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BREVE HISTÓRICO DO CONCEITO DE CULPABILIDADE: DA

TEORIA PSICOLÓGICA À CRISE DA TEORIA NORMATIVA PURA

Lucas Frasson Sant’Ana de Oliveira

INTRODUÇÃO
A culpabilidade pode ser conceituada como o juízo de reprovação pessoal sobre injusto
praticado pelo agente, quando ele podia, no caso concreto, agir conforme o Direito (GRECO,
2015, p. 433). Essa conceituação, porém, não encontra unanimidade na história do Direito
Penal, nem foi construída subitamente. Longe disso: o tema sempre foi alvo de grande
discussão, muitas teorias empenharam-se na busca pelo sentido, fundamento e função da
culpabilidade. Ao longo desse processo, é comum a afirmação de que a evolução dogmática
da culpabilidade está intimamente ligada à evolução histórica da ciência jurídico-penal como
um todo. Nesse sentido foi que von Liszt, antes de esboçar sobre a trajetória da culpabilidade,
disse que “é pelo aperfeiçoamento da doutrina da culpa que se mede o processo do direito
penal” (VON LISZT, 1899, p. 250).

Para além do valor histórico da matéria, é possível identificar uma característica


desafiadora na construção de um conceito para a culpabilidade, que contém considerável carga
metafísica. Esse é o um dos principais motivos pelos quais os mais importantes penalistas se
dedicaram ao estudo desse tema e propuseram à culpabilidade a sua própria concepção.

Grande parte da doutrina brasileira já defendeu que a culpabilidade nada mais é que
pressuposto da pena. Entre os importantes nomes que sustentaram essa tese, estão René Ariel
Dotti (2002, p. 355) e Damásio de Jesus (2011, p. 500). De outro lado, há a tese defendida por
autores como Cezar Roberto Bitencourt, que colocam a culpabilidade na posição de elemento
integrante do conceito analítico do delito. Este autor, em oposição à sustentação de Damásio
de Jesus, argumenta que, seguindo uma linha que considera a culpabilidade mero pressuposto
da pena, deveria se concluir que são também pressupostos a tipicidade e a ilicitude, já que a
sanção penal seria consequência jurídica do crime, este e todos os seus elementos seriam
pressupostos da sanção penal (BITENCOURT, 2001, p. 802-803).

Apesar dessa altercação, quase a totalidade da doutrina moderna concordaria com a


afirmação de que o Estado, para exercer seu jus puniendi, deve verificar a presença de três
conceitos: tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, independentemente da posição que
ocupe o último.

Nesse contexto é que se insere a culpabilidade como aqui será estudada: com função
fundamentadora e limitadora do Direito Penal subjetivo que ao Estado pertence. Não sendo,
por conseguinte, a intenção deste artigo o exame da culpabilidade segundo outros dois
possíveis aspectos: (i) princípio garantidor da responsabilidade subjetiva, contrário à
responsabilidade objetiva e (ii) elemento de determinação (medição) da pena (BITENCOURT,
2016, p. 438-439).

Trata-se de pesquisa bibliográfica, que, conforme Cervo e Bervian (1983, p. 55),


“procura explicar um problema a partir de referências teóricas publicadas em documentos”,
especialmente livros artigos científicos. E sua natureza é qualitativa, e diferente não poderia
ser, haja vista consistir em uma investigação que não se limita a uma mera análise de dados
objetivamente quantificáveis (VIEIRA, 2010, p. 87). Já o método que melhor descreve esse
trabalho é o histórico, que, entendido como a técnica que investiga o contexto antecedente a
determinado fenômeno e o seu processo evolutivo, possibilita uma melhor compreensão da
transformação do tema e, portanto, dele em si (LAKATOS, 2003, p. 106-107).

1 ANTECEDENTES DO CONCEITO DE CULPABILIDADE


Já há muito tempo, observa-se rascunhos do que hoje se tem por culpabilidade. Como
exemplo disso, lembra von Liszt, o direito romano posterior e o direito canônico adotavam a
impunidade dos infans (VON LISZT, 1899, p. 250), considerando-os, mesmo que não sob
traços atualmente concebidos, inculpáveis. Logo, de acordo com Assis Toledo, considera-se
falsa a afirmação de que a teoria psicológica da culpabilidade foi cronologicamente a primeira
a tratar do tema culpabilidade. Os romanos dividiam o dolo em dois tipos: o dolus malus e o
dolus bonus. Este guardava um sentido próximo ao que hoje conhecemos como artimanha,
astúcia. O dolus malus, por sua vez, designava essa astúcia quando utilizada perversamente,
ilicitamente. Por essa definição, é possível verificar que o dolus malus carregava uma carga
de reprovação, de conotação negativa. Verifica-se nesse ponto a existência um juízo de
censura sobre a conduta humana, quando eivada de má intenção (TOLEDO, 1994, p. 220-
221).
Não obstante tudo isso, foi a partir do século XIX que a temática tomou rumos mais
específicos, notadamente com a discussão entre livre-arbítrio e determinismo. Antes de
apresentar teorias que buscaram fixar o conceito de culpabilidade, não se poderia deixar de
oferecer noções acerca das teorias que buscaram inicialmente definir o fundamento da
reprovabilidade da conduta. São basicamente duas correntes antagônicas: a do livre-arbítrio e
a determinista. A primeira, ligada à Escola Clássica, asseverava que o homem é naturalmente
livre para fazer suas escolhas, portanto, é moralmente responsável por elas (GRECO, 2015, p.
433). Partindo disso, chegava-se à conclusão de que somente pode ser responsabilizado o
sujeito que age com voluntariedade, pois o fundamento da punição é justamente a liberdade
de ação.

A Escola Positiva, em sentido oposto, admitia o fundamento de que o homem não é


livre para agir conforme a sua vontade, mas sim determinado por fatores internos e externos
que conduzem sua conduta, como um cão-pastor faz às ovelhas. Nesse sentido, afirma Rogério
Greco que, segundo o determinismo, “o homem não é dotado desse poder soberano de
liberdade de escolha, mas sim que fatores internos ou externos podem influenciá-lo na prática
da infração penal” (GRECO, 2015, p. 434).

Para elucidação dessas ideias, trazemos um autor daqueles que não se pode parafrasear
sem que haja risco de perda da riqueza e inteligibilidade de suas palavras – Basileu Garcia:

A Escola Clássica, no campo filosófico, é partidária da doutrina do livre


arbítrio. A Positiva é determinista. Nega a liberdade das ações humanas. Para
os clássicos, a explicação dos delitos é a vontade inteligente e livre dos
homens, porque eles têm liberdade moral. Os positivistas, pelo contrário,
entendendo que o crime não provém da vontade humana, mas dos fatores
biológicos, físicos e sociais, sustentam o determinismo (GARCIA, 1982, p.
86).

Para os clássicos, o livre arbítrio, essência da responsabilidade moral, é a


base da responsabilidade penal. Pune-se alguém, declarando-o, portanto,
penalmente responsável, porque dispõe de livre arbítrio, liberdade para agir.
A Escola Positiva, opondo-se ao livre arbítrio, assentou outro conceito de
responsabilidade: o de responsabilidade social (GARCIA, 1982, p. 89).

Há ainda quem pregue a conciliação dessas duas teorias, afirmando que as duas linhas
de pensamento podem ser vistas como complementares, e não necessariamente como
excludentes uma da outra. Segundo essa corrente, apesar de os fatores citados pela corrente
determinista influenciarem de fato a conduta dos sujeitos a eles expostos, existe certo grau de
liberdade de escolha que não pode ser olvidado (GRECO, 2015, p. 435).

Sem descartar a importância dessas teorias e sua colaboração para o desenvolvimento


das demais teorias da culpabilidade, percebe-se que, a partir do século XIX, a discussão toma
rumo ainda mais específico, sobretudo com o surgimento da teoria psicológica da
culpabilidade, a respeito da qual se fala adiante.

2 A TEORIA PSICOLÓGICA DA CULPABILIDADE


Em harmonia com o sistema causal-naturalista, nasceu a teoria psicológica da
culpabilidade, introduzida por Beling e aperfeiçoada por von Liszt. Esses autores, seguindo
uma visão analítica do crime, dividiram o delito em duas partes: uma externa (objetiva),
identificada pela ação típica e pela antijuridicidade; outra interna (subjetiva), consistente na
culpabilidade (MACHADO, 2010, p. 45).

Por essa linha de entendimento, a culpabilidade, como parte interna e subjetiva do


delito, é o elo anímico que liga o autor ao resultado, uma conexão causal de natureza
psicológica (BITENCOURT, 2016, p. 442). Desse modo, segundo essa teoria, a culpabilidade
se destina a determinar, do ponto de vista psicológico, as relações existentes entre o autor e o
fato por ele cometido (FERNANDEZ, 2002, p. 15).

Na introdução deste artigo, há uma citação de von Liszt, que se referiu à culpabilidade
utilizando o termo “culpa” (v. supra). Cabe agora elucidar o porquê desse emprego. Para a
teoria psicológica da culpabilidade, o dolo e culpa em sentido estrito, que formam a culpa em
sentido amplo, não se encontravam no fato típico, como se vê no sistema finalista (JESUS,
2011, p. 276). Esses dois conceitos eram apontados como espécies de culpabilidade, mais
ainda, como a culpabilidade em si. Ao lado deles, o conceito de imputabilidade era apontado
como mero pressuposto da culpabilidade (BITENCOURT, 2016, p. 443). Juarez Tavares, com
a maestria que lhe é peculiar, leciona que, para essa teoria, dos componentes da culpabilidade,

destacam-se, primacialmente, o dolo e a culpa, situados como formas de


culpabilidade e constituindo o núcleo desta. Ao lado deles figuram, como
pressuposto, a imputabilidade, que deve estar presente no momento da ação
ou da omissão, e, como causa de exculpação, o estado de necessidade
(TAVARES, 1980, p. 25).
Apesar de correntemente adotado no século XIX, o conceito psicológico de
culpabilidade logo se revelou insuficiente. Diversas críticas surgiram, talvez a mais importante
foi a residente no problema da culpa inconsciente, que ocorre quando o agente não prevê o
resultado de sua conduta. A teoria psicológica não pôde justificar a punição diante de culpa
inconsciente de maneira satisfatória, pois a responsabilização nesse caso é fruto de um juízo
de valor, da aferição da possibilidade de previsão do resultado (TAVARES, 1980, p. 32), e não
de um vínculo psicológico entre autor e resultado, aliás, não há tal vínculo.

Além disso, não houve explicação suficiente dos motivos que levavam essa corrente a
afirmar que um incapaz (menor de idade, por exemplo) não age culpavelmente, mesmo se age
sob as condições psicológicas exigidas (MACHADO, 2010, p. 50).

Essas e outras questões fizeram com que, aos poucos, fosse evidenciada a deficiência
teórica da concepção psicológica da culpabilidade e, para suprir essa carência, novas teorias
surgiram. Sendo assim, apesar das várias (e válidas) críticas, a teoria psicológica foi, vale
reconhecer, impulsora do surgimento de teses mais estruturadas, como a psicológico-
normativa, que modificou sua antecessora sem, todavia, abandonar por completo suas
premissas.

3 A TEORIA PSICOLÓGICO-NORMATIVA DA CULPABILIDADE


Em 1907, Reinhard Frank reformulou o conceito de culpabilidade ao apresentar, em
sua monografia intitulada Über den Aufbau des Schuldbegriffs (Sobre a estrutura do conceito
de culpabilidade), uma nova concepção da culpabilidade. Para o penalista alemão, a
culpabilidade não se resumia à parcela subjetiva do crime, tampouco se formava apenas por
aspectos psicológicos. Frank rechaçava a afirmação de que o dolo e a culpa eram espécies de
culpabilidade. O dolo e a culpa, diante dessa nova percepção, foram considerados elementos
integrantes do conceito de culpabilidade, ao lado de outros dois conceitos, quais sejam: a
imputabilidade e as chamadas circunstâncias concomitante (FRANK, 2002, p. 40-41). Sendo
assim, o conceito psicológico da culpabilidade foi enriquecido com a inserção da ideia de
reprovabilidade do ato praticado pelo autor (TOLEDO, 1994, p. 223). De mera relação
psicológica, a culpabilidade passou a ser considerada como o juízo de reprovação pessoal que
recai sobre o agente, levando-se em consideração tanto elementos psicológicos quanto
normativos (TAVARES, 1980, p. 40).
A imputabilidade não foi tomada pela teoria psicológico-normativa como mero
pressuposto da culpabilidade, como entendia o sistema anterior, mas sim como seu elemento.
Ainda, a imputabilidade não foi definida pela singela expressão capacidade de culpabilidade,
utilizada mais tarde por Welzel. O conceito correspondia, resumidamente, à consideração do
estado espiritual (mental) do autor como normal (FERNANDEZ, 2002, p. 18). Já o conceito
de circunstâncias concomitantes, depois substituído pela motivação normal e, mais tarde,
pelas considerações acerca das causas de exculpação, consistia basicamente na verificação da
situação em que o sujeito se encontrava ao praticar o injusto (BITENCOURT, 2016, p. 445).

O elemento dolo teve nesse momento destaque, pois se manifestava como uma figura
híbrida, na medida em que deixou de ser representado apenas por aspectos psicológicos e
passou a ter também peso normativo. Foi como uma ressurreição do dolus malus dos romanos,
formado pela vontade, previsão e consciência da ilicitude da ação (sendo este último elemento
normativo e os demais psicológicos (BITENCOURT, 2016, p. 448).

Às ideias de Frank, somaram-se as considerações de Goldschimidt e Freudenthal. Este


substituiu o terceiro elemento da concepção trazida por Frank pela ideia de exigibilidade de
conduta conforme o Direito. Esse elemento consistia na reprovação da conduta do agente,
quando este agiu ilicitamente, embora pudesse agir em conformidade com a norma
(BITENCOURT, 2016, p. 446). Vê-se que esse postulado absorve e remodela a ideia de
circunstâncias concomitantes, uma vez que também considera, para a verificação da
possibilidade da adoção de conduta diversa, as circunstâncias nas quais o agente praticou o
injusto e a possibilidade de adoção de uma conduta adequada ao Direito.

Edmund Mezger, outro notável nome da teoria normativa, referiu-se à culpabilidade


como composta pelos seguintes elementos: imputabilidade, dolo ou culpa, e ausência de
causas de exclusão da culpabilidade. Este último, como vemos, foi apresentado como um
juízo negativo, de não existência de circunstância que tornasse a conduta conforme o Direito
inexigível. Mezger afirmava ser a culpabilidade o conjunto dos pressupostos fáticos da pena,
que, juntos, fundamentam o juízo de reprovação pessoal dirigido ao autor da conduta
antijurídica (MACHADO, 2010, p. 65-66).

Em síntese, após as aduzidas remodelações e adaptações, a culpabilidade foi definida


pela teoria psicológico-normativa como um juízo de censura que recai sobre o agente e que se
forma por três elementos básicos: (i) imputabilidade, (ii) dolo ou culpa (elemento psicológico-
normativo) e (iii) exigibilidade de conduta conforme o Direito. Assim, por essa linha de
entendimento, já era possível esclarecer questões não respondidas pela teoria psicológica da
culpabilidade. Grande exemplo é o da não culpabilidade do sujeito que age em estado de
necessidade exculpante, pois, para essa nova concepção, não bastava a presença de dolo ou
culpa para configuração da culpabilidade (como ocorria com a teoria antecessora), também
era imprescindível a normalidade da situação fática (considerações sobre as causas de
exculpação). Por conseguinte, mesmo agindo dolosamente, não era considerado culpável o
agente que atuou em estado de necessidade exculpante, porquanto se configurava exclusão do
terceiro elemento da culpabilidade.

Apesar do avanço em relação à sua antecessora, a teoria normativa não escapou às


críticas. Diversos autores apontaram como ponto fraco dessa linha de pensamento o já tratado
dolo híbrido, que tinha a consciência de ilicitude da conduta como um de seus elementos.
Seguindo essa estruturação não seria possível justificar a punibilidade do criminoso habitual
ou por tendência. Este tipo de delinquente, pela influência do meio em que vive, muitas vezes
não possui consciência da ilicitude de suas ações, destarte, é faltoso um dos elementos
necessários à constituição do dolo e, consequentemente, é faltosa a culpabilidade
(BITENCOURT, 2016, p. 448-449). Chega-se a uma das maiores críticas à teoria normativa:
como julgar inculpável aquele indivíduo que mais deveria receber censura do Direito Penal?
(TOLEDO, 1994, p. 225)

O problema foi logo percebido por Mezger, que construiu uma ideia anexa à teoria
normativa, denominada culpabilidade pela condição de vida, com o objetivo de explicar o
fundamento da culpabilidade em tais situações. Resumidamente, essa ideia pregava que o
fundamento da culpabilidade deveria ser o autor, e não o fato. Isto é, o que interessava para a
aferição da culpabilidade do agente não era o fato por ele praticado, mas sim ele mesmo, o seu
caráter, a sua natureza, o seu “modo de ser” (TOLEDO, 1994, p. 237). Claramente, a adoção
dessa tese abriria espaço a um excessivo controle do Estado sobre o indivíduo, ferindo
garantias individuais fundamentais, como lembra Cezar Roberto Bitencourt:
Uma concepção dessas, voltada exclusivamente para o autor, e perdendo de
vista o fato em si, o seu aspecto objetivo, pode levar, como de fato levou, na
Alemanha nazista, a um arbítrio estatal desmedido, a uma intervenção
indevida no modo de ser do indivíduo (BITENCOUT, 2016, p. 449).
Ademais, considerar a aferição da culpabilidade pela condição de vida do agente,
tomando-se em conta suas características precedentes à prática do fato, possibilitaria a
imposição de dolo a um sujeito que, em determinada situação, não agiu nessa condição, já que
se levaria em conta sua personalidade, não apenas o fato específico por ele praticado naquela
ocasião (MACHADO, 2010, p. 69). Evidentemente, tal imposição não pôde ser aceita e a
concepção psicológico-normativa não prosperou, sendo sobrepujada pela teoria normativa
pura.

4 A TEORIA NORMATIVA PURA DA CULPABILIDADE


O finalismo, como conceito filosófico, aduz que o mundo se organiza visando a um
determinado fim e que todo acontecimento se dirige ao seu fim específico. No Direito, a
corrente finalista foi incialmente proposta por von Weber e Graf zu Dohna, que dividiram os
delitos em causais e finais. Contudo, sem embargo do mérito desses autores, foi Hans Welzel
que inseriu, de forma mais precisa, o finalismo na teoria jurídico-penal (MACHADO, 2010,
p. 57). Acatando o conceito analítico do delito, o autor buscou explicar seus elementos
segundo o pensamento finalista e inaugurou uma das teorias mais importantes do Direito
Penal.

Para Welzel, a ação é a atividade humana voltada a uma finalidade, tendo em vista que
o homem, de acordo com seu conhecimento causal, pode prever as possíveis consequências
de suas ações e, com base nisso, adotar condutas dirigidas aos seus objetivos (WELZEL, 1956,
p. 39). A ação pode compor-se da consciência do que o sujeito quer (elemento intelectual) e
da decisão de querer fazê-lo (elemento volitivo), esses dois elementos, juntos, formam o dolo
(WELZEL, 1956, p. 73). Disso retira-se uma primeira conclusão: o dolo, na corrente finalista,
integra o conceito de ação, e não de culpabilidade.

É possível notar que aqui a formação do dolo satisfaz-se com os dois elementos, sendo
um volitivo, e outro intelectual; portanto, ele é tomado como puramente psicológico (dolo
natural). A consciência da ilicitude, que, na teoria psicológico-normativa, era o elemento
normativo do dolo, não mais se encontra nesse local, foi transferida, pois, à culpabilidade
(BITENCOURT, 2016, p. 451).

A antijuridicidade foi vista por Welzel como a relação objetiva de contrariedade entre
o ordenamento jurídico e a conduta praticada pelo agente. A culpabilidade, por sua vez, não
se limita a esse julgamento objetivo de desconformidade entre a ação e o ordenamento
jurídico. Segundo Welzel (1956, p. 57-58), esse terceiro elemento do crime funda-se em uma
dupla relação: a conduta do autor não é conforme o Direito e o autor podia, naquela situação,
ter agido conforme exigia a norma.

A culpabilidade, então, consiste na reprovação pessoal do autor, quando este agiu em


desconformidade com o Direito, apesar de ter podido atuar conforme o ordenamento jurídico
exigia. Segundo essa teoria, o que leva o sujeito a atuar em desconformidade com a norma é
sua vontade de ação, logo, é a vontade o objeto precípuo da reprovabilidade e somente através
dela é também culpável a totalidade da ação. Destarte, a culpabilidade pode ser definida como
“reprovabilidade da resolução de vontade” (WELZEL, 2001, p. 87-88). Ou seja, somente a
ação produto da vontade do homem pode ser considerada culpável.

4.1 O problema do livre-arbítrio para Welzel

Como dito, a reprovabilidade da resolução da vontade do agente depende de ele ter


tido a possibilidade de atuar em conformidade com o Direito. Welzel deixou claro que esse
raciocínio não é dirigido no sentido abstrato de que qualquer homem poderia ter atuado de
maneira lícita, mas sim no sentido concreto de que aquele determinado sujeito, naquela
determinada situação, poderia ter agido conforme exigia a norma (WELZEL, 2001, p. 93). A
partir desse raciocínio, o autor propôs uma questão aparentemente simples: “é teoricamente
possível a adoção de uma resolução de vontade correta no lugar da equivocada?” (WELZEL,
2001, p. 94). E, com essa questão, tratou de um conceito que considerava fundamental para a
culpabilidade: o livre-arbítrio. Tomando-o como pressuposto existencial da culpabilidade,
Welzel abordou a questão proposta sob três diferentes aspectos: o antropológico, o
caracterológico e o categorial.

Sob o aspecto antropológico, apontou que a principal distinção entre o homem e o


animal consiste no fato de que aquele se difere deste negativamente em relação à existência
de uma grande liberdade de formas de condutas a serem adotadas, e positivamente pela
capacidade que possui de, através de atos inteligentes, descobrir e agir conforme seria correto.
Segundo o autor, esse é o fato que separa o homem dos animais e o caracteriza como ser
responsável (WELZEL, 2001, p. 95).
No plano caracterológico, Welzel afirmou que o indivíduo possui impulsos dirigidos
à conservação da espécie, às paixões, às necessidades e aos desejos mais selvagens. Todavia,
o homem, como ser responsável, é capaz de vencer, com sua vontade, esses instintos, que
podem ser regulados segundo os valores e as finalidades do agente, para uma configuração da
sua vida que não se limita ao tempo presente (WELZEL, 2001, p. 96-97).

Já sob o plano categorial, o autor substituiu o “se é possível” pelo “como é possível”:
“como é possível ao homem o domínio da coação causal por meio de uma direção orientada
finalisticamente, em virtude da qual, unicamente, pode se fazer responsável por ter adotado a
decisão errada em lugar da correta?” (WELZEL, 2001, p. 98).

Nesse ponto, o autor dirige críticas tanto ao indeterminismo tradicional quando ao


determinismo. Com relação ao primeiro, afirmou que aceitar todas as suas premissas seria
destruir a ideia de sujeito responsável, pois, se o ato de vontade do homem não estivesse
determinado por nada, o ato de vontade posterior não poderia guardar relação alguma com o
ato anterior. Em suma, aceitar todas as ideias do indeterminismo significaria afirmar que os
atos de vontade são uma série de impulsos completamente desconexos e isolados no tempo
(WELZEL, 2001, p. 98).

Da mesma forma, há críticas dirigidas ao determinismo. Essa tese errou ao considerar


a existência de apenas uma forma de determinação (monismo causal). Seguindo, o penalista
afirmou que a questão a ser observada é a possiblidade do direcionamento dos impulsos
anímicos do homem conforme o sentido, portanto, trata-se de liberdade de vontade, de poder
atuar conforme os fins, e não de liberdade de ação, não de poder agir de outro modo qualquer
(WELZEL, 2001, p. 100).

Por isso tudo, o autor chegou à conclusão de que a “culpabilidade não significa ‘livre’
decisão em favor do mal, mas ficar preso pela coação causal aos impulsos, sendo o sujeito
capaz de autodeterminação conforme os fins”, significa “a falta de uma decisão conforme a
finalidade em um sujeito responsável” (WELZEL, 2001, p. 101-102). Este é o fundamento da
responsabilização do homem pela adoção de uma conduta errada no lugar de uma correta.
4.2 Elementos integrantes da culpabilidade segundo a teoria normativa pura

Ao analisar a concepção psicológico-normativa, introduzida por Frank e alterada pela


inclusão da exigibilidade de Freudenthal, evidenciaram-se os seguintes elementos do conceito
de culpabilidade: (a) imputabilidade, (b) dolo ou culpa e (c) exigibilidade de conduta diversa.
Sendo que, no dolo, encontrava-se a consciência real/atual da ilicitude, vontade e previsão.
Portanto, o dolo incluía elementos normativos e psicológicos.

A teoria welzeniana, por sua vez, retirou do dolo a consciência da ilicitude (elemento
normativo) e a transportou, modificada, para a culpabilidade, restando ao dolo somente
elementos psicológicos. Ao mesmo tempo, retirou o dolo da culpabilidade e o transportou para
a ação, restando à culpabilidade somente elementos normativos, a saber: (i) imputabilidade,
(ii) consciência da ilicitude e (iii) exigibilidade de obediência ao Direito. E é assim que essa
teoria recebe o nome de normativa pura.

A imputabilidade aqui foi definida como capacidade de culpabilidade, formada por


dois elementos, um intelectual e um volitivo. O primeiro diz respeito à capacidade do sujeito
de compreender o injusto do fato, o segundo, à capacidade de ele decidir de acordo com essa
compreensão. Ausente qualquer um desses, não haverá capacidade de culpabilidade e, assim,
não haverá culpabilidade (WELZEL, 2001, p. 103-104).

Logo que o dolo foi extraído da culpabilidade, a consciência da ilicitude foi retirada
dele e permaneceu na culpabilidade como seu elemento individualizado. Contudo, no lugar de
consciência real da ilicitude, fala-se em consciência potencial. Não é preciso que o sujeito
efetivamente tenha a conhecimento de que age em desconformidade com a norma, apenas
exige-se que ele tenha, na situação concreta, a possibilidade de conhecimento da ilicitude do
fato. Desse modo, soma-se à exigência de possibilidade de conhecimento acerca da realização
do tipo a possibilidade de conhecimento acerca da antijuridicidade do fato (WELZEL, 2001,
p. 103-104).

Asseverou-se ainda que esses dois primeiros elementos da culpabilidade não são
suficientes para a fundamentação da reprovabilidade, já que é preciso analisar se, na situação
concreta, podia ser exigido do autor que agisse conforme o Direito. Nas palavras de Welzel
(2001, p. 138), a exigibilidade de obediência ao Direito
não se trata de capacidade geral de decisão conforme os fins, e por
conseguinte da imputabilidade, que existe independentemente da situação
dada, mas da possibilidade concreta de o autor, capaz de culpabilidade, poder
tomar uma decisão de acordo com o conhecimento do injusto.

4.3 A CRISE DA TEORIA NORMATIVA PURA


É inegável a contribuição da teoria normativa pura para a criação de um conceito sólido
para a culpabilidade, como é inegável a importância da teoria finalista para o Direito Penal
como um todo. No entanto, embora essa tese seja a mais adotada, fala-se atualmente em “crise
da teoria normativa pura da culpabilidade” (BITENCOURT, 2016, p. 465-466). Teorias mais
recentes criticam o modelo normativo puro – aduzindo, principalmente, a dificuldade de
demonstração empírica da existência do livre-arbítrio e da possibilidade de autodeterminação
do sujeito conforme o sentido – e apresentam novos fundamentos para a culpabilidade, por
vezes, com argumentos quase irrefutáveis.

Dentre as teorias surgidas em meio à essa crise, destaca-se o conceito funcional de


culpabilidade, que se apoia em pressupostos político-criminais e na ideia de justificação social
da pena, ligando o conceito de culpabilidade à teoria dos fins da pena (GRECO, 205, p. 445).
Nesse contexto, destacam-se dois autores, Claus Roxin e Günther Jakobs. Ambos possuíram
um importante papel nas discussões acerca do conceito de culpabilidade a partir do séc. XX.

Roxin, que adota uma visão moderada da teoria funcionalista da culpabilidade, levanta
ideias que passam a considerar como terceiro atributo do conceito analítico de crime não a
culpabilidade, mas sim a responsabilidade, conceito mais amplo, que compreende a
culpabilidade e a necessidade preventiva da pena.

Culpabilidade, para este autor, “consiste no agir ilícito apesar da idoneidade para ser
destinatário de normas” (ROXIN, 2006, p. 144). Quanto a esse elemento da responsabilidade,
o autor aparentemente acata parte das ideias de Welzel, pois também leciona que a
culpabilidade assenta-se, basicamente, na capacidade de compreensão do caráter ilícito da
ação e na possibilidade de agir segundo essa compreensão (ROXIN, 2006, p. 145),
aproximando-se, portanto, da imputabilidade welzeniana. Entretanto, mesmo que à primeira
vista as ideias possuam o mesmo resultado prático, destaca Roxin que sua visão acerca da
culpabilidade não se fundamenta no livre-arbítrio ou no poder-agir-de-outro-modo, como
prega o finalismo, pois esses são conceitos de impossível comprovação empírica. Prefere o
autor elevar a fundamentação da culpabilidade à noção de “capacidade para ser destinatário
de norma”, pois essa capacidade sim é passível de verificação por meio de métodos biológicos,
psicológicos e psiquiátricos (ROXIN, 2006, p. 146).

Todavia, para Roxin, ser o injusto culpável não é suficiente para justificar a aplicação
de uma sanção penal. Devemos também considerar a necessidade de sanção segundo razões
preventivas. Dissertando sobre o tema, o autor apresenta o exemplo de um sujeito que age sob
estado de necessidade exculpante, o qual, embora tenha “idoneidade para ser destinatário de
normas”, é isento de pena, e justifica:
Se em tais situações o legislador renuncia à pena, tal ocorre porque ele a
considera desnecessária, ou mesmo nociva, de um ponto de vista preventivo
geral e especial. Aquele que realiza um tipo penal em situação de estado de
necessidade é, em geral, fiel ao direito e não necessita de qualquer
intervenção ressocializadora. Afinal, ele provavelmente jamais se encontrará
em tal situação novamente (ROXIN, 2006, p. 152).

Desse modo, a visão funcionalista de Roxin aduz que a exclusão da culpabilidade pode
se fundar tanto na inexistência ou redução da culpabilidade, quanto em razões preventivo-
gerais. Em suma, “para a imputação subjetiva da ação injusta devem concorrer a culpabilidade
do autor e a necessidade preventiva da pena” (ROXIN, 2006, p. 154) e a coexistência desses
dois elementos é que gera a responsabilidade como terceiro atributo do conceito analítico de
crime.

O funcionalismo sistêmico (ou radical) de Jakobs, por sua vez, sustenta a


correspondência entre o conceito de culpabilidade e de necessidade preventiva da pena. A
culpabilidade se fundamenta na finalidade preventivo-geral da pena e consiste na verificação
de inobservância ao Direito, que deve ser punida quando necessária à manutenção da
confiança na norma violada (BITENCOURT, 215, p. 469). Assim, a culpabilidade não se
verifica segundo os aspectos psicológicos, psiquiátricos ou biológicos do autor, mas tão
somente consoante o juízo acerca da existência ou não da necessidade de uma punição para
que a confiança na ordem jurídico-social seja preservada (ROXIN, 2006, p. 143).

Essa tese foi duramente criticada por diversos autores. Roxin manifestou-se no sentido
de que essa instrumentalização da culpabilidade, com o resultante esvaziamento de seu
conceito material, viola a dignidade da pessoa humana e, portanto, não fornece uma concepção
de culpabilidade que possa ser aceita (ROXIN, 2006, p. 144). Ademais, esta concepção
estrutura-se sob o fundamento de prevenção geral, nada tendo a ver com o fato em si, ou com
o sujeito que o pratica, ferindo o princípio da personalidade da pena (MACHADO, 2010, p.
160).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para compreender algo, é imprescindível conhecer sua história. Por isso, é de suma
importância estudar as teorias responsáveis pela evolução histórica do conceito de
culpabilidade. O constante estudo da culpabilidade resultou na completa transformação do
conceito, que inicialmente guardava caráter puramente psicológico e foi, de maneira gradativa,
aderindo características normativas, até que só estas restaram. Atualmente, é possível
conhecer teses que aderem outros elementos, como observamos com as teorias funcionalistas.
Há ainda muitos outros exemplos da riqueza de conteúdo da ideia de culpabilidade.

Giuseppe Bettiol (apud YAROCHEWSKY, 2015, p. 192) dizia que o ponto central do
direito penal é a culpabilidade. Claus Roxin (2006, p. 133) inicia sua exposição acerca da
culpabilidade, em seus Estudos de direito penal, dizendo que nenhum outro instituto do direito
penal é tão controvertido quanto à culpabilidade, e, também, nenhum é tão indispensável.
Esses adjetivos não se justificam apenas pela associação da evolução histórica do conceito de
culpabilidade com o processo histórico da ciência penal, mas também pela posição de
sustentáculo e de fundamento do Direito Penal subjetivo que a culpabilidade ocupa. Por tudo
isso é que pretendemos, com o artigo que se encerra, apresentar uma breve história desse
conceito e inspirar o caro leitor a aprofundar-se no tema.
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