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por Aline Albuquerque Jorge e Angela dos Santos Machado

No Brasil, a pandemia do novo coronavírus aprofundou a situação de vulnerabilidade social


que afeta parte da sociedade. Junto com a crise sanitária, muitas pessoas tiveram que lidar
com o desemprego, com a falta de acesso à moradia e aos itens necessários para evitar a
contaminação.

Além disso, nesse período, vários produtos de necessidade básica passaram por diversos
reajustes. Somente em 2020, o gás de cozinha teve seu preço aumentado nove vezes,
chegando a custar em algumas cidades mais de 100,00 reais. O mesmo aconteceu com os
alimentos, inclusive, aqueles que constituem a base da nossa alimentação. Segundo
levantamento realizado pelo IBGE, em 2020, o preço do arroz subiu 76%, do feijão carioca
16,23%, do óleo de soja 103,79% e do leite longa vida 26,93%.

É evidente que esses frequentes reajustes, que tornam o custo de vida tão alto no país, fazem
com que o restrito auxílio emergencial pago pelo governo federal à população
economicamente vulnerável, cujo maior valor na atualidade é de 375,00 reais (destinado às
mães solo), não chegue nem perto de ser o suficiente para a garantia de uma vida digna.

Como resultado, a extrema pobreza tem crescido no país e a insegurança alimentar já atinge
mais de 116 milhões de pessoas, conforme os dados publicados no Inquérito Nacional sobre
Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, produzido pela Rede
Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan).

Durante esse momento de crise, os movimentos sociais camponeses, em especial o MST,


contribuem de forma significativa para o combate à insegurança alimentar, através da
construção de campanhas e articulações com instituições, ONGs e outros tipos de
movimentos, que resultam na doação de milhares de toneladas de alimentos em todo o país.

Não são caminhões carregados com a soja ou o milho produzidos pelo agronegócio que temos
visto chegar nas periferias, abrigos e comunidades indígenas, mas sim, caminhões
carregados com frutas, legumes, hortaliças, tubérculos e cereais, oriundos da produção
camponesa dos acampamentos e assentamentos de reforma agrária. As doações não
contribuem apenas para saciar a fome daqueles que as recebem, mas também para a
adequada reposição dos nutrientes e o aumento da imunidade, considerando a diversidade e
a qualidade dos alimentos doados, sendo que vários deles são orgânicos ou agroecológicos
e, portanto, são livres de agrotóxicos.

A multiplicação das doações de alimentos realizadas pelos movimentos durante a pandemia,


nos estimulou a iniciar uma pesquisa para compreender a dimensão e significado dessas
ações. Como ponto de partida, decidimos trabalhar com as doações efetuadas pelo MST,
tanto de forma individual como em conjunto com outros movimentos e instituições. Para isso,
passamos a analisar e sistematizar as notícias publicadas pelo movimento em suas redes
sociais, relativas às doações realizadas.

No período de março de 2020 (início da pandemia) até março de 2021, quando decidimos
interromper o trabalho, identificamos 457 ações realizadas em todo o Brasil, que somadas
correspondem a doação de mais de 1760 toneladas de alimentos in natura, 98.000 marmitas,
9.600 cestas, 28.000 litros de leite, 8.200 pães, 2.700 cestas básicas, além de centenas de
kits de alimentos com produtos de higiene e cafés da manhã solidários. Estimamos que o
número de ações e de alimentos doados sejam ainda maiores do que os que levantamos,
pois provavelmente existem casos em que a doação foi efetuada, porém não foi divulgada e,
portanto, não conseguimos registrá-la.

Percebemos que muitas das campanhas e das ações desenvolvidas se concentraram em


torno de datas representativas para a luta camponesa, dos trabalhadores, das mulheres, entre
outros. Em abril de 2020, por exemplo, mais de 380 toneladas de alimentos in natura, 10.700
marmitas e 1000 cestas foram doadas em todo o país, principalmente, em função do Dia
Nacional da Luta pela Reforma Agrária (17 de abril), data criada em memória aos
trabalhadores sem-terra assassinados no Massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará, em
1996. Outro exemplo, é o mês de julho de 2020, em que comemora-se o Dia Internacional do
Agricultor Familiar (25 de julho) e mais de 400 toneladas de alimentos in natura, 6.000
marmitas e 2.700 cestas foram doadas no país.

As mulheres tiveram um papel de destaque referente à preparação das refeições e também à


realização de campanhas de doação, inclusive, durante a celebração do Dia Internacional da
Mulher (08 de março). Conforme explica a camponesa Ceres Hadich, assentada do norte do
Paraná e integrante da direção do MST, “a participação das mulheres do movimento sem-
terra é sempre uma ação de vanguarda”. As mulheres sempre estão presentes nas ações do
movimento, “especialmente quando se debate esse tema da solidariedade, da cooperação,
da agroecologia, da produção de comida.”

Dentre as regiões brasileiras, o sul é onde se concentrou a doação de mais de 50% dos
alimentos in natura, quase 45% das marmitas e 50% das cestas. Na sequência, temos a
região nordeste, que se destacou na doação de quase 40% dos alimentos in natura. Já a
região sudeste se apresenta como a segunda maior doadora de marmitas (36%) e de cestas
(35%). Esses dados que colocamos aqui em porcentagem, estão expressos em número total
de toneladas nos mapas que apresentamos a seguir.

É certo que as doações realizadas pelo MST e por outros movimentos se constituem em
legitimas ações de solidariedade e, assim como destca Ceres Hadich, “solidariedade não é
dar aquilo que está sobrando, solidariedade é dar aquilo que a gente tem, inclusive aquilo que
pode nos fazer falta”. Ela afirma que nesse momento o MST está cumprindo a sua missão
histórica de produzir alimentos saudáveis para o povo brasileiro.

Mais do que solidariedade, as doações de alimentos são uma autentica forma de denunciar a
ausência do Estado em um momento de crise sanitária e aprofundamento da crise econômica
e social. Essas ações mostram para toda a sociedade a importância da reforma agrária, bem
como, que os assentamentos e os acampamentos são territórios de produção de alimentos
diversos e saudáveis, que cumprem a função social da terra, de acordo com o estabelecido
na Constituição Federal.

Por meio dessas ações, o MST constrói articulações com diversos outros movimentos, ligados
à luta indígena, por moradia, por direitos trabalhistas e etc., possibilitando o fortalecimento e
a reivindicação de pautas em comum. Além disso, a partir da organização coletiva, formam-
se espaços de diálogo, de socialização política, tanto dentro dos acampamentos e
assentamentos que doam a comida, como nas cozinhas onde as marmitas são preparadas
ou nas ruas, onde o movimento, ao entregar as doações, interage com a população e divulga
sua produção de alimentos.

Acreditamos que essas ações ainda contribuem para a desconstrução da imagem negativa
que parte da população possui a respeito dos movimentos camponeses. Também evidenciam
que a implantação de um projeto de reforma agrária popular, tal como defendido pelo MST,
precisa ser tratada como uma questão de interesse social. Além da redemocratização do
acesso à terra, a reforma agrária popular consiste na construção de um outro modelo de
desenvolvimento, cujo pilar principal é a produção de alimentos diversificados e saudáveis em
larga escala e com preço justo para o povo brasileiro.

Na pandemia, percebemos que os camponeses têm chegando à lugares onde o agronegócio,


as grandes empresas de alimentos e, muitas vezes, nem mesmo o Estado chegam. Por todas
essas razões, registramos aqui a nossa gratidão ao MST e a todos os movimentos e
instituições que em tempos tão difíceis tem demonstrado humanidade e nos dado sopros de
esperança.

*Aline Albuquerque Jorge é doutoranda do curso de geografia na Universidade Estadual


Paulista (UNESP)

**Angela dos Santos Machado é doutoranda do curso de geografia na Universidade


Estadual Paulista (UNESP)

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