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O conto: O conto “The man and the snake” faz parte da coletânea

Tales of soldiers and civilians, publicada por Ambrose Bierce em


1891, e imediatamente chamou a atenção dos resenhistas ao narrar
a história de um homem vitimado pela influência hipnótica de uma
serpente. 

O autor: Durante sua vida, o escritor e jornalista Ambrose Bierce


(1842-1913) ficou conhecido como o “Maupassant do Oeste” pela
preferência por temas considerados mórbidos em suas narrativas, a
exemplo do contista francês. Em 1913, Bierce desapareceu
misteriosamente, gerando boatos sobre sua morte no México ao ir
ao encalço de Pancho Villa.
Recentemente, obras como a série de televisão True Detective
resgataram a obra de Ambrose Bierce, autor do conhecido conto “O
habitante de Carcosa”.
A tradutora: Ana Resende é doutoranda em Teoria da Literatura e
Literatura Comparada, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), com uma pesquisa sobre as obras de Arthur Machen (1863-
1947) e Gastão Cruls (1888-1959).
 
O homem e a serpente
 
Ambrose Bierce
 
E isto he o que se conta, e tantos saõ os testemunhos
que naõ havia de o sábio ou o esclarecido
contradizerlhe, que os olhos da Serpente tem
propriedades magnéticas, de modo que quem assim se
encontra enfeitiçado sob seu encanto é atraído a
despeito da própria Vontade & perece miseravelmente
devido à mordida da Criatura.
 
I.
 
Recostado confortavelmente no sofá, de camisolão e
pantufas, Harker Brayton sorriu ao ler a frase na antiga obra de
Morryster, Maravilhas da ciência. “A única maravilha em questão”,
falou com seus botões, “é que os sábios e esclarecidos da época de
Morryster acreditassem em uma bobagem dessas, que até os mais
ignorantes de nossa época refutariam.”
Seguiu-se uma série de considerações — já que Brayton era
um homem de ideias —, e sem se dar conta, ele baixou o livro,
mantendo a direção de seu olhar. Assim que o exemplar ficou
abaixo da altura dos olhos, alguma coisa em um canto escuro do
cômodo chamou sua atenção para o entorno. O que ele viu na
obscuridade debaixo da cama foram dois pequenos pontos de luz
aparentemente a poucos centímetros um do outro. Talvez fossem
reflexos do lampião de gás acima dele nas cabeças de pregos de
metal. Ele não pensou muito nisso e voltou à leitura. Um minuto
depois alguma coisa — um tipo de impulso que não lhe ocorreu
analisar — o impeliu a baixar o livro mais uma vez e procurar o que
ele tinha visto antes. Os pontos de luz ainda estavam lá. Pareciam
ainda mais luminosos, reluzindo com um brilho esverdeado que não
observara da primeira vez. E também lhe ocorreu que talvez
tivessem se movido um pouco e que de alguma forma estivessem
mais próximos. Porém eles ainda estavam demasiado na sombra
para revelar sua natureza e origem a uma atenção indolente, e ele
voltou a ler. De repente alguma coisa no texto sugeriu um
pensamento que lhe causou um sobressalto e ele baixou o livro pela
terceira vez, pousando-o no braço do sofá, de onde escapando-lhe
da mão caiu no soalho, estatelando-se virado para baixo. Erguendo-
se um pouco, Brayton fitou a obscuridade debaixo da cama, onde os
pontos de luz irradiavam ao que lhe parecia com mais intensidade
ainda. Agora sua atenção fora totalmente despertada, e seu olhar
era ávido e imperativo. E revelou praticamente bem embaixo da
pezeira da cama as espirais de uma imensa serpente — os pontos
de luz eram seus olhos! A horrível cabeça projetava-se
horizontalmente do anel mais interno e, pousada sobre o mais
externo, voltava-se diretamente para ele. O contorno da mandíbula
brutal, imensa e a testa estúpida indicavam a direção do olhar
malevolente. Os olhos não eram mais meros pontos luminosos,
fixavam os dele com um propósito, um sentido maligno.
 
II.
 
Encontrar uma serpente no quarto de uma habitação
moderna e refinada felizmente não é um fenômeno tão comum a
ponto de tornar sua explicação desnecessária. Harker Brayton, um
solteirão de 35 anos, culto, ocioso, com um tipo atlético, rico,
popular, gozando de boa saúde, retornara a São Francisco após
viajar por toda sorte de países remotos e desconhecidos. Seus
gostos sempre um tanto extravagantes exacerbaram-se após a
longa privação, e como os recursos do Castle Hotel pareceram
inadequados à sua plena satisfação ele aceitara com gosto a
hospitalidade de um seu amigo, notório cientista, o dr. Druring. A
casa do cientista, uma dessas residências imensas e antiquadas no
que era agora um obscuro quarteirão da cidade, tinha um aspecto
exterior e visível de reserva. Evidentemente não poderia ser
associada aos elementos contíguos dos arredores modificados e
parecia ter desenvolvido algumas excentricidades em consequência
de seu isolamento. Uma delas era uma “ala”, irrelevante do ponto de
vista arquitetônico e não menos desafiadora quanto à sua finalidade,
já que se tratava de uma combinação de laboratório, zoológico e
museu. Era aí que o doutor saciava o lado científico de sua natureza
no estudo das formas da vida animal que despertavam seu
interesse e consolavam seu gosto — que a bem da verdade voltava-
se às espécies inferiores. Para que um dos tipos superiores com
agilidade e doçura captasse seus delicados sentidos deveria manter
ao menos certas características rudimentares que o vinculasse aos
“dragões da aurora”, como os sapos e as cobras. Suas simpatias
científicas eram nitidamente reptilianas. Ele adorava os plebeus da
natureza e descrevia a si mesmo como o “Zola da zoologia”. A
mulher e as filhas que, para sua desgraça, não compartilhavam
dessa curiosidade esclarecida em relação aos trabalhos e maneiras
de nossos desafortunados semelhantes, eram excluídas com
desnecessária austeridade do que ele chamava o Serpentário e
estavam condenadas à companhia dos de sua própria espécie ainda
que, para amenizar os rigores de sua sorte, permitisse que elas,
graças à imensa fortuna, superassem os répteis na beleza de seu
entorno e brilhassem com um esplendor em tudo superior.
Do ponto de vista arquitetônico e “mobiliário” o Serpentário
tinha uma simplicidade grave que se adequava à condição humilde
de seus ocupantes, muitos dos quais na verdade não poderiam ter
sido agraciados de forma segura com a liberdade necessária para o
pleno gozo do luxo, já que tinham a incômoda peculiaridade de
estarem vivos. Em seus próprios aposentos, porém, não sofriam
nenhum tipo de restrição pessoal por assim dizer, salvo aquela que
os protegia do pernicioso hábito de morderem uns aos outros. E
como Brayton fora informado judiciosamente era mais do que uma
tradição que algum deles em momentos diversos fosse encontrado
em partes das instalações onde explicar sua presença causaria
constrangimento. Apesar do Serpentário e de suas estranhas
associações (às quais, na verdade, deu pouca atenção), Brayton
achava muito agradável a vida na mansão Druring.
 
III.
 
Além de um vivo choque de surpresa e de um calafrio de
repulsa, o sr. Brayton não foi grandemente afetado. O primeiro
pensamento que lhe ocorreu foi tocar a campainha, chamando um
criado. No entanto embora a corda da campainha balançasse bem
ao seu alcance ele não se moveu em sua direção. Veio-lhe à mente
a ideia de que tal ato poderia submetê-lo à suspeita de medo, que
certamente não sentia. Ele estava mais agudamente consciente da
natureza inusitada da situação do que ameaçado por seus perigos.
Era repulsiva, mas absurda.
O réptil era de uma espécie com a qual Brayton não estava
familiarizado. E ele apenas podia conjecturar seu comprimento; na
parte visível mais larga, o corpo parecia tão grosso quanto seu
antebraço. De que maneira era perigoso, se é que o era? Era
venenoso? Era um constritor? Seu conhecimento dos sinais de
perigo da natureza não lhe permitiam dizer. Ele nunca havia
decifrado seu código.
Se a criatura não era daninha, ao menos, era repulsiva. Era
de trop — “estava fora de lugar” —, uma impertinência. A gema não
estava à altura do engaste. Nem o gosto bárbaro de nosso tempo e
país que enchera as paredes dos cômodos com quadros; o soalho,
com móveis, e a mobília, com bricabraques, tinha lugar para este
traço de vida selvagem da floresta. Além do mais — e que ideia
insuportável! —, as exalações de sua respiração misturavam-se ao
ar que ele mesmo respirava.
Esses pensamentos se formaram na mente de Brayton com
maior ou menor definição e motivaram uma ação. O procedimento é
o que chamamos de consideração e decisão. E é por isso que nós
somos prudentes ou imprudentes. E é assim que a folha murcha na
brisa de outono demonstra mais ou menos inteligência que seus
semelhantes ao cair sobre a terra ou no lago. O segredo da ação
humana é conhecido: alguma coisa contrai nossos músculos. Faz
diferença se chamamos vontade às alterações moleculares
preparatórias?
Brayton se pôs de pé pronto a afastar-se lentamente da
serpente, sem perturbá-la se possível, na direção da porta. As
pessoas se retiram assim da presença dos grandes, já que
grandeza é poder, e poder é uma ameaça. Ele sabia que poderia
andar para trás sem esbarrar em nada e encontrar a saída sem erro.
Caso a criatura monstruosa o seguisse, o gosto que emboçara as
paredes com pinturas proporcionara da mesma forma uma grande
quantidade de armas mortais do Oriente, e ele poderia arrebatar
uma delas, adequada à ocasião. Nesse meio-tempo os olhos da
serpente arderam com mais malevolência e crueldade do que antes.
Brayton ergueu o pé direito do soalho para dar um passo
para trás. Nesse momento sentiu uma forte aversão.
— Se sou considerado corajoso — murmurou ele —, então a

coragem não passa de orgulho? Recuarei já que não há ninguém


para testemunhar o meu constrangimento?
Com o pé erguido ele se equilibrava com a mão direita sobre
o encosto de uma cadeira.
— Bobagem! — falou em voz alta. — Não sou um covarde tão

grande assim para ter medo de parecer medroso para mim mesmo.
Ele ergueu um pouco mais o pé, dobrando levemente o
joelho e plantou-o bruscamente no soalho — um centímetro à frente
do outro! Não podia imaginar como isso ocorreu. Uma tentativa com
o pé esquerdo obteve o mesmo resultado. Mais uma vez ele estava
à frente do direito. A mão sobre o encosto da cadeira a apertava. O
braço estava esticado, ligeiramente virado para trás. Alguém que o
visse perceberia que ele relutava em soltar. A cabeça maligna da
serpente ainda se erguia da espiral interna como antes, com o
pescoço reto. Ela não se movera, mas seus olhos eram agora como
fagulhas elétricas irradiando uma infinidade de agulhas luminosas.
O homem adquirira uma palidez acinzentada. Mais uma vez
deu um passo adiante e mais outro arrastando parcialmente a
cadeira que, após ser finalmente liberada, caiu com estrépito no
soalho. Ele gemeu; a serpente não emitira som nem se movera,
mas seus olhos eram como dois sóis ofuscantes. O próprio réptil era
totalmente ocultado por eles, que emitiam anéis cada vez maiores,
de cores fortes e vívidas e que ao se expandirem ao máximo
desapareciam sucessivamente feito bolhas de sabão. Parecia que
se aproximavam de seu rosto e pouco depois estavam a uma
distância incalculável. Em alguma parte ele ouviu o bater contínuo
de um grande tambor com as irrupções intermitentes de música
distante, inconcebivelmente doce, como os sons de uma harpa
eólica. Reconheceu a melodia do sol nascente da estátua de Mênon
e pensou que estivesse em meio aos juncos da beira do Nilo
ouvindo, com sentido exaltado, ao hino imortal através do silêncio
dos séculos.
A música cessou; antes tornou-se em graus imperceptíveis o
ribombar distante dos trovões de uma tormenta que se extinguia.
Uma paisagem, reluzindo com sol e chuva, estendeu-se diante dele,
arqueada com um arco-íris vívido que emoldurava em sua curva
gigante uma centena de cidades visíveis. A meia distância uma
imensa serpente, usando uma coroa, erguia a cabeça acima de
suas volumosas convoluções e o encarava com os olhos de sua
falecida mãe. Subitamente a paisagem encantadora pareceu erguer-
se rapidamente, como a cortina em um teatro, e desapareceu no
vazio. Alguma coisa o atingiu com um forte golpe no rosto e no
peito. Ele caíra no chão, e o sangue escorria de seu nariz quebrado
e dos lábios machucados. Por um momento atordoado e aturdido,
ele ficou deitado, de olhos fechados, com o rosto contra a porta.
Alguns instantes depois já tinha se recuperado e então
compreendeu que a queda ao desviar-lhe a vista rompera o feitiço
que o prendia. Agora ele sentia que mantendo os olhos afastados
era capaz de retirar-se. Mas a ideia da serpente a poucos passos de
sua cabeça ainda que ele não a visse — e que talvez estivesse no
ato mesmo de se lançar sobre ele e jogar as espirais ao redor de
seu pescoço — era horrível demais. Ele levantou a cabeça, encarou
novamente aqueles olhos sinistros e mais uma vez ficou sob seu
controle.
A serpente não se movera e parecia que de alguma forma
havia perdido o poder sobre sua imaginação. Já não se repetiam as
ilusões magníficas de poucos minutos atrás. Debaixo da
sobrancelha reta e estúpida os olhos pretos, semelhantes a contas,
simplesmente reluziram como da primeira vez, com uma expressão
de indizível malignidade. Era como se a criatura, sabendo de seu
iminente triunfo, estivesse determinada a não praticar mais
artimanhas sedutoras.
Agora se seguiu uma cena horrorífica. O homem prostrado no
chão a um metro da inimiga ergueu o tronco, apoiando-se nos
cotovelos com a cabeça para trás e as pernas totalmente esticadas.
Seu rosto estava branco entre as gotas de sangue; seus olhos,
repuxados e abertos ao máximo. A espuma sobre os lábios caía em
flocos. Fortes convulsões percorreram-lhe o corpo criando
ondulações praticamente serpentinas. Ele se dobrou sobre a
barriga, movendo as pernas de um lado a outro. E cada movimento
o aproximava um pouco mais da serpente. Ele jogou as mãos para a
frente, apoiando-se para manter a posição, mas avançou sobre os
cotovelos de modo constante.
 
IV.
 
O dr. Druring e a esposa estavam sentados na biblioteca, e o
cientista estava de raro bom humor.
— Acabo de conseguir um esplêndido espécime de

ophiophagus — falou ele —, trocando com outro colecionador.


— E o que é que isso pode ser? — quis saber a mulher sem
muito interesse.
— Ora, que Deus me perdoe, que profunda ignorância!

Querida, um homem que descobre após o casamento que a esposa


não sabe grego tem direito ao divórcio. A ophiofagus é uma
serpente que come outras serpentes.
— Espero que coma todas as suas — retrucou ela
distraidamente movendo o lampião. — Mas como ela captura as
outras serpentes? Encantando-as, suponho.
— Isso é bem típico, querida — falou o doutor, com certa
petulância. — Você sabe como me irrita qualquer alusão a essa
superstição vulgar sobre o poder de fascinação das serpentes.
A conversa foi interrompida por um alarido muito alto que
soou através da casa silenciosa como a voz de um demônio
gritando em uma sepultura. Repetidas vezes o grito ressoou com
terrível clareza. De um salto ambos ficaram de pé; o homem,
confuso, a mulher, pálida e muda de pavor. Antes mesmo que os
ecos do último aulido tivessem morrido o doutor já havia saído do
cômodo subindo de dois em dois os degraus da escada. No
corredor, diante dos aposentos de Brayton, ele se deparou com
alguns criados que vieram do andar de cima. Juntos lançaram-se
sobre a porta sem bater. Estava destrancada e cedeu. Brayton jazia
morto, de barriga para baixo, no chão. A cabeça e os braços
estavam parcialmente ocultos debaixo da pezeira da cama.
Puxaram o corpo, virando-o de costas. O rosto estava coberto com
sangue e espuma, os olhos estavam arregalados e fixos fitando uma
visão pavorosa!
— Morreu de ataque cardíaco — concluiu o cientista,
ajoelhando-se e colocando a mão sobre o coração do outro. Nessa
posição ele casualmente olhou debaixo da cama. — Meu Deus! —

emendou —, como é que essa coisa foi parar aqui?


Tateou debaixo da cama e pegou a serpente, lançando-a
ainda enrolada no centro do cômodo de onde com um som
desagradável, de algo arrastando, ela deslizou pelo soalho
encerado até parar junto à parede, aí permanecendo imóvel. Era
uma serpente empalhada. No lugar dos olhos, viam-se duas contas
de vidro.

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