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A Era dos Direitos: Contra a Pena de Morte

1. Se examinarmos o longo curso da história humana, veremos que o debate sobre


a abolição da pena de morte mal começou. Ela tem sido considerada não só
legítima, mas até mesmo “natural”, desde as origens de nossa civilização.

2. É preciso chegar ao Iluminismo, no século XVIII, para encontrar pela primeira vez
um sério debate sobre a licitude ou oportunidade da pena capital. O livro de
BECCARIA, DOS DELITOS E DAS PENAS (1764), enfrenta seriamente o problema
e oferece alguns argumentos racionais para dar-lhe uma solução que contrasta com
uma tradição secular.

O ponto de partida usado por Beccaria é saber qual é a força intimidatória da pena
de morte com relação a outras penas. Diz Beccaria que o que constitui uma razão
para não se cometer o delito não é tanto a severidade da pena quanto a certeza de
que se será de algum modo punido. Subsidiariamente, Beccaria introduz um
segundo princípio: a intimidação nasce não da intensidade da pena, mas de sua
extensão, como é o caso, por exemplo, da prisão perpétua. A pena de morte é muito
intensa, ao passo que a prisão perpétua é muito extensa. Portanto, a perda
perpétua total da própria liberdade tem mais força intimidatória do que a pena de
morte.

3. Apesar do sucesso literário do livro junto ao público culto, nem a pena de morte
foi abolida nos países civilizados, tampouco a causa da abolição predominou na
filosofia penal da época, como se pode notar entre os mais ilustres pensadores da
época: ROUSSEAU, no Contrato social, KANT e HEGEL.

No capítulo “Do direito de vida e de morte”, Rousseau disse: “É para não ser vítima
de um assassino que alguém consente em morrer caso venha a ser assassino”.
Portanto, a atribuição ao Estado do direito à própria vida serve para garanti-la contra
o ataque dos outros.

Kant – partindo da concepção retributiva da pena, segundo a qual a função da pena


não é prevenir os delitos, mas fazer com que haja uma perfeita correspondência
entre o crime e o castigo – afirma que o dever da pena de morte cabe ao Estado e é
um imperativo categórico, não um imperativo hipotético, fundado na relação
meio-fim.

Hegel afirma que o delinquente não só deve ser punido com uma pena
correspondente ao crime cometido como tem o direito de ser punido com a morte, já
que somente a punição o resgata e é somente através dela que ele é reconhecido
como ser racional (aliás, ele é “honrado”, diz Hegel).
4. Enquanto os maiores filósofos da época continuavam a defender a legitimidade
da pena de morte, um dos maiores defensores de sua abolição foi ROBESPIERRE,
num discurso à Assembléia Constituinte de maio de 1791. ROBESPIERRE refuta,
em primeiro lugar, o argumento da intimidação, com o exemplo do Japão: na época,
afirmava-se que, embora as penas aplicadas no país fossem atrozes, o Japão era
um país de criminosos. Depois, refuta o argumento fundado na justiça. Finalmente,
aduz o argumento da irreversibilidade dos erros judiciários.

5. Apesar da persistência e da predominância das teorias antiabolicionistas, não se


pode dizer que o debate sobre a pena de morte, levantado por Beccaria, tenha
deixado de produzir efeitos. Ele não visou somente à sua abolição: num primeiro
momento, dirigiu-se para a limitação dessa pena a alguns crimes especificamente
determinados; depois, para a eliminação dos suplícios (ou crueldades inúteis); e,
num terceiro momento, para a supressão de sua execução pública.

Hoje, muitos Estados não abolicionistas buscaram tornar a pena de morte o mais
indolor (ou menos cruel) possível. Naturalmente, isso não quer dizer que o
conseguiram (seja na guilhotina francesa, no enforcamento inglês e na cadeira
elétrica norte-americana, a morte nem sempre é instantânea). A execução não se
realiza mais à vista do público, ainda que o eco de uma execução na imprensa
substitua a antiga presença do público na praça.

6. Os argumentos pró e contra a pena de morte dependem da concepção que os


debatedores têm da função da pena. As concepções tradicionais são sobretudo
duas: a “retributiva” (concepção ética), que repousa na regra da justiça como
igualdade (como em Kant e em Hegel), segundo a máxima de que é justo que quem
realizou uma má ação seja atingido pelo mesmo mal que causou a outros; e a
“preventiva” (concepção utilitarista), segundo a qual a função da pena é
desencorajar as ações que um determinado ordenamento considera danosas.
Pode-se dizer que, em geral, os adeptos da pena de morte apelam para a primeira
(como Kant e Hegel), enquanto os adversários se valem da segunda (como
Beccaria).

7. O debate complica-se um pouco mais porque as concepções da pena não são


somente essas duas . Recordo, pelo menos, outras três: a pena como expiação,
como emenda e como defesa social. A primeira concepção da pena é compatível
tanto com a tese da manutenção quanto com a da abolição da pena de morte. A
segunda – a da emenda – é a única que exclui totalmente a pena de morte. Mesmo
o mais perverso dos criminosos pode se redimir: se ele for morto, ser-lhe-á vedado
o caminho do aperfeiçoamento moral, que não pode ser recusado a ninguém.

8. Embora sejam muitas as teorias da pena, as duas predominantes são as que


chamei de ética e de utilitarista. Os dois raciocínios poderiam ser resumidos nestas
duas afirmações: para os primeiros, a pena de morte poderia até não ser útil, mas é
justa; para os segundos, poderia até ser justa, mas não é útil.

9. A partir de Beccaria, o argumento fundamental dos abolicionistas foi o da força de


intimidação. O lado débil do argumento que baseia a exigência de abolir a pena de
morte na sua menor força de intimidação reside no fato de que, caso fosse possível
demonstrar de modo irrefutável que a morte tem um poder de dissuasão maior do
que o de outras penas, ela deveria ser mantida ou restabelecida. Por isso, seria um
grande limite fundar a tese da abolição apenas num argumento utilitarista.

10. O limite da tese utilitarista está numa simples presunção, a de que a pena de
morte não serve para fazer diminuir os crimes de sangue. Mas se se conseguisse
demonstrar que ela previne tais crimes? Então o abolicionista teria de recorrer a um
princípio posto como absolutamente indiscutível. E esse argumento só pode ser
derivado do imperativo moral “não matarás”, que deve ser acolhido como um
princípio de valor absoluto. Poder-se-ia retrucar: o indivíduo tem o direito de matar
em legítima defesa, enquanto a coletividade não o tem? Responde-se: a legítima
defesa nasce e se justifica somente como resposta imediata numa situação onde
seja impossível agir de outro modo; a resposta da coletividade é mediatizada
através de um processo, no qual se conflitam argumentos pró e contra. A
condenação à morte depois de um processo não é mais um homicídio em legítima
defesa, mas um homicídio legal, premeditado. O Estado não pode colocar-se no
mesmo plano do indivíduo singular. Ele é muito mais forte do que o indivíduo e, por
isso, não tem necessidade de tirar a vida desse indivíduo para se defender.

A única razão para nossa repugnância frente à pena de morte é uma só: o
mandamento de não matar. Todos os demais argumentos valem pouco ou nada.
Dostoievski o disse magnificamente: “Foi dito: ‘Não matarás’. E, então, se alguém
matou, por que se tem de matá-lo também? Matar quem matou é um castigo
incomparavelmente maior do que o próprio crime. O assassinato legal é
incomparavelmente mais horrendo do que o assassinato criminoso”.

O desaparecimento total da pena de morte do teatro da história estará destinada a


representar um sinal indiscutível do progresso civil. Esse conceito foi muito bem
expresso por JOHN STUART MILL: “Toda a história do progresso humano foi uma
série de transições através das quais costumes e instituições, umas após outras,
foram deixando de ser consideradas necessárias à existência social e passaram
para a categoria de injustiças universalmente condenadas.” Esse deverá ser
também o destino da pena de morte. O seu cumprimento será um sinal indiscutível
do progresso moral.

BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.Fonte :


https://resumodaobra.com/norberto-bobbio-era-dos-direitos-contra-pena-morte/

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