co‐
mida que ele oferecia.
O astro, no entanto, não pareceu ofendido.
— É uma boa pergunta — ele respondeu em uma voz tranquila e melódi‐
ca. — E vou lhe dizer. Quando começamos a criar o Gameslayer, chegamos
a desenvolver um jogo no qual o herói precisava recolher flores de cores va‐
riadas de um jardim e arrumá-las em vasos. Também havia coelhinhos e
sanduíches de ovos. Mas sabe de uma coisa? Nossa equipe de pesquisa des‐
cobriu que os adolescentes de hoje não querem jogar isso. Pode imaginar
uma coisa dessas? Disseram para mim que não venderíamos uma única có‐
pia...
Todos caíram na gargalhada. Agora era a jornalista quem parecia cons‐
trangida.
Cray voltou a erguer a mão.
— Na verdade, você fez uma boa observação — ele continuou. — Tem
razão, eu odeio violência. Mas violência real... guerras. Mas, sabe, as crian‐
ças modernas guardam muita agressividade dentro de si, essa é a verdade.
Acho que deve ser próprio da natureza humana. E acabei chegando à con‐
clusão de que é melhor para elas descarregarem essa agressividade jogando
games inofensivos, como o meu, e não brigando na rua.
— Mas, ainda assim, seus jogos encorajam a violência! — insistiu a mu‐
lher.
Damian Cray franziu o cenho e retrucou:
— Acho que já respondi à sua pergunta, portanto talvez devesse parar de
questionar a minha resposta.
A frase foi saudada com mais aplausos, e Cray esperou até que a multi‐
dão ficasse novamente em silêncio.
— Mas agora chega de conversa — disse. — Quero que conheçam o Ga‐
meslayer, e a melhor maneira de conhecê-lo é jogando. Eu me pergunto se
haveria algum adolescente na plateia, embora agora que pensei nisso, acho
que não convidei...
— Há um aqui! — gritou alguém, e Alex se sentiu sendo empurrado para
a frente.
De repente, todos o estavam encarando, e o próprio Cray o olhava do
palco.
— Não... — Alex começou a protestar.
Mas a plateia já aplaudia, estimulando-o a seguir em frente. Um corredor
se abriu diante dele. Alex cambaleou para a frente e, antes que se desse con‐
ta, já subia no palco. O salão pareceu se inclinar. Um holofote girava, dei‐
xando-o zonzo. E pronto.
Alex se viu parado no palco, com Damian Cray.
7
SERPENTE EMPLUMADA

AQUELA ERA A ÚLTIMA COISA que Alex teria esperado.


Ele estava cara a cara com o homem que — se estivesse certo em suas
suspeitas — havia ordenado a morte do pai de Sabina. Mas ele estaria, mes‐
mo, certo? Pela primeira vez, Alex pôde examinar Cray de perto. Era uma
experiência estranhamente desconcertante.
O astro tinha um dos rostos mais famosos do mundo. Alex já o vira em
capas de CDs, em pôsteres, em jornais e revistas, na televisão... até mesmo
estampando caixas de cereal. No entanto, o rosto que o garoto tinha agora
diante de si era decepcionante. Parecia menos real do que todas as imagens
que vira anteriormente.
Cray tinha uma aparência surpreendentemente jovem para alguém já na
casa dos 50 anos, mas havia alguma coisa no brilho e na rigidez da pele que
sugeria cirurgias plásticas. E certamente os cabelos bem cuidados e muito
negros eram tingidos. Até mesmo os olhos verdes brilhantes pareciam, de
certa forma, sem vida. Cray era um homem muito baixo. Alex se pegou
pensando em um boneco de alguma loja de brinquedos. Era isso o que
aquele homem lembrava. Sua posição como superastro pop e seus milhões
de dólares o haviam transformado em uma réplica plástica de si mesmo.
Ainda assim...
Cray o recebera no palco e agora sorria para o garoto como se fossem ve‐
lhos amigos. Ele era um cantor. E, como deixara claro, era contra a violên‐
cia. O homem queria salvar o mundo, não destruí-lo. O MI6 havia reunido
informações a seu respeito, mas não encontrou nada relevante. Alex estava
ali por causa de uma voz, por causa de algumas poucas palavras ditas no
outro extremo de uma linha telefônica. E já começava a desejar não ter vin‐
do.
Parecia que os dois estavam parados há décadas sobre o palco, com cen‐
tenas de pessoas esperando no público para ver a demonstração. Na verda‐
de, apenas alguns segundos haviam se passado. Então Cray estendeu a mão.
— Qual é o seu nome? — perguntou.
— Alex Rider.
— Bem, é um prazer conhecê-lo, Alex Rider. Sou Damian Cray.
A multidão riu enquanto os dois apertavam as mãos. Alex não pôde dei‐
xar de pensar que milhões de pessoas em todo o mundo dariam qualquer
coisa para estar em seu lugar agora.
— Quantos anos você tem, Alex? — Cray quis saber.
— 14.
— Fico muito grato por você ter vindo. Obrigado por concordar em aju‐
dar.
As palavras foram amplificadas por toda a cúpula. Pelo canto dos olhos,
Alex percebeu que sua própria imagem se juntara à de Cray na tela gigante.
— Temos muita sorte por realmente haver um adolescente aqui hoje —
continuou o astro, dirigindo-se à plateia. — Então vamos ver como Alex se
sai com o primeiro nível do Gameslayer I: Serpente Emplumada.
Enquanto Damian Cray falava, três técnicos subiram ao palco, trazendo
um monitor de televisão, um console de videogame, uma mesa e uma cadei‐
ra. Alex percebeu que iriam pedir para que ele jogasse o game diante da
plateia — e seu progresso seria acompanhado na tela de plasma.
— Serpente Emplumada toma como base a civilização asteca — explicou
Cray aos presentes. — Os Astecas chegaram ao México em 1195, mas há
quem alegue que, verdade, esse povo veio de outro planeta. É nesse planeta
que Alex está prestes a entrar. Sua missão é descobrir os quatro sóis desapa‐
recidos. Mas primeiro ele deve entrar no templo de Tlaloc, lutar para abrir
caminho através de cinco câmaras, e então se jogar na piscina da chama sa‐
grada. Isso vai levá-lo ao próximo nível.
Um quarto técnico subiu ao palco, carregando uma webcam. Ele parou
diante de Alex, escaneou rapidamente o rosto do garoto, apertou um botão
na lateral da câmera e se afastou. Cray esperou até que o assistente se afas‐
tasse antes de continuar:
— Vocês devem estar curiosos em relação ao pequeno personagem vesti‐
do de negro que viram na tela — mais uma vez, ele se mostrou íntimo da
plateia. — Seu nome é Omni, e ele será o herói de todos os jogos Games‐
layer. Vocês podem estar achando nosso personagem um pouco sem graça e
não muito criativo. Mas Omni representa todo garoto e toda garota na Ingla‐
terra. Representa cada criança do mundo. E agora vou mostrar a vocês o
porquê!
A tela ficou branca, e logo explodiu em um redemoinho digital de cores.
Então uma fanfarra ensurdecedora começou a tocar — não com trombetas,
mas com algum equivalente eletrônico — e apareceram os portões de um
templo com um enorme rosto asteca entalhado em madeira. Alex imediata‐
mente percebeu que os detalhes gráficos do Gameslayer eram melhores do
que qualquer coisa que ele já vira, mas, um instante mais tarde, a plateia
ofegou, surpresa, e ele entendeu perfeitamente o motivo. Um garoto veio
andando pela tela e parou diante dos portões, esperando o comando do joga‐
dor. O garoto era Omni. Mas ele estava diferente. Agora usava exatamente
as mesmas roupas de Alex. Ele se parecia com Alex. Mais do que isso, era
Alex, desde os olhos castanhos até a mecha de cabelos louros caindo na tes‐
ta.
O salão explodiu em aplausos. Alex viu jornalistas escrevendo apressa‐
dos em seus blocos de notas ou falando rapidamente aos telefones celulares,
fazendo de tudo para serem os primeiros a divulgar esse incrível furo. A co‐
mida e o champanhe haviam sido esquecidos. A tecnologia de Cray criara
um avatar, um sósia eletrônico do garoto, o que tornava possível que qual‐
quer jogador não apenas se divertisse com o game, como também se tornas‐
se parte dele. Naquele momento, Alex percebeu que o Gameslayer seria um
sucesso de vendas em todo o mundo. Cray lucraria milhões.
E 20% do lucro iriam para a caridade, ele lembrou a si mesmo.
Esse homem poderia, mesmo, ser o inimigo?
Cray esperou até que todos se acalmassem, e então se virou para Alex.
— Está na hora de jogar — anunciou.
O jovem se sentou diante do monitor de TV que os técnicos haviam ins‐
talado. Pegou o controle e o pressionou com o polegar esquerdo. Na tela à
sua frente e na tela gigante de plasma, seu “outro eu” caminhou para a direi‐
ta. Parou e se virou para o outro lado. O controle era muito, muito sensível.
Alex se sentia quase como um deus asteca, em total controle de seu eu mor‐
tal.
— Não se preocupe se for morto de cara — disse Cray. — O console é
mais rápido do que qualquer outro no mercado e pode levar algum tempo
para você se acostumar a ele. Mas estamos todos do seu lado, Alex. Então...
vamos jogar Serpente Emplumada!
Os portões do templo se abriram.
O garoto pressionou para baixo, e, na tela, seu avatar seguiu em frente e
entrou em um ambiente de jogo que era estranho, bizarro e brilhantemente
realizado. O templo era uma fusão de arte primitiva e ficção científica, com
suas colunas muito altas, luzes cintilantes, hieróglifos complexos e estátuas
astecas agachadas. Mas o solo era feito de prata, não de pedra. Estranhas es‐
cadas de metal e corredores serpenteavam ao redor da área do templo. Lu‐
zes elétricas piscavam atrás de janelas fortemente gradeadas. Câmeras de
um circuito fechado acompanhavam cada movimento do personagem.
— Para começar, você precisa encontrar duas armas na primeira câmara
— aconselhou Cray, inclinado sobre o ombro de Alex. — Pode precisar de‐
las mais tarde.
A primeira câmara era enorme, tinha uma música de órgão tocando ao
fundo e vitrais mostrando campos de milho, círculos de colheita e espaço‐
naves pairando no ar. Alex encontrou a primeira arma com facilidade. Uma
espada estava pendurada no alto de uma parede. Mas o garoto logo perce‐
beu que havia armadilhas em todos os cantos. Uma parte da parede ruiu
conforme ele subia, e, quando encostou na espada, um míssil surgiu do na‐
da, mirando o avatar. O míssil era um bumerangue duplo, com lâminas afia‐
das nas extremidades, girando à velocidade da luz. Alex sabia que, se fosse
atingido, seria cortado ao meio.
Apertou o controle com força, usando os dois polegares, e sua miniatura
se agachou. O bumerangue passou raspando. No entanto, uma das lâminas
acabou atingindo o avatar no braço. O público ofegou. Um fiozinho de san‐
gue apareceu na manga do personagem, e seu rosto — o rosto de Alex — es‐
tava distorcido, mostrando dor. A experiência foi tão realista que o garoto
quase sentiu a necessidade de examinar seu próprio braço, seu braço real.
Precisou lembrar a si mesmo que apenas o avatar fora ferido.
— “Síntese da dor”! — Cray repetiu as palavras, sua voz ecoando pelo
Pleasure Dome. — No mundo do Gameslayer, compartilharemos todas as
emoções do herói. E, se o jogador morrer, a unidade de processamento cen‐
tral vai garantir que sintamos a sua morte.
Alex desceu da parede e começou a procurar pela segunda arma. O pe‐
queno ferimento já estava se curando, o sangue escorria lentamente. O garo‐
to se esquivou quando outro bumerangue passou raspando por seu ombro,
mas ainda não tinha conseguido encontrar o que procurava.
— Tente olhar atrás da hera — sugeriu Cray, sussurrando alto.
A plateia sorriu, achando divertido que Alex precisasse de ajuda ainda no
início do jogo.
Havia um conjunto de arco e flechas escondidos em uma alcova no canto
da parede. No entanto, Cray não havia contado a Alex que a hera cobrindo a
alcova era eletrificada com cerca de 10 mil volts de potência. Mas o garoto
logo descobriu. No instante em que o avatar tocou a planta, houve um lam‐
pejo azul, e o personagem foi jogado para trás, gritando, os olhos arregala‐
dos e fixos. O avatar não fora morto, mas estava seriamente ferido.
Cray deu um tapinha no ombro de Alex e aconselhou.
— Você vai ter que ser mais cuidadoso.
Um murmúrio de empolgação se elevou da plateia. Eles nunca haviam
visto nada parecido antes.
E foi naquele momento que Alex chegou a uma conclusão. De repente, o
Serviço Secreto Britânico, Yassen, Saint-Pierre... tudo isso foi esquecido.
Cray o enganara ao induzi-lo a tocar na hera. O homem o machucara de
propósito. É claro que era só um jogo, apenas o avatar havia se ferido, mas
a humilhação quem sentiu foi ele, Alex. Agora, o garoto estava determinado
a levar a melhor sobre a Serpente Emplumada. Ele não sairia derrotado.
Não compartilharia a sensação de sua morte com ninguém.
Com raiva, pegou o arco e as flechas e guiou o avatar para a frente, mais
para dentro do mundo asteca.
A segunda câmara consistia em um enorme buraco no chão. Na verdade,
era um poço com quase 50 metros de profundidade e colunas estreitas se es‐
tendendo até o topo. A única maneira de passar de um lado para o outro era
pular de uma coluna para a seguinte. Se ele pisasse em falso ou se desequi‐
librasse, despencaria e morreria. Para tornar as coisas mais difíceis, chovia
dentro da câmara, tornando as superfícies escorregadias. A chuva em si era
extraordinária. Como Cray havia dito à plateia, a tecnologia de imagem do
Gameslayer permitia que cada gota fosse percebida individualmente. O ava‐
tar já estava ensopado, com as roupas coladas ao corpo e os cabelos pingan‐
do.
De repente, ouviu-se um guinchado eletrônico. Uma criatura com as asas
de uma borboleta e o rosto e as patas de um dragão deu um voo rasante, ten‐
tando derrubar o avatar de cima da coluna. Alex ergueu o arco e atirou. Em
seguida, deu os últimos três pulos para o outro lado do poço.
— Você está indo muito bem — elogiou Damian Cray. — Mas me per‐
gunto se vai conseguir passar da terceira câmara.
Alex estava confiante. O jogo fora belamente projetado. A estrutura dos
mapas e os cenários eram perfeitos. O personagem Omni estava muito à
frente dos personagens das empresas rivais. Mesmo assim, aquilo era ape‐
nas outro jogo, semelhante àqueles que Alex jogara em outros videogames.
Ele sabia o que estava fazendo. Sabia que podia vencer.
O garoto passou com tranquilidade pela terceira câmara: um corredor al‐
to e estreito, com rostos entalhados nas paredes de cada lado. Uma chuva de
lanças e setas foi disparada das bocas de madeira, mas nenhuma delas con‐
seguiu chegar muito perto, porque o avatar seguiu correndo, abaixando-se e
ziguezagueando, sempre em frente. Um rio borbulhante serpenteava ao lon‐
go do corredor. O avatar pulou sobre ele como se fosse um riacho inofensi‐
vo.
Então ele chegou a uma selva dentro daquele espaço fechado. Era um ce‐
nário inacreditável, no qual a grande ameaça entre as árvores e trepadeiras
era uma enorme cobra robô coberta de espinhos. A aparência da criatura era
terrível. Alex nunca vira gráficos melhores do que aqueles. Mas o avatar
correu em círculos ao redor dela, deixando-a para trás tão rapidamente que
a plateia mal teve tempo de ver.
A expressão no rosto de Cray não se alterara, mas agora se inclinava so‐
bre Alex, os olhos fixos na tela e uma das mãos sobre o ombro do garoto.
Os nós de seus dedos estavam quase brancos.
— Você está fazendo com que o jogo pareça fácil demais — murmurou
Cray. Embora as palavras tenham sido ditas em um tom leve, era possível
perceber uma tensão crescente na voz.
Porque, agora, a plateia estava do lado de Alex. Milhões de dólares havi‐
am sido investidos no desenvolvimento do software do Serpente Empluma‐
da. Mas o jogo estava sendo vencido pelo primeiro adolescente que o joga‐
va. Quando o garoto se esquivou da segunda cobra robô, alguém na plateia
deu risada. A pressão da mão no ombro do garoto ficou mais forte.
Alex chegou à quinta câmara. Era um labirinto de espelhos, cheio de fu‐
maça e guardado por doze deuses astecas cobertos de penas, joias e másca‐
ras douradas. Mais uma vez, cada um deles era uma pequena obra de arte
gráfica. Todavia, embora eles atacassem o avatar, não conseguiam atingi-lo,
e, subitamente, mais pessoas na plateia estavam rindo e aplaudindo, torcen‐
do por Alex.
Mais um deus, esse com garras e cauda de crocodilo, colocou-se entre
Alex e a piscina de fogo que o levaria ao próximo nível. Tudo o que o garo‐
to precisava fazer era passar por mais aquele obstáculo. Foi quando Cray se
moveu. O homem foi cuidadoso. Ninguém veria o que estava prestes a
acontecer, e, se vissem, simplesmente pareceria que ele se deixara levar pe‐
la empolgação do jogo. Mas foi de propósito. A mão de Cray subitamente
desceu para o braço de Alex e o apertou com força, afastando a mão do ga‐
roto do controle. Por alguns poucos segundos, Alex perdeu o controle. Foi o
bastante. O deus asteca alcançou o avatar, e suas garras lhe rasgaram o
abdômen. O garoto chegou a ouvir a camisa sendo rasgada e quase sentiu a
dor quando o sangue jorrou. O avatar caiu de joelhos, então seu corpo se in‐
clinou para a frente e ficou imóvel. A tela congelou e as palavras “GAME
OVER” apareceram em letras vermelhas.
Toda a cúpula ficou em silêncio.
— Que pena, Alex — falou Cray. — Parece que não era assim tão fácil
quanto você imaginou.
Aplausos ensurdecedores subiram da plateia. Era difícil dizer se estavam
aplaudindo a tecnologia do jogo ou o modo como Alex jogara e quase ven‐
cera. Mas havia também uma sensação de desconforto pairando no ar. Tal‐
vez Serpente Emplumada fosse realista demais. Era realmente como se uma
parte de Alex tivesse morrido ali, na tela.
Alex virou-se para Cray. O garoto estava furioso. Só ele sabia que o ho‐
mem trapaceara. Mas o astro do mundo pop estava sorrindo novamente.
— Você se saiu muito bem — elogiou. — Eu pedi uma demonstração, e
você com certeza nos deu uma boa demonstração. Não se esqueça de deixar
seu endereço com um de meus assistentes. Vou lhe enviar um console Ga‐
meslayer de graça e todos os jogos iniciais.
Ao ouvir isso, a plateia aplaudiu com ainda mais entusiasmo. Por uma
segunda vez, o astro estendeu a mão. Alex hesitou por um momento antes
de apertá-la. De certo modo, não podia culpar Cray. O homem não podia
permitir que o Gameslayer se tornasse motivo de piada em sua primeira
apresentação. Ele tinha um investimento a proteger. Mesmo assim, Alex
não gostou nada do que tinha acabado de acontecer.
— Foi um prazer conhecê-lo, Alex. Muito bem.
O garoto desceu do palco. Houve mais demonstrações e mais apresenta‐
ções de membros da equipe de Cray. Então, o almoço foi servido. Mas Alex
não comeu. Já vira o bastante. Deixou Pleasure Dome, atravessou a ponte
de volta para King s Road.
Jack o estava esperando.
— E então, como foi? — ela perguntou.
Alex contou o que acontecera.
— Que trapaceiro! — Jack exclamou, furiosa. — Mas preste atenção,
Alex. Muitos homens ricos são maus perdedores, e Cray é um dos mais ri‐
cos. Você realmente acha que isso prova alguma coisa?
— Não sei, Jack.
Alex estava confuso. E teve que lembrar a si mesmo: uma grande parte
dos lucros do Gameslayer iria para a caridade. Uma soma enorme. E ele
ainda não tinha nenhuma prova. Apenas algumas poucas palavras ao telefo‐
ne. Seria isso o bastante para ligar Cray ao que acontecera em Saint-Pierre?
— Talvez devêssemos ir para Paris — ele propôs. — Foi lá que tudo isso
começou. Houve um encontro, e Edward Pleasure esteve presente. Ele esta‐
va trabalhando com um fotógrafo. Sabina me disse o nome do homem:
Marc Antonio.
— Com um nome como esse, deve ser fácil encontrá-lo — comentou
Jack. — E eu amo Paris.
— Ainda pode ser uma perda de tempo — Alex suspirou. — Não gostei
de Damian Cray. Mas agora que o conheci... — interrompeu. — Cray é um
artista. E também cria jogos de computador. Ele não parece o tipo de ho‐
mem que iria querer machucar alguém.
— É o seu palpite, Alex.
O garoto sacudiu a cabeça.
— Não sei, Jack. Simplesmente não sei.

O lançamento do Gameslayer foi um dos destaques dos telejornais naquela


noite. De acordo com as reportagens, toda a indústria ficara impactada com
a qualidade dos gráficos e com a capacidade de processamento do novo
console. O papel que Alex desempenhara na demonstração não foi mencio‐
nado. Mas outra notícia também teve destaque.
Aconteceu uma coisa que acabou embaçando o brilho de um dia que, se
não fosse por isso, teria sido perfeito. Ao que parecia, alguém havia morri‐
do. Uma imagem apareceu na tela, o rosto de uma mulher, e Alex a reco‐
nheceu de imediato. Era a jornalista que havia deixado Cray acuado ao lan‐
çar aquelas perguntas constrangedoras sobre violência. Um policial expli‐
cou que ela havia sido atropelada quando deixava o Hyde Park. O motorista
do carro não parou para prestar socorros.
8
RUE BRITANNIA

— VOCÊ TEM CONSCIÊNCIA, ALEX, de que Picasso já se sentou


exatamente onde você está sentado agora? — disse Jack. — Assim como
Chagall, Salvador Dali...
— Nessa mesa?
— Nesse café. Todos os grandes artistas vinham aqui.
— O que está tentando dizer, Jack?
— Bem, estava só imaginando se você não gostaria de esquecer toda es‐
sa coisa de aventura e vir comigo ao Museu Picasso. Paris é uma cidade tão
divertida! E sempre achei que ver belas obras de arte é muito mais agradá‐
vel do que tomar tiros.
— Ninguém está atirando em nós.
— Ainda.
Já se passara um dia desde que haviam chegado a Paris e se hospedado
em um hotel pequeno, no qual Jack já havia estado, de frente para a Cate‐
dral de Notre-Dame. A jovem conhecia bem a cidade, pois já havia passado
um ano estudando arte na Universidade de Sorbonne. Se não fosse pela
morte de Ian Rider e seu envolvimento com Alex, Jack poderia muito bem
estar morando ali.
Em uma coisa ela estava certa: descobrir onde Marc Antonio morava ti‐
nha sido bem fácil. Jack só precisou telefonar para três agências de fotógra‐
fos até descobrir qual delas representava Marc Antonio. É verdade que a jo‐
vem precisou lançar mão de todo o seu charme — além de seu francês en‐
ferrujado — para dar um jeito de conseguir o número de telefone do homem
com a recepcionista. No entanto, agendar um encontro com o fotógrafo es‐
tava sendo bem mais difícil.
Jack ligou várias vezes durante toda a manhã para o número que conse‐
guira, até que alguém finalmente atendeu. Era uma voz masculina. Não, não
era Marc Antonio. Sim, aquela era a casa de Marc Antonio, mas o homem
não tinha ideia de onde estava o fotógrafo. A voz era desconfiada. Alex ou‐
vira tudo, pois permaneceu com o ouvido colado ao fone enquanto Jack fa‐
lava. No fim, ele mesmo resolveu falar:
— Escute — o francês do garoto era quase tão bom quanto o de Jack,
afinal, ele começara a aprender quando tinha 3 anos de idade. — Meu nome
é Alex Rider. Sou amigo de Edward Pleasure, um jornalista inglês...
— Sei quem ele é.
— Você sabe o que aconteceu com Edward?
Uma pausa.
— Continue...
— Preciso falar com Marc Antonio. Tenho algumas informações impor‐
tantes — Alex pensou por um instante. Deveria dizer àquele homem o que
sabia? — É sobre Damian Cray.
O nome pareceu surtir efeito. Houve outra pausa, mais longa dessa vez.
Então...
— Venha a La Palette. Há um café na rue de Seine. Eu o encontrarei lá às
13 horas.
Alex ouviu um clique. O homem havia desligado.
Agora eram 13hl0. La Palette era um café pequeno e agitado, cercado
por galerias de arte. Ficava em uma esquina, diante de uma praça. Garçons
com longos aventais iam e vinham carregando bandejas com drinques bem
acima das cabeças. O lugar era apertado, mas Alex e Jack conseguiram uma
mesa bem no canto, onde poderiam ter um pouco mais de privacidade. Jack
bebia uma cerveja e Alex pedira um suco de frutas muito vermelho — um
sirop degrenadine — com gelo. Era sua bebida favorita quando estava na
França.
O garoto já começava a se perguntar se o homem com quem falara no te‐
lefone realmente apareceria. Ou será que ele já estava ali? Como iriam se
encontrar no meio daquela multidão? Então Alex notou um motoqueiro sen‐
tado em uma Piaggio 125cc em mau estado, do outro lado da rua. Era um
homem jovem, com uma jaqueta de couro, cabelos negros encaracolados e a
barba por fazer. Ele havia estacionado a moto há alguns minutos, mas não
desceu, como se estivesse à espera de alguém. Alex o encarou, e houve um
lampejo de reconhecimento mútuo. O rapaz pareceu confuso, mas desceu
da moto e se aproximou, caminhando com cuidado, como se tivesse medo
de pisar em falso.
— Você é Alex Rider? — perguntou em um inglês com sotaque atraente,
como um ator em um filme.
— Sim.
— Eu não estava esperando encontrar uma criança.
— Que diferença isso faz? — questionou Jack, vindo em defesa de Alex.
— Você é Marc Antonio?
— Não. Meu nome é Robert Guppy.
— Você sabe onde ele está?
— Marc me pediu para levá-los até ele — Guppy relanceou o olhar para
a Piaggio. — Mas só tenho lugar para um.
— Bem, pode esquecer. Não vou deixar Alex ir sozinho.
— Não tem problema, Jack — O garoto rebateu, sorrindo para a gover‐
nanta — Por fim, parece que você vai ter que visitar o Museu Picasso.
Jack suspirou.
— Está bem... — ela concordou. — Mas se cuide.
Robert dirigiu a moto por Paris como alguém que conhecia bem a cidade
— ou que desejava morrer nela. Ele ziguezagueava pelo trânsito, ignorava
os semáforos vermelhos e atravessava os cruzamentos em alta velocidade,
fazendo com que os motoristas dos carros buzinassem indignados. Alex se
segurava com força para conseguir permanecer sobre a moto. O garoto não
tinha ideia de onde estavam indo, mas percebeu que havia uma razão para
justificar a direção perigosa de Guppy. Ele estava se certificando de que não
estavam sendo seguidos.
O motoqueiro diminuiu a velocidade quando chegaram do outro lado do
Sena, no extremo do bairro do Marais, perto do Forum des Halles. Alex re‐
conheceu o lugar. A última vez em que estivera ali fora sob o nome de Alex
Friend, acompanhado pela abominável sra. Stellenbosh, a caminho da Aca‐
demia Point Blanc. Agora eles pararam em uma rua com típicas casas pari‐
sienses — seis andares altos, portas de aparência sólida e janelas altas e en‐
vidraçadas. Alex notou a placa com o nome da via: rue Britannia. Não tinha
saída, e metade das casas parecia vazia e em ruínas. No entanto, as que fica‐
vam no final da rua estavam cercadas por andaimes, carriolas e betoneiras,
com uma calha de plástico para os entulhos. Entretanto, não havia operários
à vista.
Guppy desceu da moto e gesticulou para uma das portas.
— Por aqui — disse.
Então, relanceou o olhar pela rua uma última vez e acompanhou o garoto
para dentro.
A porta levava a um pátio interno com mobília antiga e uma confusão de
bicicletas enferrujadas em um canto. Alex seguiu Guppy, e os dois subiram
um curto lance de escadas e passaram por outra porta. O garoto se viu em
um salão grande, com o teto alto e paredes caiadas de branco, janelas em
ambos os lados e chão de madeira escura. Era um estúdio de fotografia. Ha‐
via telas, lâmpadas complicadas sobre suportes de metal e guarda-chuvas
prateados. Mas alguém também morava ali. De um lado havia uma cozinha
com uma pilha de latas e pratos sujos.
Robert Guppy fechou a porta, e um homem apareceu de trás de uma das
telas. Estava descalço, usava uma camiseta e calça jeans sem forma. Alex
imaginou que devia ter cerca de 50 anos. Era magro, tinha a barba por fazer
e cabelos grisalhos despenteados. Estranhamente, só tinha um olho (o outro
estava coberto por um tapa-olho). Um fotógrafo de um olho só?
O homem olhou para Alex com curiosidade, então falou com o amigo.
— Cèst lui qui a téléphoné?
— Oui.
— Você é Marc Antonio? — perguntou Alex.
— Sim. Você diz que é amigo de Edward Pleasure. Não sabia que
Edward andava com crianças.
— Conheço a filha dele. Estava hospedado com eles na França quando...
— Alex hesitou. — Você sabe o que aconteceu com ele?
— É claro que sei o que aconteceu com ele. Por que acha que estou me
escondendo aqui? — o fotógrafo examinou o garoto com desdém, usando
seu olho bom para avaliar o recém-chegado. — Você disse ao telefone que
poderia me contar algo sobre Damian Cray. Você o conhece?
— Eu o conheci há dois dias, em Londres...
— Cray já não está mais em Londres — foi Robert Guppy quem falou
agora, encostado na porta. — Ele tem uma fábrica de software nos arredo‐
res de Amsterdã. Em Sloterdijk. Chegou lá essa manhã.
— Como sabe?
— Estamos acompanhando de perto os passos do sr. Cray.
Alex se virou para Marc Antonio e falou:
— Precisa me contar o que você e Edward Pleasure descobriram sobre
Cray. Em que matéria estavam trabalhando? Qual foi o encontro secreto que
Pleasure teve aqui?
O fotógrafo pensou por um momento antes de abrir um sorriso torto,
mostrando os dentes manchados.
— Alex Rider — ele murmurou —, você é um garoto estranho. Diz que
tem informações para mim, mas vem até aqui e só faz perguntas. Você é
abusado. Mas gosto disso — Marc Antonio pegou um cigarro, um Gauloise,
e colocou-o na boca. Então acendeu-o e soprou uma espiral de fumaça azul
no ar. — Muito bem. Isso vai contra o meu bom senso, mas vou lhe contar o
que sei.
Havia dois bancos altos próximos à cozinha. Marc sentou-se em um de‐
les e convidou Alex a sentar-se no outro. Robert Guppy continuou perto da
porta.
— A matéria em que Ed estava trabalhando não tinha nada a ver com
Damian Cray — Marc Antonio começou a falar. — Pelo menos não no co‐
meço. Ed não estava interessado no mundo do entretenimento. Não. Ele es‐
tava trabalhando em algo muito mais importante... uma história sobre a
NSA. Sabe do que se trata? É a sigla da Agência Nacional de Segurança dos
Estados Unidos. Trata-se de uma organização envolvida em ações antiterro‐
rismo, de espionagem e de proteção da informação. A maior parte do traba‐
lho que realiza é altamente secreta. Desenvolvedores de códigos, violadores
de códigos. Espiões. — Ed se interessou por um homem chamado Charlie
Roper, um oficial de altíssimo nível da NSA. Conseguiu a informação, e
não sei como conseguiu, de que esse homem, Roper, havia se transformado
em um traidor. Ele estava com muitas dívidas. Era viciado...
— Em drogas? — perguntou Alex.
Marc Antonio negou com a cabeça.
— Jogo. Pode ser tão destrutivo quanto as drogas. Ed soube que Roper
estava em Paris e imaginou que tivesse vindo vender segredos para a China
ou, mais provavelmente, para a Coréia do Norte. Pleasure me encontrou há
pouco mais de uma semana. Nós costumávamos trabalhar juntos com
frequência. Ed cuidava das matérias, e eu, das fotos. Éramos uma equipe.
Mais do que isso, éramos amigos — Marc Antonio deu de ombros. — De
qualquer modo, descobrimos onde Roper estava e o seguimos quando saiu
do hotel. Não tínhamos ideia de com quem ele iria se encontrar, e, se você
tivesse me contado, eu não acreditaria.
O fotógrafo fez uma pausa e tragou o Gauloise. A ponta vermelha cinti‐
lava, a fumaça subia diante do olho bom.
— Roper foi almoçar em um restaurante chamado La Tour d’Argent. É
um dos mais caros de Paris. E estava com Damian Cray que, por sinal, pa‐
gou a conta. Nós vimos os dois juntos. O restaurante fica em um andar alto,
mas tem janelas de vidro com vista para a cidade. Tirei fotos dos dois com
uma lente telescópica. Cray deu um envelope a Roper. Acho que havia di‐
nheiro ali dentro e, se era isso, então era muito dinheiro, porque o pacote
era muito grosso.
— Espere um minuto — Alex o interrompeu. — O que um cantor pop
queria com alguém da NSA?
— Isso era exatamente o que Ed queria saber — retrucou Marc Antonio.
— Ele começou a fazer perguntas. Deve ter perguntado demais, já que a
próxima informação que tive foi a de que alguém havia tentado matá-lo em
Saint-Pierre. E, no mesmo dia, vieram para cima de mim. No meu caso, a
bomba estava no meu carro. Se eu tivesse ligado a ignição, não estaria fa‐
lando com você agora.
— E por que não ligou a ignição?
— Sou um homem cuidadoso. Percebi um fio — ele apagou o cigarro.
— Alguém havia invadido o meu apartamento. A maior parte do meu equi‐
pamento fora roubado, incluindo a minha câmera e todas as fotografias que
eu havia tirado no La Tour d’Argent. Não foi coincidência.
Marc fez uma pausa. Em seguida, continuou.
— Mas por que estou lhe contando tudo isso, Alex Rider? Agora é sua
vez de me contar o que sabe.
— Eu estava de férias em Saint-Pierre... — Alex começou a falar.
E não conseguiu ir além disso.
Um carro parou em algum lugar do lado de fora do prédio. Alex não o
ouvira se aproximar. Só percebeu quando o motor foi desligado. Robert
Guppy deu um passo à frente e ergueu a mão. Marc Antonio girou rapida‐
mente a cabeça. Houve um instante de silêncio, e Alex logo percebeu que
aquele era o tipo errado de silêncio. Era vazio. Derradeiro.
E então ouviu-se uma explosão de balas, e as janelas se estilhaçaram,
uma após a outra. O vidro caía em grandes cacos pelo chão. Robert Guppy
morreu na hora, caiu no chão com uma série de buracos vermelhos espalha‐
dos pelo peito. Uma lâmpada foi atingida e explodiu, blocos de gesso caíam
das paredes. Uma rajada de vento trouxe o som de homens atirando e de
passos atravessando o pátio.
Marc Antonio foi o primeiro a se recuperar. Como estava sentado na co‐
zinha, acabou ficando fora da mira e não foi atingido. Alex estava chocado,
mas não ferido.
— Por aqui! — gritou o fotógrafo.
Ele arrastou o garoto através do salão no instante em que a porta foi der‐
rubada, espalhando pedaços de madeira para todos os lados. Alex só teve
tempo de ver de relance um homem vestido de negro com uma metralhado‐
ra nos braços. Então, foi empurrado para trás das telas que tinha visto mais
cedo. Havia outra saída ali. Não era exatamente uma porta, mas um buraco
aberto na parede. Marc Antonio entrou naquele espaço, e Alex o seguiu.
— Para cima! — O fotógrafo fez com que o garoto passasse à sua frente.
— Esse é o único caminho!
Havia ali uma escada de madeira, que parecia não ser utilizada há muito
tempo. Era velha e estava coberta por poeira e pó de gesso. Alex começou a
subir... três andares, quatro, com Marc Antonio bem atrás dele. Havia uma
única porta em cada andar, mas Marc o incentivou a continuar. O garoto ou‐
viu o homem com a metralhadora, e alguém que o acompanhava. Os dois
seguiam Alex e o fotógrafo. Os assassinos estavam vindo atrás deles.
Quando chegou ao topo do prédio, viu outra porta em seu caminho. Gi‐
rou a maçaneta, e, nesse momento, houve outra rajada da metralhadora.
Marc gemeu, curvou o corpo e caiu para trás. Alex logo viu que o fotógrafo
estava morto. Por sorte, o garoto conseguira abrir a porta. Passou por ela,
esperando sentir as balas atingirem seus ombros. Mas Marc Antonio o sal‐
vara ao cair entre Alex e seus perseguidores. O garoto chegou ao telhado do
prédio e fechou a porta com força, chutando-a com o calcanhar.
Ele se viu diante de um cenário de claraboias, chaminés, caixas-d agua e
antenas de TV. Os telhados percorriam toda a extensão da rue Britannia,
com muros baixos e tubos grossos separando as várias casas. O que Marc
Antonio tinha em mente quando decidiu subir até ali? Alex estava a seis an‐
dares do chão. Onde era a saída de incêndio? Havia uma escada levando pa‐
ra baixo?
O jovem não teve tempo de descobrir. A porta foi aberta com força, e os
dois homens passaram por ela, agora se movendo bem devagar, cientes de
que o garoto estava acuado. Em algum lugar em seu íntimo, Alex ouviu
uma voz sussurrar: Por que não me deixam em paz? Afinal, aqueles assassi‐
nos estavam ali por causa de Marc Antonio e não por causa dele. Alex não
tinha nada a ver com aquela história. Mas sabia que os homens estavam se‐
guindo ordens: matem o fotógrafo e todos os que estiverem com ele. Não
importava quem Alex realmente era — agora ele não passava de parte do
pacote.
Então se lembrou de algo que vira quando entrara na rue Britannia e, de
repente, começou a correr, sem nem mesmo saber se estava indo na direção
certa. Ouviu o matraquear da metralhadora e viu telhas negras se desinte‐
grarem a centímetros dos seus pés. Mais uma rajada de balas. Alex sentiu
quando elas passaram bem perto de seu corpo e atingiram parte de uma cha‐
miné, que também se desintegrou, cobrindo-o de poeira. Ele pulou por cima
de uma meia parede. A beira do telhado estava cada vez mais próxima. O
homem atrás de Alex parou, achando que o garoto não tinha para onde ir.
Mas o jovem continuou a correr, até alcançar a beirada e se lançar no ar.
O homem com a metralhadora deve ter imaginado que Alex pulara para a
morte certa na rua, seis andares abaixo. No entanto, o garoto tinha visto
aqueles equipamentos de construção — andaimes, betoneiras e também
uma calha laranja, própria para carregar os entulhos dos diferentes andares
até a rua.
A calha na realidade consistia em uma série de baldes, todos sem fundo,
unidos como um daqueles tubos que levam para dentro das piscinas. Alex
não tinha como avaliar seu pulo... mas teve sorte. Simplesmente caiu por
um ou dois segundos, braços e pernas abertos. Então viu a entrada da calha
e conseguiu esticar o corpo naquela direção. Primeiro, estendeu as pernas;
depois o quadril e os ombros. O garoto entrou perfeitamente na calha. O tú‐
nel estava cheio de pó de cimento, e Alex não conseguiu enxergar mais na‐
da. Só conseguia imaginar as paredes alaranjadas passando em alta veloci‐
dade ao seu lado. A parte de trás de sua cabeça, suas coxas e seus ombros
batiam sem parar, com força, no metal. Sem conseguir respirar, percebeu
aterrorizado que, se a saída estivesse bloqueada, ele quebraria cada osso de
seu corpo.
O tubo tinha a forma de um J esticado. Quando Alex alcançou o fundo,
sentiu que sua velocidade diminuía. De repente, foi ejetado para a luz do
dia. Havia um monte de areia perto de uma das betoneiras, e o garoto se
abaixou ali. Todo o ar pareceu ser arrancado de seus pulmões. Sua boca lo‐
go se encheu de areia e cimento. Um carro estava estacionado na entrada do
estúdio de Marc Antonio, mas não havia ninguém à vista.
Alex cuspiu e passou as costas da mão pelos lábios. Então se levantou e
se afastou, mancando. Marc Antonio estava morto, mas dera a Alex outra
peça do quebra-cabeça. E o garoto sabia aonde precisava ir agora. Sloter‐
dijk. Em uma fábrica de software nos arredores de Amsterdã. A apenas al‐
gumas horas de trem de Paris..
Alex chegou ao final da rue Britannia e virou em uma esquina, andando
cada vez mais rápido. Estava ferido e imundo, mas tinha sorte por estar vi‐
vo. E agora só pensava em como iria explicar tudo aquilo para Jack.
9
DINHEIRO SUJO DE SANGUE

ALEX ESTAVA DEITADO DE BRUÇOS, observando os guardas que


examinavam o carro à espera. Ele segurava um par de binóculos Bausch &
Lomb com sistema de prismas, com grau de aumento de 30 vezes. Portanto,
embora estivesse a mais de cem metros de distância do portão principal,
conseguia ver tudo claramente... desde a placa do carro até o bigode do mo‐
torista.
O garoto já estava ali há mais de uma hora, deitado imóvel diante de al‐
guns pinheiros, escondido por uma fileira de arbustos. Vestia uma calça je‐
ans cinza, uma camiseta escura e uma jaqueta em estilo militar que compra‐
ra na mesma loja de artigos onde conseguira o binóculo. O tempo havia mu‐
dado novamente, e a tarde era chuvosa. Alex já estava ensopado e lamenta‐
va por não ter aceitado as garrafas térmicas com chocolate quente que Jack
lhe oferecera. Quando ela fizera a oferta, ele achara que a jovem o estava
tratando como criança. Porém, até mesmo o pessoal do Serviço Aéreo Espe‐
cial sabe da importância de se manter aquecido. Eles haviam ensinado isso
a Alex quando o treinaram.
Jack também viera para Amsterdã, e, mais uma vez, fora ela quem fizera
reservas no hotel, dessa vez em Herengracht, em uma das três instalações
para turistas no canal principal. Agora Jack estava lá, esperando no quarto
deles. É claro que ela queria acompanhar o garoto onde ele estava agora.
Depois do que aconteceu em Paris, a governanta estava mais preocupada do
que nunca. Mas Alex a persuadira de que duas pessoas teriam mais chance
de serem avistadas do que uma e de que os cabelos vermelhos dela dificil‐
mente os ajudariam. Jack concordou com relutância.
— Mas não deixe de voltar ao hotel antes de escurecer — pediu. — E, se
passar em uma loja de tulipas, talvez pudesse me trazer um buquê.
Agora, deitado no chão, Alex sorriu ao se lembrar do que Jack dissera.
Ele se ajeitou melhor, sentindo a grama úmida sob os cotovelos. E se per‐
guntou exatamente o que descobrira na última hora.
Estava no meio de uma estranha área industrial nos arredores de Amster‐
dã. Sloterdijk era uma cidade com várias fábricas, galpões e usinas de bene‐
ficiamento. A maior parte das construções era baixa, os prédios separados
uns dos outros por largas pistas asfaltadas, mas havia também alguns gru‐
pos de árvores e trechos gramados, como se alguém houvesse tentado —
sem conseguir — embelezar um pouco o lugar. Três moinhos se erguiam
atrás dos centros de operação do império tecnológico de Cray. No entanto,
não eram do tipo tradicional, daqueles que costumam aparecer nas fotos dos
cartões-postais. Esses moinhos eram pilares altos, modernos, de concreto
cinza, com três lâminas girando sem parar, cortando o ar. Eram enormes e
ameaçadores, como se fossem invasores de outro planeta.
O complexo industrial fazia Alex se lembrar de um acampamento mili‐
tar... ou talvez de uma prisão. Era rodeado por uma cerca dupla, a parte ex‐
terna encimada por arame farpado. Havia torres de vigia a intervalos de 50
metros, e guardas patrulhavam todo o perímetro. Sendo a Holanda um país
onde os policiais portam armas de fogo, Alex não ficou surpreso ao ver que
os seguranças também andavam armados.
Dentro do complexo, o garoto distinguiu oito ou nove prédios baixos e
retangulares, feitos de tijolos brancos, com tetos de plástico modernos. Vá‐
rias pessoas andavam por ali, algumas delas se deslocando em carros elétri‐
cos. Alex conseguia ouvir o zumbido dos motores. A fábrica tinha seu pró‐
prio centro de comunicações, com cinco enormes antenas parabólicas mon‐
tadas do lado de fora. Os outros prédios pareciam consistir em laboratórios,
escritórios e alojamentos.
Um dos prédios fora construído bem no meio de tudo: era uma estrutura
de vidro e aço, no formato de um cubo, com um design agressivamente mo‐
derno. Ali deveria ficar o principal centro de comando, pensou Alex. Talvez
ele encontrasse Damian Cray naquele prédio.
Mas como faria para entrar? Ele já estava examinando os portões havia
uma hora.
Um único caminho levava à entrada, com um semáforo em cada extremi‐
dade. Era um processo complicado. Quando um carro ou caminhão chega‐
va, tinha que parar no fim do caminho de entrada e esperar. Apenas quando
a luz do semáforo ficasse verde era permitido continuar até a guarita feita
de vidro e tijolos próxima ao portão. Ali, um guarda uniformizado pedia a
identidade do motorista, provavelmente para registrá-la em um computador.
Outros dois homens examinavam o veículo para garantir que não tivesse
passageiros. E isso ainda não era tudo. Havia uma câmera de segurança ins‐
talada bem acima da cerca, e Alex notou um trecho do que parecia um vidro
muito resistente encobrindo o chão do caminho de entrada. Quando os veí‐
culos paravam na guarita, ficavam bem em cima do vidro, e o garoto imagi‐
nou que deveria haver uma segunda câmera ali embaixo. Era impossível in‐
vadir o complexo. A Cray Software Technology não corria nenhum risco.
Vários caminhões haviam entrado no complexo durante o período em
que Alex observava. O garoto reconheceu a imagem do Omni com roupas
pretas pintado, em tamanho real, nas laterais dos veículos, como parte da lo‐
gomarca do Gameslayer. Imaginou se seria possível se esgueirar para dentro
de um dos caminhões, talvez enquanto estivesse esperando que o primeiro
semáforo abrisse. Mas o caminho de entrada era aberto demais. E, à noite,
sem dúvida seria iluminado por holofotes. De qualquer modo, quase com
certeza as portas do veículo estariam trancadas.
Pular as cercas tampouco era uma opção. O arame farpado não permiti‐
ria. E Alex duvidava que pudesse cavar um túnel para entrar. Será que con‐
seguiria se disfarçar e se misturar ao pessoal do turno da noite? Não. Nesse
caso, sua altura e sua idade jogavam contra ele. Talvez Jack conseguisse,
fingindo ser uma faxineira ou uma operária. Mas não havia nenhum modo
de ele conseguir convencer os guardas a deixarem-no entrar, ainda mais
sem falar uma palavra de holandês. A segurança era muito rígida.
Então Alex viu um modo de chegar ao lado de dentro. Bem diante de
seus olhos.
Outro caminhão havia parado, e, enquanto faziam algumas perguntas ao
motorista, os guardas revistavam a cabine. Será que Alex conseguiria? Ele
lembrou que sua bicicleta estava presa a um poste de luz, uns dois metros
mais abaixo no caminho. Antes de partirem da Inglaterra, leu o manual que
viera com ela e ficou impressionado com a quantidade de equipamentos que
Smithers fora capaz de disfarçar dentro e ao redor daquele objeto tão co‐
mum. Até mesmo os clipes para barra de calça — para que as vestes não se
prendessem na corrente — eram magnéticos! Alex observou enquanto o
portão deslizava e abria, e o caminhão entrava.
Sim. Daria certo. Ele teria que esperar até escurecer, mas ninguém des‐
confiaria. Apesar de tudo, o garoto se pegou subitamente sorrindo.
Ele só torcia para conseguir encontrar uma loja de fantasias em Amster‐
dã.
Às 21 horas já estava escuro, mas os holofotes da fábrica haviam sido ace‐
sos muito antes, transformando a área em uma confusão de branco e preto.
Os portões, o arame farpado, os guardas com suas armas... tudo aquilo po‐
dia ser visto a mais de um quilômetro de distância. Mas agora eles projeta‐
vam uma sombra que poderia servir de esconderijo para alguém com cora‐
gem suficiente para se aproximar.
Um único caminhão se aproximava do portão principal. O motorista era
holandês e vinha do porto de Rotterdam. Não tinha ideia do que estava car‐
regando e também não se importava. Desde o primeiro dia em que começa‐
ra a trabalhar para a Cray Software Technology, o homem percebeu que era
melhor não fazer perguntas. O primeiro dos dois semáforos estava verme‐
lho, e o motorista diminuiu a velocidade até parar. Não havia outros veícu‐
los à vista, e ele ficou aborrecido por ter que esperar, mas era melhor não
reclamar. De repente, ouviu o barulho de uma batida e olhou pela janela,
para o retrovisor lateral. Alguém estava tentando chamar a sua atenção?
Mas não havia ninguém, e logo depois a luz verde do semáforo se acendeu.
O homem passou a primeira marcha e voltou a andar.
Como de costume, dirigiu até a guarita e abaixou o vidro da janela. Ha‐
via um guarda parado do lado de fora, e o motorista passou sua identifica‐
ção para ele, um cartão plastificado com sua fotografia, seu nome e o núme‐
ro de seu registro como empregado. O motorista sabia que outros guardas
inspecionariam o caminhão. Às vezes, ele se perguntava por que eram tão
preocupados com segurança — afinal, só faziam jogos de computador e de
videogame. Mas já ouvira falar sobre sabotagem industrial, quando empre‐
sas roubavam segredos de outras. Então imaginou que todo aquele esquema
de segurança fazia sentido.
Dois guardas andavam ao redor do caminhão enquanto o motorista conti‐
nuava sentado em seu lugar, pensando na vida. Um terceiro segurança exa‐
minava as imagens transmitidas pela câmera abaixo do veículo. O caminhão
fora limpo recentemente. A palavra GAMESLAYER sobressaía na lateral,
com a imagem do Omni agachada perto dela. Um dos guardas estendeu a
mão e tentou abrir a porta traseira que estava como deveria estar: trancada.
Nesse meio tempo, o outro segurança espiou pela janela da cabine da frente.
Mas era óbvio que o motorista estava sozinho.
A operação de segurança era tranquila e realizada com zelo. As câmeras
não haviam mostrado ninguém escondido nem sob o caminhão, nem sobre
o veículo. A porta traseira estava trancada. O motorista fora checado. Um
dos guardas deu um sinal, e o portão foi aberto eletronicamente, deslizando
para os lados de modo a permitir a entrada do caminhão. O motorista sabia
onde ir sem que precisassem lhe dizer. Depois de rodar por 50 metros, des‐
viou da entrada principal e seguiu por um caminho mais estreito, que o le‐
vou a uma área de descarga. Havia cerca de 12 veículos estacionados ali e
depósitos em ambos os lados. O motorista desligou o motor, saiu e trancou
a porta. Ainda precisava lidar com a burocracia do transporte. Tinha que en‐
tregar as chaves e receberia um carimbo com a hora de sua chegada. Eles
descarregariam o caminhão no dia seguinte.
O homem se afastou. Nada se moveu. Não havia mais ninguém naquela
área.
Mas, se alguém tivesse passado por ali, acabaria vendo algo impressio‐
nante. Em uma das laterais do caminhão, a imagem vestida de preto do Om‐
ni virou a cabeça. Ao menos era isso que teria parecido. Mas, se a pessoa
olhasse mais de perto, perceberia que havia duas imagens no caminhão:
uma era a pintura; a outra era uma pessoa real, pendurada no painel de me‐
tal de um modo que parecia impossível, exatamente na mesma posição que
a pintura logo abaixo.
Alex Rider se deixou cair silenciosamente no chão. Os músculos de seus
braços e de suas pernas pareciam gritar, e ele pensou em quanto tempo mais
teria conseguido aguentar. Smithers havia mandado quatro clipes magnéti‐
cos para prender a barra da calça junto com a bicicleta, e Alex os usara para
se manter no lugar, colado ao caminhão: dois nas mãos e dois nos pés. Tirou
rapidamente a roupa preta de ninja que comprara naquela tarde em Amster‐
dã, enrolou-a e enfiou-a em uma cesta de lixo. O garoto estava totalmente
exposto aos guardas na hora em que o caminhão atravessou o portão, mas
os homens não haviam olhado muito de perto e, como já esperavam ver a
imagem do Omni perto da logomarca do Gameslayer, foi isso exatamente o
que enxergaram. Entretanto, ao menos daquela vez, estavam errados em
acreditar no que os olhos viam.
Alex deu uma olhada à sua volta. Ele podia ter conseguido entrar no
complexo, mas sua sorte não duraria para sempre. O garoto não duvidava
de que haveria mais guardas patrulhando, e também outras câmeras. O que
exatamente estava procurando? O mais estranho era que não tinha a mínima
ideia. Mas alguma coisa lhe dizia que, se Damian Cray exigia tamanho apa‐
rato de segurança, era porque tinha algo a esconder. É claro que ainda era
possível que Alex estivesse errado e que Cray fosse inocente. Era uma ideia
reconfortante, mas que se mostrava menos provável a cada segundo.
Ele seguiu pelo complexo, na direção do grande cubo que parecia ser o
coração do lugar. Ouviu um som agudo e se agachou nas sombras, perto de
um muro, enquanto um carro elétrico passava rapidamente com três passa‐
geiros e uma mulher de macacão azul no volante. O garoto percebeu que
havia atividade em algum lugar mais adiante. Uma área aberta, muito ilumi‐
nada, estendia-se na parte de trás de um dos galpões. De repente, uma voz
ecoou no ar, amplificada pelo sistema de alto-falantes. Era um homem fa‐
lando, mas em holandês. Alex não conseguiu entender uma única palavra.
Então se apressou, determinado a ver o que estava acontecendo.
O garoto chegou a uma viela estreita entre dois prédios e correu por toda
a sua extensão, grato pelas sombras nas paredes. Acabou chegando a uma
escada de incêndio em espiral, de metal, e entrou atrás dela, já sem fôlego.
Poderia se esconder ali. E, olhando por entre os degraus, teria uma visão
perfeita do que acontecia adiante.
Havia uma área ampla asfaltada, com prédios de escritórios de aço e vi‐
dro em todos os lados. O maior deles era o cubo que Alex vira de fora. Da‐
mian Cray estava na frente do prédio, conversando animadamente com um
homem de jaleco branco. Havia mais três homens logo atrás do astro. Mes‐
mo à distância, Cray era inconfundível. Era a pessoa mais baixa entre todas
as que estavam ali, e vestia outro terno de grife. Ele viera ver algum tipo de
demonstração. Cerca de meia dúzia de guardas esperava, espalhados pela
área asfaltada. A luz branca, muito forte, vinha de duas torres de metal que
o garoto não percebera antes.
Ao observar de seu esconderijo na escada de incêndio, Alex avistou um
avião de carga no meio da área asfaltada. O garoto precisou de alguns ins‐
tantes para aceitar o que estava vendo. Não havia como um avião aterrissar
ali. O trecho asfaltado tinha o tamanho exato para conter a aeronave e, até
onde podia enxergar, não havia pista de pouso dentro do complexo. O avião
provavelmente fora carregado até ali por um caminhão e montado dentro do
local. Mas o que estava fazendo ali? A aeronave parecia antiga. Tinha héli‐
ces em vez de turbinas, e asas altas, quase no topo do corpo principal. As
palavras MILLENNIUM AIR estavam pintadas em vermelho ao longo da
fuselagem e na cauda.
Cray consultou o relógio. Um minuto mais tarde, o alto-falante voltou a
soar, lançando outro anúncio em holandês. Todos pararam de falar e olha‐
ram para o avião. Alex arregalou os olhos. Havia fogo na cabine principal.
Ele podia ver as chamas atrás das janelas. Uma fumaça cinza começou a es‐
capar da fuselagem, e, de repente, as hélices pegaram fogo. As labaredas
pareceram se espalhar em segundos, sem controle, consumindo o motor e se
espalhando através da asa. O garoto esperou que alguém fizesse alguma
coisa. Se houvesse qualquer combustível na aeronave, certamente haveria
uma explosão.
Mas ninguém se mexeu. Cray acenou com a cabeça.
Tudo terminou tão rapidamente quanto começara. O homem de jaleco
branco falou em um radiotransmissor, e o fogo apagou. Foi extinto tão rapi‐
damente que, se Alex não tivesse visto com seus próprios olhos, seria inca‐
paz de acreditar naquilo. Eles não usaram água ou jatos de espuma. Tam‐
bém não havia marcas de queimado, nem fumaça.
Em um instante o avião estava em chamas; no seguinte já não estava
mais. Simples assim.
Cray e os três homens que estavam com ele passaram alguns segundos
conversando antes de se virarem e voltarem caminhando para o prédio em
forma de cubo. Os guardas no trecho asfaltado também se distanciaram. A
aeronave ficou onde estava. Alex se perguntava em que diabos havia se me‐
tido. Aquilo ali não tinha nada a ver com jogos de computador. E não fazia
sentido algum.
Mas pelo menos Alex vira Damian Cray.
O garoto esperou até que os guardas se afastassem, e então saiu de trás
da escada de incêndio. Deu a volta o mais rapidamente possível ao redor da
área asfaltada, mantendo-se sempre na sombra. Cray cometera um erro. Co‐
mo, em tese, era impossível invadir o complexo, ele acabara se preocupan‐
do menos com a segurança interna. Alex não viu nenhuma câmera, e os
guardas nas torres olhavam mais para fora do que para dentro. Por enquan‐
to, ele estava a salvo.
Então seguiu Cray para dentro do prédio e se viu atravessando um chão
de mármore branco dentro do que não era nada mais do que uma enorme
caixa de vidro. Acima, podia ver o céu noturno, com os três moinhos se agi‐
gantando a distância. Não havia nada dentro do prédio. Entretanto, existia
um único buraco redondo em um dos cantos do chão e uma escada que le‐
vava para baixo.
Alex ouviu vozes.
Desceu pé após pé as escadas que levavam diretamente a um grande sa‐
lão subterrâneo e se agachou no último degrau, escondendo-se atrás das
barras largas do corrimão. De lá, observou.
O salão era todo aberto, tinha o piso de mármore, e dele saíam corredo‐
res para várias direções. A arquitetura o fez pensar em uma abóbada dentro
de um banco ultramoderno. No entanto, os belos tapetes, a lareira, a mobília
italiana e o enorme e deslumbrante piano branco Bechstein poderiam ter
saído de um palácio. De um lado, havia uma bancada curva, com vários te‐
lefones e telas de computador. Toda a iluminação ficava no nível do chão, o
que dava ao local uma atmosfera bizarra e desconfortável, já que todas as
sombras pareciam ir para o lado errado. Um retrato de Damian Cray segu‐
rando um cachorro poodle branco cobria uma parede inteira.
O próprio astro estava sentado no sofá, bebericando um drinque amarelo
brilhante e segurando um palito de coquetel no qual havia uma cereja. Alex
viu quando Cray mordeu a fruta com seus dentes brancos perfeitos e a mas‐
tigou lentamente. Os três homens que antes estavam perto do avião agora
permaneciam com o astro, e, no mesmo instante, Alex se deu conta de que
estivera certo o tempo todo: Cray era realmente o centro daquela rede.
Um dos homens era Yassen Gregorovich. Usava calça jeans e camisa po‐
lo e estava sentado no banco do piano, com as pernas cruzadas. O segundo
homem estava parado perto de Yassen, recostado contra o instrumento mu‐
sical. Era mais velho, com cabelos grisalhos e um rosto flácido e cheio de
marcas. Usava um blazer azul com uma gravata listrada que o fazia parecer
um empregado de baixo escalão de algum banco ou de um clube. O homem
usava óculos grandes que se afundavam em seu rosto como se fossem feitos
de argila úmida. Parecia nervoso, e os olhos por trás das lentes redondas
piscavam sem parar. O terceiro homem era belo e tinha uma aparência ame‐
açadora — na casa dos 40 anos, com cabelos negros, olhos cinza e ossos do
maxilar quadrados e severos. Estava vestido esportivamente (com uma ja‐
queta de couro e uma camisa aberta no peito) e parecia muito seguro de si.
Cray falava com esse último homem.
— Estou muito grato, sr. Roper. Obrigado. Agora o Ataque à Águia pode
prosseguir dentro do cronograma.
Roper! Aquele era o homem com quem Cray se encontrara em Paris.
Alex teve a sensação de que um círculo se fechava. Esticou o pescoço para
ouvir o que os dois homens diziam.
— Ei... por favor, pode me chamar de Charlie — o homem falava com
sotaque americano. — E não há necessidade de me agradecer, Damian. Foi
um prazer fazer negócio com você.
— Na verdade, tenho algumas perguntas — murmurou Cray, e Alex o
viu pegar um objeto de uma mesa de centro diante do sofá. Era uma cápsula
metálica, mais ou menos do mesmo formato e tamanho de um telefone celu‐
lar. — Pelo que entendi, os “Gold Codes” mudam diariamente. Parece que o
pen drive atualmente está programado com códigos diários, mas se o Ata‐
que à Águia for acontecer daqui a dois dias...
— Simplesmente conecte-o. O pen drive se atualizará sozinho — expli‐
cou Roper. Ele tinha um sorriso fácil, preguiçoso. — Essa é a beleza da coi‐
sa. Primeiro nos infiltraremos nos sistemas de segurança. Então pegaremos
os novos códigos... é como tomar um doce de uma criança. No momento
em que tivermos os códigos, você os transmitirá de volta através do Milstar
e estará pronto. Seu único problema, como já lhe disse, é o detalhe do dedo
no botão.
— Bem, nós já resolvemos isso — afirmou Cray.
— Então já posso ir embora.
— Peço apenas mais alguns minutos de seu valioso tempo, sr. Roper...
Charlie... — pediu Cray, que deu mais um gole no coquetel, passou a língua
pelos lábios e apoiou o copo. — Como posso ter certeza de que o pen drive
realmente vai funcionar?
— Você tem a minha palavra quanto a isso — respondeu Roper. — E
com certeza está me pagando o bastante.
— É verdade. Meio milhão de dólares como adiantamento. E mais 2 mi‐
lhões agora. No entanto... — Cray fez uma pausa e cerrou os lábios. — Ain‐
da tenho uma pequena preocupação.
A perna de Alex estava dormente por ele ficar tanto tempo abaixado, ob‐
servando a cena da escada. Lentamente, o garoto esticou o corpo. Ele gosta‐
ria de conseguir entender melhor o que estava sendo dito. Sabia o que era
um pen drive. Mas quem ou o que era Milstar? E o que era o Ataque à
Águia?
— Qual é o problema? — Roper perguntou despreocupado.
— Temo que você seja o problema — os olhos verdes e redondos no ros‐
to infantil de Cray endureceram subitamente. — Você não é tão confiável
quanto imaginei que fosse. Quando foi a Paris, você estava sendo seguido.
— Isso não é verdade.
— Um jornalista inglês descobriu tudo a respeito de seu vício no jogo.
Ele e um fotógrafo o seguiram até o La Tour d’Argent — Cray ergueu a
mão para impedir que Roper o interrompesse. — Já cuidei dos dois, mas
você me decepcionou, sr. Roper. E me pergunto se posso confiar em você.
— Agora me escute, Damian — Roper falou com raiva. — Temos um
trato. Eu trabalhei aqui com seus técnicos, dei a eles as informações de que
precisavam para carregar o pen drive, e a essa altura minha parte nisso tudo
está encerrada. Como vai acessar a área VIP e como vai ativar o sistema, is‐
so é problema seu. Mas me deve 2 milhões de dólares, e esse jornalista, seja
ele quem for, não faz a menor diferença nisso.
— Dinheiro sujo de sangue — falou Cray.
— O quê?
— É assim que chamam o dinheiro pago a traidores.
— Não sou traidor! — rugiu Roper. — Eu precisava do dinheiro, só isso.
Não traí o meu país. Portanto, pare de falar assim, pague o que me deve e
me deixe sair daqui.
— É claro que vou pagar o que lhe devo — Cray sorriu. — Vai ter que
me perdoar, Charlie. Estava apenas pensando alto — ele fez um gesto, dei‐
xando a mão cair frouxamente para trás.
O americano relanceou o olhar ao redor e Alex viu que havia uma alcova
em um dos lados do salão. A reentrância tinha o formato de uma garrafa gi‐
gante, com uma parede curva atrás e uma porta curva de vidro na frente.
Dentro havia uma mesa e, sobre ela, uma pasta de couro.
— Seu dinheiro está ali — disse Cray.
— Obrigado.
Nem Yassen Gregorovich, nem o homem de óculos haviam pronunciado
sequer uma palavra durante todo esse tempo, mas ambos observavam aten‐
tamente enquanto o americano se aproximava da alcova. Havia algum tipo
de sensor na porta, já que ela se abriu automaticamente. Roper foi até a me‐
sa e segurou a pasta. Alex ouviu os cliques quando os dois fechos se abri‐
ram.
Então Roper se virou para os homens que o observavam e falou:
— Espero que essa não seja a sua ideia de uma piada. A pasta está vazia.
Cray sorriu de onde estava, no sofá.
— Não se preocupe — ele disse —, vou enchê-la.
Ele estendeu a mão e apertou um botão na mesa de centro à sua frente.
Ouviu-se um chiado, e a porta da alcova se fechou.
— Ei! — gritou Roper.
Cray apertou o botão uma segunda vez.
Por um instante, nada aconteceu. Alex percebeu que prendera a respira‐
ção. Seu coração parecia bater com velocidade dobrada. Então alguma coisa
brilhante, prateada, deslizou de algum lugar na parte de cima da alcova fe‐
chada, caindo dentro da pasta. Roper estendeu a mão e pegou uma moeda
pequena.
— Cray! Que brincadeira é essa? — ele quis saber.
Mais moedas continuaram a cair dentro da pasta. Alex não conseguia ver
exatamente o que estava acontecendo, mas imaginou que a alcova fosse re‐
almente como uma garrafa, totalmente lacrada, a não ser por um buraco em
algum lugar acima. As moedas caíam através do buraco, no que rapidamen‐
te se transformou em uma cascata. Em segundos a pasta estava cheia, mas
as moedas continuaram a cair, formando uma pilha e se espalhando pela
mesa e pelo chão.
Talvez Charlie Roper tenha tido então um vislumbre do que estava pres‐
tes a acontecer. Ele abriu caminho com dificuldade pela chuva de moedas e
bateu na porta de vidro.
— Pare com isso! — gritou. — Deixe-me sair daqui!
— Mas ainda não lhe dei todo o seu dinheiro, sr. Roper — retrucou Cray.
— Acho que me disse que lhe devo 2 milhões de dólares.
Subitamente, a chuva se tornou uma enxurrada. Milhares e milhares de
moedas encheram a alcova. Roper gritou e colocou o braço sobre a cabeça,
tentando se proteger. Alex tentou fazer as contas. Dois milhões de dólares
em moedas de cinco centavos... O pagamento estava sendo feito com uma
das moedas de menor valor existentes. Quantas delas haveria ali? Elas já
enchiam todo o espaço possível no chão e subiam pelos joelhos do america‐
no. A enxurrada se intensificou. Agora o níquel caía como uma massa sóli‐
da, e os gritos de Roper eram quase abafados pelo tilintar de metal contra
metal. Alex queria desviar o olhar, mas se pegou encarando a cena fixamen‐
te, os olhos arregalados de horror.
A essa altura, o garoto mal conseguia ver o homem. As moedas desciam
em uma torrente. Roper tentava afastá-las, como se fossem um enxame de
abelhas. Suas mãos e braços ainda eram vagamente visíveis, mas seu rosto e
seu corpo já haviam desaparecido. O homem esmurrou a porta, e Alex viu
uma mancha de sangue se formar ali, mas ainda assim o vidro forte não se
partiu. As moedas continuavam a cair, enchendo cada centímetro do espaço.
A pilha ficava cada vez mais alta. Agora já não se podia mais ver Roper, en‐
terrado naquela massa brilhante. Se ele ainda estivesse berrando, não podia
mais ser ouvido.
Então, também de repente, estava acabado. A última moeda caiu. Um tú‐
mulo de 40 milhões de moedas. Alex estremeceu, tentando imaginar como
seria estar preso ali dentro. Como o americano morrera? Sufocado pela tor‐
rente de moedas, ou esmagado pelo peso do metal? O garoto não tinha dú‐
vidas de que o homem dentro da alcova estava morto. Dinheiro sujo de san‐
gue! A piada sem graça de Cray não poderia ter sido mais verdadeira.
O astro pop deu risada.
— Isso foi engraçado! — disse.
— Por que o matou? — o homem de óculos falou pela primeira vez, dei‐
xando claro seu sotaque holandês e sua voz trêmula.
— Porque ele foi descuidado, Henryk — replicou Cray. — Não podemos
cometer erros, não nessa última etapa. E eu não quebrei nenhuma promessa.
Disse que pagaria 2 milhões de dólares a ele, e, se quiser abrir a porta e
contar, vai encontrar exatamente essa quantia ali dentro.
— Não abra a porta! — ofegou o homem chamado Henryk.
— Não. Acho que faria muita bagunça. — Cray sorriu. — Bem, já cuida‐
mos de Roper. E temos o pen drive. Estamos prontos. Portanto, por que não
tomamos mais um drinque?
Ainda agachado na base da escada, Alex cerrou os dentes, forçando-se a
não entrar em pânico. Todos os seus instintos lhe diziam para se levantar e
correr, mas ele sabia que precisava tomar cuidado. O que vira era quase
além da imaginação, mas ao menos agora sua missão estava clara. Precisava
sair do complexo, sair de Sloterdijk, e voltar para a Inglaterra. E, gostando
ou não, teria que voltar ao MI6.
Depois de tudo aquilo, Alex se deu conta de que estivera certo o tempo
todo e de que Damian Cray era louco e cruel. Toda a sua atitude, suas várias
ações de caridade, seus discursos contra a violência... Tudo aquilo não pas‐
sava de uma fachada. O homem estava planejando alguma coisa chamada o
Ataque à Águia que, fosse o que fosse, aconteceria nos próximos dois dias e
envolveria um sistema de segurança e uma área VIP. Será que Cray preten‐
dia invadir alguma embaixada? Não importava. Alex teria que dar um jeito
de fazer Alan Blunt e a sra. Jones acreditarem nele. Um homem chamado
Charlie Roper fora morto. Havia uma ligação com a Agência Nacional de
Segurança dos EUA. A essa altura, Alex certamente já tinha informações
suficientes para persuadi-los a prender Cray.
Mas primeiro precisava sair dali.
O garoto se virou a tempo de ver alguém se inclinando em sua direção.
Era um guarda descendo as escadas. O garoto preparou-se para reagir, mas
era tarde demais. O segurança já o vira. E estava armado. Alex levantou as
mãos bem devagar. O guarda gesticulou, e o garoto se colocou de pé, sur‐
gindo por trás do corrimão. Do outro lado da sala, Damian Cray o viu. Seu
rosto se iluminou de prazer.
— Alex Rider! — exclamou Cray. — Eu estava torcendo para encontrá-
lo de novo. Que adorável surpresa! Aproxime-se e beba alguma coisa... en‐
quanto eu lhe conto como vai morrer.
10
A SÍNTESE DA DOR

— YASSEN ME CONTOU TUDO sobre você — afirmou Cray. — Apa‐


rentemente, trabalha para o MI6. Preciso dizer que essa é uma ideia muito
inusitada. Está trabalhando para eles agora? Foram eles que o mandaram até
aqui?
Alex não disse nada.
— Se não responder às minhas perguntas, terei que fazer coisas desagra‐
dáveis com você. Ou dizer para Yassen fazer. É para isso que pago a ele.
Para me poupar de preocupações... desse tipo de coisa.
— O MI6 não sabe de nada — disse Yassen.
Ele e Cray estavam sozinhos com Alex na sala. O guarda e Henryk havi‐
am saído. O garoto estava sentado no sofá, com um copo de leite achocola‐
tado que Cray insistira em servir. Agora, Cray havia se sentado na banqueta
do piano. Suas pernas estavam cruzadas, e ele parecia completamente rela‐
xado enquanto bebericava outro coquetel.
— Não há como os serviços de inteligência saberem nada sobre nós —
continuou o russo. — E, se soubessem, não teriam mandado Alex.
— Então por que ele estava no Pleasure Dome? Por que está aqui? —
Cray virou-se para o garoto. — Não acredito que tenha viajado tanto apenas
para pegar o meu autógrafo. Na verdade, Alex, estou satisfeito em vê-lo.
Estava mesmo planejando procurá-lo e encontrá-lo qualquer dia desses. Vo‐
cê estragou completamente o lançamento do meu Gameslayer. Espertinho
demais! Fiquei muito irritado com você e, embora esteja ocupado no mo‐
mento, vou dar um jeito de provocar um pequeno acidente...
— O que você fez com aquela mulher no Hyde Park? — perguntou Alex.
— Ela era um aborrecimento. Fez perguntas impertinentes. Odeio jorna‐
listas, assim como odeio garotos espertinhos. Como disse, fico feliz por vo‐
cê ter dado um jeito de chegar até aqui. Isso facilita muito as coisas para
mim.
— Você não pode fazer nada comigo — disse o garoto. — Yassen está
errado. O MI6 sabe que estou aqui. Eles sabem tudo sobre o Ataque à
Águia. Vocês podem ter os códigos, mas nunca conseguirão usá-los. E, se
eu não aparecer esta noite, toda esta propriedade estará cercada antes do
amanhecer, e você irá para a cadeia.
Cray relanceou o olhar para Yassen. O russo negou com a cabeça.
— Ele deve ter nos ouvido conversar de trás da escada. Não sabe de na‐
da.
Cray passou a língua pelos lábios. Alex se deu conta de que aquele ho‐
mem estava satisfeito consigo mesmo. Agora o garoto percebia o quanto
Damian Cray era louco. O astro não tinha os pés no mundo real, e Alex sa‐
bia que o que quer que estivessem planejando seria uma ação em grande es‐
cala... e provavelmente letal.
— Isso não faz nenhuma diferença — disse Cray. — O Ataque à Águia
acontecerá em menos de 48 horas. Concordo com você, Yassen. Esse garoto
não sabe nada. É completamente irrelevante. Posso matá-lo, e não fará dife‐
rença nenhuma.
— Você não precisa matá-lo — rebateu Yassen. Alex ficou surpreso. O
russo era seu maior inimigo, mas essa era a segunda vez que Yassen Grego‐
rovich tentava protegê-lo. — Pode simplesmente prendê-lo aqui até que tu‐
do esteja terminado.
— Você está certo — concordou Cray. — Não tenho que matá-lo. Mas
quero fazer isso. Aliás, quero muito fazer isso — ele se levantou da banque‐
ta do piano e foi até onde estava Alex. — Você se lembra do que eu lhe dis‐
se sobre a “síntese da dor”? — continuou. — Em Londres. A demonstra‐
ção... A “síntese da dor” permite que os jogadores experimentem as emo‐
ções do herói. Todas as suas emoções, mas em especial aquelas associadas à
dor e à morte. Você pode estar se perguntando como consegui fazer essa
programação para o software. A resposta, meu querido Alex, é que usei vo‐
luntários como você.
— Eu não sou voluntário — resmungou o garoto.
— Assim como os outros também não eram. Mas ainda assim eles me
ajudaram, assim como você vai me ajudar. E a sua recompensa será o fim
da dor. O conforto e a tranquilidade da morte... — Cray desviou os olhos.
— Podem levá-lo — disse.
Dois guardas entraram no salão. Alex não os ouvira se aproximar, mas
logo os homens saíram das sombras e o agarraram. Ele tentou lutar para se
soltar, mas os seguranças eram fortes demais. Eles o arrancaram do sofá e
levaram para fora da sala, descendo por um dos corredores que saíam do sa‐
lão.
O garoto conseguiu olhar para trás uma última vez. Cray já o esquecera.
Agora estava segurando o pen drive, admirando-o. Mas Yassen observava
Alex. Então uma porta automática se ergueu, deixando escapar um silvo de
ar comprimido, e o garoto foi arrastado por ali, sem tocar os pés no chão,
seguindo pelo corredor em direção ao que quer que Damian Cray houvesse
planejado.

A cela ficava no fim de outro corredor subterrâneo. Os dois guardas joga‐


ram Alex ali e esperaram que o garoto se virasse para encará-los. O homem
que o havia descoberto escondido nas escadas falou algumas palavras com
um forte sotaque holandês.
— A porta será fechada e permanecerá fechada. Você encontra um jeito
de sair. Ou passará fome.
E foi isso. A porta bateu, e Alex ouviu quando duas trancas foram fecha‐
das. Então, acompanhou o som dos passos dos guardas se afastando. De re‐
pente, tudo ficou silencioso. O garoto estava sozinho.
Alex olhou ao seu redor. A cela era uma caixa nua de metal com cerca de
5 metros de comprimento e 2 metros de largura. Continha apenas uma cama
de campanha, mas nada de água ou janelas. A porta deslizava para dentro
da parede. Não havia nenhuma fresta, nenhum buraco de fechadura. Ele sa‐
bia que nunca estivera mais encrencado. Cray não acreditara em sua histó‐
ria, nem mesmo consideraria a verdade. Aparentemente não fazia qualquer
diferença para o astro se Alex estava ou não trabalhando para o Serviço Se‐
creto Britânico, e a verdade era que, dessa vez, o garoto realmente fora pe‐
go em flagrante sem ter o MI6 em sua retaguarda. E agora também não ti‐
nha nenhum equipamento para ajudá-lo a arrombar a cela. Ele levara a bici‐
cleta que Smithers lhe dera de Londres para Paris e então a trouxera para
Amsterdã. Naquele exato momento, a bicicleta estava estacionada do lado
de fora da Estação Central na cidade e ficaria lá até ser roubada ou se dete‐
riorar com a ferrugem. Jack sabia que Alex planejava entrar no complexo
industrial de Cray, mas, mesmo se ela desse o alarme, como alguém o en‐
contraria? Uma onda de profundo desespero o atingiu. Já não tinha mais
forças para lutar.
E ainda não sabia de quase nada. Por que Cray investira tanto tempo e
dinheiro no console chamado Gameslayer? Por que aquele homem precisa‐
va do pen drive? O que o avião estava fazendo no meio do complexo? E,
acima de tudo, o que Cray estava planejando? O Ataque à Águia acontece‐
ria em dois dias, mas onde e o que envolveria?
Alex forçou-se a recuperar o controle. Já estivera trancafiado antes. O
mais importante era continuar lutando, não admitir a derrota. Cray já come‐
tera erros. Até mesmo dizer seu próprio nome ao telefone, quando Alex li‐
gara de Saint-Pierre, fora um erro de julgamento. Ele podia ter poder, fama
e muito dinheiro. E com certeza estava planejando uma operação ambicio‐
sa. Mas não era tão esperto quanto pensava. O garoto ainda podia derrotá-
lo.
Mas por onde começar? Cray o colocara naquela cela para que experi‐
mentasse o que chamava de “síntese da dor”. Alex não gostava do som des‐
se nome. E o que o guarda dissera? Encontre um jeito de sair, ou passará fo‐
me. Mas não havia como sair. Alex passou as mãos pelas paredes. Eram de
aço sólido. Ele se adiantou e examinou a porta uma segunda vez. Nada. Es‐
tava completamente lacrada. Relanceou o olhar para o teto. Uma única lâm‐
pada brilhava atrás de uma luminária grossa de vidro. Restava apenas a ca‐
ma de campanha...
Alex encontrou o alçapão embaixo dela, na parede. Era como uma passa‐
gem basculante para gatos em uma porta, só que grande o bastante para que
um corpo humano pudesse atravessá-la. Com muito cuidado para não cair
em nenhuma armadilha, Alex estendeu a mão e empurrou a portinhola. O
metal balançou para dentro da parede. Havia uma espécie de túnel do outro
lado, mas o garoto não conseguia ver nada. Se rastejasse ali para dentro, en‐
traria em um espaço estreito, sem luz alguma... e era impossível saber se o
túnel realmente levava a algum lugar. Teria coragem para entrar?
Não havia alternativa. Alex examinou a cela uma última vez, ajoelhou-se
e impulsionou o corpo para a frente. A portinhola se abriu e voltou a se fe‐
char depois que ele passou e começou a rastejar pelo túnel. O garoto sentiu
quando ela bateu em seu tornozelo e logo ouviu um clique quando se fe‐
chou. O que era aquilo? Não conseguia ver nada. Ergueu uma das mãos e
passou-a na frente do rosto. Era como se não estivesse ali. Esticou a mão e
sentiu uma parede sólida. Deus! Havia entrado — se arrastado, na verdade
— em uma armadilha. Não havia saída.
Ele empurrou o corpo para trás, pelo caminho por onde viera, e foi quan‐
do descobriu que a portinhola agora estava trancada. Alex a chutou, mas ela
não se moveu. O garoto foi dominado por um pânico total e incontrolável.
Estava enterrado vivo, na escuridão mais absoluta, sem ar. Era aquilo a que
Cray se referira quando falara na “síntese da dor”: uma morte terrível de‐
mais para sequer ser imaginada.
Alex perdeu o controle.
Incapaz de evitar, gritou e socou as paredes daquele caixão de metal. Es‐
tava sufocando.
Sua mão acabou acertando a parede, e parte dela cedeu. Havia ali uma
segunda portinhola. Ofegando, Alex se virou e entrou no segundo túnel, tão
escuro e frio quanto o primeiro. Mas, ao menos agora, ele recuperara uma
leve chama de esperança. Havia um modo de sair. Se conseguisse manter o
autocontrole, poderia encontrar o caminho de volta para onde houvesse luz.
O segundo túnel era mais longo. Alex deslizou para a frente, sentindo a
folha de metal sob as mãos. Ele se forçou a ir mais devagar. Ainda estava
completamente cego. Se houvesse um buraco à sua frente, acabaria despen‐
cando por ele antes que soubesse o que estava acontecendo. Conforme
avançava, batia nas paredes em uma tentativa de encontrar outras passa‐
gens. Sua cabeça bateu em alguma coisa, e ele praguejou. Os palavrões o
ajudaram. Era bom expressar seu ódio contra Damian Cray. E ouvir sua
própria voz o lembrava de que ainda estava vivo.
Alex esbarrou em uma escada. Segurou-a com ambas as mãos e sentiu,
pela abertura, que deveria chegar acima de seus ombros. Estava deitado de
bruços, mas conseguiu girar o corpo e começou a subir, sempre com a mão
estendida para o caso de haver um teto sobre sua cabeça. Sua mão acabou
encostando em alguma coisa, e Alex empurrou. Para seu enorme alívio, a
luz o inundou. Abrira algum tipo de alçapão que levava a um cômodo gran‐
de e muito iluminado do outro lado. Grato, ergueu o corpo pelo que restava
da escada e passou pela portinhola.
O ar estava quente. Alex respirou fundo, deixando que a sensação de pâ‐
nico e claustrofobia que o havia dominado se acalmasse. Então levantou os
olhos.
Estava ajoelhado sobre um chão coberto de palha, em uma sala banhada
por luz amarela. Três paredes pareciam ter sido construídas com enormes
blocos de pedra. Tochas flamejantes presas a suportes de metal se inclina‐
vam na direção do garoto. Portões de cerca de no mínimo 10 metros de altu‐
ra se erguiam diante dele. Eram feitos de madeira e ferragens, e traziam um
rosto enorme entalhado na superfície. Algum tipo de deus asteca, com olhos
arregalados e dentes sólidos como se fossem tijolos. Alex já vira aquele ros‐
to antes, mas levou algum tempo para se lembrar onde. Então soube exata‐
mente o que estava diante de seus olhos. Sabia como Cray programara a
“síntese da dor” em seu jogo.
Os portões haviam aparecido no início do Serpente Emplumada, o jogo
que Alex testara na Pleasure Dome, no Hyde Park. Então, apareceu uma
imagem computadorizada, projetada em uma tela... e Alex foi representado
por um avatar, uma versão bidimensional de si mesmo. Mas Cray também
construíra uma versão física, real, do jogo. O garoto estendeu a mão e tocou
em uma das paredes. Com certeza não era uma pedra de verdade, mas al‐
gum tipo de plástico duro. A coisa toda era como uma daquelas atrações da
Disneylândia... um mundo ancestral reproduzido com recursos de Engenha‐
ria de última geração. Em outra época, Alex não teria acreditado que aquilo
fosse possível, mas tinha certeza de que, assim que os portões se abrissem,
ele veria uma perfeita reconstrução do jogo — o que significava que teria
que encarar os mesmos desafios. Só que, dessa vez, seria de verdade: fogo
real, ácido e lanças reais e, se cometesse um erro, uma morte real.
Cray lhe dissera que já havia usado outros “voluntários”. Provavelmente
eles tinham sido filmados enquanto lutavam para vencer os vários desafios,
e, durante todo o tempo, suas emoções haviam sido gravadas e depois, de
algum modo, transferidas digitalmente e programadas dentro do console
Gameslayer. Era doentio. Alex percebeu que a escuridão das passagens sub‐
terrâneas não havia sequer feito parte do desafio real. Não. O desafio real
começava agora.
Alex não se moveu. Precisava de tempo para pensar, para lembrar o má‐
ximo que pudesse como era o videogame que jogara no Pleasure Dome.
Trazia cinco câmaras. A primeira era algum tipo de templo, com um arco e
uma lança escondidos nas paredes. Será que Cray lhe daria armas nessa re‐
construção? Alex teria que esperar para ver. O que vinha depois do templo?
Um poço com uma criatura voadora: metade borboleta, metade dragão. De‐
pois disso, o garoto descera em disparada por um corredor (onde lanças
saíam das paredes) e entrara em uma selva (onde ficavam as serpentes me‐
tálicas). Então passara para um labirinto de espelhos guardado por deuses
astecas. Depois disso, teria chegado à piscina da foto, sua saída para o pró‐
ximo nível.
Uma piscina de fogo. Se aquilo estivesse reproduzido ali, Alex morreria.
O garoto se lembrou do que Cray dissera. O conforto e a tranquilidade da
morte. Não havia saída daquele hospício. Se ele conseguisse sobreviver às
cinco câmaras, teria permissão para terminar tudo se jogando nas chamas.
Alex sentiu o ódio apertar seu peito. Conseguia sentir o gosto desse ódio
na boca. Damian Cray ia além da maldade.
O que Alex poderia fazer? Não havia como voltar através dos túneis, e
ele não sabia se teria coragem de sequer tentar. Só tinha uma escolha: conti‐
nuar. Quase vencera o jogo uma vez. Isso ao menos lhe dava um pouco de
esperança.
Por outro lado, havia uma enorme diferença entre manipular um controle
e experimentar a ação de verdade. Alex não conseguiria se mover ou reagir
com a velocidade de um personagem eletrônico. Nem teria vidas extras. Se
morresse uma vez, estaria realmente morto.
Ele se levantou. No mesmo instante, os portões se abriram silenciosa‐
mente, e Alex se pegou diante do templo que vira no jogo. O garoto se per‐
guntou se seu progresso estaria sendo monitorado. Será que poderia ao me‐
nos contar com o elemento surpresa?
Atravessou os portões. O templo era exatamente como ele se lembrava
da tela no Pleasure Dome: um espaço amplo, com paredes de pedra cobertas
com estranhos entalhes, além de pilares muito altos com estátuas agachadas
em sua base. Até mesmo os vitrais nas janelas reproduziam imagens de dis‐
cos voadores pairando sobre campos de trigo dourados. E ali também esta‐
vam as câmeras, girando para acompanhá-lo e, presumivelmente, para gra‐
var qualquer progresso que fizesse. Música de órgão (mais moderna do que
religiosa) tocava alto à sua volta. Alex estremeceu, mal conseguindo aceitar
que aquilo estava realmente acontecendo.
Ele seguiu para dentro do templo, todos os sentidos alerta, esperando um
ataque que, ele sabia, poderia vir de qualquer direção. Naquele momento,
desejou ter jogado Serpente Emplumada com mais atenção. Ele havia pas‐
sado pelas câmaras com tamanha velocidade que provavelmente não perce‐
bera metade das armadilhas. Seu pé emitiu um barulho ao fazer contato com
o chão prateado. Diante dele, escadas enferrujadas o fizeram se lembrar de
um submarino ou de um navio naufragado, emborcado. Alex pensou em
tentar uma delas, mas não havia seguido aquele caminho quando estava jo‐
gando o game e preferia não arriscar agora. Era melhor ficar com o que já
conhecia.
A reentrância na parede onde estava o arco ficava escondida sob um púl‐
pito de madeira no formato de um dragão. A entrada estava quase totalmen‐
te coberta pelo que parecia hera verde, mas Alex sabia que as trepadeiras
serpenteantes eram eletrificadas. Já conseguia ver a arma pousada contra a
pedra com um espaço mínimo onde poderia se apoiar. Valeria a pena correr
o risco? Ele tensionou o corpo, preparando-se para se jogar, e então pulou a
distância que o separava. Se tivesse demorado meio segundo a mais, o atra‐
so teria sido fatal. Alex se lembrou do bumerangue com lâminas afiadas no
mesmo instante em que ouviu um som sibilante vindo de repente, embora
sem saber de onde. Não teve tempo para se preparar e atingiu o chão com
tanta força que perdeu o fôlego. Houve um lampejo e uma série de faíscas.
O garoto sentiu uma dor ardente nos ombros e soube que não fora rápido o
bastante. O bumerangue tinha rasgado sua camiseta e também cortado sua
pele.
E as câmeras continuavam a observar tudo silenciosamente.
Alex se sentou e tentou ajeitar a camiseta. Ao menos o bumerangue o
ajudara de um modo: o instrumento tinha acertado a hera, cortando-a e pro‐
vocando um curto-circuito nos fios elétricos. Alex entendeu o braço na dire‐
ção da alcova e pegou o arco. Era antigo, de madeira e ferro, mas parecia
estar funcionando bem. No entanto, Cray o enganara. Havia uma flecha jun‐
to com o arco, mas a ponta era grossa demais para causar dano a qualquer
coisa.
Mesmo assim, Alex decidiu levar o arco e a flecha. Afastou-se da alcova
e passou para a parede onde sabia que havia uma espada. Estava cerca de 2
metros dele, mas havia pedras soltas e apoios para as mãos que indicavam o
caminho para cima. Alex estava prestes a subir quando pensou melhor. Já
escapara por pouco uma vez. A parede quase certamente trazia armadilhas.
Ele poderia estar a meio caminho, e, de repente, uma pedra se soltar. Se
caísse, quebraria uma perna. Cray adoraria isso, adoraria ver Alex deitado,
indefeso, sobre o chão prateado, até que algum outro míssil fosse atirado
para acabar de vez com o garoto. E, de qualquer modo, a espada provavel‐
mente não teria uma lâmina.
Mas, quando pensou a respeito, Alex subitamente percebeu que tinha a
resposta. Sabia como derrotar o mundo simulado que Cray criara.
Todo jogo de computador é uma série de eventos programados na qual
nada é deixado ao acaso. Quando Alex jogou na Pleasure Dome, pegou o
arco e o usou para atirar na criatura que o atacara. Do mesmo modo, portas
trancadas teriam chaves, venenos teriam antídotos. Não importava muito a
escolha que o jogador fizesse, ele sempre estaria obedecendo a um conjunto
oculto de regras.
Mas Alex não havia sido programado. Ele era um ser humano e poderia
fazer o que quisesse. Isso lhe custara uma camiseta rasgada e uma fuga por
muito pouco, mas aprendera a lição. Se não tivesse tentado pegar o arco,
não teria se colocado como alvo do bumerangue. Escalar a parede para pe‐
gar a espada o colocaria em perigo porque ele estaria fazendo exatamente o
que era esperado.
Para sair do mundo que Cray construíra para ele, Alex teria que fazer tu‐
do o que não era esperado.
Em outras palavras, teria que trapacear.
E começaria naquele exato momento.
Foi até uma das tochas acesas e tentou removê-la da parede. Não ficou
surpreso ao descobrir que todas estavam soldadas no lugar. Cray pensara
em tudo. Mas, mesmo se o homem controlasse as tochas, não poderia con‐
trolar as chamas. Alex tirou a camisa e a enrolou em volta da lança de ma‐
deira. Então encostou-a no fogo. E sorriu para si mesmo. Agora tinha uma
arma que não fora programada.
A porta de saída estava no outro extremo do templo. Alex deveria seguir
direto para lá, mas, em vez disso, deu uma longa volta, sempre se mantendo
perto das paredes, evitando qualquer armadilha que pudesse estar à sua es‐
pera. Um pouco adiante, ele podia ver a segunda câmara, o poço encharca‐
do de chuva com colunas que se erguiam das profundezas e terminavam no
nível do solo. Alex passou pela porta e parou sobre um peitoril estreito. Os
topos das colunas, pouco maiores do que pratos de sopa, ofereciam um ca‐
minho de pedras por cima do vácuo. Alex se lembrou da criatura voadora
que o atacara. Então levantou os olhos. Sim, lá estava ele, quase perdido nas
sombras: um fio de nylon que corria desde o outro lado da porta, acima de
sua cabeça. Alex ergueu a flecha em chamas, segurando o fogo contra o fio.
Funcionou. O fiou queimou e se rompeu. Cray construíra uma versão ro‐
bótica da criatura que o atacara no game. O garoto sabia que a criatura teria
arremetido em sua direção quando ele estivesse no meio da travessia, dese‐
quilibrando-o e fazendo-o cair no que quer que existisse lá embaixo. Agora
Alex observava com prazer enquanto a ave tombava do teto e se balançava
à sua frente, uma mistura de metal e penas, mais parecido com um papagaio
morto do que com um monstro mítico.
Alex deixou de lado a flecha em chamas. O caminho diante dele agora
estava livre, mas a chuva continuava a cair, vindo de algum sistema eletrô‐
nico oculto. As pedras em que ele teria que pisar certamente estavam escor‐
regadias. O garoto sabia que seu avatar não conseguiria tirar os sapatos para
que seus pés aderissem melhor à superfície. Mas ele podia fazer isso. Tirou
os tênis, amarrou-os juntos e pendurou-os ao redor do pescoço. Colocou as
meias no bolso. Então, pulou. Sabia que o truque era passar rapidamente,
sem parar, sem olhar para baixo. Respirou fundo e começou. A chuva o ce‐
gava. Os topos das colunas tinham o tamanho exato para que ele apoiasse
os pés nus. Na última, Alex perdeu o equilíbrio. Mas ele não precisava usar
só os pés, podia se mover de um modo que o avatar não poderia. Jogou-se
para a frente, estendendo a mão e deixando que a própria força de movi‐
mento do seu corpo garantisse sua chegada em segurança ao outro lado. Ba‐
teu o peito no chão e ficou pendurado enquanto puxava as pernas por sobre
a beirada do buraco. Conseguira chegar ao outro lado.
Um corredor virava à esquerda, as paredes muito juntas e decoradas com
carrancas astecas aterrorizantes. Alex se lembrou de como o avatar correra
por ali, esquivando-se de uma chuva de lanças de madeira. Ele olhou para
baixo e viu o que parecia ser um rio de fumaça no chão.
Ácido! E agora?
Alex sabia que precisava de outra arma e já tinha uma ideia de onde con‐
segui-la. Tirou as meias do bolso, enrolou-as de modo a formar uma bola e
jogou-as pelo corredor. Como esperara, o movimento foi o bastante para ati‐
var os sensores que controlavam as armas ocultas. Pequenas lanças de ma‐
deira foram cuspidas dos lábios dos deuses astecas a uma velocidade im‐
pressionante e atingiram a parede oposta. Uma das lanças se partiu ao meio.
Alex a segurou e sentiu a ponta fina e afiada. Era exatamente o que ele que‐
ria. O garoto enfiou a lança no cós do jeans. Ele ainda carregava o arco, e
agora tinha uma flecha que realmente funcionaria.
O jogo de computador fora programado de modo que houvesse um único
modo de seguir em frente. Alex conseguira escapar tanto das lanças quanto
do rio de ácido com bastante facilidade quando estava jogando Serpente
Emplumada. No entanto, sabia que não conseguiria fazer a mesma coisa
nessa versão tridimensional grotesca. Bastaria um passo em falso, e seria
seu fim. O garoto conseguia se imaginar caindo no ácido e entrando em pâ‐
nico. Ele seria levado direto no sentido das lanças enquanto tentava alcan‐
çar a próxima câmara. Não, tinha que haver outra maneira.
Alex se forçou a permanecer concentrado. Ignore as regras! Ele continu‐
ou a repetir essas três palavras sem parar em sua mente. Seguir pelo corre‐
dor não era uma opção. Mas, e se fosse por cima? O garoto calçou os tênis e
experimentou dar um passo. As lanças que ficavam mais perto da entrada já
haviam sido atiradas. Ele estava seguro desde que não seguisse muito adi‐
ante pelo corredor. Agarrou-se a uma das paredes e, levando o arco atraves‐
sado no ombro, começou a subir. As cabeças astecas eram ótimos apoios
para os pés e, assim que chegou bem no topo, Alex começou a avançar, bem
acima do solo e longe do perigo. Um passo de cada vez, foi seguindo adian‐
te, até que chegou perto de uma câmera presa ao teto e, com um sorriso, pu‐
xou o fio com força. Havia uma grande quantidade daquele fio, e Alex deci‐
diu guardá-lo também.
Ele chegou ao final do corredor e desceu para a quarta câmara, a selva.
Ficou surpreso ao descobrir que a vegetação que o cercava por todos os la‐
dos era real. Alex esperara encontrar plástico e papel. Podia sentir o calor
no ar, e o chão sob os seus pés era macio e úmido. Que armadilhas o espera‐
vam ali? O garoto se lembrou das cobras-robô que mal haviam conseguido
chegar perto quando ele jogara e procurou atentamente pistas que pudessem
indicar alguma coisa semelhante em seu caminho.
Não existiam pistas. Alex deu outro passo adiante e parou, paralisado pe‐
lo horror que sentia diante do que estava vendo.
Havia uma cobra que, assim como as folhas e trepadeiras, era real. O bi‐
cho era grosso como o pulso de um homem, tinha no mínimo 4,5 metros de
comprimento e estava deitado imóvel em um trecho de grama alta. Seus
olhos eram como dois diamantes negros. Por um breve segundo, Alex teve
esperança de que a criatura estivesse morta. Mas então viu a cobra colocar a
língua para fora e erguer todo o corpo, e se deu conta de que estava enca‐
rando um animal vivo. E mais terrível do que o pior dos pesadelos.
O corpo da cobra fora envolvido por uma espécie de malha justa. Alex
não tinha ideia de quanto tempo teria sobrevivido se estivesse enrolado da‐
quele jeito. Por mais que aquela criatura pudesse ser terrível, o garoto sentiu
uma pontada de pena ao ver o que fora feito a ela. A malha era feita de ara‐
me, e estava enrolada por toda a extensão do corpo do animal. O pobre ani‐
mal também tinha espinhos e lâminas presos desde o pescoço até o fim do
corpo. Olhando além da cauda, Alex viu dezenas de linhas cortadas no chão
macio. O que quer que a cobra tocasse era cortado, mesmo se essa não fosse
sua intenção. E ela estava deslizando na direção dele.
Alex não teria conseguido se mover, nem mesmo se quisesse, mas algu‐
ma coisa lhe dizia que ficar quieto era a única saída. A cobra devia ser uma
jiboia. Uma informação que parecera inútil em uma aula de Biologia de re‐
pente voltou à sua mente: jiboias se alimentavam principalmente de pássa‐
ros e macacos, encontrando suas vítimas pelo cheiro e então se enrolando
ao redor delas e as sufocando. Mas Alex sabia que, se a cobra o atacasse,
ele não morreria para alimentá-la. As lâminas e os espinhos o cortariam em
pedaços.
E ela estava chegando perto. O corpo cintilante ondulava, cada vez mais
perto, arrastando as lâminas atrás de si. Agora o animal estava a apenas al‐
guns metros de distância. Movendo-se muito lentamente, Alex abaixou o
arco do ombro. Puxou a corda para trás e estendeu a mão para o cós do je‐
ans. A lança quebrada ainda estava lá. Fazendo o máximo para não dar à
cobra nenhuma razão para atacá-lo, apoiou a seta no arco. Estava com sorte.
Encaixou perfeitamente.
Não era esperado, no jogo, que ele tivesse uma arma naquela câmara. Is‐
so não fora programado. Mas, mesmo depois de tudo o que Cray o fizera
enfrentar, Alex ainda tinha o arco, que agora estava carregado.
O garoto gritou. Não pôde evitar. A cobra se adiantara subitamente, ar‐
rastando-se sobre o tênis de Alex. As lâminas cortaram o material macio a
pouquíssimos centímetros de distância do pé dele. O garoto chutou instinti‐
vamente. No mesmo instante, a cobra recuou. Alex viu chamas negras se
acenderem em seus olhos. Ela voltou a colocar a língua para fora. Estava
prestes a se lançar sobre ele. O garoto ergueu o arco e atirou. Não havia
mais nada que pudesse fazer. A seta entrou pela boca da cobra e continuou
até a parte de trás da cabeça do bicho. Alex recuou, afastando-se das con‐
vulsões fatais do corpo da criatura. A serpente se debateu e girou o corpo,
cortando e retalhando os arbustos próximos. Então ficou imóvel. O garoto
sabia que a matara, e não lamentava ter feito aquilo. A situação em que
Cray deixara a cobra era revoltante. Alex estava feliz por ter posto um fim
ao sofrimento da pobre criatura.
Havia mais uma câmara restante, o labirinto de espelhos. Alex sabia que
haveria deuses astecas à sua espera. Provavelmente guardas fantasiados.
Mesmo se conseguisse passar por eles, acabaria se deparando com a piscina
de fogo. Mas para ele já bastava. Ao diabo com Damian Cray. Alex olhou
para cima. Conseguira desativar uma das câmeras de segurança, e não havia
outras à vista. Encontrara um ponto cego nesse playground de loucos. Isso
era perfeito para ele.
Estava na hora de encontrar o caminho da saída.
11
A VERDADE SOBRE ALEX

NÃO HAVIA DEUSES MAIS CRUÉIS ou mais ferozes do que os deuses


astecas. Essa fora a razão pela qual Damian Cray os escolhera para povoa‐
rem seu jogo.
Ele reunira três daquelas criaturas para guardarem o labirinto de espe‐
lhos, a quinta e última câmara na enorme arena que construíra sob o com‐
plexo industrial. Tlaloc, o deus da chuva, era meio humano, meio crocodilo,
com dentes irregulares, mãos em forma de garras e uma calda grossa e esca‐
mosa atrás do corpo. Xipe Totec, o senhor da primavera, havia arrancado os
próprios olhos, que ficavam pendurados diante de seu rosto carregado de
ameaça e distorcido pela dor. E Xolotl, que trazia o fogo, caminhava com
pés esmagados e torcidos para trás. De suas mãos, saíam chamas que se re‐
fletiam centenas de vezes nos espelhos, deixando escapar nuvens serpente‐
antes de fumaça.
É claro que não havia nada de sobrenatural nas três criaturas que espera‐
vam Alex aparecer. Por baixo das máscaras grotescas, da pele de plástico,
da maquiagem, não havia nada além de três criminosos soltos recentemente
de Bijlmer, a maior prisão da Holanda. Eles agora trabalhavam como guar‐
das para a Cray Software Technology, mas também tinham atribuições es‐
peciais. Essa era uma delas. Os três homens estavam munidos de espadas,
lanças, garras de aço e lança-chamas. E esperavam ansiosos para usar as ar‐
mas.
O primeiro a ver Alex foi o homem vestido de Xolotl.
A câmera na câmara três não estava funcionando, por isso não havia co‐
mo saber se Alex estava a caminho ou se a cobra acabara com ele. Mas su‐
bitamente houve um movimento. O guarda viu uma pessoa despida da cin‐
tura para cima se aproximar cambaleante por um canto. O garoto não tentou
se esconder e o homem logo descobriu o porquê.
Alex Rider estava ensopado de sangue; todo o seu peito, vermelho. A bo‐
ca abria e fechava, mas não deixava nenhum som escapar. Então o guarda
viu a lança de madeira na altura do peito do intruso. O garoto obviamente
havia tentado descer o corredor correndo, mas sem sucesso. Uma das lanças
atingira o alvo.
Alex viu o homem e parou. Então caiu de joelhos, uma das mãos apon‐
tando frouxamente para a lança, antes de desabar no chão. Olhou para cima
e tentou falar. Mais sangue saiu de sua boca. Seus olhos se fecharam, e ele
virou a cabeça para um dos lados. Alex não voltou a se mexer.
O guarda relaxou, já que a morte do garoto não significava nada para ele.
O homem enfiou a mão no bolso da camisa feita de malha de aço e pegou
um radiotransmissor.
— Acabou — disse em holandês. — O garoto foi morto por uma lança.
Faixas de neon tremeluziram e se acenderam por toda a área do jogo.
Sob a luz branca e forte, as diferentes câmaras pareciam mais artificiais, co‐
mo atrações de um parque de diversões modesto. Os guardas também pare‐
ciam ridículos em suas fantasias. Os olhos pendurados eram bolas de pin‐
gue-pongue pintadas. O corpo do crocodilo não passava de uma roupa de
borracha. Os pés virados para trás haviam sido comprados em uma loja de
fantasias. Os três homens formaram um círculo ao redor de Alex.
— Ele ainda está respirando — disse um deles.
— Não por muito tempo — afirmou o segundo guarda, olhando para a
ponta da lança que fora rapidamente coberta por sangue frio.
— O que faremos com ele?
— Vamos deixá-lo aqui. Não temos nada a ver com isso. O pessoal da
limpeza pode pegá-lo mais tarde.
Os homens se afastaram. Um deles parou ao lado de uma parede pintada
de modo a parecer uma pedra esfarelada e abriu um painel disfarçado, no
qual havia um botão. Quando ele o apertou, uma parede se abriu. Havia um
corredor muito iluminado do outro lado. Os três saíram por ali para trocar
de roupa.
Alex abriu os olhos.
A peça que pregara nos homens era tão velha que o garoto quase sentiu
vergonha. Se tivesse sido encenada em um palco, Alex não teria enganado
um menino de 6 anos de idade. Mas, ao que parecia, as circunstâncias ali
eram um pouco diferentes.
Ao se ver sozinho na selva em miniatura, Alex pegou de volta a lança
quebrada que usara para matar a cobra. Ele a tinha amarrado ao peito usan‐
do o fio arrancado da câmera de segurança. Depois disso, tinha se coberto
com o sangue da cobra morta. Aquela havia sido a pior parte, mas ele preci‐
sava ter certeza de que o truque funcionaria. Apelando para toda a sua de‐
terminação, o garoto pegara mais um pouco do sangue e o colocara na boca.
Ainda conseguia sentir o gosto nojento, e permanecia atento para não engo‐
lir aquela coisa. Mas tinha conseguido enganar completamente os homens.
Nenhum deles olhara muito de perto. Eles viram o que quiseram ver.
Alex esperou até ter certeza de que estava sozinho, sentou-se e desamar‐
rou o fio. Só precisava torcer para que as câmeras tivessem sido todas desli‐
gadas quando o jogo chegou ao fim. Alex passou pela saída, que ainda esta‐
va aberta, e deixou para trás o mundo de faz de conta. Agora estava em um
corredor comum, que se estendia a uma longa distância. As paredes eram de
ladrilhos, e havia portas simples de madeira instaladas em ambos os lados.
Alex sabia que, embora o perigo imediato tivesse ficado para trás, não po‐
deria de jeito nenhum se permitir começar a relaxar. Estava com a parte de
cima do corpo nua e coberto de sangue. E continuava preso no coração do
complexo. Era apenas uma questão de tempo até que alguém descobrisse
que o corpo desaparecera e logo percebesse a peça que o garoto pregara.
Alex abriu a primeira porta. Encontrou um armário de suprimentos. A
segunda e a terceira portas estavam trancadas, mas no meio do corredor o
garoto avistou um vestiário com chuveiros, escaninhos e uma cesta de la‐
vanderia. Ele sabia que perderia minutos preciosos, mas precisava se lim‐
par. Alex se despiu, tomou um banho de chuveiro, secou-se e voltou a se
vestir. Antes de deixar o vestiário, deu uma olhada na cesta da lavanderia e
encontrou uma camiseta para vestir no lugar da que queimara. A peça esta‐
va suja e era dois números maiores do que o dele, mas Alex a vestiu agrade‐
cido.
Ele abriu a porta com muito cuidado e voltou a fechá-la rapidamente, já
que dois homens passavam por ali conversando em holandês. Pareciam se‐
guir na direção do labirinto de espelhos, e Alex torceu para que não fossem
da equipe de limpeza. Se fossem, o alarme seria dado a qualquer momento.
Ele contou os segundos até que passassem, então se esgueirou para fora do
vestiário e correu na direção oposta.
Chegou a uma escada. Não tinha ideia de para onde ela levava, mas sabia
que precisava subir.
A escada dava em uma área circular de onde saíam vários corredores.
Não havia janelas ali, e a única fonte de iluminação era um conjunto de lu‐
minárias industriais instaladas em intervalos regulares no teto. O garoto
consultou o relógio. 23hl5. Duas horas e quinze minutos haviam se passado
desde que ele invadira o complexo industrial. Parecia que muito mais tempo
tinha transcorrido. Ele pensou em Jack, esperando-o no hotel em Amsterdã.
Ela já devia estar louca de preocupação.
Tudo permanecia em silêncio. Alex imaginou que a maior parte dos em‐
pregados de Cray estaria dormindo. Escolheu um corredor e o seguiu até
chegar a outra escada. Subiu mais uma vez e se viu em um cômodo que co‐
nhecia. O estúdio de Cray. O salão onde vira Charlie Roper morrer.
Alex quase sentiu medo de entrar. Mas o salão estava deserto, e, quando
espiou pela fresta, viu que a alcova em forma de garrafa fora limpa — o di‐
nheiro e o corpo já não estavam mais lá. O garoto estranhou o fato de não
haver nenhum guarda ali, no coração do império de Cray. Mas, pensando
bem, por que deveria haver? Toda a segurança estava concentrada no portão
principal. Alex supostamente estava morto. Cray não tinha nada a temer.
À frente do jovem estava a escada que ele sabia que levaria ao cubo de
vidro e, depois, para fora. Todavia, por mais que se sentisse tentado a sair
em disparada, Alex percebeu que jamais teria outra oportunidade como
aquela. No fundo, sabia que, mesmo se levasse toda aquela história ao MI6,
ainda não teria nenhuma prova real de que Cray não era realmente apenas a
celebridade pop e o homem de negócios que todos acreditavam ser. Alan
Blunt e a sra. Jones não haviam acreditado em Alex Rider na última vez em
que o viram. Podiam não acreditar novamente.
Controlando seus instintos imediatos, o garoto foi até a escrivaninha. Ha‐
via cerca de uma dúzia de fotos emolduradas sobre ela, todas de Damian
Cray. Alex as ignorou e voltou sua atenção para as gavetas. Estavam des‐
trancadas. As gavetas de baixo guardavam dezenas de documentos, mas a
maior parte deles não consistia em nada além de listas com nomes de pesso‐
as, e não pareciam promissores. Então, chegou à última gaveta e ofegou, in‐
crédulo. A cápsula metálica que Cray estivera segurando quando conversara
com o americano estava ali. Alex pegou-a e pesou-a na palma da mão. O
pen drive continha códigos de computador. Sua função era invadir algum ti‐
po de sistema de segurança. Aquele pequeno item custara 2,5 milhões de
dólares. Além da vida de Roper.
E agora Alex o tinha nas mãos! Queria examiná-lo melhor, mas teria que
fazer isso mais tarde. O garoto guardou o pen drive no bolso e subiu corren‐
do as escadas.
Dez minutos mais tarde, alarmes soaram por toda a fábrica. Os dois ho‐
mens que Alex vira realmente estavam indo para o labirinto de espelhos pa‐
ra pegar o corpo, e descobriram que não havia nenhum cadáver por lá. De‐
veriam ter soado o alarme na mesma hora, mas acabaram demorando a fa‐
zer isso. Os homens presumiram que uma das outras equipes de limpeza ha‐
via recolhido o corpo do garoto e foram conferir. Apenas quando encontra‐
ram a cobra morta e a lança com o fio que a mantivera no lugar imaginaram
o que havia ocorrido.
Enquanto tudo isso acontecia, uma van saía da fábrica. Nem os guardas
cansados no portão, nem o motorista perceberam que havia alguém deitado
de braços esticados sobre o teto do veículo. Mas por que deveriam reparar?
A van estava saindo, não chegando. Ela nem mesmo parou em frente às câ‐
meras de segurança. O guarda somente verificou a identificação do motoris‐
ta e abriu o portão. O alarme soou segundos depois de a van sair da fábrica.
Havia uma regra na Cray Software Technology. Ninguém tinha permis‐
são para entrar ou sair da fábrica durante um alerta de segurança. Todas as
vans eram equipadas com um walkie talkie, e o guarda no portão imediata‐
mente fez contato com o motorista e lhe disse para retornar. O homem ao
volante parou antes de chegar ao semáforo e obedeceu, cansado. Mas já era
tarde demais.
Alex deslizou do teto e se deixou cair no chão. Logo depois, saiu corren‐
do pela noite.

Damian Cray voltara ao seu escritório, e agora permanecia sentado no sofá,


segurando um copo de leite. Estava na cama quando ouviu o alarme, e por
isso agora usava um roupão prateado sobre o pijama azul-escuro, além de
chinelos de algodão macio. Alguma coisa ruim acontecera com seu rosto. A
vida fora drenada dele, deixando apenas uma máscara fria e vazia, que mais
parecia feita de vidro. Uma única veia pulsava acima dos olhos sem brilho.
Cray acabara de descobrir que o pen drive não estava mais em sua mesa.
Ele havia procurado em todas as gavetas, tirado todas do lugar, virado todas
de cabeça para baixo e jogado todo o conteúdo delas no chão. Então, deixou
escapar um rugido de raiva, atirou-se sobre a escrivaninha e começou a so‐
cá-la, fazendo com que telefones, pastas e fotografias emolduradas voassem
para todos os lados. Cray espatifou o vidro da tela de seu computador ao jo‐
gar contra ela um peso de papel. Depois disso, sentou-se no sofá e pediu
aquele copo de leite.
Yassen Gregorovich observara tudo sem dizer nada. Ele também saíra de
seu quarto por causa do alarme, mas, ao contrário de Cray, não estava dor‐
mindo. Yassen nunca dormia por mais do que quatro horas. A noite era vali‐
osa demais. Ele costumava aproveitá-la para correr ou fazer ginástica. Ou
para ouvir música clássica. Naquela noite, estivera trabalhando com um
gravador e um livro de exercícios já muito manuseado. Estava aprendendo
japonês, uma das nove línguas que se determinara a saber.
Ao ouvir o alarme, Yassen instintivamente se deu conta de que Alex Ri‐
der escapara. Em seguida, desligou as câmeras... e sorriu.
Agora esperava que Cray quebrasse o silêncio. Fora Yassen quem sugeri‐
ra tranquilamente que o astro pop procurasse o pen drive. E agora se per‐
guntava se levaria a culpa pelo roubo.
— O garoto devia estar morto! — gemeu Cray. — Disseram para mim
que estava morto! — Ele subitamente relanceou os olhos para Yassen, com
fúria. — Você sabia que ele havia passado por aqui.
— Eu desconfiei — disse Yassen.
— Por quê?
Yassen pensou um pouco antes de responder.
— Porque ele é Alex Rider — disse, por fim, simplesmente.
— Então me fale sobre ele!
— Não há muito a lhe contar sobre Alex — o olhar de Yassen estava per‐
dido. Então, continuou, falando devagar e em voz baixa — A verdade é que
não há nenhum garoto como ele no mundo. Pense um pouco. Esta noite vo‐
cê tentou matá-lo, não simplesmente com uma bala ou uma faca, mas de um
modo que deveria tê-lo deixado apavorado. Alex escapou e conseguiu che‐
gar até aqui. Deve ter visto as escadas. Qualquer outro garoto, qualquer ou‐
tro homem, na verdade, teria disparado por elas no mesmo instante. Seu
único desejo teria sido escapar. Mas Alex, não. Ele parou e procurou. É isso
o que o torna único, e por isso ele é tão valioso para o MI6.
— Como ele conseguiu chegar até aqui?
— Não sei. Se você tivesse permitido que eu o interrogasse antes de
mandá-lo para aquele seu jogo, talvez eu tivesse conseguido descobrir.
— Isso não é minha culpa, sr. Gregorovich! Você deveria tê-lo matado
no sul da França, quando teve oportunidade — Cray bebeu o leite e deixou
o copo de lado. Ele agora tinha um bigode branco de leite sobre o lábio su‐
perior. — Por que não fez isso? — perguntou.
— Eu tentei...
— Aquela bobagem de tourada! Aquilo foi uma idiotice. Acho que você
sabia que ele escaparia.
— Imaginei, sim, que ele escaparia — concordou Yassen, que já começa‐
va a se cansar de Cray. Não gostava que lhe pedissem explicações e, quando
voltou a falar, foi tanto para o seu bem quanto para o de Cray. — Eu o co‐
nhecia.
— Quer dizer... antes de Saint-Pierre?
— Eu o havia encontrado uma vez. Mas... já o conhecia. No momento
em que o vi, soube quem e o que ele era. A imagem do pai... — Yassen se
conteve antes de murmurar. — Ele não sabe de nada disso. Ninguém nunca
lhe contou a verdade.
Mas Cray já não estava mais interessado.
— Não posso fazer nada sem o pen drive — ele gemeu e, de repente, ha‐
via lágrimas cintilando em seus olhos. — Está tudo acabado! O Ataque à
Águia! Todo o plano. Anos e anos de planejamento. Milhões de dólares. E é
tudo culpa sua.
Ali estava, finalmente, o dedo apontado.
Por alguns segundos, Yassen Gregorovich se sentiu seriamente tentado a
matar Damian Cray. Seria muito rápido, bastaria um golpe com três dedos
na garganta flácida e pálida do homem. O russo já havia trabalhado para
muitas pessoas cruéis — não que ele pensasse nelas em termos de bom ou
mau. Tudo o que lhe importava era quanto estavam dispostas a pagar. Al‐
guns deles — Harod Sayle, por exemplo — haviam planejado matar mi‐
lhões de pessoas. Os números eram irrelevantes para Yassen. Pessoas morri‐
am o tempo todo. Ele sabia que, a cada vez que inspirava, naquele exato
momento, em algum lugar do mundo, centenas ou até milhares de pessoas
poderiam estar morrendo. A morte estava por toda parte, não podia ser me‐
dida.
Mas recentemente alguma coisa dentro dele havia se modificado. Talvez
o fato de ter encontrado Alex novamente fosse o responsável por isso, tal‐
vez fosse a sua idade. Embora Yassen parecesse ainda não ter 30 anos, na
verdade já tinha 35. Estava ficando velho. Ou pelo menos velho demais pa‐
ra aquele tipo de trabalho. Começava a pensar que talvez estivesse chegan‐
do a hora de parar.
E foi por isso que decidiu não matar Damian Cray naquele momento. O
Ataque à Águia estava a menos de dois dias. E o tornaria mais rico do que
jamais sonhara, o que lhe permitiria voltar para sua terra natal, a Rússia.
Yassen compraria uma casa em São Petersburgo e viveria confortavelmente,
talvez até fazendo alguns trabalhos eventuais para a máfia daquele país. A
cidade estava transbordando de atividade criminal, e, para um homem com
dinheiro e experiência, qualquer coisa seria possível.
Yassen estendeu a mão, a mesma que teria usado para golpear seu em‐
pregador, e falou:
— Você se preocupa demais. Por tudo o que sabemos, Alex ainda pode
estar dentro da fábrica. Mas, mesmo se tiver conseguido passar pelo portão,
não terá ido muito longe. Ele precisa sair de Sloterdijk e voltar para Ams‐
terdã. Já instruí todos os nossos homens para que saiam e o encontrem. Se o
garoto tentar entrar na cidade, será interceptado.
— Como você sabe que ele vai para a cidade? — quis saber Cray.
— Estamos no meio da noite. Onde mais ele poderia ir? — Yassen se le‐
vantou e bocejou. — Alex Rider estará aqui, de volta, antes do nascer do
sol, e você terá novamente o seu pen drive.
— Ótimo — Cray olhou para o estrago que fizera, para todo aquele ma‐
terial espalhado pelo chão. — E, da próxima vez em que colocar minhas
mãos nele, vou me certificar de que não escape. Da próxima vez eu mesmo
lidarei com Alex Rider.
Yassen não disse nada. Apenas deu as costas a Damian Cray e saiu do sa‐
lão caminhando lentamente.
12
FORÇA NO PEDAL

O TREM SE APROXIMOU da Estação Central de Amsterdã e começou a


diminuir a velocidade. Alex estava sentado sozinho, o rosto encostado na
janela, mal consciente das plataformas longas e vazias ou do teto alto sobre
sua cabeça. Era perto de meia-noite, e o garoto se sentia exausto. Sabia que
Jack devia estar frenética, esperando-o no hotel. Estava ansioso para vê-la
também. Subitamente sentiu uma enorme necessidade de ser cuidadoso.
Queria apenas um banho aquecido, um chocolate quente... e uma cama.
Na primeira ocasião em que saíra de Sloterdijk, fora e voltara de bicicle‐
ta. Mas, na segunda vez, resolveu poupar suas forças e deixou a bicicleta na
estação. A viagem de volta era curta, mas Alex gostava de percorrer aquele
caminho, pois sabia que cada segundo o levava para mais longe de Cray e
de sua fábrica. Também precisava de tempo para pensar em tudo por que
havia acabado de passar, para tentar entender o que aquilo significava. Um
avião incendiado. Uma área VIP. Alguma coisa chamada Milstar. O homem
com o rosto marcado...
E Alex ainda não tinha resposta para a maior de todas as perguntas. Por
que Cray estava fazendo tudo aquilo? Ele já era imensamente rico, tinha fãs
por todo o mundo. Poucos dias antes estava trocando apertos de mão com o
presidente dos Estados Unidos. Sua música ainda tocava nas rádios, e toda
vez que o astro aparecia em público reunia multidões. O Gameslayer lhe
renderia outra fortuna. Se havia alguém que não precisava formular conspi‐
rações e cometer assassinatos, esse alguém era justamente Damian Cray.
O Ataque à Águia. Por que Ataque à Águia?
O trem parou e as portas se abriram com um silvo. Alex se certificou de
que o pen drive continuava em seu bolso e finalmente saiu.
Não havia quase ninguém na plataforma, mas o saguão principal estava
cheio. Estudantes e outros jovens viajantes chegavam pelas linhas internaci‐
onais. Alguns deles permaneciam sentados no chão, apoiados em mochilas
enormes. Todos pareciam meio zonzos sob a forte luz artificial. Alex imagi‐
nou que provavelmente levaria cerca de 10 minutos para chegar de bicicleta
até o hotel em Herengracht. Isso se conseguisse se manter acordado pelo
tempo necessário para saber onde estava.
Ele passou pelas pesadas portas de vidro e encontrou sua bicicleta onde a
havia deixado, presa a algumas grades. Acabara de soltar a corrente quando
parou, sentindo o perigo antes mesmo de vê-lo. Aquilo era uma coisa que
nunca havia precisado que lhe ensinassem. Até mesmo seu tio, que passara
anos treinando-o para ser um espião, teria sido incapaz de explicar o instin‐
to que, naquele momento, lhe dizia que precisava se mexer... e rápido.
Alex olhou ao redor. Havia um pátio externo, pavimentado com paralele‐
pípedos, que levava a um lago com a vista da cidade mais além. Um quios‐
que de cachorro-quente ainda estava aberto. As salsichas giravam na grelha,
mas não havia sinal do vendedor. Alguns casais passeavam pelas pontes so‐
bre os canais, aproveitando a noite agora quente e seca. O céu já não estava
tão negro, mas com um tom profundo do azul da meia-noite.
Em algum lugar, um relógio fez soar as horas. Os sinos ecoaram pela ci‐
dade.
Alex notou um carro estacionado de modo a ficar de frente para a esta‐
ção. Seus faróis se acenderam e iluminaram o espaço onde o garoto estava.
Um instante depois, um segundo carro fez a mesma coisa. E logo um tercei‐
ro. Os três veículos eram iguais: Porsches 911 GT3. Mais faróis foram ace‐
sos. Agora havia seis carros parados em um semicírculo ao redor de Alex,
cobrindo todos os ângulos do pátio externo. Todos os automóveis eram pre‐
tos e pareciam brinquedos, com a carroceria elegante, e os faróis parecendo
olhos redondos. No entanto, Alex logo se deu conta, com uma certeza fria,
de que os carros não estavam ali de brincadeira.
Portas se abriram, e homens desceram dos veículos. Os faróis delinea‐
vam apenas silhuetas negras. Por uma fração de segundo, ninguém se mo‐
veu. Eles o haviam encontrado. Não havia para onde ir.
Alex estendeu o polegar esquerdo para a buzina de aparência ridícula
presa ao guidão da bicicleta. Um pequeno pino prateado se destacava sobre
ela. Se o apertasse, a campainha soaria. Mas, ao invés disso, o garoto puxou
o tal pino. O topo da buzina se abriu, revelando cinco botões de cores dife‐
rentes ali dentro. Smithers os havia descrito no manual. Tinham um código
de cor para facilitar o uso. Agora era hora de descobrir se funcionavam.
Como se pressentissem que algo estava prestes a acontecer, as sombras
negras começaram a se aproximar. Alex pressionou o botão laranja e sentiu
o estremecer sob suas mãos enquanto dois minúsculos mísseis termo guia‐
dos eram disparados das extremidades do guidão, deixando um rastro de
chamas alaranjadas pelo caminho. O garoto viu os homens se deterem, inse‐
guros. Os mísseis pairaram no ar, então se curvaram para trás, seus movi‐
mentos perfeitamente sincronizados. Como Alex suspeitara, a coisa mais
quente por ali era a grelha no quiosque de cachorro-quente. Os mísseis caí‐
ram ao mesmo tempo sobre a barraca. Houve uma enorme explosão, e uma
bola de fogo se espalhou pelos paralelepípedos e se refletiu na água do ca‐
nal. Choviam fragmentos incandescentes de madeira e pedaços de cachorro-
quente. O estouro não fora forte o bastante para matar ninguém, mas criara
um momento perfeito de distração. O garoto agarrou a bicicleta e a arrastou
de volta para a estação. A área externa estava bloqueada. Aquele era o úni‐
co caminho.
Mas, assim que entrou de volta no local, Alex viu outros homens corren‐
do em sua direção, atravessando o grande grupo de pessoas. Àquela hora, a
multidão se movia lentamente. Portanto, alguém que estivesse correndo sem
dúvida precisava ter um motivo muito especial, e Alex tinha certeza de que
o motivo era ele. Os homens de Cray deviam manter contato uns com os
outros por rádio. Agora que um do grupo o vira, todos saberiam onde esta‐
va.
Alex montou na bicicleta e pedalou pelo chão de cerâmica o mais rápido
que podia, passando pelas bilheterias, pelas bancas de jornal, pelos balcões
de informação e pelas rampas que subiam para as plataformas, tentando
abrir o máximo de espaço possível entre ele e seus perseguidores. Uma mu‐
lher empurrando um carrinho de limpeza motorizado entrou subitamente na
frente do garoto, e ele teve que desviar rapidamente, quase atingindo um
homem de barba com uma enorme mochila. O homem o xingou em holan‐
dês. Alex seguiu em disparada.
Havia uma porta bem no extremo do salão principal, mas, antes que o
garoto pudesse alcançá-la, ela se abriu de repente, e mais homens entraram
correndo, bloqueando seu caminho. Ainda pedalando furiosamente, Alex
deu meia-volta com a bicicleta e seguiu em direção à única forma de sair
daquele pesadelo. Uma escada rolante vazia, descendo. Antes mesmo que
se desse conta do que fazia, o garoto entrou com a bicicleta sobre os de‐
graus, balançando e tremendo, todo inclinado para baixo. Foi jogado de um
lado para o outro, o corpo batendo contra os painéis de metal. Alex se per‐
guntou se o guidão acabaria entortando com as pancadas, ou se os pneus se‐
riam furados pelas extremidades agudas dos degraus. Mas o jovem logo
chegou à base da escada e se viu pedalando grotescamente por uma estação
de metrô com bilheterias de um lado e portões automáticos do outro. Ficou
satisfeito por já ser tão tarde. O local estava quase vazio. Ainda assim, algu‐
mas cabeças se viraram com espanto quando ele entrou na longa plataforma
e desapareceu de vista.
Com certeza aquele não era o momento certo para isso, mas mesmo as‐
sim Alex se pegou admirando o trabalho artesanal do fabricante da bicicle‐
ta. O quadro de alumínio era leve e maleável, mas a coluna de direção sóli‐
da mantinha a bicicleta estável. Ele chegou a uma curva e automaticamente
assumiu uma posição de ataque, pressionando para baixo o lado de fora do
pedal e colocando o peso sobre ele, ao mesmo tempo em que mantinha o
corpo abaixado. Todo o seu centro de gravidade estava reunido no ponto em
que os pneus encostavam no chão, e a bicicleta fez a curva com controle to‐
tal. Isso era uma coisa que Alex aprendera há anos, fazendo mountain bike
nos montes Peninos, na Inglaterra. Ele jamais poderia imaginar que usaria
as mesmas técnicas em uma estação de metrô de Amsterdã!
Uma segunda escada rolante o levou de volta à rua, e Alex se viu no ou‐
tro lado do pátio externo da estação, já distante da estação. Os destroços do
quiosque de cachorro-quente ainda queimavam. Uma viatura havia chegado
ao local, e ele podia ver o vendedor histérico, tentando explicar para o poli‐
cial o que acontecera. Por um instante, Alex teve a esperança de conseguir
escapar despercebido, mas, então, ouviu o guincho de pneus, e um dos
Porsches chegou por trás, derrapando e atirando em sua direção. Eles o ha‐
viam visto! E estavam atrás dele novamente.
Alex começou a pedalar na direção de Damrak, uma das principais ruas
de Amsterdã, ganhando velocidade rapidamente. Quando relanceou o olhar
para trás, viu um segundo carro se juntando ao primeiro. Seu coração se
apertou de medo, pois sabia que suas pernas não eram páreo para os moto‐
res. Tinha no máximo vinte segundos antes de ser alcançado.
Então uma campainha soou, e o garoto ouviu o barulho alto de metal
contra metal. Um bonde elétrico vinha em sua direção, trovejando sobre os
trilhos a caminho da estação. Alex sabia o que tinha que fazer. Podia ouvir
os Porsches se aproximando atrás dele. O bonde era uma grande caixa de
metal ocupando a visão do garoto. No último instante, ele girou o guidão e
se jogou bem na frente do veículo. Viu a expressão de horror no rosto do
motorista e sentiu as rodas da bicicleta estremecerem quando passaram por
cima dos trilhos. Mas conseguiu chegar do outro lado, e o bonde se tornou
um muro que, ao menos por alguns poucos segundos, o separava dos carros
que o perseguiam.
Mesmo assim, um deles tentou segui-lo. Foi um terrível erro. O carro es‐
tava na metade da travessia dos trilhos quando o bonde o alcançou. Ouviu-
se um barulho enorme quando o carro capotou em meio à noite. A seguir,
quando o bonde descarrilhou, o que se chegou aos ouvidos foi o barulho de
metal guinchando e sendo triturado. O segundo vagão girou e acertou o ou‐
tro Porsche, amassando-o como se fosse uma mosca. Enquanto continuava
a pedalar, afastando-se na direção de Damrak por cima de uma ponte boni‐
ta, pintada de branco, Alex deixou para trás uma cena de total devastação.
Ao longe, o barulho das sirenes de polícia cortava o ar.
O garoto se viu passando por uma série de ruas estreitas, porém mais
movimentadas, com pessoas entrando e saindo de boates de striptease e ci‐
nemas que exibiam filmes pornográficos. Alex acabara chegando acidental‐
mente ao famoso bairro da luz vermelha de Amsterdã. Pensou sobre o que
Jack acharia disso. Uma mulher parada no batente de uma porta piscou para
ele. Alex a ignorou e continuou a pedalar.
Havia três motocicletas pretas no fim da rua.
O garoto grunhiu. Eram Suzukis Bandit de 400 cilindradas, e só podia
haver uma razão para estarem ali, silenciosas e paradas. Certamente o espe‐
ravam. No momento em que os motoqueiros o viram, ligaram os motores.
Alex sabia que precisava ir embora dali... e rápido. Então olhou ao redor.
Em um dos lados, dezenas de pessoas entravam e saíam de várias lojas
com letreiros em neon. Do outro, um canal estreito se estendia, e Alex viu a
escuridão e a possibilidade de segurança do outro lado. Mas como conse‐
guiria atravessar? Não havia nenhuma ponte à vista.
Mas talvez não fosse impossível. Uma embarcação passava por ali. Era
um dos famosos barcos a motor, baixos e com teto de vidro, carregando tu‐
ristas em um passeio tarde da noite que, com certeza, incluía jantar. Ele os‐
cilava diagonalmente pela água de tal forma que quase encostava em ambas
as margens. O capitão havia calculado mal o ângulo, e o veículo parecia es‐
tar encalhado.
Alex tomou impulso para a frente enquanto apertava o botão verde na
campainha da bicicleta. Uma garrafa de água estava presa sob o assento, e o
garoto viu quando um líquido prateado escorreu pelo caminho. Alex estava
quase voando na direção do canal, deixando para trás uma trilha serpentean‐
te. Ouviu o rugir dos motores das Suzukis e percebeu que o haviam alcan‐
çado.
Então tudo aconteceu de repente.
Alex saiu da rua, atravessou a calçada e empinou a bicicleta no ar. O pri‐
meiro motoqueiro chegou à parte do caminho que estava coberta de óleo
prateado. No mesmo instante, perdeu o controle e derrapou tão violenta‐
mente que quase pareceu se arremessar para fora da moto de propósito.
Aquela motocicleta bateu em uma segunda moto, fazendo com que ela tam‐
bém tombasse. Ao mesmo tempo, Alex aterrissou com força sobre o teto de
vidro do barco de turistas e começou a pedalar por toda a sua extensão.
Conseguiu ver o espanto das pessoas que jantavam logo abaixo. Um gar‐
çom que carregava uma bandeja cheia de copos perdeu o equilíbrio e dei‐
xou tudo cair. O flash de uma câmera disparou. Então Alex alcançou o ou‐
tro lado. Impulsionado pelo peso de seu próprio corpo, o garoto se arremes‐
sou do teto, passou por uma fileira de barreiras de metal verticais na calçada
e aterrissou mais uma vez, derrapando na margem oposta do canal.
Alex olhou para trás bem a tempo de ver que a terceira moto havia con‐
seguido segui-lo. Ela já estava no ar, e as pessoas no barco olhavam assusta‐
das enquanto a Suzuki descia na direção delas. E tinham toda razão de ter
medo. A motocicleta era pesada demais. Acabou fazendo o telhado de vidro
estilhaçar. Moto e motoqueiro desapareceram na cabine enquanto os turis‐
tas, gritando, se jogavam para fora do caminho. Pratos e mesas explodiram,
as luzes na cabine piscaram e se apagaram. Alex não teve tempo de ver
mais nada.
No fim das contas, o garoto não conseguiu se esconder na escuridão. Ou‐
tro par de motos subia rugindo pela lateral do canal em sua direção, até fi‐
nalmente encontrá-lo. Alex voltou a pedalar freneticamente, tentando sair
do campo de visão do motoqueiro. Virou em uma rua, desceu a outra, do‐
brou uma esquina, atravessou uma praça. Suas pernas queimavam. Ele sabia
que não conseguiria ir muito mais longe.
E foi então que cometeu um erro.
Entrou em uma viela escura e convidativa que o levaria a algum lugar
onde não seria encontrado. Ao menos foi o que pensou. No entanto, estava
na metade do caminho quando um homem subitamente apareceu à sua fren‐
te, empunhando uma metralhadora. Atrás de Alex, as duas motos se aproxi‐
mavam, impedindo a fuga por aquela direção.
O homem com a metralhadora mirou. O dedo do garoto escorregou para
baixo do guidão, e dessa vez apertou o botão amarelo. No mesmo instante,
houve uma explosão de luz branca e brilhante. Uma bomba luminosa de
magnésio, escondida dentro do farol da bicicleta, havia sido acionada. Alex
mal conseguia acreditar na quantidade de luz que se espalhava pelo ar. Toda
a área foi iluminada. O homem com a metralhadora ficou completamente
cego.
Alex apertou, então, o botão azul. Ouviu-se um silvo alto. De algum lu‐
gar sob as pernas do garoto, uma nuvem de fumaça azul saiu da bomba de
pneu presa ao quadro da bicicleta. As duas motos que estavam atrás dele fo‐
ram envolvidas pela fumaça e desapareceram.
Tudo ficou caótico. Luzes brilhantes e fumaça pesada. O homem com a
metralhadora abriu fogo, imaginando que Alex estivesse em algum lugar
por perto. Mas o garoto já tinha passado por ele, e as balas acabaram atin‐
gindo a primeira moto, matando o motorista instantaneamente. De algum
modo, a segunda Suzuki conseguiu passar, mas então o que ecoou foi um
barulho de impacto, um grito e o som de metal sendo esmagado contra a pa‐
rede. A rajada de balas foi interrompida, e, ao perceber o que tinha acabado
de acontecer, Alex sorriu sombriamente para si mesmo. O homem com a
metralhadora acabara de ser atropelado por seu companheiro da moto.
O sorriso de Alex desapareceu quando outro Porsche pareceu surgir do
nada, ainda a alguma distância, mas já se aproximando. Quantos deles ha‐
via? Certamente os homens de Cray acabariam se cansando e desistindo.
No entanto, então o garoto se lembrou do pen drive em seu bolso e soube
que o astro pop viraria toda Amsterdã de cabeça para baixo para ter o objeto
de volta.
Havia uma ponte um pouco adiante, uma construção antiga de madeira e
metal com cabos grossos e contrapesos. Ela atravessava um canal muito
mais largo, e uma barca solitária se aproximava. Alex ficou confuso. A pon‐
te era baixa demais para permitir que a embarcação passasse. Então, uma
luz vermelha se acendeu em um semáforo, e a ponte começou se a levantar.
O garoto relanceou o olhar para trás. O carro estava cerca de cinquenta
metros atrás dele, e dessa vez não havia onde se esconder, nem para onde ir.
Alex olhou para a frente. Se ao menos conseguisse chegar ao outro lado do
canal, realmente poderia desaparecer. Ninguém seria capaz de segui-lo... ao
menos não até que a ponte voltasse a abaixar. Mas, ao que parecia, já era
tarde demais. A ponte estava a meio caminho, ambas as partes erguendo-se
na mesma velocidade, a lacuna entre elas tornando-se mais larga a cada se‐
gundo.
O Porsche continuava acelerando.
Alex não tinha escolha.
Ele sentia muita dor e sabia que chegara ao limite de suas reservas de
energia. Ainda assim, deu um impulso, e a bicicleta ganhou velocidade. O
motor do carro soava mais alto agora, rugindo em seus ouvidos, mas Alex
não ousou olhar para trás. Toda a sua energia estava concentrada em alcan‐
çar rapidamente a ponte basculante.
Ele bateu na superfície de madeira quando ela já estava a uma inclinação
de 45° e se pegou lembrando, desesperado, de uma lição há muito esqueci‐
da da aula de Matemática. Um triângulo equilátero. Era exatamente o que
ele vira da beirada, e agora estava subindo um de seus lados com a bicicle‐
ta!
Seria impossível conseguir fazer a travessia. Cada pedalada era mais di‐
fícil do que a anterior, e ele ainda não tinha chegado nem à metade da ram‐
pa. Podia ver a lacuna — enorme agora — e a água fria e escura abaixo. O
carro estava bem atrás dele, tão perto que Alex não conseguia ouvir nada
além do barulho do motor. O cheiro de gasolina enchia suas narinas.
O garoto pedalou uma última vez e, ao mesmo tempo, pressionou o bo‐
tão vermelho na buzina da bicicleta: o assento ejetor. Houve uma pequena
explosão bem abaixo dele. O assento foi arrancado da bicicleta, impulsiona‐
do por ar comprimido ou por algum tipo de sistema hidráulico engenhoso.
Alex foi arremessado no ar, passou pela lateral em que estava da ponte, pelo
espaço aberto sobre a água e então aterrissou do outro lado, rolando, rolan‐
do, batendo com força no chão. Quando olhou ao redor, viu o Porsche. Era
incrível, mas o motorista tentara segui-lo. O homem estava suspenso no ar,
entre as duas metades da ponte. O garoto viu a expressão no rosto do moto‐
rista, os olhos arregalados, os dentes cerrados. Então o carro afundou. Ou‐
viu-se um splash alto, e o Porsche estava totalmente debaixo da superfície
negra do canal.
Alex ficou de pé com dificuldade. O selim estava caído ao seu lado, e ele
o pegou. Havia uma mensagem escrita na parte de baixo, uma mensagem
que ele não teria conseguido ler enquanto o assento estivesse preso ao qua‐
dro. Se você estiver lendo isso, então me deve uma nova bicicleta.
Smithers tinha, mesmo, um senso de humor deturpado.
13
MEDIDAS DE URGÊNCIA

O HOTEL SASKIA FICAVA EM um prédio antigo que, de algum modo,


havia conseguido abrir seu espaço entre um depósito remodelado e um pré‐
dio de apartamentos. O hotel tinha apenas cinco quartos, um empilhado so‐
bre o outro como uma casinha de cartas, todos com vista para o canal. O
mercado das flores ficava a uma curta distância a pé e até mesmo à noite o
ar tinha um cheiro adocicado. Jack escolhera aquele hotel porque era peque‐
no e afastado do centro. Um lugar onde, ela esperava, eles não seriam per‐
cebidos.
Quando Alex abriu os olhos, às 8 horas da manhã seguinte, pegou-se dei‐
tado em uma cama em um quarto de formato irregular, no último andar, lo‐
go abaixo do telhado. Ele não abaixara as persianas, e a luz do sol entrava
pela janela aberta. Sentou-se lentamente, já sentindo o corpo reclamar do
tratamento que recebera na noite anterior. Suas roupas estavam cuidadosa‐
mente dobradas sobre uma cadeira, mas ele não conseguia se lembrar de tê-
las colocado ali. Olhou para o lado e viu um bilhete colado ao espelho.

O café da manhã é servido até as 10 horas.


Espero que consiga descer as escadas!

O garoto sorriu, reconhecendo a letra de Jack.


No quarto, havia um banheiro minúsculo, pouco maior do que um armá‐
rio, e Alex foi até lá. Ele logo escovou os dentes, feliz ao sentir o gosto de
menta. Mesmo já tendo se passado quase dez horas, Alex ainda não havia
conseguido esquecer totalmente o gosto do sangue da cobra. Enquanto se
vestia, lembrou-se da noite anterior, quando finalmente entrara cambalean‐
do na recepção do hotel e encontrara Jack esperando-o em uma das cadeiras
antigas. Ele não havia se dado conta de como estava ferido até ver a expres‐
são no rosto da amiga. Ela pediu sanduíches e chocolate quente à recepcio‐
nista espantada e então ajudou o garoto a chegar até o elevador minúsculo
que os levou ao quinto andar. Jack não fez nenhuma pergunta, e Alex se
sentiu grato por isso. Estava cansado demais para explicar, cansado demais
para fazer qualquer coisa.
A jovem o fizera tomar um banho e, quando ele voltou ao quarto, ela já
havia dado um jeito de conseguir material para curativos e um creme antis‐
séptico. Alex estava certo de que não precisava de nada daquilo, e ficou ali‐
viado quando foram interrompidos pela chegada do serviço de quarto. Ele
achou que estaria cansado demais para comer, mas subitamente se desco‐
briu faminto e atacou a comida sob o olhar atento de Jack. Então, finalmen‐
te se jogou na cama.
Alex adormeceu no instante em que fechou os olhos.
Agora, terminou de se vestir, verificou os machucados no espelho e saiu
do quarto. Usou o elevador barulhento para descer até o porão de teto baixo
e curvo, abaixo da recepção. Era ali que serviam o café da manhã. Uma típi‐
ca refeição holandesa, com carnes frias, queijos e pãezinhos servidos com
café. Alex viu Jack sentada sozinha em uma mesa de canto. Foi até lá e se
juntou a ela.
— Oi, Alex — cumprimentou Jack, obviamente aliviada por vê-lo mais
parecido com ele mesmo do que na noite anterior. — Como dormiu?
— Como uma pedra — o garoto se sentou. — Quer que lhe conte o que
aconteceu na noite passada?
— Ainda não. Tenho a sensação de que vai estragar meu apetite.
Eles comeram. Depois, Alex contou à amiga tudo o que acontecera desde
o momento em que entrara na fábrica de Cray colado à lateral do caminhão.
Quando terminou, houve um longo silêncio. A última xícara de café de Jack
esfriara.
— Damian Cray é um louco! — ela exclamou. — Vou lhe dizer uma coi‐
sa, Alex, nunca mais vou comprar um CD dele!
Com uma expressão furiosa no rosto, Jack deu um gole no café frio antes
de colocar a xícara novamente sobre a mesa.
— Mas ainda não entendo. Pelo amor de Deus, o que você acha que ele
está fazendo? Quero dizer... Cray é um herói nacional. Ele cantou no casa‐
mento da princesa Diana!
— Foi no aniversário dela — corrigiu Alex.
— E o homem doou zilhões para a caridade. Fui a um de seus shows
uma vez. Cada centavo arrecadado ali foi doado para a organização Salve as
Crianças. Ou pode ser que eu tenha entendido o nome errado, talvez seja
Espanque e Tente Matar as Crianças! Que diabos ele está fazendo?
— Não sei. Quanto mais eu penso, menos sentido isso tudo faz para
mim.
— Não quero nem pensar sobre isso. Estou apenas aliviada por você ter
conseguido escapar de lá com vida. E me odeio por ter deixado que fosse
sozinho — ela pensou por um instante. — Para mim, você já fez a sua parte
— continuou. — Agora precisa voltar ao MI6 e contar a eles o que sabe.
Entregue o pen drive. Dessa vez eles terão que acreditar em você.
— Concordo plenamente — disse Alex. — Mas, antes de qualquer coisa,
precisamos sair de Amsterdã. E teremos que ser muito cuidadosos. Cray
provavelmente terá homens nos aguardando na estação. E no aeroporto tam‐
bém.
Jack concordou.
— Vamos de ônibus — ela propôs. — Podemos ir até Rotterdam ou até a
Antuérpia. Talvez consigamos pegar um avião de lá.
Eles haviam terminado o café da manhã. Então subiram, arrumaram as
malas e deixaram o hotel. Jack pagou com dinheiro porque tinha medo que
Cray, com todos os seus contatos, acabasse conseguindo rastrear o cartão de
crédito. Pegaram um táxi no mercado das flores e pediram que os levasse
para os subúrbios da cidade, onde pegaram um ônibus. Alex percebeu que
seria uma longa viagem de volta para casa, e isso o preocupava. Já haviam
se passado 12 horas desde que ele ouvira Cray anunciar que o Ataque à
Águia aconteceria dali a dois dias. Agora já era quase meio da manhã.
Faltavam menos de 36 horas.

Damian Cray acordou cedo e estava sentado na cama de colunas coberta


por lençóis de seda lilás e cercado por no mínimo uma dúzia de travessei‐
ros. Havia uma bandeja à sua frente, trazida por seu assistente pessoal, junto
com os jornais especialmente enviados da Inglaterra. Ele estava tomando
seu café da manhã habitual, composto de mingau orgânico, mel mexicano
(produzido por suas próprias abelhas), leite de soja e amoras. Todos sabiam
que era vegetariano. O astro já fizera várias campanhas contra o abate de
animais, o transporte de animais vivos e a importação de patê de fígado de
ganso. Naquela manhã, Cray estava completamente sem apetite, mas comeu
mesmo assim. Seu nutricionista jamais o deixaria pular o café da manhã.
Damian Cray ainda estava comendo quando ouviu uma batida na porta, e
logo Yassen Gregorovich entrou no quarto.
— E então? — quis saber Cray.
Ele nunca se incomodava por ter pessoas em seu quarto. Aliás, compuse‐
ra algumas de suas melhores canções na cama.
— Fiz o que você disse. Tenho homens na Estação Central de Amsterdã,
na Lelylaan, na De Vlugtlaan... em todas as estações de trem locais. Tam‐
bém há homens no Aeroporto de Schiphol, e estou vigiando os portos. Mas
não acho que Alex Rider vá passar por nenhum desses lugares.
— Onde ele está, então?
— Se eu fosse ele, iria para Bruxelas ou para Paris. Tenho contatos na
polícia e já pedi que o procurassem. Se alguém o vir, vamos receber notíci‐
as. Mas acho que não o encontraremos até ele voltar para a Inglaterra. O ga‐
roto irá direto para o MI6, e o pen drive irá com ele.
Cray deixou a colher cair e comentou.
— Você não parece nem um pouco preocupado em relação a isso tudo.
Yassen não disse nada.
— Preciso dizer que estou muito desapontado, sr. Gregorovich. Quando
eu estava organizando toda essa operação, disseram que o senhor era o me‐
lhor. Garantiram para mim que nunca cometia erros.
Não houve resposta, mais uma vez. Furioso, Cray encarou Yassen e con‐
tinuou.
— Eu estava lhe pagando uma grande soma de dinheiro. Pois bem, pode
esquecer isso. Acabou. Está tudo terminado. O Ataque à Águia não vai
acontecer. E quanto a mim? O MI6 está prestes a descobrir tudo e, se vie‐
rem atrás de mim... — A voz dele falhou. — Esse era para ser meu momen‐
to de glória. É o trabalho de uma vida. Agora está prestes a ser destruído, e
tudo graças a você!
— Não está acabado — afirmou Yassen. A voz dele não mudara, mas ha‐
via uma frieza em seu tom que deveria ter alertado Cray que, mais uma vez,
ele havia chegado perigosamente perto de uma morte inesperada. O russo
abaixou os olhos para o homenzinho apoiado nos travesseiros da cama. —
Mas temos que tomar medidas de urgência. Tenho pessoas na Inglaterra e já
lhes passei instruções. Você receberá o pen drive de volta a tempo.
— E como vai conseguir isso? — perguntou Cray, sem parecer muito
convencido.
— Andei pensando sobre a situação. Durante todo o tempo, acreditei que
Alex estava agindo por conta própria. Que o acaso o havia trazido até nós.
— Ele estava hospedado naquela casa no Sul da França.
— Sim.
— Então, como explica isso?
— Pergunte a si mesmo. Por que Alex ficou tão aborrecido pelo que
aconteceu com o jornalista? Não era problema dele, mas mesmo assim fi‐
cou zangado. E arriscou sua vida entrando no barco, no Fer de Lance. A
resposta é óbvia. A pessoa com quem ele estava hospedado era uma garota.
— Uma namorada? — Cray sorriu sarcasticamente.
— Alex obviamente tem algum sentimento por ela. Foi isso o que o colo‐
cou em nosso caminho.
— E você acha que essa garota...?
O astro pop agora conseguia ver aonde o russo queria chegar e, de repen‐
te, o futuro já não parecia tão terrível. Ele voltou a afundar o corpo nos tra‐
vesseiros. A bandeja do café da manhã virou na sua frente.
— Qual é o nome dela? — perguntou Cray.
— Sabina Pleasure — respondeu Yassen.

Sabina sempre odiara hospitais, e tudo no Hospital Whitchurch a fazia lem‐


brar o porquê.
Era um lugar enorme. Dava para se imaginar passando pelas portas gira‐
tórias e nunca mais saindo. Ou porque estaria morto, ou simplesmente por‐
que seria engolido pelo sistema. Não faria diferença. Tudo naquele prédio
era impessoal, como se houvesse sido especialmente projetado para fazer os
pacientes se sentirem como se fizessem parte da linha de produção de uma
fábrica. Médicos e enfermeiras entravam e saíam, parecendo exaustos e der‐
rotados. Sabina sentia medo até de chegar perto do lugar.
Whitchurch era um hospital recém-inaugurado no sul de Londres. A mãe
de Sabina a levara ali. As duas estavam no estacionamento, sentadas no car‐
ro de Liz Pleasure.
— Tem certeza de que não quer que eu vá com você? — perguntou a
mãe.
— Tenho. Vou ficar bem.
— Ele é o mesmo, Sabina. Você sabe disso. Foi ferido, e você pode ficar
chocada com a aparência dele. Mas, fora isso, ainda é o mesmo.
— Ele quer me ver?
— É claro que sim. Está esperando isso ansiosamente. Apenas não se de‐
more muito. Ele fica cansado...
Aquela era a primeira visita de Sabina ao pai desde que fora transferido
de avião da França. Ele não estivera forte o bastante para vê-la antes, e Sa‐
bina estava certa de que o mesmo se podia dizer dela. De certo modo, temia
ver o pai. Ela vinha se perguntando como ele estaria. Edward Pleasure fora
gravemente queimado. Ainda não conseguia andar. Mas, nos sonhos de Sa‐
bina, ele ainda era o pai que ela conhecia. A garota mantinha uma fotografia
dele ao lado da cama e, toda noite, antes de dormir, olhava para ele como
sempre fora: com os cabelos desgrenhados e a cabeça sempre enfiada nos
livros, mas sorridente e saudável. Ela sabia que teria que encarar a realidade
no momento em que entrasse naquele quarto de hospital.
Sabina respirou fundo. Então saiu do carro, atravessou o estacionamento,
passou pela Emergência e entrou no hospital. As portas giraram, e ela se viu
jogada para dentro de uma recepção muito cheia e excessivamente ilumina‐
da. Não conseguia acreditar em quanto o lugar era movimentado e baru‐
lhento, mais parecia o interior de um shopping do que um hospital. Aliás,
havia até algumas lojas, uma vendendo flores e, próximo a ela, um café e
uma lanchonete onde as pessoas podiam comprar sanduíches e petiscos para
presentearem os amigos ou familiares que visitariam. Placas apontavam pa‐
ra todas as direções. Cardiologia. Pediatria. Urologia. Radiologia. Até os
nomes soavam ameaçadores.
Edward Pleasure estava na ala Lister Ward, que recebera esse nome em
homenagem a um cirurgião do século 19. Sabina tinha conhecimento de que
a ala ficava no terceiro andar, mas olhou ao redor e não viu sinal do eleva‐
dor. Estava prestes a pedir informações na recepção quando um homem, um
jovem médico, a julgar pela aparência, cruzou repentinamente seu caminho.
— Perdida? — ele perguntou.
O homem estava na casa dos 20 anos, tinha os cabelos pretos, usava um
jaleco e segurava um copo de plástico. Parecia ter saído direto de uma série
de TV. Ele sorria misteriosamente, e Sabina teve que admitir que devia mes‐
mo ser engraçado ver alguém perdido quando havia placas por toda parte.
— Estou procurando Lister Ward — disse Sabina.
— Fica no terceiro andar. Também estou indo para lá, mas lamento dizer
que os elevadores não estão funcionando..
Aquilo era estranho. A mãe de Sabina não mencionara nada a respeito e
estivera ali na noite anterior. Mas a garota imaginou que hospitais fossem
assim mesmo, as coisas deviam quebrar o tempo todo.
— Dá para ir pela escada. Por que não vem comigo?
O médico amassou o copo de plástico e o jogou no lixo. Em seguida,
atravessou a recepção, e Sabina o seguiu.
— Então, quem veio visitar? — perguntou.
— Meu pai.
— O que houve com ele?
— Sofreu um acidente.
— Que pena. Como seu pai está passando?
— Essa é a primeira vez que venho visitá-lo. Ele está melhorando... eu
acho.
Os dois passaram por um conjunto de portas duplas e desceram por um
corredor. Sabina percebeu que haviam deixado todos os visitantes para trás.
O corredor era longo e estava vazio, e dava em um hall para onde convergi‐
am outros cinco corredores diferentes. De um dos lados, um lado, uma esca‐
da levava para cima, mas o médico a ignorou.
— Não é por ali? — perguntou Sabina.
— Não — o médico se virou e sorriu novamente. Ele parecia sorrir mui‐
to. — Aquela ali leva para a Urologia. Você pode atravessá-la para chegar a
Lister Ward, mas por aqui é mais rápido.
Ele apontou para uma porta e a abriu. Sabina o acompanhou.
Para surpresa da garota, ela se viu de volta do lado de fora do hospital. A
porta levava a um espaço parcialmente coberto na lateral, onde ficavam es‐
tacionados os veículos de abastecimento. Havia uma área de descarga onde
várias caixas já estavam empilhadas. Encostada em uma parede estava uma
fileira de latas de lixo, cada uma de uma cor, de acordo com o tipo de mate‐
rial que deveriam receber.
— Desculpe, mas acho que você... — Sabina começou a dizer.
Porém, logo seus olhos se arregalaram com uma expressão de choque. O
médico estava se inclinando na direção dela e, antes que Sabina se desse
conta do que estava acontecendo, ele a agarrou pelo pescoço. A única coisa
que a garota teve tempo de pensar foi que o homem era algum louco, e a re‐
ação dela foi automática. Sabina fizera aulas de autodefesa por insistência
de seus pais. Sem hesitar, atingiu o homem entre as pernas com o joelho.
Ao mesmo tempo, abriu a boca para gritar. Fora ensinada que, em uma situ‐
ação como aquela, o que o agressor mais temia era o barulho.
No entanto, o homem era rápido demais para ela. Quando a garota estava
prestes a gritar, ele tapou sua boca com a mão. O falso médico previra o que
ela estava prestes a fazer e agarrou a garota por trás, mantendo uma das
mãos sobre sua boca enquanto, com o outro braço, mantinha-a presa a ele.
Sabina então percebeu o quanto fora inocente. O homem estava usando um
jaleco quando a encontrou. E estava no hospital. Mas é claro que ele podia
ser qualquer um, e ela devia estar louca para aceitar acompanhá-lo. Nunca
vá a lugar algum com um estranho. Quantas vezes seus pais haviam lhe dito
isso?
Uma ambulância apareceu e entrou rapidamente na área de serviço. Sabi‐
na sentiu uma onda de esperança que renovou suas forças. Fosse o que fos‐
se que o agressor estivesse imaginando fazer, escolhera o lugar errado. A
ambulância chegara bem a tempo. Mas então ela percebeu que o homem
não reagira. Sabina imaginara que ele a soltaria e sairia correndo. Mas, ao
contrário: ele estava esperando a ambulância e agora arrastava a garota na
direção do veículo. Sabina olhou espantada quando a porta traseira da am‐
bulância foi aberta e mais dois homens desceram. Tudo aquilo havia sido
planejado! Os três estavam juntos. Sabiam que ela estaria ali, visitando o
pai, e tinham vindo ao hospital com a intenção de interceptá-la.
De algum modo, Sabina conseguiu morder a mão que tapava sua boca. O
falso médico praguejou e soltou-a. A garota ergueu o cotovelo e acertou o
nariz do homem, que cambaleou para trás. Ela estava livre. Tentou gritar
novamente, para dar o alarme, mas os dois indivíduos que haviam descido
da ambulância já estavam em cima dela. Um deles segurava um objeto pra‐
teado com uma ponta muito fina, mas Sabina só reconheceu a seringa quan‐
do sentiu a agulha espetar seu braço. Ela se debateu e chutou, mas logo co‐
meçou a sentir suas forças se esvaindo como água descendo pelo ralo. Suas
pernas ficaram moles, e ela teria caído se os dois homens não a houvessem
segurado. Sabina não estava inconsciente. Seus pensamentos continuavam
bem claros. Ela sabia que estava em um terrível perigo, maior do que qual‐
quer outro que já correra, mas não tinha ideia de por que aquilo estava
acontecendo.
Indefesa, a garota foi arrastada até a ambulância e jogada lá dentro. Ha‐
via um colchão no chão, o que ao menos amorteceu sua queda. Então as
portas foram fechadas, e Sabina ouviu a tranca ser travada do lado de fora.
Estava presa e sozinha em uma caixa vazia de metal, incapaz de se mover,
pois a droga já fazia efeito. Sentia-se desesperada.
Os dois homens entraram no hospital como se nada houvesse acontecido.
O falso médico despiu o jaleco branco e o jogou em uma das latas de lixo.
Por baixo, usava um terno comum e logo percebeu que havia sangue na
frente de sua camisa. Seu nariz estava sangrando, mas isso era bom. Quan‐
do voltou a entrar no hospital, parecia ser apenas mais um paciente.
A ambulância começou a se mover lentamente. Se alguém houvesse se
dado ao trabalho de olhar, teria visto que o motorista estava vestido exata‐
mente com as mesmas roupas dos outros funcionários do hospital. Liz Plea‐
sure, que continuava sentada em seu carro, chegou a ver a ambulância pas‐
sar. Ela ainda ficou ali por mais meia hora, perguntando a si mesma por que
Sabina estava demorando tanto. Mas demoraria mais algum tempo até se
dar conta de que sua filha havia desaparecido.
14
TROCA DESLEAL

ERAM 17 HORAS QUANDO Alex chegou ao aeroporto da cidade de


Londres, no fim de um dia longo e frustrante que passara viajando por terra
e ar enquanto atravessava três países. Ele e Jack haviam tomado um ônibus
em Amsterdã, tendo como destino a Antuérpia, na Bélgica, mas acabaram
chegando tarde demais para conseguirem embarcar no voo da hora do almo‐
ço. Passaram três horas esperando no aeroporto até finalmente conseguirem
embarcar em um antigo Fokker 50, que pareceu demorar uma eternidade
para chegar à Inglaterra. Alex agora se perguntava se não havia desperdiça‐
do muito tempo tentando evitar os homens de Damian Cray. Um dia inteiro
havia passado. Mas ao menos o aeroporto estava no lado certo de Londres,
não muito longe da Liverpool Street e dos escritórios do Serviço Secreto
Britânico.
Alex pretendia levar o pen drive direto para Alan Blunt. Ele teria ligado
antes, mas não tinha certeza se o homem sequer atenderia a ligação. Uma
coisa era certa: o garoto não se sentiria seguro até que se livrasse daquele
pen drive. Só relaxaria quando o tivesse deixado com o MI6.
O plano era esse, mas tudo mudou assim que Alex pisou no terminal de
desembarque do aeroporto.
Uma mulher estava sentada em um café, lendo o jornal. A primeira pági‐
na estava aberta. Era quase como se houvesse sido colocada naquela posi‐
ção para que Alex a visse. Uma fotografia de Sabina. E a manchete.

ESTUDANTE DESAPARECE DE HOSPITAL

— Vamos por aqui — Jack estava dizendo. — Podemos pegar um táxi.


— Jack!
A garota viu a expressão no rosto de Alex e seguiu o olhar dele na dire‐
ção do jornal. Sem dizer mais nada, correu até a única loja do aeroporto e
comprou um exemplar.
A matéria era pequena, mas àquela altura não se tinha mesmo muita in‐
formação. Uma estudante de 15 anos do sul de Londres havia ido visitar o
pai no Hospital Whitchurch naquela manhã. O pai havia sido ferido recente‐
mente em um incidente terrorista no Sul da França. Inexplicavelmente, a
garota não chegara ao quarto do pai e, em vez disso, tinha desaparecido. A
polícia pedia para que qualquer testemunha se apresentasse. A mãe de Sabi‐
na já fizera um apelo na televisão pedindo que a filha voltasse para casa.
— Foi Cray — disse Alex com voz apática. — Ele a pegou.
— Oh, Deus, Alex — Jack parecia tão infeliz quanto ele. — Cray está
fazendo isso para conseguir o pen drive de volta. Nós deveríamos ter imagi‐
nado...
— Não havia como desconfiar disso. Como ele descobriu que Sabina era
minha amiga? — Alex pensou por um momento e respondeu sua própria
pergunta. — Yassen. Ele deve ter contado a Cray.
— Você precisa ir direto para o MI6. É a única coisa que pode fazer.
— Não. Quero ir primeiro para casa.
— Alex... por quê?
O garoto abaixou os olhos para a foto uma última vez, então amassou o
jornal.
— Cray deve ter deixado uma mensagem para mim.

Havia mesmo uma mensagem. Mas ela veio de uma forma completamente
inesperada para Alex.
Jack entrara primeiro na casa, checando tudo para se certificar de que
não havia ninguém esperando por eles. Então chamou Alex. Ela parecia fu‐
riosa quando apareceu na porta da frente.
— Está na sala de estar — disse a governanta.
O que estava na sala de estar era uma televisão de tela plana nova em fo‐
lha. Alguém estivera na casa, trouxera a TV e a deixara no meio da sala.
Havia uma webcam na parte de cima do aparelho.
— Um presente de Cray — murmurou Jack.
— Não acho que seja um presente — rebateu o garoto.
Havia um controle remoto perto da webcam. Alex o pegou com relutân‐
cia. Sabia que não ia gostar do que estava prestes a ver, mas não havia como
ignorar aquilo. Finalmente ligou a televisão.
A tela piscou, então clareou, e subitamente ele se viu cara a cara com
Damian Cray. De algum modo aquilo não surpreendeu Alex. Ele se pergun‐
tou se o astro havia voltado à Inglaterra ou se a transmissão estava sendo
feita de Sloterdijk. Sabia que estavam em tempo real, e que sua própria ima‐
gem estava sendo enviada de volta pela câmera. O garoto se sentou lenta‐
mente diante da tela, sem demonstrar nenhuma emoção.
— Alex! — Cray parecia relaxado e animado. Sua voz era tão clara co‐
mo se os dois estivessem na mesma sala. — Fico feliz por ter voltado para
casa em segurança. Estava esperando para conversarmos.
— Onde está Sabina?
— Onde está Sabina? Onde está Sabina? Que gracinha! Um amor juve‐
nil!
A imagem mudou. Alex ouviu Jack ofegar. Sabina estava deitada em
uma cama de campanha em um quarto vazio. Embora os cabelos da garota
estivessem despenteados, parecia ilesa. A menina levantou os olhos para a
câmera, e Alex viu o medo e a confusão naquele olhar.
Então a imagem voltou para Cray.
— Nós não a machucamos... ainda — disse. — Mas isso pode mudar a
qualquer momento.
— Não vou devolver o pen drive para você — garantiu o jovem.
— Escute-me, Alex — Cray se inclinou para a frente e pareceu chegar
mais perto da tela. — Os jovens de hoje são tão temperamentais! Já tive
muitos problemas e despesas por sua causa. E a questão é: você vai me de‐
volver o pen drive, porque, se não fizer isso, sua namoradinha vai morrer, e
você vai ver isso acontecer em vídeo.
— Não dê ouvidos a ele, Alex! — exclamou Jack.
— Ele está me dando ouvidos, e eu lhe pediria que não interrompesse!
— Cray sorriu. Ele parecia totalmente confiante, como se aquilo não fosse
nada além de outra entrevista de celebridades.
— Posso imaginar o que se passa em sua mente — ele continuou, voltan‐
do a falar com Alex. — Está pensando em ir até seus amigos do MI6. Eu o
desaconselho completamente a fazer isso.
— Como sabe que ainda não os procuramos?
— Espero sinceramente que não tenham feito isso — retrucou Cray. —
Porque sou um homem muito nervoso. Se achar que alguém está fazendo
perguntas demais a meu respeito, matarei a garota. Se perceber que estou
sendo observado por pessoas que não conheço, matarei a garota. Se um po‐
licial sequer relancear o olhar para mim na rua, posso muito bem matar a
garota. E lhe prometo uma coisa: se não me trouxer pessoalmente o pen dri‐
ve antes das 10 horas de amanhã, não tenha dúvida de que matarei a garota.
— Não! — Alex desafiou.
— Você pode mentir para mim, Alex, mas não pode mentir para si mes‐
mo. Você não trabalha para o MI6. Eles não significam nada para você. Mas
a garota significa. Se abandoná-la, você vai se arrepender pelo resto de sua
vida. E não vou parar nela. Iremos atrás de todos os seus amigos. Não su‐
bestime o meu poder! Destruirei tudo e todos que você conhece. Então irei
atrás de você. Portanto, não se iluda. Acabe com isso agora e me dê o que
eu quero.
Houve um longo silêncio.
— Onde posso encontrá-lo? — perguntou Alex. As palavras saíram com
dificuldade. Tinham gosto de fracasso.
— Na minha casa em Wiltshire. Você pode pegar um táxi na estação de
trem em Bath. Todos os motoristas sabem onde moro.
— Se eu levar o pen drive para você... — Alex se pegou lutando para en‐
contrar as palavras certas. — Como vou ter certeza de que a soltará? Como
vou saber se vai deixar todos nós em paz?
— Exatamente! — Jack voltou a se intrometer. — Como podemos confi‐
ar em você?
— Sou um cavaleiro da realeza! — exclamou Cray. — E se a Rainha
confia em mim, vocês certamente também podem confiar!
A tela ficou em branco.
Alex se virou para Jack. Daquela vez, sentia-se impotente.
— O que eu faço? — ele perguntou.
— Ignore-o, Alex. Vá ao MI6.
— Não posso, Jack. Você ouviu o que ele disse. Antes das 10 horas de
amanhã. O MI6 não conseguirá fazer nada antes disso, e, se eles tentarem
alguma coisa, Cray matará Sabina — ele apoiou a cabeça nas mãos. — Não
posso deixar isso acontecer. Ela só está metida nessa confusão por minha
causa. Eu não conseguiria viver comigo mesmo se não fizesse nada.
— Mas, Alex... muito mais pessoas podem ser afetadas se o Ataque à
Águia, seja lá o que isso for, seguir adiante.
— Não temos certeza disso.
— Você acha que Cray faria tudo isso se quisesse apenas roubar um ban‐
co ou coisa parecida?
Alex não disse nada.
— Cray é um assassino, Alex. Eu realmente sinto muito... Gostaria de
ser capaz de ajudar mais. Mas não acho que você deva simplesmente entrar
na casa dele.
Alex pensou a respeito. Por um longo período. Como Cray estava com
Sabina, ele dava as cartas. No entanto, talvez houvesse um modo de conse‐
guir tirá-la de lá. Mas, para isso, Alex teria que se entregar. Mais uma vez
seria prisioneiro de Cray. Porém, com Sabina livre, Jack poderia entrar em
contato com o MI6. E talvez, apenas talvez, o garoto conseguisse sair dessa
confusão com vida.
Ele explicou rapidamente sua ideia para Jack. Ela ouviu, mas quanto
mais ouvia, mais infeliz parecia.
— Isso é terrivelmente perigoso, Alex — ela advertiu.
— Mas pode funcionar.
— Você não pode entregar o pen drive a eles.
— Não entregarei, Jack.
— E se tudo der errado?
Alex deu de ombros.
— Então Cray ganha. O Ataque à Águia acontece — ele tentou sorrir,
mas não havia humor em sua voz. — Mas ao menos teremos descoberto
que diabo é isso.

A casa ficava no extremo da cidade de Bath, a vinte minutos de carro da es‐


tação de trem. Cray estivera certo sobre uma coisa. O motorista de táxi sa‐
bia onde era a casa sem precisar de um mapa ou do endereço, e, quando o
carro entrou na alameda particular que levava à entrada principal, Alex en‐
tendeu o porquê.
Damian Cray morava em um convento italiano. De acordo com os jor‐
nais, ele o vira na Umbria, ficou apaixonado pela construção e a despachou
para a Inglaterra, tijolo a tijolo. O prédio era realmente extraordinário. E pa‐
recia dominar toda a região ao redor, apesar de ficar afastado da vista da rua
por um muro alto, de tijolos cor de mel com dois portões de madeira de no
mínimo dez metros de altura entalhados. Mais além do muro, Alex pôde ver
uma cobertura de telhas de terracota inclinada e, mais adiante, uma torre
elaborada, com pilares, janelas em arco e ameias em miniatura. A maior
parte do jardim também fora importada da Itália, com ciprestes verdes e si‐
nuosos e oliveiras. Até mesmo o clima não parecia ser completamente in‐
glês. O sol aparecera, e o céu estava de um azul radiante. Devia ser o dia
mais quente do ano.
Alex pagou ao motorista e desceu do carro. O garoto usava uma blusa de
ciclista de um cinza pálido, com mangas curtas e sem os protetores de coto‐
velo. Enquanto descia na direção dos portões, abriu o zíper que estava fe‐
chado até o pescoço, permitindo que a brisa refrescasse sua pele. Havia uma
corda saindo de um buraco no muro, e ele a puxou. Uma campainha soou.
Alex refletiu que, muito tempo antes, aquela mesma campainha devia ter o
propósito de chamar as freiras para a oração. Parecia tão errado que uma
construção sagrada tivesse sido arrancada de suas raízes e reformada para
ser o covil de um louco...
Os portões se abriram eletronicamente. Alex entrou e se descobriu em
um claustro: um retângulo de relva perfeitamente aparada, cercado por está‐
tuas de santos. Mais adiante ficava uma capela do século 14, junto a uma
villa italiana — de algum modo as duas construções pareciam conviver em
perfeita harmonia. O garoto sentiu cheiro de limão no ar. Música pop tocava
em algum lugar dentro da casa. Alex reconheceu a canção. Era White Lines.
Cray estava tocando seu próprio CD.
A porta da frente se abriu. Como não havia ninguém à vista, Alex entrou.
Ela levava diretamente a um espaço aberto amplo com uma bela mobília ar‐
rumada sobre um chão de placas de cerâmica vermelha. Havia um grande
piano feito de pau-rosa e várias pinturas, enfeites de altares medievais, pen‐
durados nas paredes simples, pintadas de branco. Uma fileira de seis janelas
dava vista para um terraço com um jardim atrás. Cortinas brancas de musse‐
lina desciam do teto ao chão e ondulavam levemente por causa da brisa.
Damian Cray estava sentado em uma cadeira de madeira decorada com
entalhes e segurava um cachorro poodle no colo. Ele levantou os olhos
quando Alex entrou na sala.
— Ah, aí está você, Alex — Cray acariciou o cachorro. — Esse é Bub‐
bles. Não é lindo?
— Onde está Sabina? — perguntou o garoto.
Cray fechou uma carranca.
— Não admito ser pressionado — ele falou. — Não na minha própria ca‐
sa.
— Onde ela está?
— Está bem!
O momento de raiva passara. Cray se levantou e o cachorro pulou de seu
colo e correu pela sala. O astro pop foi até a mesa e apertou um botão. Al‐
guns segundos depois, a porta se abriu e Yassen Gregorovich entrou. Sabina
estava com ele. Os olhos da garota se arregalaram ao verem Alex, mas ela
não podia falar. Suas mãos estavam amarradas e uma fita adesiva tapava sua
boca. Yassen forçou-a a se sentar em uma cadeira e ficou ao lado dela. O
russo evitou olhar para o garoto.
— Está vendo, Alex, ela está aqui — disse Cray. — Um pouco assustada,
talvez, mas ilesa.
— Por que a amarrou? — ele quis saber. — Por que não a deixa falar?
— Porque ela me disse algumas coisas muito feias — retrucou Cray. —
E também tentou me atacar. Na verdade, a mocinha se comportou de um
modo nada recomendável a uma dama — A expressão dele se fechou. —
Agora... você tem alguma coisa para mim?
Aquele era o momento que Alex temia. Ele tinha um plano. Quando esta‐
va sentado no trem que o levava de Londres a Bath, no táxi, e até mesmo
quando entrou na casa, tinha certeza de que funcionaria. Agora, encarando
Damian Cray, subitamente não se sentiu mais seguro.
Alex enfiou a mão no bolso e pegou o pen drive. A cápsula prateada ti‐
nha uma tampa e, quando o garoto a abriu, viu uma confusão de circuitos
eletrônicos lá dentro. Ele prendera ali um tubo de cor brilhante, com a ex‐
tremidade apontando para dentro do pen drive. Alex levantou-o para que
Cray pudesse ver.
— O que é isso? — quis saber o homem.
— Uma cola de alta aderência — explicou Alex. — Não sei o que há
dentro de seu precioso pen drive, mas duvido que consiga fazer este instru‐
mento funcionar se a cola se espalhar por ele. Basta eu fechar minha mão, e
você pode esquecer o Ataque à Águia. Pode esquecer todo o seu plano.
— Que engenhoso! — Cray riu. — Mas acho que não entendi bem aonde
quer chegar.
— É simples — falou o garoto. — Você solta Sabina, e ela sai daqui, vai
até um pub ou à casa de alguém e telefona para mim. Você pode lhe dar o
número do seu telefone aqui. Quando souber que ela está a salvo, entregarei
o pen drive.
Alex estava mentindo.
Assim que Sabina saísse, ele apertaria o tubo de qualquer forma. O pen
drive ficaria cheio daquela cola que secaria quase no mesmo instante. Alex
estava quase certo de que isso estragaria completamente o pen drive, e não
tinha o menor escrúpulo de enganar Cray. Esse era o seu plano o tempo to‐
do. Não gostava de pensar no que aconteceria consigo mesmo, mas isso não
importava. Sabina estaria livre. E assim que Jack soubesse que a garota es‐
tava a salvo, poderia agir. Jack ligaria para o MI6. Alex só precisava dar um
jeito de ainda estar vivo quando eles chegassem.
— Essa é a sua ideia? — perguntou Cray.
Alex não disse nada, e o astro continuou.
— Muito inteligente da sua parte. E muito bonitinho. Mas a questão é...
— Ele ergueu um dedo. — Irá funcionar?
— Estou falando sério — Alex ergueu o pen drive. — Solte-a.
— Mas e se ela for direto até a polícia?
— Ela não irá.
Sabina tentou gritar que não concordava por trás da mordaça. Alex respi‐
rou fundo.
— Você ainda tem a mim — ele explicou. — Se Sabina for à polícia, po‐
de fazer o que quiser comigo. De qualquer modo, ela não sabe o que está
nos seus planos. Não há nada que possa fazer.
Cray negou com um aceno de cabeça e disse:
— Sinto muito.
— O quê?
— Sem acordo!
— Está falando sério? — Alex fechou a mão ao redor do tubo.
— Muito sério.
— E quanto ao Ataque à Águia?
— E quanto à sua namorada? — Havia uma tesoura de cozinha pesada
sobre a mesa. Antes que Alex pudesse dizer qualquer coisa, Cray pegou-a e
a arremessou para Yassen. Sabina começou a lutar furiosamente, mas o rus‐
so manteve-a no lugar. — Você cometeu um erro de cálculo, Alex — conti‐
nuou Cray. — É muito corajoso e está disposto a tudo para libertar a garota.
Mas eu farei qualquer coisa para continuar com ela. E me pergunto quanto
você aguentará ver, até onde terei que ir, antes que entenda que terá que me
dar o pen drive de qualquer modo. Um dedo, talvez? Dois dedos?
Yassen abriu a tesoura. Sabina agora ficou muito quieta. Seus olhos pare‐
ciam implorar a Alex.
— Não! — gritou o garoto.
Ele sentiu uma onda de desespero ao perceber que Cray vencera. Alex
acreditara que conseguiria ao menos tirar Sabina dali. Mas perdera.
Cray viu o desespero nos olhos do garoto.
— Dê o pen drive para mim! — exigiu.
— Não.
— Comece com o dedo mínimo, Yassen. Então continuaremos um a um
até chegarmos ao polegar.
Lágrimas encheram os olhos de Sabina. Ela não conseguia esconder o
terror que sentia.
Alex estava nauseado. O suor descia pela lateral do seu corpo, sob a blu‐
sa. Não havia nada que pudesse fazer. Naquele momento, desejou ter ouvi‐
do Jack. Desejou nunca ter ido até ali.
Ele jogou o pen drive sobre a mesa.
Cray pegou o objeto.
— Bem, isso resolve as coisas — disse o homem com um sorriso. —
Agora por que não esquecemos todas essas coisas desagradáveis e tomamos
uma boa xícara de chá?
15
LOUCURA E BISCOITOS

O CHÁ FOI SERVIDO AO AR LIVRE, no gramado — mas um grama‐


do enorme, junto a um jardim que não se parecia com nada que Alex já ti‐
vesse visto antes. Cray construíra para si uma terra de fantasia na área rural
inglesa, com dezenas de piscinas, fontes, templos em miniatura e grutas.
Havia um jardim de rosas, um jardim de estátuas, outro só de flores bran‐
cas, e ainda mais um, só de ervas, dispostas como um relógio. E, ao redor,
Cray construíra réplicas de construções que Alex reconheceu. A Torre Eif‐
fel, o Coliseu de Roma, o Taj Mahal e a Torre de Londres, todos juntos em
uma escala de um centésimo do tamanho original, como imagens de cartão-
postal espalhadas no chão. Era o jardim de um homem que queria dominar
o mundo, mas não podia, por isso reduzira o mundo ao seu próprio tama‐
nho.
— O que acha disso? — perguntou Cray quando se juntou a Alex à me‐
sa.
— Já vi alguns jardins estranhos — Alex retrucou calmamente —, mas
nenhum tão louco quanto este.
Cray sorriu.
Havia cinco pessoas sentadas no terraço elevado do lado de fora da casa:
Cray, Alex, Yassen, o homem chamado Henryk e Sabina. Ela fora desamar‐
rada, e a mordaça havia sido tirada de sua boca. Assim que se viu livre, a
menina correu para abraçar Alex.
— Desculpe — ela sussurrou. — Eu devia ter acreditado em você.
Foi tudo o que disse. Depois, ficou em silêncio, o rosto muito pálido.
Alex sabia que a amiga estava com medo. Era bem típico de Sabina não
querer demonstrar.
— Bem, estamos todos aqui. Uma família feliz — disse Cray.
Ele apontou para o homem de cabelos grisalhos e rosto marcado. Agora
mais de perto, Alex percebeu que Henryk era muito feio. Seus olhos, au‐
mentados pelos óculos, estavam levemente inflamados. Usava uma camisa
de brim apertada demais, que destacava sua barriga saliente.
— Acho que você ainda não conhece Henryk — disse Cray.
— Acho que não quero conhecer — retrucou Alex.
— Você não deve ser um mau perdedor, Alex. Henryk é muito valioso
para mim. Ele pilota aviões jumbo, Boeings 747.
Aviões jumbo. Outra peça do quebra-cabeça.
— Então, para onde ele vai levar você? — perguntou o garoto. — Espero
que seja para bem longe.
Cray sorriu para si mesmo.
— Logo chegaremos a isso. Mas, antes, posso servir o chá? É Earl Grey,
espero que não se importe. E sirva-se de um biscoito.
Cray serviu cinco xícaras e apoiou o bule na mesa. Yassen ainda não fa‐
lava. Alex tinha a sensação de que o russo sentia-se desconfortável por estar
ali. Essa era outra coisa estranha. Ele sempre considerara Yassen seu pior
inimigo, mas agora, sentado ali, o russo parecia quase irrelevante. Aquela
situação só dizia respeito a Damian Cray.
— Temos uma hora antes de partir — falou o astro pop. — Por isso pen‐
sei em lhe contar um pouco a meu respeito. Acho que pode ajudar a passar
o tempo.
— Na verdade, não estou muito interessado.
O sorriso de Cray se tornou um pouco menos brilhante.
— Não posso acreditar que isso seja verdade. Você parece estar interes‐
sado em mim já há um bom tempo.
— Você tentou matar meu pai — disse Sabina.
Cray se virou, surpreso por ouvir a voz da garota.
— Sim, isso é verdade — ele admitiu. — E, se você conseguir ficar de
boca calada, vou lhe contar o porquê.
Cray fez uma pausa. Duas borboletas voavam em volta de um canteiro
de lavanda.
— Tenho tido uma vida extremamente interessante e privilegiada — ele
começou. — Meus pais eram ricos. Muito ricos, poderíamos dizer. Mas não
eram nada interessantes. Meu pai era um homem de negócios e, para dizer a
verdade, bem chato. Minha mãe não fazia muita coisa, mas eu também não
gostava muito dela. Era filho único e, naturalmente, fui mimado demais. Às
vezes acho que era mais rico aos 8 anos de idade do que a maior parte das
pessoas consegue ser ao longo de toda a vida!
— Temos mesmo que escutar isso? — perguntou Alex.
— Se interromper novamente, pedirei a Yassen para pegar a tesoura —
retrucou Cray. E continuou. — Tive minha primeira briga séria com meus
pais quando tinha 13 anos. Entenda, eles me mandaram para a Real Acade‐
mia de Música de Londres. Eu era um cantor extremamente talentoso. Mas
o problema era que detestava aquele lugar. Bach, Beethoven, Mozart e Ver‐
di. Pelo amor de Deus, eu era um adolescente! Queria ser Elvis Presley,
queria entrar para uma banda pop, queria ser famoso! E meu pai ficou mui‐
to aborrecido quando lhe disse isso. Ele costumava torcer o nariz para tudo
o que era popular, e realmente achou que eu tinha falhado com ele. E acho
que minha mãe concordava com isso. Ambos haviam colocado na cabeça
que, um dia, eu cantaria ópera no Covent Garden, ou alguma coisa horrível
assim. Eles não queriam que eu saísse da Real Academia. Na verdade, não
permitiriam que eu saísse... e não sei como teria sido se os dois não tives‐
sem sofrido aquele extraordinário acidente de carro. O veículo caiu em ci‐
ma deles, sabe. Não posso dizer que fiquei muito chateado, embora, é claro,
tenha fingido que estava arrasado. Mas sabe o que pensei? Que Deus devia
estar do meu lado. Ele queria que eu fosse um sucesso e por isso havia deci‐
dido me ajudar.
Alex relanceou o olhar para Sabina, para ver como a garota estava rea‐
gindo a tudo aquilo. Ela estava sentada rigidamente na cadeira, a xícara de
chá à sua frente intocada. Não havia cor em seu rosto. Mas ainda mantinha
o controle. Não ia ceder.
— De qualquer modo — continuou Cray — a melhor coisa era que meus
pais estavam fora do caminho e, ainda melhor, eu havia herdado todo o di‐
nheiro deles. Quando tinha 21 anos, comprei um apartamento em Londres,
na verdade uma cobertura, e montei minha própria banda. Nós a batizamos
de Slam! Como estou certo de que já sabe, o resto é história. Cinco anos
mais tarde, parti para minha carreira solo e logo já era o maior cantor do
mundo. Foi quando comecei a pensar no mundo em que estava. Queria aju‐
dar as pessoas. Durante toda a minha vida, sempre quis ajudar as pessoas.
Pelo jeito que está me olhando, Alex, vejo que deve achar que sou algum ti‐
po de monstro. Mas não sou. Já arrecadei milhões de dólares para a carida‐
de. Milhões e milhões. E devo lembrá-lo, no caso de você ter esquecido, de
que fui condecorado como cavaleiro da rainha. Sou, na verdade, Sir Damian
Cray, embora não use o título porque não sou esnobe. Uma dama adorável,
por sinal, a rainha. Você sabe quanto dinheiro a música que lancei no Natal,
Something for the Children arrecadou? O bastante para alimentar um país
inteiro!
O astro pop inspirou e continuou.
— Mas o problema é que, às vezes, ser rico e famoso não é o bastante.
Eu realmente queria fazer a diferença, mas como agir quando as pessoas
não escutam? Quero dizer, veja o caso do Milburn Institute, em Bristol. Era
um laboratório que trabalhava para algumas empresas de cosméticos, e des‐
cobri que eles estavam testando a maioria de seus produtos em animais. Te‐
nho certeza de que ficaríamos do mesmo lado nessa questão, Alex. Tentei
detê-los. Fiz campanha por mais de um ano. Fizemos um abaixo-assinado
com 20 mil assinaturas, e, mesmo assim, eles não atenderam. Por isso, no
fim... bem, eu conhecia pessoas e, é claro, tenho muito dinheiro. Assim,
percebi subitamente que o melhor a ser feito seria matar o professor Mil‐
burn. E foi o que fiz. Seis meses mais tarde, o instituto foi fechado, e tudo
estava acabado. E os animais protegidos.
Cray levou a mão à travessa e pegou um biscoito. Estava obviamente sa‐
tisfeito consigo mesmo.
— Acabei sendo o responsável pela morte de várias pessoas nos anos
que se seguiram — continuou. — Por exemplo, havia algumas pessoas ex‐
tremamente desagradáveis desmatando a floresta equatorial no Brasil. Eles
ainda estão na floresta... a sete palmos do chão. Então houve o grupo de
pescadores japoneses que não queria me ouvir. Estão todos congelados em
seus próprios freezers. Isso os ensinará a não caçar baleias! E também hou‐
ve o caso de uma empresa em Yorkshire, que estava vendendo minas terres‐
tres. Não gostei nada deles. Por isso, dei um jeito para que todo o conselho
de diretores desaparecesse em uma viagem sem volta a Lake District, e co‐
loquei um ponto final na história.
Ele se virou para Sabina.
— Já tive que fazer algumas coisas terríveis. Tive, mesmo. Realmente
não gostei de ter que explodir seu pai. Se ele não houvesse me espionado,
isso não teria sido necessário. Mas você precisa entender, não podia permi‐
tir que ele estragasse meus planos.
Todo o corpo de Sabina enrijeceu, e Alex sabia que ela estava tendo que
se controlar muito para não atacar Cray. Mas Yassen continuava sentado
bem ao lado da garota, e ela não teria conseguido chegar muito longe.
Cray continuou.
— Esse é um mundo terrível, e, se você quer fazer a diferença, às vezes
precisa apelar para medidas extremas. E essa é a questão. Eu me sinto extre‐
mamente orgulhoso por ter ajudado tantas pessoas em tantas causas diferen‐
tes. Porque ajudar pessoas, fazer caridade, tem sido o trabalho da minha vi‐
da.
Ele fez uma longa pausa para comer o biscoito que escolhera.
Alex forçou-se a beber um pouco do chá aromatizado. Detestava o sabor,
mas sua boca estava completamente seca.
— Tenho algumas perguntas — disse o garoto.
— Faça-as, por favor. Vá em frente.
— A primeira é para Yassen Gregorovich — Alex se virou para o russo.
— Por que está trabalhando para esse lunático?
Ao lançar a pergunta, Alex se perguntou se Cray o agrediria. Mas valeria
a pena. Tudo indicava que o russo não compartilhava da visão de mundo do
astro pop. Yassen parecia desconfortável, deslocado. Alex achou que valia a
pena tentar semear um pouco de discórdia entre os dois.
Cray fechou a cara, mas não fez nada. Apenas gesticulou para que Yas‐
sen respondesse.
— Ele me paga — respondeu o russo simplesmente.
— Espero que sua segunda pergunta seja mais interessante — provocou
Cray.
— Sim. Você está tentando me dizer que tudo o que faz é por uma boa
causa. Acha que toda essa matança vale a pena por causa dos resultados.
Não estou certo se concordo. Muitas pessoas trabalham para a caridade,
muitas querem mudar o mundo. Mas não precisam se comportar como vo‐
cê.
— Estou esperando — falou Cray, irritado.
— Está certo. Minha pergunta é: o que é o Ataque à Águia? Está mesmo
me dizendo que é um plano para tornar o mundo um lugar melhor?
Cray riu baixinho. Por um momento, pareceu o estudante diabólico que
fora um dia, satisfeito com a morte dos pais.
— Sim — respondeu. — o Ataque à Águia é exatamente isso. Às vezes,
grandes pessoas são incompreendidas. Você não me entende, sua namorada
não me entende. Mas realmente quero mudar o mundo. É tudo o que sempre
quis. E tenho tido muita sorte porque a minha música tornou isso possível.
No século 21, artistas são muito mais influentes do que políticos ou gover‐
nantes. E sou o único que percebe isso.
Cray pegou um segundo biscoito, dessa vez com recheio de creme.
— Deixe eu lhe fazer uma pergunta, Alex. Qual você acha que é o maior
mal no planeta hoje?
— Incluindo você, ou não? — rebateu o garoto.
Cray franziu o cenho e advertiu:
— Por favor, não me irrite.
— Não sei — Alex falou. — Diga você.
— Drogas! — Cray pareceu cuspir a palavra, como se a resposta fosse
óbvia. — As drogas estão causando mais infelicidade e destruição do que
qualquer outra coisa no mundo. Elas matam mais do que a guerra ou o ter‐
rorismo. Você sabia que as drogas são a maior causa dos crimes na socieda‐
de ocidental? Temos crianças nas ruas usando heroína e cocaína, e elas rou‐
bam para conseguir financiar seu vício. Mas não são criminosos, são víti‐
mas. As drogas são as culpadas.
— Nós já falamos sobre isso na escola — falou Alex.
A última coisa de que o garoto precisava naquele momento era de um
sermão.
— Durante toda a minha vida, venho lutando contra as drogas — Cray
continuou. — Fiz propagandas para o governo. Gastei milhões construindo
centros de reabilitação. Escrevi músicas. Você já deve ter ouvido White Li‐
nes.
O astro fechou os olhos e cantarolou.

O veneno está aí. O veneno está se espalhando


Pelo amor de Deus, está em todo lugar.
Por que ninguém está procurando
Acabar com esse jogo que ninguém pode ganhar?

Então, parou de cantar e falou:


— Sei como acabar com isso. Já planejei tudo. E é disso que se trata o
Ataque à Águia. Um mundo sem drogas. Não é a realização de um sonho,
Alex? Não vale a pena alguns sacrifícios? Pense! O fim do problema com
as drogas. Posso conseguir isso.
— Como? — Alex quase tinha medo de ouvir a resposta.
— É fácil. Os governantes não vão fazer nada. A polícia também não.
Ninguém pode deter os traficantes. Por isso temos que atacar o abasteci‐
mento. É preciso pensar de onde vêm essas drogas. De onde? Vou lhe con‐
tar.
E contou:
— Todo ano, centenas e centenas de toneladas de heroína saem do Afe‐
ganistão, em particular das províncias de Nangarhar e Helmand. Você sabia
que a produção cresceu 140% desde que o talibã foi derrotado? Graças
àquela guerra particular! Então, depois do Afeganistão, há Myanmar, a anti‐
ga Birmânia, e o triângulo de ouro, com cerca de cem mil hectares de terra
usados para produzir ópio e heroína. O governo de Myanmar não se impor‐
ta. Ninguém se importa. E não nos esqueçamos do Paquistão, que produz
155 toneladas de ópio por ano, com refinarias por toda a região de Khyber e
nos arredores. Do outro lado do mundo, há a Colômbia. É a principal pro‐
dutora e distribuidora de cocaína, mas também produz heroína e maconha.
É um negócio de três bilhões de dólares por ano, Alex. Oitenta toneladas de
cocaína a cada ano. Sete de heroína. Grande parte disso termina nas ruas
das cidades americanas. Nas escolas. Provocando uma onda de miséria e
crime. Mas isso é apenas uma pequena parte do quadro geral.
Cray ergueu a mão e começou a contar os países nos dedos. Em seguida,
voltou a falar:
— Há refinarias na Albânia, comboios na Tailândia, plantação de coca
no Peru, plantações de papoula para extração de ópio no Egito. A efedrina,
o produto químico usado na produção da heroína, é produzido na China.
Um dos maiores mercados de drogas do mundo pode ser encontrado em
Tashkent, no Uzbequistão. Essas são as principais fontes dos problemas das
drogas no mundo. É aí que começa o problema. Portanto, esses são meus al‐
vos.
— Alvos... — Alex sussurrou a palavra.
Damian Cray pegou o pen drive no bolso. Yassen tornou-se subitamente
alerta. O garoto sabia que o russo estava armado e que atiraria se ele sequer
se mexesse.
— Embora você não pudesse saber — explicou Cray isso na verdade é
uma chave para penetrar em um dos mais complexos sistemas de segurança
já programados. A chave original foi criada pela Agência Nacional de Se‐
gurança norte-americana e é carregada pelo presidente dos Estados Unidos.
Meu amigo, o falecido Charlie Roper, era um funcionário graduado da
Agência, e sua experiência, o conhecimento que tinha dos códigos, tudo is‐
so me permitiu fabricar uma duplicata. Mesmo assim, foi preciso um enor‐
me esforço. Você não tem ideia de quanta capacidade de processamento um
computador exigiu para criar uma segunda chave.
— O Gameslayer — falou Alex.
— Sim. Foi o disfarce perfeito. Tantas pessoas, tanta tecnologia. Uma fá‐
brica com toda a capacidade de processamento que eu poderia desejar. E, na
realidade, tudo foi para chegar a isso!
Ele ergueu a pequena cápsula de metal.
— Esta chave vai me garantir acesso a 2500 mísseis nucleares. São mís‐
seis americanos e estão em alerta para disparo imediato, o que significa que
podem ser lançados num piscar de olhos. Minha intenção é desativar o sis‐
tema da Agência Nacional de Segurança dos EUA e atirar 25 desses mísseis
em alvos que escolhi cuidadosamente ao redor do mundo.
Cray sorriu com tristeza.
— É quase impossível imaginar a devastação que será causada por 25
mísseis de cem toneladas explodindo ao mesmo tempo. América do Sul,
Ásia, África... quase todos os continentes sofrerão. E haverá sofrimento,
Alex. Disso estou bem certo. Mas, então, terei destruído campos de papou‐
la. Fazendas e fábricas. Refinarias, rotas de distribuição e mercados de ven‐
da. Não haverá mais traficantes de drogas porque não haverá mais abasteci‐
mento de drogas. É claro que milhões morrerão. Mas milhões serão salvos.
Isso é que é o Ataque à Águia, Alex. O começo de uma nova era de ouro.
Um dia em que toda a humanidade se unirá em júbilo. E esse dia chegou!
Meu momento finalmente chegou!
16
O ATAQUE À ÁGUIA

ALEX E SABINA FORAM levados para uma sala em algum lugar no


subsolo da casa e jogados lá dentro. A porta se fechou, e eles se viram sozi‐
nhos.
Alex fez sinal para que Sabina não falasse, então começou uma rápida
busca. A porta era uma placa grossa de carvalho sólido, fechada à chave pe‐
lo lado de fora e provavelmente também com trancas de correr. Havia uma
janela quadrada no alto da parede, mas tinha barras de proteção e, de qual‐
quer modo, não era grande o bastante para que conseguissem passar por ela.
O cômodo não tinha vista para lugar algum, devia ter sido usado como ade‐
ga em outra época. As paredes eram nuas, sem nenhuma decoração; o chão,
de concreto. E, a não ser por algumas poucas prateleiras, não havia mobília.
Uma lâmpada pendia de um fio no teto. Alex procurava microfones escon‐
didos. Era pouco provável que Cray fosse querer ouvir o que diziam, mas,
mesmo assim, o garoto queria se certificar de que não seriam escutados.
Somente depois de ter verificado toda a sala Alex se virou para Sabina.
A garota parecia surpreendentemente calma. Ele pensou em todas as coisas
que haviam acontecido com ela. Fora sequestrada e mantida prisioneira,
amarrada e amordaçada. Estivera cara a cara com o homem que ordenara a
execução do seu pai e o ouvira descrever sua ideia insana para destruir me‐
tade do mundo. E ali estava, agora outra vez trancada, praticamente certa de
que os dois não conseguiríam sair vivos daquele lugar. Sabina devia estar
apavorada, mas simplesmente permaneceu quieta enquanto Alex terminava
de checar o espaço, e ela o observava como se o estivesse vendo pela pri‐
meira vez.
— Você está bem? — o garoto por fim perguntou.
— Alex... — Só então, quando Sabina tentou falar, a emoção veio. Ela
respirou fundo e lutou para recuperar o controle. — Não acredito que isso
está acontecendo.
— Eu sei. Gostaria de que não estivesse — Alex não sabia o que dizer.
— Como eles a pegaram? — perguntou.
— Eram três... no hospital.
— E machucaram?
— Eles me assustaram e me deram uma injeção — ela fechou a cara. —
Deus... Damian Cray é um louco! E nunca havia percebido que ele era tão...
pequeno!
Aquilo fez com que Alex sorrisse, apesar de tudo. Sabina não mudara.
Mas ela estava séria.
— Assim que o vi, pensei em você. E percebi que havia me contado a
verdade naquele dia... Eu me senti tão idiota por não ter acreditado! Você
realmente é o que disse ser. Um espião!
— Não exatamente...
— O MI6 sabe que está aqui?
— Não.
— Mas você deve ter algum tipo de equipamento. Lembro que me disse
que eles lhe davam engenhocas. Não tem nenhum cadarço explosivo ou al‐
guma coisa desse tipo para nos tirar daqui?
— Não tenho nada. O MI6 não sabe que estou aqui. Depois do que acon‐
teceu no banco, na Liverpool Street, acabei indo sozinho atrás de Cray. Es‐
tava tão furioso com o modo como eles a haviam enganado e mentido a
meu respeito! Fui tolo. Quero dizer, estava com o pen drive na mão... e o
entreguei de volta a Cray!
Sabina compreendeu e disse:
— Você veio aqui para me resgatar!
— E que resgate...
— Depois do modo como o tratei, deveria ter simplesmente me abando‐
nado.
— Não sei, Sab. Achei que eu tivesse tudo planejado. Achei que eles a
soltariam e que tudo daria certo. Eu não tinha ideia... — Alex chutou a por‐
ta. Era sólida como uma pedra. — Temos que detê-lo. Temos que fazer al‐
guma coisa.
— Talvez Cray esteja inventando — sugeriu Sabina. — Pense bem. Ele
disse que estava prestes a disparar 25 mísseis ao redor do mundo. Mísseis
americanos. Mas eles são todos controlados pela Casa Branca. Apenas o
presidente americano pode dispará-los. Todo mundo sabe disso. Então o que
Cray vai fazer? Voar para Washington e tentar invadir a Casa Branca.
— Espero que esteja certa. Mas Cray está à frente de uma enorme orga‐
nização. Ele passou anos planejando isso e gastou milhões de dólares. Yas‐
sen Gregorovich trabalha para ele.
O garoto foi até onde Sabina estava. Ele queria passar os braços ao redor
dela, mas acabou ficando apenas parado, constrangido, à sua frente.
— Escute — falou Alex. — Isso pode parecer realmente presunçoso, e
você sabe que normalmente não lhe diria o que fazer, mas a questão é que,
de certa forma, já passei por isso antes...
— Como assim? Já foi trancado por um maníaco que quer destruir o
mundo?
— Bem... sim. Na verdade, já — ele suspirou. — Meu tio já me treinava
para ser um espião quando eu ainda era pequeno. Nunca percebi. E o que eu
lhe disse é verdade. Eles me fizeram treinar com o Serviço Aéreo Especial.
O que quero dizer é que... conheço algumas coisas. E isso pode significar
que talvez tenhamos uma chance de voltarmos a ver Cray. Mas, se isso
acontecer, você precisa deixar tudo por minha conta. Tem que fazer o que
eu disser. Sem discutir...
— Esqueça! — Sabina negou com a cabeça. — Farei o que você disser.
Mas foi o meu pai que ele tentou matar. E vou lhe dizer que, se Cray deixar
uma faca de cozinha que seja por perto, vou enfiá-la em algum lugar bas‐
tante doloroso.
— Pode já ser tarde demais para isso — falou Alex desanimado. — Cray
deve ter simplesmente nos deixado aqui. Ele já deve até ter partido.
— Acredito que não. Acho que ele precisa de você... só não sei por quê.
Talvez porque você tenha chegado perto de derrotá-lo.
— Estou feliz por você estar aqui — disse o garoto.
Sabina o encarou.
— Eu não estou.
Dez minutos depois, a porta foi aberta, e Yassen Gregorovich apareceu
carregando dois conjuntos do que pareciam ser macacões com marcas ver‐
melhas e números de série nas mangas.
— Vistam isso — ele disse.
— Por quê? — perguntou Alex.
— Cray quer vê-los. Vocês virão conosco. Façam o que estou dizendo.
Mas Alex ainda hesitou.
— O que é isso? — quis saber. Havia algo perturbadoramente familiar
no que Gregorovich estava mandando-os usar.
— O tecido é um tipo especial de poliamida — explicou o russo. As pa‐
lavras não significaram nada para Alex. — É usado no caso de ataques com
armas químicas — acrescentou. — Agora, vistam isso.
Com uma crescente sensação de desespero, Alex colocou aquela peça
por cima das próprias roupas. Sabina fez o mesmo. Os macacões os cobri‐
ram completamente, com capuzes por cima de suas cabeças. O garoto per‐
cebeu que, depois de vestidos, ficariam completamente disformes. Seria im‐
possível dizer que eram adolescentes.
— Agora venham comigo — chamou Yassen.
Eles voltaram por dentro da casa e saíram no claustro. Agora havia três
veículos estacionados no gramado: um jipe e dois caminhões cobertos, am‐
bos pintados de branco e com as mesmas marcas vermelhas dos macacões.
Havia cerca de vinte homens, todos usando roupas com o mesmo tecido dos
meninos. Henryk, o piloto holandês, estava na parte de trás do jipe, limpan‐
do as lentes dos óculos com movimentos nervosos. Damian Cray permane‐
cia parado perto dele, conversando. No entanto, ao ver Alex, parou e se
aproximou. Estava agitado e caminhava com passos orgulhosos, os olhos
ainda mais brilhantes do que o normal.
— Então você está aqui! — exclamou como se estivesse recebendo Alex
em uma festa. — Excelente! Cheguei à conclusão de que quero que venha
junto conosco. O sr. Gregorovich tentou me dissuadir da ideia, mas esse é o
problema dos russos: eles não têm o menor senso de humor. Entenda, Alex,
nada disso teria acontecido sem você, se não tivesse me trazido o pen drive.
Acho justo que veja como eu o usarei.
— Eu preferiria ver você sendo mandado para uma penitenciária — reba‐
teu o garoto.
Cray simplesmente riu.
— É disso que gosto em você! — exclamou. — Você é tão grosseiro.
Mas preciso avisá-lo de que Yassen o estará observando com olhos de fal‐
cão. Ou talvez deva dizer olhos de águia. Se tentar qualquer coisa, se sequer
piscar sem permissão, ele vai atirar em sua namorada. E depois vai atirar
em você. Entendeu?
— Aonde vamos? — perguntou Alex.
— Vamos pegar a estrada para Londres. Levará apenas cerca de duas ho‐
ras. Você e Sabina irão no primeiro caminhão, com Yassen. A propósito, o
Ataque à Águia já começou. Está tudo certo. Achei que gostaria de saber.
Cray deu as costas para eles e seguiu para o jipe. Alguns minutos mais
tarde, o comboio partiu, passou pelos portões e voltou à estrada principal
pela alameda. Alex e Sabina estavam sentados um ao lado do outro em um
banco estreito de madeira. Havia seis homens com eles, todos armados com
rifles automáticos pendurados por cima dos macacões brancos. O garoto
achou que reconhecia um dos rostos do complexo industrial nos arredores
de Amsterdã. Sem dúvida conhecia o tipo. Pele pálida, cabelos sem vida,
olhos escuros e vazios. Yassen estava sentado no lado oposto ao deles. Tam‐
bém usava o macacão. E parecia encarar Alex, embora não tivesse dito na‐
da, e a expressão em seu rosto permanecesse indecifrável.
Eles viajaram durante duas horas pela rodovia M4, em direção a Lon‐
dres. Alex, de vez em quando, relanceava o olhar para Sabina, e ela o enca‐
rou de volta, uma vez, e deu um sorriso nervoso. Aquele não era o mundo
dela. Os homens, as metralhadoras, os macacões para proteção contra armas
químicas... Tudo fazia parte de um pesadelo que parecia ter surgido de lugar
algum e que ainda não fazia sentido. E não dava sinais de que iria terminar.
Alex também estava desnorteado. Mas os macacões sugeriam uma possibi‐
lidade aterradora. Cray teria armas químicas? Estava planejando usá-las?
Finalmente eles saíram da rodovia. Alex olhou pela abertura na traseira
do caminhão e viu uma placa indicando o Aeroporto de Heathrow e, de re‐
pente, soube, sem que precisassem lhe dizer, que aquele seria o real destino
deles. O garoto se lembrou do avião que vira na fábrica. E de Cray falando
com ele no jardim. Henryk é muito valioso para mim. Ele pilota aviões jum‐
bo. O aeroporto obviamente fazia parte disso, mas ainda havia muitas coisas
sem explicação. O presidente dos Estados Unidos. Mísseis nucelares. O
próprio nome Ataque à Águia dizia isso. Alex sentia raiva de si mesmo. Tu‐
do estava à sua frente. Algum tipo de imagem começava a tomar forma.
Mas ainda era uma imagem borrada, fora de foco.
Eles pararam. Ninguém se mexeu. Então Yassen foi o primeiro a falar
uma única palavra:
— Fora!
Alex desceu primeiro e ajudou Sabina a descer. Ele gostou de sentir a
mão dela tocá-lo. Ouviu-se um rugido alto e súbito, e o garoto levantou os
olhos bem a tempo de ver um avião descendo no céu. E viu onde estavam.
Haviam parado no topo de um edifício garagem abandonado — um legado
de Sir Arthur Lunt, pai de Cray. Ficava no extremo do Aeroporto de Heath‐
row, perto da rodovia principal. O único veículo, além dos deles, era uma
carcaça queimada. O chão estava forrado por latarias surradas e velhos tam‐
bores de óleo. Alex não tinha ideia de por que haviam ido para lá. Cray es‐
tava à espera de um sinal. Alguma coisa estava prestes a acontecer. Mas o
quê?
Alex consultou o relógio. Eram exatamente 14h30. Cray, que tinha vindo
no jipe com Henryk, chamou-os. Agora o garoto percebeu que havia um ra‐
diotransmissor no assento traseiro. Henryk sintonizou-o, e ouviu-se um ba‐
rulho agudo, alto. Não havia dúvidas de que Cray estava transformando
aquilo em um show. O rádio fora conectado a um alto-falante para que to‐
dos pudessem ouvir.
— Está prestes a começar — falou Cray, rindo. — Bem na hora!
Alex levantou os olhos. Um segundo avião apareceu no céu. Ainda esta‐
va muito distante e muito alto para que fosse possível vê-lo direito, mas,
mesmo assim, acreditou ter reconhecido sua forma. De repente, uma voz
saiu pelo alto-falante do jipe:
— Atenção, controle de tráfego aéreo. Aqui é o Millennium Air, voo
118, de Amsterdã. Temos um problema.
A voz falou em inglês, mas com forte sotaque holandês. Houve uma pau‐
sa, um chiado vazio, e então uma voz de mulher respondeu:
— Câmbio, MA 118. Qual é o seu problema? Câmbio.
— Mayday! Mayday! — A voz no avião tornou-se subitamente mais alta.
— Aqui é o voo MA 118. Há fogo a bordo. Solicitamos autorização imedia‐
ta para pousar.
Outra pausa. Alex podia imaginar o pânico na torre de controle de He‐
athrow. No entanto, quando a mulher voltou a falar, sua voz era calma, pro‐
fissional.
— Mayday entendido. Você está em nosso radar. Mantenha-se em 0-90.
Desça mil metros.
— Controle de tráfego aéreo — o rádio voltou a estalar. — Aqui é o co‐
mandante Schroeder, do voo MA 118. Preciso notificar que estou carregan‐
do produtos bioquímicos extremamente perigosos, a mando do Ministério
da Defesa. Temos uma situação de emergência aqui. Oriente-nos, por favor.
A mulher em Heathrow respondeu imediatamente:
— Precisamos saber o que está a bordo. Onde está e em que quantidade?
— Controle de tráfego aéreo, estamos carregando gás neurotóxico. Não
podemos dar mais especificações. É altamente experimental e extremamen‐
te perigoso. Há três cilindros no setor de bagagem. E agora temos um incên‐
dio na cabine principal. Mayday! Mayday!
Alex olhou novamente. O avião estava muito mais baixo agora, e o garo‐
to sabia exatamente onde tinha visto aquela aeronave antes. Era o avião de
carga que estava no complexo industrial nos arredores de Amsterdã. A fu‐
maça saía pelos lados, e, diante dos olhos de Alex, as chamas subitamente
explodiram, espalhando-se pelas asas. Para qualquer um que estivesse ob‐
servando, parecia que o avião estava em terrível perigo. Mas Alex sabia que
tudo aquilo era falso.
A torre de controle estava monitorando a aeronave.
— Voo MA 118, os serviços de emergência já foram acionados. Estamos
dando início à evacuação imediata do aeroporto. Por favor, prossiga para
27, à esquerda. Você tem permissão de aterrissar.
Naquele exato momento, Alex ouviu o som de alarmes disparando por
todo o aeroporto. O avião ainda estava há 700 ou 800 metros do chão, dei‐
xando um rastro de chamas no ar. O garoto tinha que admitir que a cena pa‐
recia absolutamente convincente. De repente, tudo começou a fazer sentido.
Ele estava começando a entender o plano de Cray.
— Hora de entrar em ação! — anunciou o pop star.
Alex e Sabina foram levados de volta para o caminhão. Cray subiu no ji‐
pe, ao lado de Henryk (que estava ao volante), e eles partiram. Era difícil
para Alex ver o que acontecia, agora que só tinha a fresta na traseira do ca‐
minhão, mas imaginou que estivessem deixando o edifício garagem e se‐
guindo pelo perímetro cercado em torno do aeroporto. Os alarmes parece‐
ram ficar mais altos — ou seja, o jipe devia estar mais perto deles. Várias
sirenes policiais dispararam à distância, e o garoto percebeu que a estrada
ficara mais cheia, os carros passando em velocidade acelerada, os motoris‐
tas desesperados para se afastarem da área.
— O que ele está fazendo? — sussurrou Sabina.
— O avião não está pegando fogo — explicou Alex. — Cray os enga‐
nou. Ele está evacuando o aeroporto. É assim que vamos entrar.
— Mas por quê?
— Já basta — falou Yassen. — Pare de falar agora! — pegou duas más‐
caras de gás e as entregou para Alex e Sabina. — Coloquem isso.
— Por que preciso disso? — perguntou Sabina.
— Apenas faça o que eu digo.
— Essa máscara vai arruinar minha maquiagem! — ela disse, já sendo
obrigada a colocá-la.
Alex fez o mesmo. Todos os homens no caminhão, incluindo Yassen,
usavam máscaras de gás. De repente, eles eram completamente anônimos.
O garoto tinha que admitir que havia uma certa genialidade no esquema de
Cray. Aquele era um modo perfeito de invadir o aeroporto. A essa altura, to‐
do o pessoal da segurança já sabia que um avião carregando um agente neu‐
rotóxico letal estava prestes a fazer um pouso forçado. O aeroporto sofria
uma evacuação de emergência em escala total. Quando Cray e seu exército
em miniatura chegassem ao portão principal, era pouco provável que al‐
guém pedisse suas identificações. A julgar pelos macacões especiais, eles
pareciam mesmo estar ali em caráter oficial. E seguiam em veículos de apa‐
rência oficial. O fato de terem chegado ao aeroporto em tempo recorde não
levantaria suspeitas. Era mais como um milagre.
Aconteceu exatamente como Alex esperava.
O jipe parou no portão do lado sul do aeroporto. Os guardas eram ambos
jovens. Um deles trabalhava ali há apenas duas semanas e já estava em pâ‐
nico, o rosto muito vermelho. O avião de carga não havia aterrissado ainda,
mas estava chegando cada vez mais perto, balançando no ar. O fogo se tor‐
nava mais forte, claramente fora de controle. E ali estavam dois caminhões
e um veículo do exército com homens de macacões brancos, capuzes e más‐
caras de gás. O segurança não iria criar caso.
Cray inclinou-se para fora da porta. Naquele momento, era tão anônimo
quanto o restante de seus homens, o rosto escondido atrás da máscara de
gás.
— Ministério da Defesa — falou apressado. — Divisão de Armas Quí‐
micas.
— Siga em frente!
Para os guardas, o mais rápido que fossem ainda não era o bastante.
O avião tocou o solo. Duas viaturas de bombeiros e vários veículos de
emergência dispararam na direção da aeronave. O caminhão em que esta‐
vam alcançou o jipe e parou. Olhando pela traseira do veículo, Alex viu tu‐
do.
Começou com Damian Cray.
Ele permanecia no assento do passageiro do jipe e segurava um radio‐
transmissor.
— Está na hora de aumentar nossa participação — disse. — Vamos
transformar isso em uma verdadeira emergência.
Alex sabia o que estava prestes a acontecer. Cray pressionou um botão, e
o avião explodiu no mesmo instante, desaparecendo em uma enorme bola
de fogo que consumiu a aeronave. Fragmentos de madeira e metal voaram
em todas as direções. Combustível em chamas se espalhou por toda a pista,
parecendo iluminá-la ainda mais. Os veículos de emergência espalharam-se
em formato de leque, como se tivessem a intenção de cercar os destroços.
Mas então Alex percebeu que haviam recebido novas ordens da torre de
controle. Não havia nada mais que pudessem fazer. O piloto e todos os que
estavam no avião certamente estavam mortos. E algum gás neurotóxico na‐
quele exato momento poderia estar se espalhando na atmosfera.
Alex sabia que Cray também havia enganado quem pilotava o avião, ma‐
tando-o com o mesmo sangue frio e cruel com que matava todos aqueles
que entravam em seu caminho. O piloto provavelmente fora pago para envi‐
ar um alarme falso e dissimular uma aterrissagem forçada. O homem não
devia saber que havia uma carga de explosivos plásticos escondida a bordo.
Deve ter imaginado que talvez passasse um longo período em uma prisão
inglesa. Não haviam lhe dito que seu trabalho era morrer.
Sabina não estavam olhando. Alex não podia ver o rosto da garota, a
máscara de gás o escondia todo, mas ela havia virado a cabeça. Por um ins‐
tante, o garoto sentiu uma pena imensa da amiga. No que a garota tinha se
envolvido? E pensar que tudo aquilo havia começado com férias no sul da
França!
O caminhão seguia em frente. Eles estavam dentro do aeroporto. Cray
dera um jeito de provocar um curto-circuito em todo o sistema de seguran‐
ça. Ninguém os perceberia, ao menos por algum tempo. Mas as dúvidas
permaneciam. O que estavam fazendo? E por que ali?
Então a velocidade diminuiu uma última vez. Alex olhou para fora. Fi‐
nalmente tudo fazia sentido.
Haviam parado em frente a um avião, um Boeing 747-200B. Mas era
mais do que isso. O corpo da aeronave estava pintado de azul e branco, com
as palavras UNITED STATES OF AMÉRICA escritas na fuselagem princi‐
pal, com a bandeira americana decorando a cauda. E lá estava a águia segu‐
rando um escudo, bem abaixo da porta, zombando de Alex por não haver
pensado naquilo antes. A águia que emprestara seu nome ao projeto insano
de Cray — Ataque à Águia — era o símbolo presidencial, e aquele era o
avião presidencial, o Air Force One. Aquela era a razão que levara Damian
Cray a estar ali.
Alex vira a aeronave na televisão, no escritório de Blunt. O avião trouxe‐
ra o presidente americano à Inglaterra. Era nele que o homem voava ao re‐
dor do mundo, viajando pouco abaixo da velocidade do som. Alex sabia
muito pouco a respeito, pois praticamente todas as informações sobre o Air
Force One eram restritas. No entanto, de uma coisa o garoto sabia: pratica‐
mente tudo o que podia ser feito na Casa Branca também podia ser feito no
avião, mesmo quando estava em pleno ar.
Praticamente tudo. Incluindo dar início a uma guerra nuclear.
Dois homens estavam parados, de guarda, nos degraus que levavam à
porta aberta e à cabine principal. Eram soldados, vestidos em uniformes mi‐
litares de combate, com boinas negras. Quando Cray saiu do carro, eles er‐
gueram as armas, colocando-se em posição de alerta. Haviam ouvido os
alarmes e sabiam que alguma coisa estava acontecendo no aeroporto, mas
não estavam certos sobre se tudo aquilo tinha a ver com eles.
— O que está acontecendo? — perguntou um dos homens.
Damian Cray não disse nada. Apenas ergueu a mão e, de repente, empu‐
nhava uma pistola. Atirou duas vezes. As balas mal fizeram barulho — ou
talvez o ruído do revólver tenha sido abafado de alguma forma pela imensi‐
dão do avião. Os soldados giraram o corpo e caíram sobre a pista asfaltada.
Ninguém viu o que aconteceu. Todos os olhos estavam voltados para a pista
e para os destroços do avião de carga que ainda queimavam.
Alex sentiu uma onda de ódio contra Cray ao pensar em quão covarde
aquele homem era. Os soldados americanos não esperavam nenhum tipo de
confusão. O presidente não estava perto do aeroporto, o Air Force One não
seria ocupado por mais um dia. Cray poderia ter derrubado os dois, poderia
tê-los feito prisioneiros. Mas era mais fácil matá-los. Agora ele já estava
guardando a arma de volta no bolso, as vidas de dois seres humanos sim‐
plesmente postas de lado e esquecidas. Sabina permanecia parada perto de
Alex, olhando a cena sem acreditar.
— Vamos esperar aqui — disse Cray, após remover a máscara de gás.
Seu rosto estava corado de empolgação.
Yassen Gregorovich e metade dos homens apressaram-se a entrar no
avião. A outra metade despiu os macacões brancos, revelando uniformes
militares por baixo. Cray não se esquecera de nada. Se alguém por acaso
desviasse a atenção da aeronave de carga, veria o Air Force One sob intensa
proteção e tudo normal. Na verdade, nada poderia ser mais distante da ver‐
dade.
Mais tiros soaram dentro do avião. Cray não estava disposto a fazer pri‐
sioneiros. Qualquer um que se colocasse no caminho deles seria eliminado
sem hesitação, sem piedade.
Damian parou ao lado de Alex.
— Seja bem-vindo à área VIP — disse. — Acho que vai gostar de saber
que é assim que chamam toda essa parte do aeroporto — Cray apontou para
um prédio de aço e vidro do outro lado do avião. — É para lá que todos eles
vão. Presidentes, primeiros-ministros... Estive ali uma ou duas vezes, na
verdade. Muito confortável e sem filas para apresentar o passaporte!
— Então nos deixe ir embora — pediu Alex. — Você não precisa de nós.
— Prefere que eu os mate agora, em vez de mais tarde?
Sabina relanceou rapidamente o olhar para Alex, mas não disse nada.
Yassen apareceu na porta do avião e fez um sinal. O Air Force One fora
dominado. Não havia mais ninguém para reagir. Os homens de Cray passa‐
ram pelo russo e desceram novamente as escadas. Um deles fora ferido, ha‐
via sangue na manga de seu macacão. Bem, ao menos alguém havia tentado
reagir!
— Vamos subir a bordo — anunciou o astro do mundo pop.
Todos os homens dele agora estavam vestidos como soldados america‐
nos, formando um semicírculo ao redor dos degraus que levavam até a porta
do avião, como uma barreira defensiva para o caso de um contra-ataque.
Henryk já subia; Alex e Sabina o seguiam. Cray estava bem atrás deles, em‐
punhando o revólver. Portanto só haveria cinco pessoas no avião. Alex re‐
gistrou essa informação em um canto de sua mente. Ao menos as chances
haviam aumentado.
Sabina estava em choque, andava como se estivesse hipnotizada. Alex
sabia o que ela estava sentindo. Suas próprias pernas quase se recusavam a
obedecê-lo, a dar aqueles passos (reservados apenas para o homem mais po‐
deroso do planeta). Conforme se aproximavam da porta (que tinha outra
águia na lateral), o garoto viu Yassen aparecer, vindo de dentro do avião, ar‐
rastando um corpo vestido em uniforme azul: um dos comissários de bordo.
Outro homem inocente sacrificado por causa do sonho louco de Cray.
O garoto entrou no avião.
O Air Force One não se parecia com nenhuma outra aeronave do planeta.
Não havia assentos enfileirados juntos, nem classe econômica, nem nada re‐
motamente parecido com o interior de um jumbo. Tudo fora modificado pa‐
ra abrigar o presidente e sua equipe em três andares: escritórios e quartos,
uma sala de conferência e uma cozinha. Ao todo, 370 m2 de área interna.
Em algum lugar ali dentro havia até mesmo uma mesa de operação, como
em um hospital, embora nunca houvesse sido usada. Alex se viu em uma
sala de estar ampla. Tudo fora projetado para garantir o conforto: carpete al‐
to, sofás e poltronas baixos, mesas com luminárias antigas. As cores predo‐
minantes eram bege e marrom, e o lugar era iluminado por dezenas de lâm‐
padas embutidas no teto. Um longo corredor descia na direção de uma das
laterais do avião, onde estavam uma série de escritórios elegantes e espaços
de convivência. Havia mais sofás e algumas mesas distribuídos ao longo do
caminho. As janelas eram cobertas por persianas em cores outonais.
Yassen já havia retirado os corpos, mas deixou uma mancha de sangue
no carpete — uma mancha horrível e muito visível. O resto do avião fora
limpo e aspirado até que não sobrasse um grão de poeira. Havia um carri‐
nho de bebidas junto a uma das paredes, e Alex percebeu os copos de cristal
cintilantes com as palavras AIR FORCE ONE gravadas junto a uma ima‐
gem da aeronave. Várias garrafas descansavam em uma prateleira mais bai‐
xa do carrinho: uísques de puro malte e vinhos antigos. Era um serviço de
primeira, sem dúvida. Voar naquele avião era um privilégio de pouquíssi‐
mas pessoas cercadas pelo mais absoluto luxo.
Até mesmo Cray, que tinha seu próprio avião particular, parecia impres‐
sionado. Ele relanceou o olhar para Yassen e falou:
— Está tudo certo? Matamos todos os que precisavam ser mortos? —
Yassen assentiu. — Então vamos começar. Eu levarei o garoto. Quero mos‐
trar a ele... Você espera aqui.
Cray fez um sinal com a cabeça para que Alex o seguisse. O garoto sabia
que não tinha escolha. Lançou um último olhar para Sabina e tentou dizer a
ela com os olhos que pensaria em alguma coisa, que daria um jeito de tirá-
los dali. Mas a verdade era que ele mesmo duvidava disso. A enormidade
do que era o Ataque à Águia finalmente o atingira. Air Force One! O avião
presidencial americano. A aeronave nunca fora invadida dessa maneira... e
não era de admirar. Ninguém mais teria sido louco o bastante para sequer
considerar a hipótese.
Cray empurrou Alex com o revólver, forçando-o a subir a escada. O ga‐
roto esperou encontrar alguém, talvez um soldado ou um membro da tripu‐
lação que houvesse conseguido escapar e que pudesse estar ali, esperando.
Mas, no fundo, sabia que Yassen teria se certificado de completar seu traba‐
lho. O russo dissera a Cray que já havia cuidado de toda a tripulação. Alex
preferia não pensar em quantos homens e mulheres havia anteriormente a
bordo.
Eles entraram em uma sala cheia de equipamentos eletrônicos, do teto ao
chão. Computadores altamente sofisticados estavam próximos a um telefo‐
ne moderno e a um sistema de radar com fileiras de botões, interruptores e
luzes piscando. Até o teto era coberto de equipamentos. Alex percebeu que
estava parado no centro de comunicações do Air Force One. Alguém prova‐
velmente trabalhava por ali quando o astro pop lunático tomou o avião. A
porta não estava trancada.
— Não há ninguém em casa — disse Cray. — Receio que não estives‐
sem esperando visitas. Temos o espaço todo só para nós.
Ele pegou o pen drive no bolso.
— Esse é o momento da verdade, Alex. E tudo graças a você. Mas, por
favor, fique bem quieto. Não quero ser obrigado a matá-lo antes que veja is‐
so. Porém, se ousar piscar, terei que apagá-lo.
Cray sabia o que estava fazendo. Apoiou o revólver na mesa ao seu lado,
de modo que não ficasse a mais do que alguns poucos centímetros de sua
mão. Então, abriu o pen drive e conectou o aparelho a uma entrada na frente
do computador. Por fim, sentou-se e digitou uma série de comandos.
— Não posso explicar a você como exatamente isso funciona — falou
enquanto continuava digitando. — Não temos tempo, e, além disso, sempre
achei computadores e toda essa história de tecnologia uma chatice. Mas es‐
ses computadores aqui são exatamente iguais aos da Casa Branca, e estão
conectados a Monte Cheyenne, que é onde nossos amigos americanos man‐
têm seu centro supersecreto de controle de armas nucleares, no subsolo.
Agora, a primeira coisa a fazer para ativar os mísseis nucleares é inserir os
códigos. Eles mudam todo dia e são mandados para o presidente, onde quer
que ele esteja, pela Agência Nacional de Segurança dos EUA. Espero não o
estar aborrecendo, Alex.
O garoto não respondeu. Mantinha seu olhar voltado para o revólver en‐
quanto calculava distâncias.
— O presidente carrega esses códigos com ele o tempo todo. Você sabia
que o presidente Carter chegou a perdê-los uma vez? Ele os mandou para a
lavanderia. Mas essa é outra história. Os códigos são transmitidos pelo
Milstar, uma sigla para “Sistema de Estratégia Militar e Retransmissão Táti‐
ca”. Trata-se de um sistema de comunicação por satélite. Um conjunto de
códigos vai para o Pentágono, e outro vem para cá. Os códigos são inseri‐
dos no computador e...
Ouviu-se um zumbido, e várias luzes do painel de controle de repente fi‐
caram verdes. Cray deixou escapar um grito de júbilo. Em seu rosto, o re‐
flexo da luz verde cintilou.
— E aqui estão eles. Como foi rápido! Por mais estranho que possa pare‐
cer, agora estou no controle de simplesmente todos os mísseis nucleares dos
Estados Unidos. Não é engraçado?
Ele digitou mais rapidamente no teclado e, por um instante, pareceu
transformado. Conforme os dedos do homem dançavam, Alex se lembrou
do Damian Cray que vira tocando piano no Earls Court e no estádio de
Wembley. Havia um sorriso sonhador em seu rosto, e seu olhar estava dis‐
tante.
— Logicamente há um mecanismo de alerta dentro de todo esse sistema
— ele continuou. — Os americanos não iriam querer qualquer um disparan‐
do seus mísseis, certo? Não. Apenas o presidente pode dispará-los. Por cau‐
sa disso.
Cray pegou uma pequena chave prateada no bolso. Alex imaginou se tra‐
tar de uma duplicata, também fornecida por Charlie Roper. O astro pop a in‐
seriu em uma espécie de fechadura prateada de aparência complicada den‐
tro da estação de trabalho e virou. Havia dois botões vermelhos ali. Um de‐
les servia para disparar os mísseis. No outro, estava escrita uma palavra
que, para Alex, parecia bem mais interessante: AUTODESTRUIR.
Cray só estava interessado no primeiro botão.
— É esse aqui — disse. — O grande botão. Aquele sobre o qual com
certeza você já leu a respeito. Aquele que significa o fim do mundo. Mas
ele é sensível a digitais. Se não for o dedo do presidente, nem adianta per‐
der tempo — Cray estendeu a mão e apertou o botão de disparar. Nada
aconteceu. — Está vendo? Não funciona!
— Então tudo isso foi uma perda de tempo! — exclamou Alex.
— Ah, não, meu querido Alex. Porque, bem... você deve lembrar que re‐
centemente tive o privilégio, o grande privilégio, aliás, de trocar um aperto
de mãos com o presidente americano. Eu insisti nisso. Era importante para
mim. Porque eu tinha um revestimento de látex especial na minha mão e,
quando toquei na mão do presidente, fiz um molde dos dedos dele. Não é
genial?
Cray puxou do bolso o que parecia ser uma luva de plástico muito fina e
enfiou a mão nela. Alex notou que os dedos da luva eram moldados. E com‐
preendeu. As digitais do presidente americano haviam sido duplicadas na
superfície de látex.
Cray agora tinha o poder de dar início a um ataque nuclear.
— Espere um instante — pediu Alex.
— Sim?
— Você está errado. Está terrivelmente equivocado. Pensa que está tor‐
nando as coisas melhores, mas não está! — o garoto lutou para encontrar as
palavras certas. — Vai acabar matando milhares de pessoas. Centenas de
milhares, e a maior parte delas será de inocentes. Pessoas que não têm nada
a ver com drogas...
— É preciso haver sacrifícios. Se mil pessoas precisarem morrer para
salvar um milhão de outros humanos, o que há de tão errado nisso?
— Está tudo errado! E quanto à precipitação radioativa? O que você acha
que acarretará ao resto do planeta? Pensei que se importasse com o meio
ambiente. Mas você vai destruí-lo!
— É um preço que vale a pena pagar, e, um dia, o mundo inteiro concor‐
dará com isso. É preciso ser cruel para ser bom.
— Você só pensa assim porque é louco.
Cray estendeu a mão para o botão de disparar.
Alex se jogou para a frente. Ele já não se importava mais com sua pró‐
pria segurança. Não podia nem sequer proteger Sabina. Os dois acabariam
morrendo de uma forma ou de outra, mas precisava evitar que Cray apertas‐
se aquele botão. Precisava proteger os milhões que morreriam em todo o
mundo se aquele homem não fosse detido. Vinte e cinco mísseis nucleares
caindo ao mesmo tempo do céu! Era algo além da imaginação.
Mas Cray já esperava o movimento de Alex. Então, rapidamente puxou o
revólver e girou o braço. Alex sentiu um golpe violento na lateral da cabeça
quando o homem lhe deu uma coronhada. O garoto foi jogado para trás,
zonzo. Viu a sala girar. Cambaleou e logo caiu.
— Tarde demais — murmurou Cray.
Ele estendeu a mão e desenhou um círculo no ar com o dedo.
Em seguida, fez uma pausa.
E apertou o botão de lançamento.
17
“APERTEM OS CINTOS”

OS MÍSSEIS HAVIAM SIDO ATIVADOS.


Por toda a América, em desertos e montanhas, em estradas e rodovias,
até mesmo no mar, as sequências de lançamento começaram automatica‐
mente. Bases militares em Dakota do Norte, Montana e Wyoming de repen‐
te entraram em alerta vermelho. Sirenes disparam. Computadores entraram
em atividade frenética. Era o começo do pânico que se espalharia por todo o
mundo.
E, um por um, os vinte e cinco foguetes dispararam no ar em um mo‐
mento de terrível beleza.
Oito Minutemen, oito Peacekeepers, cinco Poseidons e quatro Trident
D5s subiram em direção à atmosfera exatamente ao mesmo tempo, a veloci‐
dades de até 25 mil quilômetros por hora. Alguns deles foram disparados de
silos subterrâneos, outros de vagões de trem especialmente adaptados, ou‐
tros ainda de submarinos. E ninguém sabia quem dera a ordem. Era uma
queima de fogos de bilhões de dólares que mudaria o mundo para sempre.
E, em 90 minutos, tudo estaria terminado.
No centro de comunicações, as luzes da tela agora piscavam em verme‐
lho. Toda a mesa de operação parecia em chamas com tantas luzes acesas.
Um sorriso sereno se espalhava pelo rosto de Cray.
— Bem, é isso — disse. — A essa altura, ninguém pode fazer mais nada.
— Eles vão detê-los! — falou Alex. — Assim que perceberem o que
aconteceu, vão apertar um botão, e todos os seus mísseis se autodestruirão.
— Receio que não seja assim tão fácil. Entenda, todos os protocolos de
lançamento foram obedecidos. Foi o computador do Air Force One que dis‐
parou os mísseis, portanto, apenas o Air Force One pode acabar com eles.
Estou vendo você olhar para esse botão vermelho. Autodestruir. Mas lamen‐
to dizer que não chegará perto dele, Alex. Vamos sair daqui.
Cray gesticulou com o revólver, e Alex foi forçado a sair da sala de co‐
municações e retornar à cabine principal. Sua cabeça ainda doía no lugar
onde Cray o golpeara. Precisava recuperar sua força. Mas quanto tempo lhe
restava?
Yassen e Sabina os esperavam. Assim que Alex apareceu, a garota tentou
correr para perto dele, mas foi impedida pelo russo. Cray sentou-se no sofá,
ao lado dela.
— Hora de partir! — ele falou, sorrindo para Alex. — Você entende, é
claro, que assim que esse avião estiver no ar, será indestrutível. Poderíamos
dizer que é o perfeito veículo de fuga. Essa é a beleza dele. São mais de 370
mil metros de rede elétrica dentro da fuselagem, projetada para suportar até
mesmo o impacto de um ataque termonuclear. Não que isso fosse fazer a
menor diferença, de qualquer modo. Se eles conseguissem atirar em nós,
ainda assim os mísseis atingiriam seus alvos. O mundo ainda seria salvo!
Alex tentou clarear a mente. Precisava pensar com calma.
Havia apenas cinco pessoas no avião: Sabina, Yassen, Damian Cray e
ele, além de Henryk na cabine do piloto. O garoto olhou para a porta princi‐
pal. O grupo de falsos soldados americanos ainda estava a postos. Mesmo
se alguém no aeroporto olhasse para aquela área, não veria nada de errado.
Não que fosse provável que isso acontecesse... As autoridades ainda estari‐
am concentradas na nuvem de gás neurotóxico fatal que, na verdade, não
existia.
Alex sabia que, se fosse fazer alguma coisa — se houvesse alguma coisa
que pudesse fazer teria que ser antes que o avião decolasse. Cray estava cer‐
to. Assim que o Air Force One estivesse no ar, o garoto não teria mais a me‐
nor chance.
— Feche a porta, sr. Gregorovich — ordenou Cray. — Acho que deve‐
mos seguir viagem.
— Espere um minuto! — Alex começou a se levantar, mas Cray sinali‐
zou para que voltasse a se sentar.
O astro ainda empunhava o revólver. Era um Smith & Wesson, calibre
40, pequeno e poderoso, com um cano de 3,5 polegadas e o cabo quadrado.
Alex sabia que era extremamente perigoso disparar um revólver em um
avião comum. Se a bala quebrasse uma janela ou entrasse na fuselagem ex‐
terna, despressurizaria a cabine e tornaria o voo impossível. Mas aquele, é
claro, era o Air Force One, e não um avião normal.
— Fique exatamente onde está — exigiu Cray.
— Aonde vai nos levar? — quis saber Sabina.
Ele continuava sentado no sofá, perto dela. Obviamente achava que era
melhor manter Alex e a garota separados. Cray ergueu a mão e correu o de‐
do pelo rosto de Sabina. Ela estremeceu. Achava o homem repulsivo, e não
ligava nem um pouco que ele soubesse disso.
— Vamos para a Rússia — ele disse.
— Rússia? — Alex pareceu confuso.
— Uma nova vida para mim. E um retorno para o sr. Gregorovich —
Cray passou a língua pelos lábios. — Na verdade, o sr. Gregorovich será
uma espécie de herói.
— Duvido muito disso — Alex não pôde evitar o tom zombeteiro.
— Ah, vai sim. Ouvi dizer que lá a heroína é contrabandeada para dentro
do país em caixões lacrados, e os guardas da fronteira simplesmente fingem
que não veem. É claro que são pagos para isso. A corrupção está por toda
parte. Drogas são dez vezes mais baratas na Rússia do que no resto da Euro‐
pa, e existem pelo menos 3,5 milhões de viciados em Moscou e São Peters‐
burgo. O sr. Gregorovich acabará com um problema que quase deixou o
país de joelhos, e acredito que o presidente ficará muito grato a ele. Então,
como pode ver, parece que eu e o sr. Gregorovich viveremos felizes para
sempre... Mas temo não poder dizer o mesmo a respeito de vocês.
Yassen havia fechado a porta. Alex viu quando ele abaixou a tranca.
— Portas em automático — disse Yassen.
Havia um sistema de alto-falantes ativo no avião. Tudo o que era dito na
cabine principal podia ser ouvido na cabine do piloto. E, posicionado no as‐
sento do piloto, Henryk empurrou um interruptor, e sua voz também pôde
ser ouvida por todo o avião.
— Aqui é o comandante falando — disse. — Por favor, apertem os cin‐
tos e preparem-se para decolar — estava brincando, fazendo uma piada sem
graça com os procedimentos de uma decolagem real. — Obrigado por voar
com a Cray Airlines. Espero que apreciem a viagem.
Os motores foram ligados. Ao olhar pela janela, Alex viu os soldados se
afastarem e voltarem para os caminhões. O trabalho deles estava terminado.
Agora deixariam o aeroporto e voltariam para Amsterdã. O garoto relance‐
ou o olhar para Sabina. A garota estava sentada, muito quieta, e Alex se
lembrou de que ela estava esperando que ele fizesse alguma coisa. Sei de
coisas... Você precisa deixar tudo por minha conta. Fora isso o que dissera
a ela. Como as palavras pareciam vazias agora.
O Air Force One era equipado com quatro enormes motores. Alex ouviu-
os quando foram ligados. Estavam prestes a partir! O garoto olhou desespe‐
radamente ao redor: para a porta fechada com a trava abaixada, para a esca‐
da que levava à cabine do piloto, para as mesas baixas e a fileira de revistas
elegantemente arrumadas, para o carrinho de bebidas com garrafas e copos.
Cray estava sentado com as pernas levemente separadas e o revólver apoia‐
do na coxa. Yassen continuava parado perto da porta. Ele também tinha um
revólver. Estava em um de seus bolsos, mas Alex sabia que o russo conse‐
guiria sacá-lo e atirar antes que o alvo tivesse tempo de piscar. Não havia
outras armas à vista, nada que Alex pudesse pegar. Era uma pena.
O avião deu um solavanco e começou a recuar. O garoto olhou novamen‐
te pela janela e viu uma cena extraordinária: um veículo estava estacionado
perto do prédio VIP, não muito longe do avião. Era como um trator em mi‐
niatura, com três pequenos vagões cheios de caixas de plástico presos a ele.
Alex viu quando, de repente, o veículo foi jogado para o alto, como se feito
de papel. Os vagões rolaram e se soltaram, e o próprio trator tombou para o
lado e deslizou pela pista.
Eram os motores! Normalmente um avião daquele tamanho seria puxado
até uma área aberta, onde não colocasse nada em risco, antes de começar a
taxiar. Cray, é claro, não estava disposto a esperar. O Air Force One já havia
acionado o reverso e saía de ré. Os motores, com um empuxo de mais de
cem toneladas, eram tão poderosos que jogariam para o alto qualquer coisa
ou qualquer pessoa que estivesse no caminho. Agora era a vez do próprio
prédio VIP. As janelas se estilhaçaram, os vidros explodiram. Um homem
da segurança apareceu, e Alex o viu ser arremessado como se fosse um bo‐
neco de plástico atirado com um elástico. Uma voz soou nos alto-falantes
dentro da cabine. Henryk provavelmente ligara o rádio para que pudessem
ouvir.
— Aqui é o controle de tráfego aéreo para o Air Force One — dessa vez
era uma voz de homem. — Você não tem permissão para taxiar. Por favor,
pare imediatamente.
A escada ligada ao avião tombou para um dos lados e caiu na pista. A ae‐
ronave agora se movia mais rapidamente, ainda de ré, na direção da pista de
decolagem.
— Aqui é o controle de tráfego aéreo para o Air Force One. Repetimos:
você não tem permissão para taxiar. Por favor, declare as suas intenções...
Eles agora estavam em pista aberta, longe da área VIP. A pista principal
ficava logo atrás, o resto do aeroporto devia estar a cerca de 1,5 km de dis‐
tância. Dentro da cabine de comando, Henryk acelerou as turbinas. Alex
sentiu outro solavanco e ouviu o rugido dos motores mais uma vez quando
eles começaram a se mover. Cray cantarolava para si mesmo, os olhos dis‐
tantes, perdido em seu próprio mundo. Mas o Smith & Wesson ainda estava
em sua mão, e Alex sabia que o menor movimento provocaria uma reação
imediata. Yassen não se movera. E também estava perdido em seus próprios
pensamentos, como se tentasse esquecer que tudo aquilo estava acontecen‐
do.
O avião ganhou velocidade e continuou na direção da área de manobra.
Havia um computador na cabine de comando, e Henryk já o alimentara com
todas as informações necessárias: o peso do avião, a temperatura do ar do
lado de fora, a velocidade do vento, a pressão. Ele decolaria contra o vento,
que agora vinha do leste. A pista principal tinha cerca de 4 km de compri‐
mento, e o computador já calculara que a aeronave só precisava de 2,5 mil
metros para decolar. Estava quase tudo pronto. Seria uma decolagem tran‐
quila.
— Air Force One. Você não tem permissão para decolar. Por favor, abor‐
te a decolagem imediatamente. Repito: aborte a decolagem.
A voz que vinha do controle de tráfego aéreo ainda zumbia nos alto-fa‐
lantes. Henryk estendeu a mão e desligou o rádio. Ele sabia que um esque‐
ma de emergência já havia entrado em operação e que qualquer outro avião
seria afastado do caminho. Afinal, aquela aeronave pertencia ao presidente
dos Estados Unidos da América. As autoridades de Heathrow certamente já
gritavam umas com as outras ao telefone — temendo não apenas um aci‐
dente, mas também um incidente diplomático de grandes proporções. Na
rua Downing, o primeiro-ministro já devia ter sido informado. Por toda a ci‐
dade de Londres, funcionários do governo, oficiais e civis provavelmente se
faziam a mesma pergunta: que diabos estava acontecendo?

A 60 milhas sobre as cabeças deles, os oito mísseis Peacekeeper estavam


quase no limite do espaço. Dois de seus motores já haviam se incendiado e
se separado, deixando apenas as últimas seções com seus módulos de posi‐
cionamento e mortalhas míssil. Os Minutemen e os outros mísseis que Cray
disparara não estavam muito atrás. Todos carregavam sistemas de navega‐
ção altamente secretos e avançados. Os computadores de bordo já calcula‐
vam trajetórias e faziam ajustes. Logo os mísseis dariam a volta e identifi‐
cariam seus alvos.
E, em 80 minutos, cairiam na terra.

O Air Force One agora se movia rapidamente, seguindo as indicações que


levavam à pista principal. Mais adiante estava o ponto de espera, onde a ae‐
ronave faria uma curva fechada e daria início às verificações pré voo.
Na cabine principal, Sabina observava Cray como se o estivesse vendo
pela primeira vez. A expressão no rosto dele era de puro contentamento.
— Imagino o que farão com vocês quando chegarem à Rússia — ela fa‐
lou.
— O que quer dizer? — perguntou Cray.
— Eu me pergunto se vão se livrar de vocês simplesmente mandando-os
de volta para a Inglaterra, ou se vão matá-los como ratos e encerrarem a
questão.
O homem a encarou. Parecia ter levado uma bofetada. Alex se encolheu,
temendo o pior. E o pior foi exatamente o que veio logo em seguida.
— Já tive o bastante desses dois moleques! — exclamou Cray furioso.
— Eles já não estão mais me divertindo.
Virou-se para Yassen antes de dar a ordem:
— Mate-os.
O russo parecia não ter ouvido.
— O que disse? — perguntou.
— Você me ouviu. Estou enjoado desses dois. Mate-os agora!
O avião parou. Haviam chegado ao ponto de espera. Henryk ouvira as
instruções que haviam sido dadas na cabine principal, mas ignorou o que
estava acontecendo e partiu para os procedimentos finais: subir e descer os
lemes de profundidade, virar os ailerons. Estava a segundos de decolar. As‐
sim que se certificasse de que o avião estava pronto, empurraria as quatro
alavancas de velocidade, e eles disparariam para a frente. Henryk testou os
pedais do leme e o trem de pouso dianteiro. Estava tudo pronto.
— Não mato crianças — rebateu Yassen.
Alex o ouvira dizer exatamente a mesma coisa no barco no sul da Fran‐
ça. Naquela ocasião, não acreditara no russo, mas agora se perguntava o que
se passava na cabeça daquele homem.
Sabina observava Alex atentamente, esperando que o amigo fizesse algu‐
ma coisa. Mas ali, presos dentro do avião, com o ruído dos motores cada
vez mais alto, não havia nada que pudesse fazer. Não ainda.
— O que está dizendo? — quis saber Cray.
— Não há necessidade disso — respondeu Yassen. — Vamos levá-los
conosco. Não podem fazer mal algum.
— Por que eu iria querer levá-los até a Rússia?
— Podemos prender os dois em uma das cabines. Você não precisa nem
mesmo vê-los.
— Sr. Gregorovich... — Cray respirava pesadamente. Gotas de suor co‐
briam sua testa, e ele segurava o revólver com cada vez mais força. — Se
não matá-los, eu o farei.
Yassen não se moveu.
— Está bem! Está bem! — Cray suspirou. — Achei que era eu quem es‐
tava no comando, mas parece que tenho que fazer tudo sozinho.
O astro insano ergueu o revólver. Alex ficou de pé.
— Não! — gritou Sabina.
Cray atirou.
Mas ele não estava mirando em Sabina. Nem em Alex. A bala atingiu
Yassen no peito, e o russo foi atirado para longe da porta.
— Sinto muito, sr. Gregorovich — disse Cray. — Mas está despedido.
Então virou o revólver para Alex e avisou:
— Você é o próximo.
E atirou uma segunda vez.
Sabina deu um grito de horror. Cray mirara no coração de Alex. E naque‐
le espaço restrito da cabine havia pouca chance de o homem errar. A força
do disparo fez com que o garoto fosse arremessado para o outro extremo da
cabine. O garoto caiu no chão e ficou imóvel.
Cray então voltou o revólver na direção de Sabina e atirou. Mas não esta‐
va esperando que ela se atiraria sobre ele. Alex estava morto. O avião esta‐
va decolando. Nada mais importava para ela. Cray errou o tiro, e, de repen‐
te, Sabina se jogou de novo em cima dele, enfiando as unhas nos olhos do
homem e gritando o tempo todo. Mas ele era muito forte para ela. Agarrou-
a e jogou-a contra a porta. Sabina ficou caída, zonza e impotente. O revól‐
ver foi erguido mais uma vez.
— Adeus, minha querida — disse Cray.
Ele mirou. Mas, antes que pudesse atirar, seu braço foi puxado para trás.
Sabina arregalou os olhos. Era Alex! Parecia impossível... Mas, assim como
Cray, ela não tinha como saber que ele estava usando a blusa à prova de ba‐
las que Smithers lhe dera junto com a bicicleta. A bala havia apenas quebra‐
do uma costela do garoto. Embora o projétil o houvesse derrubado, não pe‐
netrara no corpo.
Agora Alex estava em cima de Cray. O homem era pequeno, apenas um
pouco mais alto do que o próprio Alex, mas pesado e surpreendentemente
forte. O garoto conseguiu segurar o pulso de Cray, mantendo o revólver dis‐
tante. No entanto, o homem usou a outra mão para agarrar o pescoço de Ri‐
der, seus dedos se apertando ao redor da garganta.
— Sabina! Saia daqui! — O garoto conseguiu gritar as palavras antes de
sufocar.
O revólver estava fora de controle. Alex usava toda a sua força para im‐
pedir Cray de mirar em sua direção, e não sabia quanto tempo mais conse‐
guiria segurar aquele homem. Sabina correu para porta principal e ergueu a
tranca para abri-la.
Nesse exato momento, na cabine do piloto, Henryk empurrou as quatro
alavancas de velocidade em toda a sua extensão. A pista de decolagem se
estendia à sua frente. Prestes a decolar, o Air Force One disparou por ela.
A porta principal se abriu de repente com um chiado alto. Ela havia sido
programada para o automático antes de o avião começar a se mover, e, as‐
sim que Sabina a destrancou, um sistema pneumático foi ativado. Um es‐
corregador laranja se estendeu da porta como uma língua gigante e come‐
çou a inflar. Era o escorregador de emergência.
O vento e a poeira entraram na aeronave como um minitornado que rede‐
moinhou loucamente pela cabine. Cray conseguira erguer o revólver e agora
o mirava na cabeça de Alex, mas a força do vento o surpreendeu. As revis‐
tas sobre a mesa voaram na direção do rosto do homem como moscas gi‐
gantes. O carrinho com bebidas se soltou e se virou no tapete, quebrando
copos e garrafas.
O rosto de Cray estava contorcido, seus dentes perfeitos revelados pela
boca retorcida, os olhos saltados. Ele praguejou, mas nenhum som foi ouvi‐
do além do rugir dos motores. Sabina estava colada contra a parede do
avião, olhando desolada pela porta aberta, enquanto a grama e o concreto
passavam rapidamente lá embaixo em um borrão verde e cinza. Yassen não
se movia, e o sangue se espalhava lentamente por sua camisa.
Alex sentia suas forças se esvaírem. Relaxou o aperto no pulso de Cray, e
o revólver disparou. Sabina gritou. A bala havia se enterrado a poucos cen‐
tímetros de seu rosto. Alex golpeou o braço do homem, tentando fazer com
que o revólver caísse de sua mão. Cray ergueu o joelho e acertou o estôma‐
go do garoto, que cambaleou para trás, ofegando, sem ar. O avião continua‐
va a descer pela pista, cada vez mais rápido.
Atrás dos controles, Henryk subitamente se pegou suando de nervoso. Os
olhos por trás das lentes estavam confusos. Ele vira uma luz se acender,
alertando que uma porta havia sido aberta e que a cabine principal estava
despressurizada. Já estavam a mais de 200 quilômetros por hora. O controle
de tráfego aéreo provavelmente já tinha percebido o que estava acontecendo
e alertado as autoridades. Se parasse agora, seria preso. Mas será que ousa‐
ria decolar?
Então o computador de bordo falou com uma voz metálica, totalmente
sem emoção:
— VI.
Duas sílabas reunidas por um circuito eletrônico. E eram as últimas duas
sílabas que Henryk gostaria de ouvir.
Normalmente, o copiloto teria lhe dito a que velocidade estavam, pois
seu trabalho era ficar de olho no progresso do avião. Mas Henryk estava so‐
zinho, por isso tinha que contar com o sistema automático. O que o compu‐
tador estava lhe dizendo era que o avião movia-se a 240 krn/h — VI —, ve‐
locidade de decisão. Agora estavam indo rápido demais para parar. Se ten‐
tasse abortar a decolagem, teria que acionar o reverso, e o avião se partiria.
Aquele era o momento que todo piloto temia, e com certeza o instante
mais perigoso em qualquer voo. A maior parte dos acidentes aéreos havia
sido causada quando o piloto tomara uma decisão errada nesse momento.
Todos os instintos do corpo de Henryk lhe diziam para parar. Afinal, estava
seguro no chão. Um acidente ali seria bem melhor do que um acidente a
500 metros do solo. Mas, se tentasse parar, certamente haveria um acidente.
Ele não sabia o que fazer.

O sol já se punha na cidade de Quetta, no Paquistão, mas a vida no campo


de refugiados estava mais agitada do que nunca. Centenas de pessoas se
agarravam a seus cobertores e abriam caminho pela cidadela feita de tendas
enquanto crianças, muitas delas em farrapos, faziam fila para serem vacina‐
das. Um grupo de mulheres sentadas em bancos trabalhavam em uma col‐
cha de retalhos, alisando e dobrando o algodão.
O ar estava frio e fresco nas Patkai Hills de Myanmar, o país que já fora
chamado de Birmânia. A 1400 metros acima do nível do mar, a brisa carre‐
gava o perfume dos pinheiros e das flores. Eram 21h30, e a maior parte das
pessoas já dormia. Alguns pastores, todavia, permaneciam sentados com
seus rebanhos. Milhares de estrelas cintilavam no céu da noite.
Na região de Urabá, na Colômbia, mais um dia amanhecia, e o cheiro de
chocolate pairava na rua. As campesinas, mulheres dos fazendeiros, come‐
çavam a trabalhar ao amanhecer, tostando grãos de cacau para depois arre‐
bentarem as cascas. Crianças eram atraídas para a porta de suas casas pelo
aroma delicioso e irresistível.
E nas terras altas do Peru, ao norte de Arequipa, famílias em roupas co‐
loridas caminhavam até os mercados, carregando pequenas trouxas de fru‐
tas e legumes, tudo o que tinham para vender. Uma mulher com um chapéu-
coco estava agachada ao lado de uma fileira de sacas, cada uma com um
tempero diferente. Adolescentes sorridentes jogavam futebol na rua.
Essas pessoas estavam entre os alvos selecionados pelos mísseis. Havia
mais milhares — milhões — como elas. E eram todas inocentes. Sabiam
onde eram os campos de papoulas. Conheciam os homens que trabalhavam
lá. Mas não tinham nada a ver com tudo aquilo. A vida tinha que continuar.
E nenhuma delas tinha a mínima ideia de que mísseis letais se aproxima‐
vam de onde estavam. Nenhuma delas imaginava o horror que se aproxima‐
va de seu caminho.

O fim chegou muito rápido no Air Force One.


Cray socou várias vezes a lateral da cabeça de Alex. O garoto ainda se‐
gurava a mão do revólver, mas seu aperto já enfraquecia. Finalmente caiu
para trás, sangrando e exausto. Seu rosto estava ferido, e seus olhos apenas
entreabertos.
O escorregador de emergência se elevava agora, voando horizontalmente
à aeronave. A precipitação do ar o empurrava na direção das asas. O avião
agora estava a quase 300 km/h e decolaria em menos de dez segundos.
Cray ergueu o revólver uma última vez.
Em seguida, gritou, ao ser atingido por alguma coisa. Era Sabina. Ela er‐
guera o carrinho de bebidas e o usara para acertar o homem bem atrás dos
joelhos. As pernas do astro pop se dobraram, e ele perdeu o equilíbrio, cain‐
do para trás. Cray aterrissou sobre o topo do carrinho e deixou cair o revól‐
ver. Sabina mergulhou para pegá-lo, decidida a não deixá-lo atirar mais uma
vez.
Foi quando Alex se levantou.
Ele calculara rapidamente a distância e os ângulos. Sabia o que precisava
fazer. Com um grito, jogou o corpo para a frente, mantendo os braços esten‐
didos. As palmas de suas mãos bateram na lateral do carrinho. Cray berrou.
O carrinho disparou pela área principal da cabine, com o homem ainda so‐
bre ele, e saiu pela porta.
E não parou ali. O escorregador de emergência se inclinava levemente na
direção do chão que passava rapidamente abaixo. Era mantido no lugar pela
força do vento fora e do ar comprimido dentro da aeronave. O carrinho sal‐
tou para cima do escorregador e começou a descer. Alex chegou à porta
bem a tempo de ver Cray começar sua descida para o inferno. O escorrega‐
dor segurou-o até o meio da descida, a força do vento inclinando-o na dire‐
ção das asas.
Damian Cray entrou na área de alcance do motor dois.
A última coisa que viu foi a boca escancarada da engenhoca. Em segui‐
da, a rajada de vento o arrastou. Com um grito terrível e inaudível, o ho‐
mem foi engolido pelo motor.
Cray foi triturado. Mais do que isso, foi vaporizado. Em um segundo foi
transformado em uma nuvem de gás vermelho que desapareceu na atmosfe‐
ra. Não restou absolutamente nada. O carrinho de metal, todavia, ofereceu
mais resistência. O que se ouviu foi um barulho semelhante ao de um tiro
de canhão. Uma enorme língua de fogo explodiu na traseira da aeronave
quando o motor foi arrancado.
Foi então que o avião saiu de controle.
Henryk decidira abortar a decolagem e tentava diminuir a velocidade,
mas agora era tarde demais. Um motor de um dos lados parou de repente.
Na outra lateral, entretanto, ambos os motores funcionavam a plena força.
O desequilíbrio fez com que o avião se inclinasse violentamente para a es‐
querda. Alex e Sabina foram atirados no chão. As luzes explodiram e solta‐
ram fagulhas ao redor deles. Tudo o que não estava muito bem preso agora
girava no ar. Henryk lutava para controlar a aeronave, mas seu esforço era
inútil. O avião derrapou e saiu da pista. Era o fim. O solo era incapaz de
aguentar um peso tão enorme. Com um barulho terrível de metal se partin‐
do, o trem de aterrissagem quebrou, e toda a fuselagem tombou para um la‐
do.
A cabine principal se inclinou muito, e Alex sentiu o chão girar sob seus
pés. Era como se o avião estivesse virando de cabeça para baixo. Mas o
jumbo finalmente parou. Os motores foram desligados, a aeronave ficou
caída de lado, e o ruído das sirenes preencheu o ar, enquanto os veículos de
emergência disparavam pela pista.
Alex tentou se mexer, mas suas pernas não obedeciam. Estava deitado no
chão e percebeu que sua vista começava a escurecer. Mas sabia que precisa‐
va se manter consciente. Seu trabalho ainda não tinha chegado ao fim.
— Sab? — ele chamou a amiga e se sentiu aliviado quando ela ficou de
pé e se aproximou.
— Alex?
— Você tem que ir até a sala de comunicação. Há um botão lá. Autodes‐
truir — por um momento, ela pareceu não entender, e o garoto a agarrou pe‐
lo braço. — Os mísseis...
— Sim. Sim... é claro.
Sabina estava em choque. Coisas demais haviam acontecido. Mas ela en‐
tendeu o que tinha que fazer. Cambaleando e apoiando-se contra as paredes
inclinadas, subiu as escadas. Alex permaneceu deitado onde estava.
Então, Yassen falou:
— Alex.
O garoto não tinha forças nem para ficar surpreso. Virou a cabeça lenta‐
mente, esperando ver o revólver nas mãos do russo. Não parecia justo. De‐
pois de passar por tanta coisa, iria mesmo morrer agora, quando a ajuda es‐
tava a caminho? Mas Yassen não segurava um revólver. O russo ergueu o
corpo, apoiando-se contra a mesa. Estava coberto de sangue, e seus olhos ti‐
nham uma expressão estranha, como se o azul se apagasse lentamente. A
pele de Gregorovich estava ainda mais pálida do que o habitual, e, quando
ele inclinou a cabeça para trás, Alex percebeu pela primeira vez que o ho‐
mem tinha uma longa cicatriz no pescoço. Era muito reta, como se houves‐
se sido desenhada com uma régua.
— Por favor... — a voz de Yassen era muito baixa.
Era a última coisa que queria fazer, mas, mesmo assim, o garoto se arras‐
tou pelos destroços da cabine e foi até ele. Alex lembrou que a morte de
Cray e a destruição do avião só haviam acontecido porque Yassen se recu‐
sara a matar Sabina e ele.
— O que aconteceu com Cray? — perguntou Yassen.
— Saiu de carrinho — respondeu Alex.
— Ele está morto?
— Completamente.
Gregorovich assentiu, como se estivesse satisfeito.
— Eu sabia que trabalhar para ele era um erro — disse. — Sabia. — Ele
lutou para respirar, estreitando os olhos por um momento. — Há uma coisa
que preciso contar para você, Alex.
O estranho era que Yassen falava normalmente, como se aquela fosse
uma conversa tranquila entre amigos. Mesmo contra a sua vontade, o garoto
não pôde deixar de admirar o autocontrole do homem que provavelmente ti‐
nha apenas alguns minutos de vida.
Então, Yassen voltou a falar, e tudo na vida de Alex mudou para sempre:
— Eu não poderia matar você. Jamais o mataria. Porque, entenda, Alex...
eu conheci seu pai.
— O quê? — Apesar da exaustão, da dor dos ferimentos, Alex sentiu al‐
guma coisa estremecer em seu peito.
— Seu pai. Ele e eu... — Yassen precisou parar novamente para recupe‐
rar o ar. — Nós trabalhamos juntos.
— Ele trabalhou com você?
— Sim.
— Quer dizer que... ele era um espião?
— Um espião, não, Alex. Seu pai era um assassino. Como eu. Só que ele
era o melhor. O melhor do mundo. Quando o conheci, eu tinha 19 anos. Ele
me ensinou muitas coisas...
— Não! — Alex se recusava a aceitar o que estava ouvindo. Nunca co‐
nhecera o pai. Não sabia nada sobre ele. Mas o que Yassen estava dizendo
não podia ser verdade. Era algum tipo de piada terrível.
As sirenes pareciam cada vez mais próximas. Os primeiros veículos de‐
viam estar chegando. O garoto já conseguia ouvir homens gritando do lado
de fora.
— Não acredito em você — gritou Alex. — Meu pai não era um assassi‐
no. Não pode ter sido!
— Estou lhe dizendo a verdade. Você precisa saber.
— Ele trabalhava para o MI6?
— Não — a sombra de um sorriso passou pelo rosto de Yassen. Mas era
um sorriso cheio de tristeza. — O MI6 o caçou. E eles o mataram. Tentaram
matar a nós dois. No último minuto, eu escapei, mas ele... — o russo engo‐
liu com dificuldade. — Eles mataram seu pai, Alex.
— Não!
— Por que eu mentiria para você? — Já quase sem forças, o homem es‐
tendeu a mão e segurou o braço de Alex. Era o primeiro contato físico dos
dois. — Seu pai... ele fez isso — Yassen passou o dedo pela longa cicatriz
no pescoço, mas sua voz já falhava, e ele não conseguiu explicar. — Está‐
vamos na Amazônia... ele salvou a minha vida. De certo modo, eu o amava.
E você, Alex, é muito parecido com ele. Estou feliz por você estar aqui co‐
migo agora — houve uma pausa e um espasmo de dor transpareceu no rosto
do russo, que estava prestes a morrer. Yassen tinha uma última coisa a dizer:
— Se não acredita em mim, vá a Veneza. Encontre Scorpia. E você encon‐
trará seu destino...
Yassen fechou os olhos, e Alex sabia que o russo jamais voltaria a abri-
los.

Na sala de comunicação, Sabina encontrou o botão e o apertou. No espaço,


o primeiro Minutemen se arrebentou em milhares de pedaços em uma ex‐
plosão muda e brilhante. Segundos mais tarde, o mesmo aconteceu com os
outros mísseis.
O Air Force One estava cercado. Uma frota de veículos de emergência
finalmente alcançou a aeronave, e dois caminhões agora o cobriam com
enormes quantidades de espuma branca.
No entanto, Alex não percebeu nada disso. O garoto estava deitado perto
de Yassen, de olhos fechados. Desmaiado.
18
PONTE RICHMOND

OS CISNES NÃO ESTAVAM indo para lugar algum. Pareciam felizes


apenas por ficarem nadando lentamente em círculos sob a luz do sol, ocasi‐
onalmente mergulhando os bicos sob a superfície da água, procurando inse‐
tos, algas, o que fosse. Alex vinha observando-os há meia hora, quase hip‐
notizado. Imaginava como seria ser um cisne. E também se perguntava co‐
mo conseguiam manter suas penas sempre tão brancas.
O garoto estava sentado em um banco às margens do rio Tâmisa, nos ar‐
redores de Richmond. Ali o rio parecia abandonar Londres, finalmente dei‐
xando a cidade para trás ao cruzar a Ponte Richmond. Olhando rio acima,
Alex via campos e bosques muito verdes, esparramados no calor do verão
inglês.
Uma babá empurrando um carrinho passeava pela calçada ao lado do Tâ‐
misa. Olhou para Alex, e, embora sua expressão não tivesse se alterado, a
mulher passou a segurar a barra do carrinho com mais força e apressou dis‐
cretamente o passo. O garoto sabia que estava com uma aparência terrível,
como uma daquelas pessoas que aparecem nos cartazes pendurados nos cor‐
reios: “Alex Rider, 14 anos, precisa de um lar adotivo”. Sua última luta com
Damian Cray deixara marcas. Mas, dessa vez, eram mais do que cortes e
manchas roxas. Cortes e manchas se curariam com o tempo, como já ocor‐
rera outras vezes. Entretanto, no último minuto Alex vira toda a sua vida
mudar de forma.
Não conseguia parar de pensar em Yassen Gregorovich. Duas semanas já
haviam se passado, mas Alex ainda acordava no meio da noite, revivendo
os últimos momentos no Air Force One. Seu pai fora um assassino de alu‐
guel, morto pelas mesmas pessoas que agora tomavam conta da vida de
Alex. Não podia ser verdade. Yassen devia estar mentindo, tentando ferir
Alex como vingança pelo que acontecera entre os dois. O garoto queria
acreditar nisso. No entanto, ao olhar bem dentro dos olhos do homem mori‐
bundo, não havia visto mentira. Vira apenas um estranho tipo de ternura... e
um profundo desejo de que a verdade fosse revelada.
Vá a Veneza. Encontre Scorpia. E você encontrará seu destino...
Alex começava a achar que seu único destino era sofrer com as mentiras
e manipulações de adultos que não se importavam nada com ele. Deveria ir
a Veneza? Como encontraria Scorpia? E, por falar nisso, Scorpia era uma
pessoa ou um lugar? Ele observou os cisnes, desejando que aquelas aves
pudessem lhe dar uma resposta. Mas elas continuaram a deslizar pela água,
ignorando-o.
Uma sombra caiu sobre o banco. Alex levantou os olhos, e a sensação foi
como a de levar um soco no estômago. A sra. Jones estava parada diante
dele. A agente do Serviço Secreto Britânico vestia uma calça de seda cinza
com um blazer combinando que descia até abaixo dos joelhos, quase como
um casaco. Ela usava um broche de prata na lapela e mais nenhuma joia.
Parecia estranho vê-la ali, fora de um prédio, sob o sol. Ele não queria en‐
xergá-la. Aliás, junto com Alan Blunt, a sra. Jones era a última pessoa que
Alex queria ver.
— Posso me juntar a você? — ela perguntou.
— Parece que já fez isso.
Ela se sentou ao lado do garoto.
— Você andou me seguindo? — perguntou Alex.
Ele se perguntava como soubera que estaria ali, e então lhe ocorreu que
talvez estivesse sob vigilância 24 horas por dia durante as últimas duas se‐
manas. Isso não o surpreenderia.
— Não. Sua amiga, Jack Starbright, disse que você estaria aqui.
— Vim encontrar uma pessoa.
— Só ao meio-dia. Jack me procurou, Alex. A essa altura, você já deve‐
ria ter se reportado a nós, na Liverpool Street. Precisamos interrogá-lo.
— Não tenho por que me reportar a Liverpool Street — rebateu o garoto
com amargura. — Não há nada lá, não é? Apenas um banco.
A sra. Jones entendeu.
— Isso foi errado da nossa parte — ela admitiu.
O garoto deu as costas.
— Sei que não quer falar comigo, Alex — continuou a mulher. — Muito
bem, não precisa falar. Mas, por favor, poderia pelo menos escutar?
Ela olhava ansiosamente para ele. O garoto não disse nada. A sra. Jones
continuou.
— É verdade que duvidamos de você quando veio nos procurar... E é cla‐
ro que estávamos errados. Mas parecia tão inacreditável que um homem co‐
mo Damian Cray pudesse ser uma ameaça à segurança nacional... Ele era ri‐
co e excêntrico, mas era o único artista pop com atitude. Era isso que pensá‐
vamos. Porém, se acha que o ignoramos completamente, Alex, você está er‐
rado. Alan e eu temos ideias diferentes a seu respeito. Para ser honesta, se
fosse pela minha vontade, jamais teríamos envolvido você em tudo isso.
Não o teríamos envolvido nem mesmo naquele negócio com os Stormbrea‐
kers. Mas essa não é a questão aqui — ela respirou fundo. — Depois que
você saiu, decidi dar mais uma olhada em Damian Cray. Não havia muito
que eu pudesse fazer sem a autoridade certa, mas fiz com que fosse vigiado
e com que todos os seus movimentos fossem reportados a mim.
Ela respirou e continuou.
— Soube que você esteve em Hyde Park, naquela cúpula, quando o Ga‐
meslayer foi lançado. Também recebi um relatório da polícia sobre a mu‐
lher, a jornalista que morreu. Mas pareceu apenas uma infeliz coincidência.
Então me contaram sobre o incidente em Paris, o assassinato do fotógrafo e
do assistente dele. Nessa época, Damian estava na Holanda, e a próxima no‐
tícia que tive foi a de que a polícia holandesa estava fazendo um barulho
danado por causa de uma perseguição em alta velocidade. Carros e motos
perseguindo um garoto em uma bicicleta. É claro que eu sabia que era você,
mas ainda não tinha ideia do que estava acontecendo. Então, sua amiga Sa‐
bina desapareceu no hospital Whitchurch. Isso realmente acendeu os sinais
de alerta. Eu sei. Você provavelmente está pensando que fomos absurda‐
mente lentos, e está certo. Mas todos os serviços de inteligência do mundo
são iguais. Quando agem, são eficientes. Mas, com frequência, começam
tarde demais. Esse foi o caso dessa vez. Quando decidimos chamá-lo, você
já estava com Cray, em Wiltshire. Falamos com sua governanta, Jack. En‐
tão, fomos direto para a casa dele. Perdemos você novamente e dessa vez
não tínhamos ideia de para onde tinha ido. Agora sabemos, é claro. Air For‐
ce One! O pessoal da CIA está quase louco. Alan Blunt foi chamado pelo
primeiro-ministro na semana passada. Talvez seja forçado a se aposentar...
— Nossa, isso parte meu coração — ironizou Alex.
A sra. Jones ignorou o comentário.
— Alex... tudo o que você precisou encarar... Sei que foi muito difícil.
Você estava sozinho, e isso nunca deveria ter acontecido. Mas a verdade é
que acabou salvando milhares de vidas. Independentemente do que estiver
sentindo agora, precisa se lembrar disso. Eu não estaria mentindo se disses‐
se que salvou o mundo. Só Deus sabe quais seriam as consequências se
Cray tivesse sido bem-sucedido. De qualquer modo, o presidente dos Esta‐
dos Unidos e o primeiro-ministro gostariam muito de conhecê-lo. A propó‐
sito, você também foi convidado pelo Palácio de Buckingham, se quiser ir.
É claro que ninguém sabe a seu respeito. Você ainda é um assunto confiden‐
cial. Mas deve sentir orgulho de si mesmo. O que fez foi... impressionante.
— O que aconteceu com Henryk? — Alex quis saber.
A pergunta pegou a sra. Jones de surpresa, mas essa era a única coisa que
o garoto ainda não sabia.
— Só estou curioso — ele complementou.
— Ele está morto — relatou a sra. Jones. — Acabou morrendo quando o
avião virou. Quebrou o pescoço.
Alex virou-se para ela.
— Bem, então é isso. Posso ir agora?
— Jack está preocupada com você, Alex. E eu também. Pode ser que o
ajude falar sobre o que aconteceu. Quem sabe fazer algum tipo de terapia...
— Não quero terapia. Só quero ficar sozinho.
— Está certo.
A sra. Jones se levantou. Fez uma última tentativa de ler a expressão do
garoto antes de partir. Aquela era a quarta vez que encontrava Alex no fim
de uma missão. Em cada uma das ocasiões, ela percebia que ele saía modi‐
ficado para pior, abalado. Mas dessa vez alguma coisa mais grave havia
acontecido. A sra. Jones sabia que Alex estava escondendo alguma coisa.
E então, em um impulso, ela disse:
— Você estava no avião com Yassen quando Cray o atingiu. Gregorovich
disse alguma coisa a você antes de morrer?
— O que quer dizer?
— Ele falou com você?
Alex olhou bem dentro dos olhos da mulher.
— Não. Ele não disse nada.
O garoto observou-a partir. Então o que Yassen dissera era verdade. A úl‐
tima pergunta da sra. Jones provara isso. Alex agora sabia quem ele era.
O filho de um assassino de aluguel.

Sabina o esperava perto da ponte. Alex sabia que seria um encontro breve.
Não restava muita coisa a ser dita.
— Como você está? — ela perguntou.
— Estou bem. Como está seu pai?
— Muito melhor — ela encolheu o ombro. — Acho que vai ficar bem.
— E ele não vai mudar de ideia?
— Não, Alex. Estamos indo embora.
Sabina havia lhe contado pelo telefone na noite anterior. Ela e os pais
deixariam o país. Queriam ficar sozinhos, para que o pai da família tivesse
tempo de se recuperar completamente. Haviam concluído que seria mais fá‐
cil para ele começar uma nova vida, e tinham escolhido a cidade de San
Francisco, nos Estados Unidos. Edward recebera uma oferta de emprego de
um grande jornal californiano. E havia mais boas notícias: ele estava escre‐
vendo um livro no qual narraria a verdade sobre Damian Cray. E com certe‐
za faria uma fortuna.
— Quando vocês vão? — perguntou Alex.
— Terça-feira — Sabina passou a mão nos olhos, e Alex se perguntou se
seria uma lágrima. Mas, quando ela olhou novamente para ele, estava sor‐
rindo. — É claro que manteremos contato. Podemos trocar e-mails. E você
sabe que sempre pode nos visitar quando quiser tirar umas férias.
— Desde que não sejam como as últimas... — falou Alex.
— Vai ser estranho frequentar uma escola americana — Sabina interrom‐
peu. — Você foi fantástico no avião, Alex. Não consigo acreditar em quão
corajoso foi. Quando Cray estava lhe contando todas aquelas coisas loucas,
você não parecia nem assustado.
A garota parou de falar novamente antes de perguntar:
— Você vai trabalhar novamente para o MI6?
— Não.
— Acha que eles o deixarão em paz?
— Não sei, Sabina. Na verdade, tudo foi culpa do meu tio. Ele começou
essa história, anos atrás. E agora quem está enrolado com isso sou eu.
— Ainda me sinto envergonhada por não ter acreditado em você — Sa‐
bina suspirou. — E agora entendo como deve ter se sentido, tudo por que
passou. Eles me fizeram assinar o Ato Secreto Oficial. Não tenho permissão
para contar a ninguém sobre você. — Mais uma pausa. — Nunca vou es‐
quecê-lo — ela disse.
— Vou sentir saudades de você, Sabina.
— Mas voltaremos a nos ver. Você pode ir à Califórnia. E eu avisarei
sempre que vier a Londres.
— Que bom.
Ela estava mentindo. Por algum motivo, Alex sabia que aquilo era mais
do que uma despedida, sabia que os dois jamais se veriam de novo. Não ha‐
via razão para isso. As coisas simplesmente seriam assim.
Sabina passou os braços ao redor dele e o beijou.
— Adeus, Alex.
Ele observou Sabina enquanto ela ia embora de sua vida. Então, deu
meia-volta e seguiu pela margem do rio, passando pelos cisnes e avançando
em direção ao campo. Alex não parou. E nem olhou para trás.

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