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UMA BREVE REFLEXÃO SOBRE A EUTANÁSIA

RUBEN RAMIÃO
Uma Breve Reflexão sobre a Eutanásia.
Rúben Ramião

No seu sentido mais preciso, “eutanásia” significa a morte “boa”, misericordiosa ou


compassiva.1 Distingue-se do suicídio assistido, uma vez que este apenas implica um auxílio
material a um ato que é executado pelo próprio suicida. A eutanásia envolve a prática
intencional de um ato por um terceiro que causa diretamente a morte a uma pessoa,
normalmente através da administração de uma injeção letal. No caso do suicídio assistido,
o terceiro apenas fornece os meios, por exemplo, uma substância química letal que o próprio
suicida toma.
Na maior parte dos sistemas jurídicos, o suicídio assistido e a eutanásia são contrários à lei,
sendo puníveis por força do direito criminal desses mesmos sistemas jurídicos. No Direito
português, essa punição resulta dos artigos 133º, 134º/nº1 e 135º/nº1 do Código Penal. O
artigo 133º pune a chamada eutanásia involuntária (“Quem matar outra pessoa dominado
por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor
social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de
um a cinco anos”); o artigo 134º/nº1 pune a chamada eutanásia voluntária, ativa ou passiva
(“Quem matar outra pessoa determinado por pedido sério, instante e expresso que ela lhe
tenha feito é punido com pena de prisão até três anos”); por fim, o artigo 135º/nº1 pune o
suicídio assistido (“Quem incitar outra pessoa a suicidar-se, ou lhe prestar ajuda para esse
fim, é punido com pena de prisão até três anos, se o suicídio vier efetivamente a ser tentado
ou a consumar-se”).

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Na verdade, como explica Martinho Soares (“Eutanásia e Suicídio na Cultura Clássica Greco-Romana”,
Humanística e Teologia. 38:1 (2017), pág. 24), não existe nas línguas latina e grega clássica nenhuma palavra
que possa ser traduzida por “suicídio” ou “eutanásia”. O termo “eutanásia” teve origem no período
helenístico, significando simplesmente a “boa morte”, ou seja, uma morte feliz, fácil, com ausência de dor e
com perfeição moral, isto é, uma morte com nobreza. A palavra “euthanasia” é composta pelo prefixo “eu”,
que significa “bom” ou “boa”, e “thanatos”, que significa “morte”. Ora, na mitologia grega, Thanatos é o
génio masculino alado que personifica a morte, era o deus da morte, ao passo que Hypnos era a personificação
do sono, o deus do sono, irmão gémeo de Thanatos. Ambos são filhos de Nyx, a deusa da noite. (Pierre
Grimal, Dicionário da Mitologia Grega e Romana, 5ª Edição, Difel, Lisboa, 2009). Por sua vez, a palavra
suicídio provém do Latim, surgindo nas línguas europeias por volta do século XVII, sendo desconhecida dos
romanos.
O sentido que é atribuído à eutanásia, como o ato de provocar a morte a alguém para a libertar de uma
doença incurável e extremamente dolorosa, debilitadora e irreversível, tem uma origem recente (finais do
século XX), dado que os gregos e os romanos não possuíam nenhuma frase ou palavra específica para a morte
medicamente assistida, nem nunca a eutanásia fora discutida na antiguidade com este significado. (Martinho
Soares, “Eutanásia e Suicídio na Cultura Clássica Greco-Romana”, Humanística e Teologia. 38:1 (2017),
pág. 24).
1
A rejeição, tanto da eutanásia, como do suicídio assistido, mais do que um reflexo jurídico
do valor da vida humana e da exigência da sua proteção, resulta culturalmente da influência
religiosa, em especial da fé cristã e muçulmana. A ideia é simples. Deus criou o Mundo e
com ele todas as criaturas vivas, logo Deus é o supremo criador de toda a vida. A vida não
existe ou surgiu por si própria, ela foi dada por este ser supremo. Logo, a vida, em especial,
a vida humana, é uma dádiva, algo que foi dado por uma entidade de natureza divina, isto
é superior. Se a vida termina com a morte, e se a vida foi dada, então, a morte, tal como a
vida, também é uma dádiva, ou seja, também é fruto da ação de Deus. Assim sendo, não
cabe ao Homem dispor da sua própria vida. É o supremo criador que dá a vida e é ele e só
ele que a pode tirar. Matar alguém ou cometer suicídio é, pois, um pecado, uma violação
dos comandos de Deus, retirados da interpretação da sua vontade que está suposta no
pensamento do Homem que entende a vida humana, precisamente, como sendo uma
dádiva. Assim, cabe ao Homem preservar a sua vida e a dos outros. Contribuir para a morte
de alguém é, segundo, esta tradição religiosa, querer fazer o “papel” de Deus, ou seja, querer
sobrepor-se ao divino.
Para além da visão religiosa, também as concepções morais e éticas conduzem muitas das
vezes à rejeição da eutanásia (bem como do suicídio assistido). Alguns afirmam que matar
alguém, mesmo que seja uma pessoa numa situação de sofrimento atroz e por pedido
expresso desta, é simplesmente errado, é moralmente inaceitável, eticamente reprovável
(principalmente se o ato for executado por um profissional de saúde, uma vez que este tem
o dever deontológico de proteger a vida).
A Assembleia da República prepara-se para discutir e votar a possibilidade de a eutanásia
ser praticada em certas condições. Independentemente de existirem diferentes projetos
(apresentados por vários grupos parlamentares), o aspeto central é saber se se deve ou não
permitir a eutanásia para as situações em que uma pessoa se encontra num sofrimento muito
grande em virtude de uma doença incurável e que conduzirá inevitavelmente à sua morte,
manifestando essa mesma pessoa de forma livre e totalmente esclarecida a vontade de morrer
como forma de evitar esse mesmo sofrimento. Ou seja, deve ou não ser concedido a
qualquer cidadão o direito a uma morte “boa”, por compaixão pelo seu sofrimento ou por
clemência. A questão controversa consiste em saber se esta possibilidade é ou não
desconforme com a nossa Constituição. É pois um problema constitucional, um problema
de direitos fundamentais.
Os direitos fundamentais são fundamentais porque consistem nos direitos mais
elementares do nosso sistema jurídico, eles formam a base axiológica da nossa Constituição.
A sua força normativa resulta do facto de os direitos fundamentais estarem acima de
quaisquer concepções ideológicas, religiosas, éticas ou morais. Quer dizer, os direitos
fundamentais podem ser o reflexo de certos traços culturais da nossa sociedade, mas a sua
constitucionalização transporta-os para a dimensão jusfundamental. Um direito
fundamental é fundamental porque se eleva perante as próprias concepções que dele possa
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ter a sociedade enquanto expressão cultural. Por exemplo, a sociedade portuguesa não é
laica, é predominantemente influenciada pela fé cristã. Esta influência religiosa certamente
contribuiu para a ideia de que a vida humana é inviolável, princípio esse plasmado na
Constituição portuguesa (artigo 24º/nº1). Nenhum sistema jurídico, em particular,
nenhuma Constituição é neutra em termos axiológicos. Ela é sempre um produto da
concepção dominante que se exprime através do exercício do poder constituinte. Porém, a
natureza jurídico-constitucional de um tal direito à vida, ou de um outro direito qualquer,
só assume o sentido ou significado de direito fundamental quando o sistema desses mesmos
direitos, isto é, a carta de direitos fundamentais prevista na Constituição, se funde na
liberdade individual, expressão de uma certa ideia de dignidade da pessoa humana que, na
verdade, a preenche e lhe atribui significado.
Quer dizer, poderemos afirmar que os direitos dos cidadãos previstos na sua Constituição
formam o catálogo de direitos primordiais porque constituem o sistema primário de direitos
em sentido jurídico, aqueles direitos que sustentam e fundamentam todos os restantes
direitos infraconstitucionais. Todavia, um sistema de direitos constitucionais só pode ser
qualificado como um catálogo de direitos fundamentais se se basear na liberdade pessoal.
Para o Estado, os direitos fundamentais consistem em imposições e proibições. Para os
cidadãos, constituem liberdades fundamentais. Ou seja, quando pensamos em direitos
fundamentais não pensamos somente em direitos previstos numa Constituição. Pensamos
sim, em direitos previstos numa Constituição de um Estado de Direito democrático. E, um
Estado de Direito democrático assenta no reconhecimento da liberdade pessoal dos seus
cidadãos, daí os direitos fundamentais serem entendidos como liberdades fundamentais.
Imaginemos que era proibido publicar fotos no facebook porque temos direito à reserva
da nossa vida privada (artigo 26º/nº1 da CRP). Imaginemos que do artigo 27º/nº1 da CRP
decorria a proibição de praticar desportos radicais ou de combate, uma vez que todos temos
o direito à segurança e os desportos radicais e de combate são perigosos. Imaginemos que o
Estado nos obrigava a fazer viagens pelo nosso País porque temos o direito de deslocação
(artigo 44º/nº1 da CRP). Imaginemos agora que era obrigatório reunirmo-nos com várias
pessoas numa esquina todos os dias simplesmente para garantir o direito de reunião (artigo
45º/nº1 da CRP). Nada disto faria sentido. Até poderíamos considerar que a Constituição
portuguesa, ao estabelecer tais regras, teria um catálogo de direitos constitucionais, direitos
superiores por estarem previstos na Constituição. Mas nunca seriam direitos fundamentais.
E não o seriam porque tais regras, apesar de protegerem certos valores, como a reserva da
vida privada, a segurança, a possibilidade de deslocação, ou a reunião pacífica dos cidadãos,
não o fariam enquanto liberdades pessoais. É que, num Estado de Direito democrático, a
natureza jusfundamental material de um direito constitucional consiste no reconhecimento
de que esse mesmo direito faz parte da esfera pessoal de cada sujeito, isto é, só há direito
fundamental, verdadeiramente, quando se reconhece o sujeito titular desse mesmo direito
como o “dono”, como o “senhor” desse mesmo direito, como a única pessoa que pode
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decidir a forma como esse mesmo direito virá a ser exercido. Dito de outra forma, apesar
de a Constituição ser da sociedade, um direito fundamental não é um direito da sociedade,
é um direito do indivíduo.
Sendo um direito do indivíduo, o indivíduo pode usar esse mesmo direito contra o
Estado, contra a sociedade. É por isso que um direito fundamental é tido como um trunfo
contra a maioria. Não é um direito da sociedade (ou do Estado) contra o indivíduo. É um
direito do indivíduo contra a sociedade (ou contra o Estado). Para ser um direito contra a
sociedade (ou contra o Estado), o direito fundamental não pode ficar à disposição da
sociedade (ou do Estado), isto é, não pode ser interpretado e aplicado segundo os critérios
arbitrários da sociedade (ou do Estado). O direito fundamental é fundamental porque é
interpretado e aplicado segundo os critérios do seu próprio titular.
Ao Estado cumpre defender e proteger os direitos fundamentais dos cidadãos (artigo
9º/alínea b) da CRP). Essa tarefa fundamental implica que o Estado não permita que o
exercício dos direitos fundamentais seja absoluto ou abusivo, quer dizer, que a liberdade do
indivíduo não afete a liberdade dos restantes indivíduos. Simplificando, os direitos
fundamentais colidem quando o exercício de um direito impede a realização de outro
direito. Ao Estado compete garantir que a realização de um direito conflituante seja
legítima, e só o será se existir uma justificação racional para essa mesma realização. Ou seja,
só é legítimo restringir um direito fundamental se tivermos uma razão para tal. Assim sendo,
o discurso dos direitos fundamentais obedece a uma justificação racional dos mesmos. Esta
justificação racional traduz-se no facto de um direito fundamental, por ser na sua essência
uma liberdade fundamental e por isso constituir um direito individual, só poder ser
restringido com base num argumento racional. Explicando melhor: uma vez que os direitos
fundamentais, em Estado de Direito democrático, são liberdades fundamentais do
indivíduo, e como tal constituem direitos contra a sociedade e contra o Estado, eles estão
acima das concepções da própria sociedade (concepções religiosas, morais, éticas, culturais,
etc.), logo para que a sociedade (o Estado) possa restringir esses mesmos direitos, isto é, para
que a sociedade (o Estado) possa afetar esses direitos, terá de recorrer a uma razão que se
eleve também ela perante tais concepções da própria sociedade (concepções religiosas,
morais, éticas, culturais, etc.). A única razão que pode ser utilizada pela sociedade (pelo
Estado) para afetar uma liberdade fundamental consiste em ser necessário fazê-lo. Em Estado
de Direito democrático, só é possível restringir um direito fundamental se for indispensável
fazê-lo. E só pode ser indispensável fazê-lo se for necessário para proteger outro direito ou
liberdade fundamental. Quer isto dizer que os direitos fundamentais só podem ser
restringidos para garantir outros direitos fundamentais (artigo 18ª/nº2 da CRP).
O Estado de Direito democrático usa o princípio da proporcionalidade como instrumento
de medição da justificação racional dessas mesmas restrições. Isso significa que uma restrição
a um direito fundamental só será válida se for necessária, adequada e equilibrada (ou seja, se
não for excessiva). Sujeitar a argumentação jurídica em torno das restrições aos direitos
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fundamentais ao princípio da proporcionalidade garante um discurso em torno dos direitos
fundamentais estritamente racional, baseado na relação meio/fim, desprovido de
contaminações religiosas, morais, éticas ou culturais. Isto significa que a sociedade não pode
afetar direitos fundamentais sem ter uma justificação do tipo meio/fim, sem demonstrar que
essa afetação é essencial para garantir outros direitos fundamentais. A justificação racional
dos direitos fundamentais constitui uma garantia da maximização dos mesmos, erige uma
barreira contra as possíveis manipulações dos direitos fundamentais por parte da sociedade,
estabelece os direitos fundamentais como direitos do indivíduo e não como direitos da
sociedade.
Assim sendo, sempre que temos um problema de direitos fundamentais, em que nos
questionamos se é admissível restringir ou não um determinado direito, se se deve permitir
esta ou aquela conduta, teremos de nos perguntar o seguinte: qual o malefício desta conduta
para a sociedade? Estará em perigo a realização de outro direito fundamental? Esta conduta
viola algum direito fundamental? Será essencial impedir esta conduta para proteger
aqueloutro direito fundamental? Estas são as perguntas legítimas em Estado de Direito
democrático. Não interessa saber se uma conduta viola um comando divino, se é
moralmente correta ou não, se põe em causa algum princípio ético. Estas perguntas são
típicas de outro tipo de Estado. No caso da eutanásia (nos precisos termos em que irá ser
discutida), deveremos perguntar: em que medida a possibilidade de alguém morrer a pedido
para evitar um sofrimento insuportável põe em causa ou afeta um direito fundamental?
O primeiro argumento que é normalmente invocado para rejeitar a constitucionalidade
da eutanásia encontra apoio na letra do artigo 24º/nº1 da Constituição, cujo enunciado diz:
“A vida humana é inviolável”. Ora, o termo “violação” aponta para um ato de desrespeito
por algo (por exemplo, algo sagrado), por um direito de alguém, por uma liberdade. A
“violação”, em sentido usual do termo, ocorre quando um determinado ato é praticado sem
consentimento de alguém. Se um homem praticar atos sexuais com uma mulher sem o seu
consentimento, estará a violá-la; se uma pessoa decidir entrar no quintal do seu vizinho sem
o seu consentimento, estará a violar o espaço do seu vizinho. Não há violação se o sexo for
consentido nem se o nosso vizinho nos convidar a beber um whisky no seu quintal. Aqueles
que se apressam a invocar a letra do artigo 24º/nº1 da Constituição, por esta dizer que a vida
humana é inviolável, agarrando-se à palavra “inviolável”, esquecem que este termo tem
como significado mais usual, precisamente, algo que é feito contra a vontade de alguém. A
“inviolabilidade” da vida humana, para efeitos constitucionais, não significa que em
nenhuma circunstância se possa terminar uma vida humana, bastando pensar na
admissibilidade do aborto em certas circunstâncias (como proteção da própria vida da mãe),
ou nos casos em que é admissível matar alguém em legítima defesa. A “inviolabilidade” da
vida humana, para a nossa Constituição, significa que a vida humana é um bem jurídico
supremo, um valor que deve ser preservado, um pressuposto ou condição sine qua non de
todos os demais direitos fundamentais. Não significa que seja um valor absoluto, isto é, que
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prevaleça sempre sobre todos os demais direitos fundamentais, apesar de constituir o seu
pressuposto fundamental.
A Constituição também usa a mesma fórmula para a integridade moral e física das pessoas,
estabelecendo no artigo 25º/nº1 que “A integridade moral e física das pessoas é inviolável”.
Também daqui não decorre um direito absoluto, pois como sabemos, há circunstâncias em
que se pode agredir alguém, por exemplo, numa situação de legítima defesa ou como ato
policial com o objetivo de dispersar uma manifestação ou protestos violentos. Também não
se proíbe a prática de desportos que envolvam agressões físicas, como o boxe ou outros que
envolvam artes marciais. Neste último caso vemos como não há violação da integridade
física, uma vez que há consentimento dos praticantes de tais desportos, ou seja, só há
violação de um direito fundamental quando se força o seu titular a algo, não quando o titular
do direito decide exercê-lo de uma forma que desproteja o bem jurídico tutelado por esse
mesmo direito. Isto porque um direito fundamental, em Estado de Direito democrático, é
uma liberdade, não uma obrigação.
Afirmar que há violação do direito à vida quando alguém pede expressamente a eutanásia
(nas circunstâncias descritas acima), é afirmar que deste direito à vida decorre uma obrigação
de viver, em qualquer circunstância, qualquer pessoa tem a obrigação de viver. Ora, esta
obrigação de viver não pode decorrer do direito à vida como direito fundamental, dado que
este direito, em Estado de Direito democrático, é uma liberdade, uma vez que os direitos
fundamentais são liberdades fundamentais, ou seja, são direitos do indivíduo, trunfos contra
a sociedade. Esta obrigação de viver, mesmo que numa situação de sofrimento extremo, só
pode decorrer de uma certa ideia de que a nossa própria vida não é nossa, de que não está
na nossa disposição poder terminá-la, mesmo que seja para evitar um grande sofrimento.
Esta obrigação de viver resulta sim, precisamente, da ideia de que a nossa vida é algo que
nos transcende, que nos foi dada, que é uma dádiva e que, deve, portanto, ser preservada.
Essa pode ser a visão religiosa sobre a vida humana, mas não pode ser a visão jurídica
jusfundamental sobre vida humana. Isto porque o reconhecimento dos direitos
fundamentais como fundamentais significa reconhecer que, em última instância, é o
indivíduo que tem o poder de decidir como exercerá os seus direitos fundamentais. As
minhas liberdades são fundamentais porque sou eu quem decide como as manifestarei. Sou
eu que decido como me expresso, como viverei a minha vida, como construirei a minha
identidade pessoal, e em última instância, sou eu quem decido como terminará a minha
própria vida. Não se trata de uma construção egoísta da sociedade. Trata-se sim da ideia de
que os direitos fundamentais são liberdades pessoais, constituem a esfera jurídica pessoal de
cada indivíduo. Constituem a matriz constitucional fundamental no sentido de que o nosso
Estado se funda na liberdade pessoal, uma expressão da ideia de dignidade da pessoa humana.
A dignidade da pessoa humana, em Estado de Direito democrático, significa que as
convicções da maioria, da sociedade, não podem condicionar a liberdade individual.

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A Constituição não proíbe expressamente a eutanásia e baseia a sua matriz jusfundamental
na liberdade pessoal, um reflexo do entendimento da dignidade da pessoa humana. Por isso,
a eutanásia não é desconforme com a Constituição. É um puro exercício, por parte de quem
a pede, da sua liberdade pessoal, da liberdade de poder construir a sua própria identidade
pessoal (como afirma Jorge Reis Novais), de viver segundo as suas convicções e de poder
morrer segundo essas mesmas convicções, de não estar agrilhoado às concepções da
sociedade sobre a vida humana. Numa palavra, reconhecer o direito à eutanásia é
reconhecer ao indivíduo a forma suprema de dignidade, uma dignidade que não se
subordina a uma qualquer ideia de Deus, é reconhecer que cada pessoa é senhora de si
mesma, que pode encerrar o capítulo final do livro da sua vida com a mesma liberdade com
que um escritor termina a sua história, é reconhecer que a vida humana não é apenas um
fluxo sanguíneo, uma miríade de células ativas, é reconhecer que o “sentir-se vivo”
constitui uma dimensão primordial da vida. Numa situação de sofrimento intolerável, em
que a morte será inevitável, reconhecer o direito à eutanásia (livre e esclarecida) é, antes do
mais, uma manifestação de humanismo e de respeito perante a vida e liberdade de cada ser
humano.
Contra este entendimento, alguns juristas defenderam em vários fóruns de discussão
públicos, que os propugnadores da constitucionalidade da eutanásia seriam incoerentes. O
argumento é este: se, em última instância, cada um pode decidir sobre o fim da sua própria
vida, então por que razão só se admite a eutanásia para as situações de pacientes com doenças
incuráveis e em estado de grande sofrimento? Porque não reconhecer a eutanásia para
qualquer pessoa que pretenda morrer, para qualquer pessoa que peça para morrer, por
exemplo, motivado por uma enorme tristeza por um qualquer facto da sua vida?
Isto é simplesmente estar a desconversar. Sabemos perfeitamente que nenhuma pessoa
saudável pede para morrer, é contrário à própria natureza humana que tende para sua
sobrevivência. Algumas pessoas que perdem o desejo de viver, estão em sofrimento
psicológico, são situações de depressão ou com a mesma gravidade. Não se encontram numa
situação de doença incurável, podem ser tratadas. Nesses casos, o Estado tem o dever
constitucional de proteger a sua vida e a sua saúde. Se uma pessoa está mentalmente doente,
o seu pedido de eutanásia não será certamente livre, estará condicionado logo à partida pela
sua própria patologia clínica. Nada tem que ver com a situação que se quer ver legalizada,
ou seja, a de uma pessoa em grande sofrimento em virtude de doença incurável e não
tratável. Nesta situação, o Estado não a pode salvar. Aqui, o Estado, ou permite uma morte
por clemência, ou obriga a que a pessoa sofra até ao momento da sua morte. Trata-se de
um mau argumento que só serve para contaminar a discussão. O mesmo se diga do
argumento da “ladeira escorregadia”2, que visa rejeitar a admissibilidade da eutanásia em

2
Expressão utilizada por Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva na sua anotação ao artigo 24º da CRP, in
Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pág. 539.
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casos especificados e delimitados pela lei com medo de que essa mesma lei possa ser aplicada
de forma abusiva. Eles têm medo que as circunstâncias em que a eutanásia seja legalizada
possa dar o “mote” para outras situações no futuro. É um puro absurdo. A prática da
eutanásia fora das circunstâncias acima descritas continuará a ser crime. E, a sua
conformidade com a Constituição resulta, precisamente, do facto de a eutanásia só ser
permitida nas circunstâncias em que se quer permiti-la, ou seja, pedido expresso, livre e
esclarecido, de alguém que se encontra numa situação de doença incurável e mortal (ou
incapacitante), com sofrimento atroz. Importa esclarecer que esse sofrimento atroz não é
apenas um sofrimento físico, pode ser também um sofrimento psicológico em virtude da
sua condição, por exemplo, alguém que se encontra preso a uma cama sem se conseguir
mexer. Fora destas circunstâncias, a eutanásia não é conforme com a Constituição. Se a
doença tem cura ou puder ser tratada com alívio do sofrimento, o Estado tem o dever de
fazê-lo; se não há pedido expresso, livre e esclarecido, haverá homicídio. Se a pessoa não
quer viver, pura e simplesmente, suicida-se, não pede a eutanásia.
Outro argumento que tem sido avançado diz respeito ao valor jurídico «vida» enquanto
valor social. Um conhecido constitucionalista da nossa praça afirmou num certo debate
público que a sociedade não é como um condomínio privado, em que cada um se fecha na
sua casa e os outros condóminos não se preocupam com o que lá se passa. Afirmou também
que um pedido de eutanásia tem de ser interpretado corretamente, que a pessoa
verdadeiramente não pede para morrer, pede antes que lhe tirem o sofrimento, ou seja, é
preciso saber interpretar a real vontade da pessoa.
O que este constitucionalista não percebe é que a sua concepção demonstra, precisamente,
o que não é um direito fundamental. Claro que a sociedade se deve preocupar com os seus
bens jurídicos fundamentais, como a vida humana, que constituem o fundamento
jusfundamental do nosso sistema jurídico. Mas, preocupação não equivale a afetação. A ideia
de que a sociedade não pode ser indiferente ao que se passa na casa de cada um e que tem
uma palavra a dizer sobre a forma como cada um pode ou não exercer a sua liberdade ou a
sua vontade dentro da sua casa, entendamo-nos, dentro da sua esfera de liberdade, é
conceber, neste caso concreto, o direito à vida (ou a liberdade de querer viver ou não) como
um direito que a sociedade tem contra o indivíduo, pois caberá à sociedade determinar,
segundo a sua convicção, o que é melhor para o indivíduo, neste caso morrer em
sofrimento. Ora, um direito fundamental é precisamente o oposto, é um direito do
indivíduo contra a sociedade, um trunfo que este tem, precisamente para poder “agredir” a
convicção da sociedade. Quer dizer, ter um direito fundamental é ter a possibilidade de agir
em desconformidade com a concepção dominante na sociedade. Ter um direito
fundamental é ter o poder jurídico de agir contra os comandos de Deus, contra a moral
instituída, contra as pré-compreensões sociais ou culturais da sociedade. Em Estado de
Direito democrático há mesmo um direito à imoralidade. A ideia de que certos direitos,
como o direito à vida e o direito à liberdade ou à identidade pessoal, são determinados em
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função das “preocupações” da sociedade é admitir a concepção segundo a qual, para além
da paz social, o Direito visa implementar ou suportar uma certa ideia do que é a boa vida.
Essa construção é própria dos Estados autoritários ou totalitários, não de um Estado de
Direito democrático. Aqui, por força dos direitos fundamentais assentes no princípio da
liberdade pessoal, ao Estado caberá única e exclusivamente garantir a paz social, restringindo
apenas aquelas condutas que se mostrem nocivas para a sociedade, isto é, que afetem os
direitos fundamentais dos indivíduos (ou que prejudiquem o funcionamento normal do
próprio Estado). Numa palavra, em Estado de Direito democrático, a nossa liberdade só
pode ser restringida para evitar que esta possa interferir ou lesar a liberdade de outrem,
garantindo assim um equilíbrio entre os direitos, permitindo que vivamos em paz social.
Nenhum direito fundamental pode ser interpretado ou reduzido com base em fundamentos
religiosos, morais, éticos ou culturais. A ideia segundo a qual deveremos interpretar bem a
vontade da pessoa que pede a eutanásia é também uma manifestação de uma certa concepção
autoritária do Estado, que nega autonomia à pessoa, e se propõe, de uma forma paternalista,
determinar a vontade considerada válida pela qual a pessoa se deve reger. A pessoa que pede
a eutanásia não sabe bem o que quer, mas este constitucionalista, “verdadeiramente”, sabe
bem o que quer para essa pessoa – que esta sofra até morrer.
À pergunta fundamental – que direitos fundamentais são violados pela prática da eutanásia?
– não dão qualquer resposta os que rejeitam a constitucionalidade da eutanásia. Que direitos
fundamentais são afetados se se reconhecer o direito de uma qualquer pessoa a pedir a
eutanásia nas situações descritas? Não pode ser o próprio direito à vida porque é o próprio
indivíduo titular desse direito que pede para morrer, e é a ele que cabe, em última instância,
decidir como exerce o seu direito à vida, ou seja, é ele que tem a derradeira liberdade de
decidir se quer continuar vivo ou não. Entender o contrário, como já ficou dito, seria retirar
da inviolabilidade da vida humana uma obrigação de viver mesmo contra a vontade da
própria pessoa. Seria o mesmo que dizer que tenho uma obrigação de não colocar as minhas
fotos no facebook porque isso viola o meu direito à imagem ou à reserva da vida privada;
seria o mesmo que dizer que tenho a obrigação de viajar em Portugal porque tenho o direito
à deslocação no território nacional; seria o mesmo que dizer que tenho a obrigação de me
casar porque a Constituição me dá esse direito. Nada disto faz sentido. Seria um absurdo se
o defendêssemos. Mas, então, que malefício traz a possibilidade da eutanásia para os nossos
direitos fundamentais? Na verdade, nenhum. O que os defensores da inconstitucionalidade
da eutanásia tentam esconder é que, na verdade, a única “coisa” que é afetada com a
eutanásia é a sua própria concepção ou ideia do que deve ser a “vida”, de como se deve
viver a “vida”. Eles, simplesmente, não querem viver num Mundo onde a eutanásia seja
permitida, porque isso ofende a sua própria visão do Mundo, visão essa que é consciente ou
inconscientemente influenciada por convicções religiosas ou morais sobre o ser humano.

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Lisboa,
12 de Agosto de 2020.

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