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Vigiar e Punir, de Michel Foucault: considerações sobre a

obra

1. Introdução

Uma das primeiras formas de estabelecer uma punição legal é a chamada


lei de Talião: olho por olho, dente por dente. Esse tipo de legislação criminal
persistiu por muitos e muitos anos. Com o tempo, esse tipo de punição foi
substituído pela privação da liberdade. Surgem as prisões, tema principal da
obra Vigiar e Punir, do filósofo Michel Foucault. Uma das ideias defendidas
pelo autor é que as prisões e a mudança na racionalidade das punições
criminais não foram resultado de uma transformação natural. Pelo contrário,
houve uma mudança na maneira de encarar as punições, uma maior
humanização na forma de aplicar as penas. Segue-se um breve relato da obra.

2. Suplício

O primeiro capítulo trata do suplício, e sobre como o corpo do condenado


era o principal meio para a aplicação de uma punição legal. A noção de tortura
como um crime humanitário era inexistente. O livro faz uma descrição chocante
do suplício aplicado a um homem condenado por assassinar os pais, um
sujeito chamado Dameins. O corpo do condenado foi literalmente estraçalhado,
corroído por substâncias corrosivas e retalhado. Foucault descreve alguns
exemplos de punições ao longo do tempo.
Os suplícios por um longo período eram tratados como algo natural, e os
processos condenatórios eram grandes espetáculos públicos. Com o andar da
modernidade, esses espetáculos públicos foram descontinuados. Os suplícios
foram deixando a cena, fazendo com o que a supressão da dor caracterizasse
as penas capitais no mundo atual. Mesmo com as ressalvas, Foucault escreve:

Desaparece, destarte, em princípios do século XIX, o grande espetáculo da punição física:


o corpo supliciado é escamoteado; exclui-se do castigo a encenação da dor. Penetramos na
época da sobriedade punitiva. Podemos considerar o desaparecimento dos suplícios como um
objetivo mais ou menos alcançado, no período compreendido entre 1830 e 1848 (FOUCAULT,
1999, p. 18).

Apesar da sobriedade punitiva característica da modernidade, a punição


física não desaparece por completo, mesmo que o corpo físico deixasse de
cumprir o papel de meio principal de aplicação da punição. A questão que
então emerge é a seguinte: como estabelecer uma punição do tipo incorpórea?
Ao invés de causar sofrimento físico direto, o corpo passa a ser usado
como instrumento de privação da liberdade, bem como uma forma de punição
através de trabalhos forçados. Essas maneiras de punir explicam a decadência
do espetáculo do suplício. As pessoas não querem apenas ver um condenado
perder sua liberdade. O ideal seria ver esse condenado perder sangue.
Apesar da dor física ser diminuída consideravelmente, essa mudança de
foco não diminuiria a punição, em seu sentido quantitativo relacionado ao
sofrimento. A questão é que o corpo deixa de ser o foco da punição, dando
lugar a punição do espírito ou da alma. Além do mais, os crimes e as formas de
punição estão ligadas a configuração social e a forma de produção. Surge uma
economia do castigo. Vamos para o segundo capítulo.
Observando na ótica moderna dos Direitos Humanos, consideramos os
suplícios como verdadeiros crimes contra a humanidade. A crueldade que
observamos nos relatos e descrições desses suplícios é flagrante. Porém, num
mundo anterior a declaração universal dos Direitos Humanos, esses suplícios
não eram torturas, tampouco cruéis. Eram a punição ideal para quem
merecesse tal pena. Apesar da ausência de espetáculos grotescos, atualmente
existe um tipo de suplício que não faz o corpo sofrer: o interrogatório:

Pode-se a partir daí encontrar o funcionamento do interrogatório como suplício da verdade. Em


primeiro lugar, o interrogatório não é uma maneira de arrancar a verdade a qualquer preço; não
é absolutamente a louca tortura dos interrogatórios modernos; é cruel, certamente, mas não
selvagem. Trata-se de uma prática regulamentada, que obedece a um procedimento bem
definido, com momentos, duração, instrumentos utilizados, comprimentos das cordas, peso
dos chumbos, número de cunhas, intervenções do magistrado que interroga, tudo segundo os
diferentes hábitos, cuidadosamente codificado.17 A tortura é um jogo judiciário
estrito. E a esse título, mais longe do que às técnicas da Inquisição, ela se liga às
antigas provas que se utilizavam nos processos acusatórios: ordálias, duelos judiciais,
julgamentos divinos. Entre o juiz que ordena a tortura e o suspeito que é torturado, há ainda
como uma espécie de justa: o “paciente” — é o termo pelo qual é designado o supliciado — é
submetido a uma série de provas, de severidade graduada e que ele ganha “agüentando”, ou
perde confessando (FOUCAULT, 1999, p. 59).
O aspecto político do suplício judiciário também é ressaltado pelo autor.

3. Punição

A partir da segunda metade do século XVIII, os suplícios passaram a


encontrar maior resistência no seio da sociedade, especialmente no meio mais
instruído. É possível encontrar muitos protestos contra esse tipo de espetáculo
público e punição capital. Com o desenvolvimento de uma economia do tipo
capitalista, a proteção a propriedade emerge como uma demanda. A partir de
então, os crimes contra a propriedade passam a ter uma grande relevância.
Sua incidência cresce.
O autor aborda as novas técnicas para a aplicação de penas e
manutenção dessa aplicação. Para isso, Foucault retoma o conceito do
Panopticon, que remete ao reformador social e filósofo moral Jeremy Bentham.
Os presos, nesse regime de vigilância, passam a ser observados
constantemente, sem que eles se dêem conta dessa vigilância ininterrupta.
Não basta apenas punir e privar a liberdade dos criminosos. É preciso que
esses criminosos tenham seus passos dioturnamente vistos. É necessário
vigiar, para além de punir.
Ainda na abordagem social da punição e em como as transformações
sociais influenciaram nas punições e crimes. O corpo punido passa a pertencer
a sociedade, usado para um bem social, ao invés de utilizado para o bem de
um soberano, num espírito republicano. O corpo punido deve servir para
produzir riquezas a sociedade. Esse corpo deve ser escravizado.

Considerações finais

A política, e a estrutura de poder tecida por discursos são ditames para que
exista um tipo de criminoso e uma forma de punição. Diferentemente de uma
análise naturalista, a cadeia, a privação de liberdade e a punição por crimes
não são configurados na noção simplória de punir os malfeitores, tendo em
vista que as coisas que são boas ou más dependem do tipo de sociedade e do
contexto histórico no qual vivemos. Assim como o louco não é simplesmente
aquele que não é normal ou não é são, o criminoso também não é apenas o
malfeitor. Não é o malfeitor que povoa a prisão, mas o próprio sistema prisional
que dá conta de produzir um tipo de malfeitor.
O resultado é que as prisões não servem para recuperar os criminosos,
mas arma-os de tal maneira que saem mais experientes em suas artes ilegais.
A cadeia serve como instrumento de poder, ao invés de humanizar, mesmo
que a privação de liberdade tenha substituído os cruéis suplícios.

Referências

FOUCAULT, Michel, Vigiar e Punir: O Nascimento da Prisão, 20° edição,


Petrópolis, Vozes, 1999.

BONFIGLI Flametta, Vigiar e Punir: O Nascimento da Prisão, REDES - Revista


Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, vol. 4, n° 2, 2016.

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