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INTRODUÇÃO
A culpabilidade pode ser conceituada como o juízo de reprovação pessoal sobre injusto
praticado pelo agente, quando ele podia, no caso concreto, agir conforme o Direito (GRECO,
2015, p. 433). Essa conceituação, porém, não encontra unanimidade na história do Direito
Penal, nem foi construída subitamente. Longe disso: o tema sempre foi alvo de grande
discussão, muitas teorias empenharam-se na busca pelo sentido, fundamento e função da
culpabilidade. Ao longo desse processo, é comum a afirmação de que a evolução dogmática
da culpabilidade está intimamente ligada à evolução histórica da ciência jurídico-penal como
um todo. Nesse sentido foi que von Liszt, antes de esboçar sobre a trajetória da culpabilidade,
disse que “é pelo aperfeiçoamento da doutrina da culpa que se mede o processo do direito
penal” (VON LISZT, 1899, p. 250).
Grande parte da doutrina brasileira já defendeu que a culpabilidade nada mais é que
pressuposto da pena. Entre os importantes nomes que sustentaram essa tese, estão René Ariel
Dotti (2002, p. 355) e Damásio de Jesus (2011, p. 500). De outro lado, há a tese defendida por
autores como Cezar Roberto Bitencourt, que colocam a culpabilidade na posição de elemento
integrante do conceito analítico do delito. Este autor, em oposição à sustentação de Damásio
de Jesus, argumenta que, seguindo uma linha que considera a culpabilidade mero pressuposto
da pena, deveria se concluir que são também pressupostos a tipicidade e a ilicitude, já que a
sanção penal seria consequência jurídica do crime, este e todos os seus elementos seriam
pressupostos da sanção penal (BITENCOURT, 2001, p. 802-803).
Nesse contexto é que se insere a culpabilidade como aqui será estudada: com função
fundamentadora e limitadora do Direito Penal subjetivo que ao Estado pertence. Não sendo,
por conseguinte, a intenção deste artigo o exame da culpabilidade segundo outros dois
possíveis aspectos: (i) princípio garantidor da responsabilidade subjetiva, contrário à
responsabilidade objetiva e (ii) elemento de determinação (medição) da pena (BITENCOURT,
2016, p. 438-439).
Para elucidação dessas ideias, trazemos um autor daqueles que não se pode parafrasear
sem que haja risco de perda da riqueza e inteligibilidade de suas palavras – Basileu Garcia:
Há ainda quem pregue a conciliação dessas duas teorias, afirmando que as duas linhas
de pensamento podem ser vistas como complementares, e não necessariamente como
excludentes uma da outra. Segundo essa corrente, apesar de os fatores citados pela corrente
determinista influenciarem de fato a conduta dos sujeitos a eles expostos, existe certo grau de
liberdade de escolha que não pode ser olvidado (GRECO, 2015, p. 435).
Na introdução deste artigo, há uma citação de von Liszt, que se referiu à culpabilidade
utilizando o termo “culpa” (v. supra). Cabe agora elucidar o porquê desse emprego. Para a
teoria psicológica da culpabilidade, o dolo e culpa em sentido estrito, que formam a culpa em
sentido amplo, não se encontravam no fato típico, como se vê no sistema finalista (JESUS,
2011, p. 276). Esses dois conceitos eram apontados como espécies de culpabilidade, mais
ainda, como a culpabilidade em si. Ao lado deles, o conceito de imputabilidade era apontado
como mero pressuposto da culpabilidade (BITENCOURT, 2016, p. 443). Juarez Tavares, com
a maestria que lhe é peculiar, leciona que, para essa teoria, dos componentes da culpabilidade,
Além disso, não houve explicação suficiente dos motivos que levavam essa corrente a
afirmar que um incapaz (menor de idade, por exemplo) não age culpavelmente, mesmo se age
sob as condições psicológicas exigidas (MACHADO, 2010, p. 50).
Essas e outras questões fizeram com que, aos poucos, fosse evidenciada a deficiência
teórica da concepção psicológica da culpabilidade e, para suprir essa carência, novas teorias
surgiram. Sendo assim, apesar das várias (e válidas) críticas, a teoria psicológica foi, vale
reconhecer, impulsora do surgimento de teses mais estruturadas, como a psicológico-
normativa, que modificou sua antecessora sem, todavia, abandonar por completo suas
premissas.
O elemento dolo teve nesse momento destaque, pois se manifestava como uma figura
híbrida, na medida em que deixou de ser representado apenas por aspectos psicológicos e
passou a ter também peso normativo. Foi como uma ressurreição do dolus malus dos romanos,
formado pela vontade, previsão e consciência da ilicitude da ação (sendo este último elemento
normativo e os demais psicológicos (BITENCOURT, 2016, p. 448).
O problema foi logo percebido por Mezger, que construiu uma ideia anexa à teoria
normativa, denominada culpabilidade pela condição de vida, com o objetivo de explicar o
fundamento da culpabilidade em tais situações. Resumidamente, essa ideia pregava que o
fundamento da culpabilidade deveria ser o autor, e não o fato. Isto é, o que interessava para a
aferição da culpabilidade do agente não era o fato por ele praticado, mas sim ele mesmo, o seu
caráter, a sua natureza, o seu “modo de ser” (TOLEDO, 1994, p. 237). Claramente, a adoção
dessa tese abriria espaço a um excessivo controle do Estado sobre o indivíduo, ferindo
garantias individuais fundamentais, como lembra Cezar Roberto Bitencourt:
Uma concepção dessas, voltada exclusivamente para o autor, e perdendo de
vista o fato em si, o seu aspecto objetivo, pode levar, como de fato levou, na
Alemanha nazista, a um arbítrio estatal desmedido, a uma intervenção
indevida no modo de ser do indivíduo (BITENCOUT, 2016, p. 449).
Ademais, considerar a aferição da culpabilidade pela condição de vida do agente,
tomando-se em conta suas características precedentes à prática do fato, possibilitaria a
imposição de dolo a um sujeito que, em determinada situação, não agiu nessa condição, já que
se levaria em conta sua personalidade, não apenas o fato específico por ele praticado naquela
ocasião (MACHADO, 2010, p. 69). Evidentemente, tal imposição não pôde ser aceita e a
concepção psicológico-normativa não prosperou, sendo sobrepujada pela teoria normativa
pura.
Para Welzel, a ação é a atividade humana voltada a uma finalidade, tendo em vista que
o homem, de acordo com seu conhecimento causal, pode prever as possíveis consequências
de suas ações e, com base nisso, adotar condutas dirigidas aos seus objetivos (WELZEL, 1956,
p. 39). A ação pode compor-se da consciência do que o sujeito quer (elemento intelectual) e
da decisão de querer fazê-lo (elemento volitivo), esses dois elementos, juntos, formam o dolo
(WELZEL, 1956, p. 73). Disso retira-se uma primeira conclusão: o dolo, na corrente finalista,
integra o conceito de ação, e não de culpabilidade.
É possível notar que aqui a formação do dolo satisfaz-se com os dois elementos, sendo
um volitivo, e outro intelectual; portanto, ele é tomado como puramente psicológico (dolo
natural). A consciência da ilicitude, que, na teoria psicológico-normativa, era o elemento
normativo do dolo, não mais se encontra nesse local, foi transferida, pois, à culpabilidade
(BITENCOURT, 2016, p. 451).
A antijuridicidade foi vista por Welzel como a relação objetiva de contrariedade entre
o ordenamento jurídico e a conduta praticada pelo agente. A culpabilidade, por sua vez, não
se limita a esse julgamento objetivo de desconformidade entre a ação e o ordenamento
jurídico. Segundo Welzel (1956, p. 57-58), esse terceiro elemento do crime funda-se em uma
dupla relação: a conduta do autor não é conforme o Direito e o autor podia, naquela situação,
ter agido conforme exigia a norma.
Já sob o plano categorial, o autor substituiu o “se é possível” pelo “como é possível”:
“como é possível ao homem o domínio da coação causal por meio de uma direção orientada
finalisticamente, em virtude da qual, unicamente, pode se fazer responsável por ter adotado a
decisão errada em lugar da correta?” (WELZEL, 2001, p. 98).
Por isso tudo, o autor chegou à conclusão de que a “culpabilidade não significa ‘livre’
decisão em favor do mal, mas ficar preso pela coação causal aos impulsos, sendo o sujeito
capaz de autodeterminação conforme os fins”, significa “a falta de uma decisão conforme a
finalidade em um sujeito responsável” (WELZEL, 2001, p. 101-102). Este é o fundamento da
responsabilização do homem pela adoção de uma conduta errada no lugar de uma correta.
4.2 Elementos integrantes da culpabilidade segundo a teoria normativa pura
A teoria welzeniana, por sua vez, retirou do dolo a consciência da ilicitude (elemento
normativo) e a transportou, modificada, para a culpabilidade, restando ao dolo somente
elementos psicológicos. Ao mesmo tempo, retirou o dolo da culpabilidade e o transportou para
a ação, restando à culpabilidade somente elementos normativos, a saber: (i) imputabilidade,
(ii) consciência da ilicitude e (iii) exigibilidade de obediência ao Direito. E é assim que essa
teoria recebe o nome de normativa pura.
Logo que o dolo foi extraído da culpabilidade, a consciência da ilicitude foi retirada
dele e permaneceu na culpabilidade como seu elemento individualizado. Contudo, no lugar de
consciência real da ilicitude, fala-se em consciência potencial. Não é preciso que o sujeito
efetivamente tenha a conhecimento de que age em desconformidade com a norma, apenas
exige-se que ele tenha, na situação concreta, a possibilidade de conhecimento da ilicitude do
fato. Desse modo, soma-se à exigência de possibilidade de conhecimento acerca da realização
do tipo a possibilidade de conhecimento acerca da antijuridicidade do fato (WELZEL, 2001,
p. 103-104).
Asseverou-se ainda que esses dois primeiros elementos da culpabilidade não são
suficientes para a fundamentação da reprovabilidade, já que é preciso analisar se, na situação
concreta, podia ser exigido do autor que agisse conforme o Direito. Nas palavras de Welzel
(2001, p. 138), a exigibilidade de obediência ao Direito
não se trata de capacidade geral de decisão conforme os fins, e por
conseguinte da imputabilidade, que existe independentemente da situação
dada, mas da possibilidade concreta de o autor, capaz de culpabilidade, poder
tomar uma decisão de acordo com o conhecimento do injusto.
Roxin, que adota uma visão moderada da teoria funcionalista da culpabilidade, levanta
ideias que passam a considerar como terceiro atributo do conceito analítico de crime não a
culpabilidade, mas sim a responsabilidade, conceito mais amplo, que compreende a
culpabilidade e a necessidade preventiva da pena.
Culpabilidade, para este autor, “consiste no agir ilícito apesar da idoneidade para ser
destinatário de normas” (ROXIN, 2006, p. 144). Quanto a esse elemento da responsabilidade,
o autor aparentemente acata parte das ideias de Welzel, pois também leciona que a
culpabilidade assenta-se, basicamente, na capacidade de compreensão do caráter ilícito da
ação e na possibilidade de agir segundo essa compreensão (ROXIN, 2006, p. 145),
aproximando-se, portanto, da imputabilidade welzeniana. Entretanto, mesmo que à primeira
vista as ideias possuam o mesmo resultado prático, destaca Roxin que sua visão acerca da
culpabilidade não se fundamenta no livre-arbítrio ou no poder-agir-de-outro-modo, como
prega o finalismo, pois esses são conceitos de impossível comprovação empírica. Prefere o
autor elevar a fundamentação da culpabilidade à noção de “capacidade para ser destinatário
de norma”, pois essa capacidade sim é passível de verificação por meio de métodos biológicos,
psicológicos e psiquiátricos (ROXIN, 2006, p. 146).
Todavia, para Roxin, ser o injusto culpável não é suficiente para justificar a aplicação
de uma sanção penal. Devemos também considerar a necessidade de sanção segundo razões
preventivas. Dissertando sobre o tema, o autor apresenta o exemplo de um sujeito que age sob
estado de necessidade exculpante, o qual, embora tenha “idoneidade para ser destinatário de
normas”, é isento de pena, e justifica:
Se em tais situações o legislador renuncia à pena, tal ocorre porque ele a
considera desnecessária, ou mesmo nociva, de um ponto de vista preventivo
geral e especial. Aquele que realiza um tipo penal em situação de estado de
necessidade é, em geral, fiel ao direito e não necessita de qualquer
intervenção ressocializadora. Afinal, ele provavelmente jamais se encontrará
em tal situação novamente (ROXIN, 2006, p. 152).
Desse modo, a visão funcionalista de Roxin aduz que a exclusão da culpabilidade pode
se fundar tanto na inexistência ou redução da culpabilidade, quanto em razões preventivo-
gerais. Em suma, “para a imputação subjetiva da ação injusta devem concorrer a culpabilidade
do autor e a necessidade preventiva da pena” (ROXIN, 2006, p. 154) e a coexistência desses
dois elementos é que gera a responsabilidade como terceiro atributo do conceito analítico de
crime.
Essa tese foi duramente criticada por diversos autores. Roxin manifestou-se no sentido
de que essa instrumentalização da culpabilidade, com o resultante esvaziamento de seu
conceito material, viola a dignidade da pessoa humana e, portanto, não fornece uma concepção
de culpabilidade que possa ser aceita (ROXIN, 2006, p. 144). Ademais, esta concepção
estrutura-se sob o fundamento de prevenção geral, nada tendo a ver com o fato em si, ou com
o sujeito que o pratica, ferindo o princípio da personalidade da pena (MACHADO, 2010, p.
160).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para compreender algo, é imprescindível conhecer sua história. Por isso, é de suma
importância estudar as teorias responsáveis pela evolução histórica do conceito de
culpabilidade. O constante estudo da culpabilidade resultou na completa transformação do
conceito, que inicialmente guardava caráter puramente psicológico e foi, de maneira gradativa,
aderindo características normativas, até que só estas restaram. Atualmente, é possível
conhecer teses que aderem outros elementos, como observamos com as teorias funcionalistas.
Há ainda muitos outros exemplos da riqueza de conteúdo da ideia de culpabilidade.
Giuseppe Bettiol (apud YAROCHEWSKY, 2015, p. 192) dizia que o ponto central do
direito penal é a culpabilidade. Claus Roxin (2006, p. 133) inicia sua exposição acerca da
culpabilidade, em seus Estudos de direito penal, dizendo que nenhum outro instituto do direito
penal é tão controvertido quanto à culpabilidade, e, também, nenhum é tão indispensável.
Esses adjetivos não se justificam apenas pela associação da evolução histórica do conceito de
culpabilidade com o processo histórico da ciência penal, mas também pela posição de
sustentáculo e de fundamento do Direito Penal subjetivo que a culpabilidade ocupa. Por tudo
isso é que pretendemos, com o artigo que se encerra, apresentar uma breve história desse
conceito e inspirar o caro leitor a aprofundar-se no tema.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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