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Fabrina Furtado
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1. Introdução
conflitos são sentidos e vivenciados de formas distintas por homens e mulheres e entre
elas pois são marcados por relações sociais desiguais que preestabelecem
responsabilidades específicas em função do gênero, da classe e da raça. Além disso, as
experiências das mulheres influenciam as suas percepções e valores em torno das
questões ambientais. No entanto, apesar de contarmos com uma ampla produção de
pesquisas sobre a indústria extrativa, grandes projetos e conflitos ambientais
(ACSELRAD, 2004; ALMEIDA et al, 2010; ZHOURI; VALENCIO, 2012), trabalhos
sobre ecologia política feminista, ecofeminismo e feminismo territorial e comunitário
(BARRAGÁN et al, 2016; PAREDES, 2010; ROCHELEAU, THOMAS SALYTER e
WANGARI, 2004; SEGATO, 2012; ULLOA, 2016) e crescentes denúncias em torno do
aumento da violência e as desigualdades ambientais afetando as mulheres e o seu
protagonismo em diversas lutas (CPT, 2014; SOBRAL, 2018), ainda é preciso avançar na
análise deste relação.
Vale ressaltar que os conceitos de gênero e mulher/mulheres são acompanhados
de profundas complexidades e tensões, contém posturas extremamente variadas e que
frequentemente não dão conta dos trânsitos entre masculinidade e feminilidade ou de
“outras” questões como raça, classe, geração e sexualidade. Não teremos como analisar
este processo no contexto desta pesquisa; são discussões que estão presentes em diversos
outros trabalhos (SCOTT, 1989; COSTA, 1998; PISCITELLI, 2002). A abordagem aqui
assumida reconhece essa complexidade e busca, portanto, utilizar os dois conceitos de
forma articulada, em especial destacando a diversidade das mulheres, das suas
experiências e vivências e os contextos específicos onde relações de poder são
operacionalizadas a partir do sistema de diferenciação sexo/gênero. Compreendemos que
o conceito de gênero foi desenvolvido a partir da constatação de que as mulheres ocupam
lugares sociais subordinados em relação aos homens e que tal processo é construído
socialmente e que portanto não só pode como deve ser modificado. Reconhecemos
também a apropriação que vêm sendo feita deste conceito por parte de empresas,
instituições multilaterais, centros de pesquisa e governos, e portanto o caráter político da
categoria heterogênea “mulher”, historicamente construída de forma a negar
epistemologicamente qualquer essência à mulher, e possibilitar a prática política a partir
de semelhanças e do reconhecimento das diferenças. Neste sentido, o conceito de
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impondo sobre os segundos identificados pelo que historicamente foi construído como
“feminino” e inferior, residual (SARDENBER, 2001; SEGATO, 2012) influencia a forma
como pensamos a questão ambiental, alimentando e reforçando também aqui as
hierarquias de gênero (LUGONES, 2008; ULLOA, 2004, 2014).
2010).
Neste sentido, existem diferentes perspectivas em torna da relação gênero e meio
ambiente, para além daquelas visões que afirmam a não existência de questões de gênero
na forma como percebemos e nos apropriamos do nosso mundo material. Uma corrente
de pensamento, por exemplo, argumenta que em decorrência das suas funções biológicas
e portanto do “instinto maternal”, a mulher é mais próxima da natureza, as tornando mais
sensíveis, cuidadosas e mais preocupadas com o ambiente que os homens (DI CIOMMO,
2003). A mulher é, portanto, apresentada como a salvação da Humanidade e da
conservação da natureza (BARRAGÁN et al., 2016).
Descolada de uma análise mais profunda sobre as relações de poder e as
complexidades que permeiam as relações de gênero, esta abordagem corre o risco de ter
um viés essencialista, situando homens e mulheres em papéis hierarquizados - mulher-
natureza, homem-cultura - relegando às mulheres o lugar e toda a responsabilidade pelo
cuidado.
Lorena Cabnal, feminista comunitária, indígena maya-xinka da Guatemala,
refletindo sobre o patriarcado originário ancestral e a sua relação com o que ela
denomina de “penetração colonial e o entrocamento dos patriarcados” (2004, pp. 13-15),
por exemplo, afirma que “pachamama es la madre tierra cuyo rol cosmogónico se sitúa
dentro de un orden heterosexual cosmogónico femenino, como reproductora y
generadora de vida. Engendrada por Tata Inti: el padre sol, el astro rey, el masculino
fecundante” e que assim, “establece en relación algo que las mujeres feministas
comunitárias debe llamarnos la atención, por la posición de poder y superioridad
manifestada del de arriba como macho y la de abajo fecundada como hembra [...]” .
do total de pessoas que vivem em condições de extrema pobreza no mundo” e que “elas
representam hoje as maiores vítimas de desastres provocados por eventos climáticos
extremos, como inundações e furacões”. No entanto, apesar de a pesquisadora alertar
sobre a necessidade de garantir mais participação das mulheres nos processos decisórios
entre as ações mais urgentes para preparar as mulheres para o enfrentamento dos eventos
climáticos extremos estão: treiná-las para que a capacidade de querer ser a mãe de todos
seja mais eficiente e que “não seja realizado ao custo de sua própria vida, mas que possa
beneficiar todo um conjunto de pessoas” e “treinar mulheres para aprenderem a nadar, a
correr, a trepar em uma árvore, e permitir que possam usar uma roupa mais adequada
para realizar essas atividades” (ALLISON 2012, p.2).
São propostas que despolitizam o debate sobre o clima, ocultando as
desigualdades em relação às suas causas e consequências; aumentam a responsabilidade
das mulheres, que devem ser ainda mais eficientes e atuar como mães de todos
reforçando a lógica da maternidade compulsória; e, limitam o tratamento da questão à
adaptação das mulheres aos seus impactos. O que poderia ser um debate qualificado
sobre os principais conflitos ambientais enfrentados por diferentes mulheres e de como
superar as causas estruturantes e desiguais destes problemas, tornam-se estratégias para
adiar e enfrentar o inevitável.
As empresas também se apropriam da problemática de gênero, incorporando “as
mulheres” em seus programas de responsabilidade social e ambiental, como estratégia de
legitimação, sem promover modificações em suas práticas. A Vale, com apenas 12,3% de
trabalhadoras, sendo só 3,8% destas gerentes e coordenadoras, por exemplo, cita as
mulheres no seu Relatório de Sustentabilidade de 2015 diversas vezes, afirmando que
“reconhece e promove o talento e a capacidade das mulheres, diminuindo a discrepância
histórica e cultural sem criar ambiente discriminatório” (VALE, 2015, p.7). De que
mulheres a Vale está falando? Qual a qualidade do trabalho destas mulheres? Como as
desigualdades e a discriminação histórica são tratadas pela mineradora? Além de não
tratar destas questões, a empresa oculta as violências enfrentadas pelas mulheres nos
territórios onde atua.
Da mesma forma, a Fundação Renova (2018), criada pela mineradora Samarco,
composta pela anglo-americana BHP Billiton e a brasileira Vale S.A, causadora do
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Duque de Caxias, da Petrobras, no Rio de Janeiro, por exemplo, esta realidade levou ao
nascimento de crianças que não conhecem seus pais, chamados de “baianinhos”, os filhos
do petróleo (FAUSTINO; FURTADO, 2013). Da mesma forma nascem os filhos e as
filhas das barragens, os filhos e as filhas do vento (eólicas)...
grileiros ao longo do Rio Doce, como também da informalidade de seus trabalhos, o que
dificulta o recebimento de qualquer tipo de indenização e/ou reparação. A Samarco
também é acusada de incentivar a discriminação de Gênero nas comunidades. Uma
pescadora, atingida de São Miguel afirmou, “eu sou pescadora, e meu formulário veio
como lavadeira” (CARTA DO RIO DOCE, 2017, p.1). Muitas mulheres estão sendo
cadastradas como lavadeiras, apesar de estarem inseridas na cadeia de pesca e portanto,
denunciam o fato do trabalho delas ser considerado assessório ou complementar ao do
marido. Existem ainda as próprias lavadeiras, barraqueiras, cozinheiras e outras
categorias que têm tido seu trabalho afetado, mas que não são reconhecidas. Outra
atingida argumentou que “a maioria das pessoas cadastradas para receber indenização é
homem, que as mulheres não são ouvidas, quando reconhecida é em um valor menor nas
indenizações” (MAB, 2017, p.1). Vale ressaltar que estamos tratando de mulheres que
não estavam organizadas em processos de luta: a identidade coletiva passa a ser
redefinida a partir de uma mobilização continuada pela garantia de direitos como
atingidas pelo crime ambiental (ALMEIDA, 2004).
Um dos exemplos da desigualdade no tratamento das mulheres atingidas pelo
rompimento da barragem é o cartão com a verba de manutenção que é entregue pela
empresa para cada família (e não por trabalhador/trabalhadora) para que se sustentem até
retomarem suas condições anteriores de trabalho e renda. Na maioria dos casos o titular
do cartão é um homem, sendo a mulher, assim como os filhos e filhas, registradas como
dependentes. A própria Fundação Renova, em evento realizado no Espírito Santo,
demonstrou que 68,51% dos cartões são distribuídos para os homens, e 31,49% para as
mulheres. Assim, “várias mulheres relatam que trabalhavam tanto quanto o marido ou até
mais e acreditam que o cartão deveria ser para quem trabalhava, e não só uma pessoa na
casa”. O efeito desta escolha é amplo: “além da clara injustiça, sabemos o quanto isso é
simbólico e perpetua a relação imposta de dependência da mulher sob o homem, reforça
essa relação, em que o homem decide, o homem que manda, o homem que é o provedor”
(representante do MAB, entrevista em 21 de junho, 2018).
Dois anos após o desastre, atingidos e atingidas do Rio Doce pela barragem de
rejeitos da Samarco, reunidas com organizações, movimentos sociais e pesquisadores em
Seminário de Balanço de 2 anos do rompimento da barragem do Fundão, afirmaram que
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4. Considerações Finais
Para finalizar, é importante considerar que nos casos analisados, apesar de não
haver um processo de luta de auto-organização das mulheres em torno do que poderia ser
caracterizado como de feminismo territorial e/ou comunitário, as mulheres atingidas têm
um protagonismo nas lutas: participam das reuniões ativamente, ocupando os espaços de
fala que historicamente são relegados aos homens, assumem posição de liderança; são
importantes agentes mobilizadores das atingidas e atingidos na luta pelos seus territórios
e busca pela efetivação de seus direitos coordenando grupos de base e organizando e
participando em espaços de formação. Ao mesmo tempo, movimentos como o
Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), contam com um plano nacional e
trabalho específico com as mulheres atingidas. Além disso, em setembro de 2017 no
Maranhão, ocorreu o primeiro encontro de mulheres impactadas por grandes projetos,
reunindo cerca de 60 atingidas por pela mineração e siderurgia, barragens, o agronegócio
e outros grandes projetos. Buscou-se identificar elementos comuns de compreensão da
realidade das atingidas e construir aliança e estratégias de luta. Processo este que nos
interesse acompanhar.
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