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BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A PENA DE MORTE

An t ó n i o de Al me id a Si m õ e s

I — Anotação preliminar

«O direito de punir exprime objectivamente a faculdade de julgar.


Na sociedade primitiva não há actos indiferentes, nem crimes inultos.
Particular e individual a sentença, a sua execução é pessoal também: o crime
e o seu castigo dizem respeito exclusivamente ao queixoso — ao rancoroso
dos nossos forais» — assim escreveu Oliveira Martins no «Quadro das
Instituições Primitivas».
A ideia de que nos tempos primitivos eram os próprios particulares
que imediatamente vingavam a ofensa não será, como se sabe, tão exacta
que autorize, a partir daí, formular com rigor uma teoria geral da evolução
das instituições criminais.
Com algumas probabilidades de não cair em erro evidente poderá
tão só enunciar-se que, conforme as contingências do poder público, na
sua linha ascendente para se robustecer e para se impôr a todos (com
pausas de crescimento e até regressões), assim campearam e foram-se depois
degradando as diversas expressões de auto-defesa da sociedade.
O próprio conceito de vingança privada regularizada através do talião
não obtém contornos tão precisos que afaste definitivamente dúvidas e
especulações a transcenderem o mundo das realidades jurídico-criminais.
Bastará recordar que, não raro, surgem processos tradicionais de
reacção que não visam apenas o homem que agrediu, matou ou ofendeu
o seu semelhante.

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Como que a detectar resíduos de um direito geral de punir, talvez
associado à ideia de retribuir e desafrontar o mal do crime, citam-se exemplos
do castigo sobre a árvore que caiu e matou o homem e da destruição do
machado, da pedra ou do pau, enfim, dos objectos que acidentalmente
causaram o mesmo resultado.
No «Exodo» afirma-se que se algum boi escornear homem ou mulher
e estes morrerem, o boi será apedrejado e a sua carne não poderá ser
comida.
Não conta Michelet o caso do juiz de Chartres que em pleno século xvi
ditou sentença contra um porco que matara uma criança, condenando-o
a ser enforcado num poste, no lugar do crime?
A caminhada do homem ao longo do tempo, mesmo quando só inves-
tigada no aspecto da evolução do seu complexo aparelho de defesa da vida,
da honra ou da fazenda, não consente mais do que um esboço: — ficará
sempre larga margem de insegurança em que a conjectura toma, a cada
passo, o lugar da certeza, da verdade documentalmente comprovada nos
monumentos coevos.
Aí está um assunto extraordinàriamente rico de sugestões em que a
intuição, de preferência a outro método de pesquisa, ganhará indiscutível
primado !
A própria palavra, oralmente transmitida de geração para geração
ou que o homem reduziu a qualquer sistema de escrita, ganha dimensões
diferentes de época para época, sobretudo porque variam no tempo os
esquemas mentais que possam ajustar-se-lhe.
Há até expressões que ,passados séculos, não têm senão remota corres-
pondência, quando não perdem o conteúdo pelas arestas do tempo.
É que as palavras não têm sentido e uso a não ser pelos valores que
representam em dada sociedade humana.
Isso mesmo acontece no âmbito das instituições criminais.
Recorde-se, por exemplo, uma civilização tão evoluída e conhecida
como a do Egipto dos Ramsés : existem documentos designativos de castigos
a aplicar durante a investigação criminal cujo significado se esqueceu
inteiramente.

Não devo, porém, alongar-me em considerações marginais que ultra-


passariam as projectadas dimensões deste modesto trabalho, transfor-
mando-o em fastidioso encargo para quem se aventurasse na sua leitura!

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Encurtando razões, como quer se pretendam assinalar as pegadas


do homem nas sendas históricas da sua evolução em sociedade, mais limi-
tadamente, na formulação de regras para ali se defender, o certo é que
atinge a l.a metade do século xvm com sistemas punitivos que nada ficam
a dever em crueldade a tudo quanto se conhece das mais remotas eras.
A definitiva estruturação do poder central, se não agravou, também
seguramente não mitigou a excepcional dureza das penas.
Ë o panorama que se colhe quer nas nossas Ordenações, quer em
compilações similares de leis europeias.
Aplicava-se a pena de morte com a maior publicidade, às vezes prece-
dida de mutilações e suplícios, até relativamente a crimes que, para a actual
escala valorativa, não andavam muito distanciados das chamadas bagatelas
penais.
Dominava então um sistema grosseiro que, na sua bárbara composição
e curteza de vistas, ambicionava atingir fins de prevenção geral através
de uma severíssima intimidação.
Como se diz nos compêndios da especialidade, as penas eram, até
à 2. metade do século xvm, cruéis, públicas, desiguais, transmissíveis
a

e arbitrárias.
Ainda em Janeiro de 1759, no famigerado processo dos Távores,
foram os réus Luís Bernardo, Jerónimo, José Maria, Braz José, João Miguel
e Manuel Alvares condenados à morte no cadafalso «no qual depois de
haverem sido estrangulados e de se lhe haverem sucessivamente rompido
as canas dos braços e das pernas, serão também rodados e os seus corpos
feitos por fogo em pó e lançados ao mar na sobredita forma», enquanto
que o Duque de Aveiro» depois de ser rompido vivo, quebrando-se-lhe as
oito canas das pernas e dos braços, seja exposto em uma roda para satis-
fação dos presentes e futuros vassalos deste Reino e a que depois de feita
esta execução seja queimado vivo».
A reacção contra tal estado das instituições veio, como se sabe, do
iluminismo mas foi o marquês Cesar Beccaria Bonesana quem primeira-
mente elaborou uma crítica de conjunto do sistema penal então em
vigor.
Ë certo que já no século xvi se nota espírito de compreensão pela
sorte dos homens colhidos nas malhas da lei.
Assim, Montaigne, por 1571, escrevia nos «Ensaios» que, embora
fosse costume em certos crimes atormentar o paciente, mutilando-o antes
de lhe dar a morte, para impressionar o público, melhor seria fazê-lo com

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o criminoso morto pois que o público ficaria impressionado da mesma forma
e evitava-se o sofrimento do condenado.
O estudo crítico de Beccaria publicado em 1764 sob o título «Dos
delitos e da penas» não surgiu, portanto, como fenómeno esporádico, mera
consequência do humanitarismo do seu autor: foi o resultado, como quase
sempre acontece, do labor concordante de outros homens, no caso, de
filósofos e juristas, designadamente, de escritores franceses contempo-
râneos e de pensadores corno o inglês David Hume.
Beccaria aponta, com especial respeito, o nome de Montesquieu e
há, na verdade, nas «Cartas persas» a LXXX, datada de 1715, sobre a exce-
lência da suavidade e os inconvenientes da severidade das penas, que sem
dúvida exerceu influência em alguns capítulos da sua obra.
Todavia, Montesquieu não hesita em declarar a necessidade da pena
de morte que ele considera uma espécie de talião por meio do qual a
sociedade recusa a segurança a um cidadão que a tirou ou a quis tirar a
um outro homem.
O mérito do escritor milanês está não tanto nas razões que aponta
para contestar a legitimidade da pena de morte em geral mas por ter sido
o primeiro publicista que corajosa e frontalmente pôs em dúvida o direito
de matar e propugnou decididamente pela sua supressão. II

II — A admissibilidade da pena de morte

Não interessa aqui expor miúdamente a argumentação de Beccaria.


Basta referir que ele soube encontrar na teoria do contrato social a prova
da incompatibilidade entre uma concepção individualista do Estado e a
pena de morte.
É certo que lhe faltou demonstrar, como seria necessário, que a teoria
contratual faz depender a justificação da pena de morte do pressuposto
de esta ter sido efectivamente querida pelo condenado.
Cabe na dimensão lógica do ficcionado contrato social admitir que cada
futuro réu podia consentir na sua pena de morte.
Todavia, como observa Radbruch, no ponto de vista do contrato
social (mesmo só como expressão conceituai), é de concordar com Beccaria
e de rejeitar a pena de morte, embora não por o criminoso não ter o direito
de consentir nela, mas por não poder racionalmente anuir por falta de inte-
resse na sua própria destruição.
Sob risco de perder todo o contacto com a realidade, não é possível
imaginar o indivíduo a assentir na sua morte.

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A pena capital é, pois, inconciliável com os fundamentos de qualquer
concepção individualista do Estado, até quando o criminoso aceitasse a
condenação como justa expiação, porquanto seria sempre de distinguir a
pena imposta, da expiação desejada pelo réu.
A verdade, porém, é que o individualismo, radicado na filosofia do
século XVIII e que veio a impregnar a Revolução Francesa, não teve o poder
de expansão que se lhe augurava.
É perante outra ou outras realidades históricas que o problema da
legitimidade da pena de morte deve ser hoje posto.
Esta, como outras questões que afligem o homem ou só lhe despertam
a atenção, há-de lograr resposta mais por adesão a determinado ponto de
vista do que através de argumentos jurídicos laboriosamente alinhados num
ou noutro sentido.
Pode ter que atingir-se a conclusão de que a sociedade necessita, para
sobreviver ou apenas para se defender, da pena capital, um tanto à semelhança
da legítima defesa privada, faculdade originária do homem que o direito
deixou geralmente intacta.
Mas num plano jurídico-filosófico dificilmente serão colhidas razões
que transportem uma solução do problema.
Sabe-se que exigências de justiça ou de protecção, conservação e
defesa de certos interesses, impõem a existência de reacções criminais
mas serão sempre considerações estranhas ao mundo do direito que deter-
minarão o legislador a optar por uma tabela punitiva em que incluirá ou
não a pena de morte.
E vem, afinal, à lembrança este preceito do positivismo : quando numa
colectividade existe um supremo governante, o que ele ordenar deve ser
obedecido.
Todavia, quem se debruçar sobre o homem, na sua vacilante passagem
na terra, pressentirá um sentido de progresso moral, de constante aspiração
para o justo a que o direito — obra do homem — não pode ficar alheio,
até porque colaborou para isso, como fenómeno cultural que é.
A caminhada do homem em toda a extensão que a história consegue
investigar indicia uma constante de aperfeiçoamento em que o respeito
pela vida, honra e bens do seu semelhante é factor inestimável.
Às fórmulas bárbaras da vingança ao sistema grosseiro de mutilar e
supliciar o criminoso para depois lhe suprimir a vida, sucederam reformas
criminais que acompanharam directivas religiosas e filosóficas.
Pois se a humanidade cada vez mais ganhou em lisura e dignidade se
melhor soube robustecer e generalizar a sua carga ética, a que vem manter-se
essa velha, ultrapassada e inútil pena de morte?

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Os argumentos decisivos contra a pena capital bem podem ser
procurados quer em considerações de ordem moral e religiosa, quer em
considerações de natureza psicológica e nos dados estatísticos, tudo a
demonstrar a sua inutilidade.
Mas não interessará desenvolver o assunto, até porque para nós,
portugueses, a discussão a tal respeito perde sentido e dimensão prática.
É o que facho que intrèpidamente Beccaria empunhou nos meados
do século XVIII também veio a passar para mãos portuguesas.
Aqui o mantivemos desde esse mesmo século xvm e à sua luz, moldada
pela nossa índole, fomos afeiçoando as instituições criminais e dos primeiros
a abolir a pena de morte.
Evidente preocupação de melhorar o direito criminal português está
ainda na recente publicação do Decreto-Lei n.° 43 499 e no encargo que
em boa hora foi cometido a um Professor da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra tarefa que o Mestre Ilustre já cumpriu,
elaborando o projecto do novo Código Penal—.

Tenha esta obscura comunicação escrita quase ao correr da pena,


pois que não me sobrou tempo para a rever com algum cuidado, tenha
ela ao menos a virtude de, na sua imperfeita formulação, transportar a
homenagem devida aos homens que em Portugal propuganaram pela
abolição da pena de morte e ao governo que soube traduzir na Lei de 1 de
Julho de 1867 o íntimo anseio de todos os portugueses.

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