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VIGIAR E PUNIR DE FOCAULT

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ........................................................................................ 3

2. A VISÃO DA PENA E DAS MUDANÇAS DA PENA, CONTROLE E


VIGILÂNCIA................................................................................................................ 4

3. REFERÊNCIAS: .................................................................................... 12
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1. INTRODUÇÃO

Inicialmente, Foucault analisa a técnica punitiva típica da Era Clássica: o suplício,


em que a obtenção da verdade permitia a utilização de qualquer meio e a punição era
um espetáculo público que representava o poder do soberano. Foucault fundamenta
sua análise em um material vasto, que apesar de ser composto principalmente por
casos ocorridos na França, abarca também alguns ocorridos em outros países
europeus.
No final do Século XVII e início do Século XVIII, entretanto, o suplício começa a
entrar em decadência. Os reformadores publicamente criticam a violência dessa
punição, exigindo penas mais humanas. Por trás desse discurso está uma burguesia
em ascensão, que não está interessada em uma pena cruel, mas pouco eficaz. É
essencial para essa nova classe social uma efetiva punição e repressão dos crimes,
especialmente aqueles de natureza patrimonial.
Foucault analisa como a pena de prisão acabou se tornando a regra nos países
civilizados, apesar de seus diversos problemas e sua eficácia duvidosa. Para ele, a
prisão tem como alicerce uma técnica de poder e controle baseada na disciplina, que
é utilizada não só nas prisões, mas também nas escolas, nos hospitais, no exército e
nos conventos
Não há dúvida de que a prisão é algo em que a maioria das pessoas não gosta de
pensar. O tema é polêmico e o que Foucault demonstra aqui é que a prisão não é algo
distante de nós, como muitas vezes imaginamos, e que as mesmas técnicas utilizadas
para disciplinar os presos são aplicadas também sobre nós durante toda a nossa vida.
Foucault nos convida a buscar uma alternativa à pena de prisão, alertando que é
preciso também encontrar uma alternativa à atual técnica de controle e disciplina
social. O tema é mais atual do nunca, já que a cada dia que passa somos mais e mais
submetidos e controlados por um poder invisível, que tememos, mas que nunca
enxergamos.
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2. A VISÃO DA PENA E DAS MUDANÇAS DA PENA, CONTROLE


E VIGILÂNCIA.

Foucault inicia expondo dois documentos que explicitam dois estilos penais
diferentes. O primeiro documento é a descrição de um suplício, um espetáculo público
bastante violento. “Essa operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não
estavam afeitos à tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e
como isso não bastasse, foi necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar
os nervos e retalhar as juntas”; já o segundo documento descreve alguns artigos do
código de execução penal, com toda a sua utilização fragmentária do tempo e sua
sutileza punitiva ‘“Art. 17. – O dia dos detentos começará às seis horas da manhã no
inverno, às cinco horas no verão. O trabalho há de durar nove horas por dia em
qualquer estação. Duas horas por dia serão consagradas ao ensino. O trabalho e o
dia terminarão às nove horas no inverno, às oito horas no verão”. Entre eles há um
hiato surpreendente de apenas três décadas (do final do século XVIII e início do século
XIX). Para alguns relatos da época, o desaparecimento do suplício tem a ver com a
“tomada de consciência” dos contemporâneos em prol de uma “humanização” das
penas. Mas a mudança talvez se deva mais ao fato de que o assassino e o juiz
trocavam de papeis no momento do suplício, o que gerava revolta e fomentava a
violência social. Era como se a execução pública fosse “uma fornalha em que se
acende a violência” (p. 13). Sendo assim, necessário seria criar dispositivos de
punição através dos quais o corpo do supliciado pudesse ser escondido, excluindo-se
do castigo a encenação da dor. A guilhotina já representa um avanço neste sentido,
pois faz com que aquele que pune não encoste no corpo do que é punido. A partir da
segunda metade do séc. XIX, na mudança do suplício para a prisão, embora o corpo
ainda estivesse presente nesta última (por exemplo: redução alimentar, privação
sexual, expiação física, masmorra), é a um outro objeto principal que a punição se
dirige, não mais ao corpo, e sim à alma. “A expiação que tripudia sobre o corpo deve
suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade,
as disposições”. Mesmo que não haja grande variação acerca do que é proibido ou
permitido nesse período, o objeto do crime modificou-se sensivelmente. Não só o ato
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é julgado, mas todo um histórico do criminoso, “quais são as relações entre ele, seu
passado e seu crime, e o que esperar dele no futuro”. Assim, saberes médicos se
acumulam aos jurídicos para justificar os mecanismos de poder não sobre o ato em
si, mas sobre o indivíduo, sobre o que ele é. A justiça criminal se ampara em saberes
que não são exatamente os seus e cria uma rede microfísica para se legitimar.

Discursos oficiais da monarquia francesa que regiam as práticas penais de 1670 até
a Revolução Francesa, em 1789, ditam que a maioria das penas vinham
acompanhadas do suplício (pena corporal, dolorosa, mais ou menos atroz). O suplício
deveria marcar o condenado e por isso teriam níveis e hierarquias. A morte
(execução), por exemplo, é um suplício em que se atinge o grau máximo de sofrimento
(por esta razão chamada de “mil mortes”). Deveria ser um ritual, uma arte de fazer
sofrer. E deveria ser assistida por todos, constatada como triunfo da justiça. A
determinação do grau de punição variava não somente conforme o crime praticado,
mas também de acordo com a natureza das provas. Por mais grave que um crime
fosse, senão houvesse provas contundentes, o suplício era mais brando do que
aquele em que o crime era menos grave, mas que, por outro lado, dispunha de provas
integrais sobre o delito. O processo deveria ser feito sem o processado saber. Tal
sigilo garantia sobretudo que a multidão não tumultuasse ou aclamasse a execução.
Desta forma o rei mostrava que a “força soberana” não pertencia à multidão, tendo
em vista que o crime ataca, além da vítima, também o soberano. Quanto à
participação do povo nessas cerimônias, ela era ambígua. Muitas vezes era preciso
proteger o criminoso da ira do povo. O rei permitia um instante de violência, mas sem
excessos, principalmente para não dar a ideia de privilégio a massa. Por outro lado,
em algumas ocasiões o povo conseguiu até mudar a situação do suplício e suspender
o poder soberano; em casos semelhantes, havia revolta contra sentenças de crimes
menos graves; ou comparecia simplesmente para ouvir aquele que não tinha nada a
perder maldizer os juízes, as leis, o poder e a religião (uma espécie de carnaval de
papeis invertidos, em que os poderes eram ridicularizados e criminosos viravam
heróis).

Foucault aborda, então, a mudança da punição.

Na segunda metade do séc. XVIII, o suplício passa a ser visto pelos


reformadores com um perigo ao poder soberano, porque a tirania leva à revolta.
Entende-se a necessidade de se respeitar no assassino, o mínimo, sua “humanidade”.
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Antes de tal mudança de concepção, ocorre uma transformação na qualidade dos


crimes, que passam do sangue (agressões e homicídios) à fraude e contra a
propriedade (roubos, invasões, etc.). Isto tem a ver, obviamente, com o processo
social (econômico) que corre paralelo desde o século XVII (desenvolvimento da
produção, aumento de riquezas, valorização moral e legal das propriedades privadas,
novos métodos de vigilância, policiamento mais estreito). Então não era meramente
uma questão de respeito à “humanidade” que fez mudar os dispositivos de punição,
mas de adequação de penas aos delitos. Por exemplo, a justiça fica mais rigorosa em
alguns casos, antecipando os crimes. O objetivo da reforma não é fundar um novo
direito de punir mais equitativo, porém estabelecer uma nova distribuição para que
este não fosse descontínuo ou excessivo e flexível em alguns pontos. A reforma não
vem somente de fora, parte também de dentro do sistema judiciário, é certo que ela
vem de filósofos, mas também de magistrados. Na história da França, a reforma se
consolidou após a Revolução porque insidia diretamente sobre os pobres. Inauguram-
se aí duas objetivações, do criminoso e do crime: o criminoso como homem da
natureza que precisa de cultura, o “anormal”, o louco, o doente, o monstro; e a
organização de campo de prevenção, constituição de certeza e verdade, codificação,
definição dos papeis e as regras de procedimento.

A reforma do sistema punitivo caminha em direção à noção de que a punição


deve participar de uma mecânica perfeita em que a vantagem do crime se anule na
desvantagem da pena; desestimulando, assim, futuros contraventores e,
principalmente, eliminando a reincidência. Neste sentido, a punição não deve
aparecer mais como efeito da arbitrariedade de um poder humano, mas tão somente
consequência natural da prática criminosa. Nesse novo mecanismo, o poder que pune
se esconde; funciona como uma tentativa de diminuir o desejo que torna o crime algo
atraente. Por isso as penas não podem durar para sempre, elas precisam terminar,
mostrar sua eficácia, tornando o criminoso virtuoso. É verdade que existem os
incorrigíveis e estes devem ser eliminados, mas, para os demais, as penas só
funcionam caso terminem. Além disso, a pena serve não apenas para o criminoso,
porém para todos os outros; é importante que seu discurso de eficácia possa circular
socialmente, se legitimando. E para que o criminoso não vire um herói como outrora,
“só se propagarão os sinais-obstáculos que impedem o desejo do crime pelo receio
calculado, não mais a glória ou esperteza do contraventor. Trata-se de dispositivos
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voltados para o futuro. De agora em diante se pune para transformar um culpado, e


não para apagar o crime.

Vários seriam os dispositivos que se encarregariam da eficácia do projeto


disciplinar na sociedade moderna. Entre eles está o modelo do acampamento militar,
que é aplicado à extensão da sociedade e suas instituições para constituir um grande
observatório, garantindo uma vigilância múltipla em que as técnicas de ver objetivam,
na verdade, efeitos de poder sobre aqueles que são vistos e em que “os meios de
coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam” . Para a atuação
de tais dispositivos de poder, há toda uma modificação da arquitetura, que passa a
ser construída não mais para ser vista, mas para permitir um controle daqueles que
nela estão localizados, tornando-os visíveis. “O velho esquema simples do
encarceramento e do fechamento – do muro espesso, da porta sólida que impedem
de entrar ou de sair – começa a ser substituído pelo cálculo das aberturas, dos cheios
e dos vazios, das passagens e das transparências”. Neste cálculo de adestramento,
a distribuição de tarefas de vigilância e a fiscalização dos funcionários que cuidam da
própria instituição são partes importantes de um sistema que se auto-sustenta. Isto é,
por mais que a instituição tenha um chefe ou um diretor, é o aparelho mesmo em seu
funcionamento que faz circular o poder, incidindo de cima para baixo, mas também de
baixo para cima. Além disso, a disciplina cria um sistema de recompensas e
penalidades contínuas para individualizar e classificar as condutas. Este separa o mau
do bom, hierarquizando os indivíduos. Mas seu intuito é homogeneizar, ou seja, fazer
com que todos se pareçam, constituindo uma normalização. O funcionamento jurídico-
antropológico moderno nasce destes mecanismos da sanção normalizadora; o poder
da norma nada mais é do que produto das disciplinas que funcionam nas instituições
deste período. Também integrando o conjunto de mecanismos de adestramento, “o
exame” reúne o saber e o poder num só dispositivo de maneira bastante clara, pois
permite normatizar e constituir saber sobre o objeto. O exame possibilita descrever o
indivíduo, torná-lo visível para as ciências clínicas. “Essa nova descritibilidade é ainda
mais marcada, porquanto é estrito o enquadramento disciplinar: a criança, o doente,
o louco, o condenado se tornará, cada vez mais facilmente a partir do século XVIII e
segundo uma via que é a dos mecanismos de disciplina, objeto de descrições
individuais e de relatos biográficos. Esta transcrição por escrito das existências reais
não é mais um processo de heroificação; funciona como processo de objetivação e
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de sujeição. A vida cuidadosamente estudada dos doentes mentais ou dos


delinquentes se origina, como a crônica dos reis ou a epopeia dos grandes bandidos
populares, de uma certa função política da escrita, mas numa técnica de poder
totalmente diversa”.

O conceito de panoptismo se inicia descrevendo as prescrições para uma


cidade, do séc. XVIII, quando havia declaração de peste em seu território. Uma
quarentena se montava: indivíduos trancados em suas casas, intendentes e “síndicos”
vigiando, produção contínua de relatórios escritos e orais. Nesse sistema de exceção,
a cada habitante é dada uma função, anota-se “o nome, a idade, o sexo, sem exceção
de condição. “...tudo o que é observado durante as visitas, mortes, doenças,
reclamações, irregularidades, é anotado e transmitido aos intendentes e magistrados”
(p. 163). Se o modelo gerado pela lepra foi o do fechamento, o da peste foi o da
sociedade disciplinar. Um coletiviza e agrupa, outro individualiza e recorta. A figura
arquitetural dessa composição é o “panóptico” de Jeremy Bentham. Este consiste em
um anel na periferia, dividido em celas que, por sua vez, possuem janelas interna e
externa onde a luz entra; e uma torre no centro, para observar as “individualidades” e
fazê-las acreditarem que estão sendo observadas todo tempo. Tal mecanismo visa
assegurar um funcionamento automático do poder. É interessante ressaltar que este
laboratório de experiências com seres humanos torna o local de poder, também, uma
instância de saber. Isto se aplica a toda a sociedade. O panóptico tem como objetivo
se difundir por todo o corpo social. E há motivos contextuais para tal: multiplicidade
dos indivíduos na explosão demográfica, crescimento do aparelho de produção,
resposta ao sistema representativo (um “lócus” em meio à despersonalização do
poder), formação do saber e majoração do poder em processo circular do séc. XVIII
(por exemplo: hospital, escola, oficina deram possibilidade do surgimento da medicina
clínica, psiquiatria, psicologia da criança, psicopedagogia, racionalização do trabalho,
etc.).

Foucault, mostra que antes da prisão ser inaugurada como peça das punições,
ela já havia sido gestada na sociedade a partir do momento em que os mecanismos
de poder repartiam, fixavam, classificavam, extraíam forças, treinavam corpos,
codificavam comportamentos, mantinham sob visibilidade plena, constituíam sobre
eles um saber que se acumulava e se centralizava sobre os indivíduos. Por isso a
prisão surge como algo inevitável, por mais que existissem outros projetos de punição
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de reformadores, por mais que ela recebesse críticas sobre sua ineficácia e seu
perigo. Esta instituição penal surge para ser a coação de uma educação total, para
possuir uma disciplina onipresente a fim de transformar o indivíduo pervertido. Suas
técnicas de poder passam principalmente pelo “isolamento” (sobretudo nos modelos
americanos que eram baseados nos monastérios), logo, a “solidão”, a tentativa de
“autorregulação pela reflexão” e o “trabalho” (sendo que este último gerou
controvérsias entre os operários da época; contudo, é preciso ressaltar que o mesmo
não visava lucro e sim o efeito sobre os corpos e as almas dos presos). Neste sentido,
a pena é feita para ser regulada por ela mesma durante o processo de transformação,
não havendo uma relação necessariamente direta entre crime e castigo.

Ainda na primeira metade do século XIX, na França, a cadeia se misturava com


a prática do suplício. A cadeia era, na verdade, um carro que seguia por diversas
cidades levando o condenado atrelado a instrumentos de tortura. A multidão
participava desta “festa do suplicio”, gritando e xingando, podia ser contra o criminoso
ou contra o excesso da punição. Ao mesmo tempo em que era repudiado, o criminoso
participava também da festa, ganhava ares de notoriedade, uma vez que os jornais
contavam seu nome e sua história antes dele chegar à cidade. Essa festa reservava
prazeres que nem a liberdade concedia, por exemplo, cânticos coletivos de uma
estranha inversão do código moral (exaltação do criminoso, rebaixamento dos
poderes constituídos). Devido a tal fato, o carro-cadeia foi substituído pela carroça,
que imitava um panóptico ambulante. Foucault ressalta que a prisão já apareceu
cercada por críticas e desconfianças: ela não diminuía a taxa de criminalidade, mas
aumentava; provocava reincidência; fabricava delinquentes, sobretudo por não tratá-
los como seres humanos e abusar do poder, assim, tornando-os coléricos; havia
corrupção, medo e incapacidade dos guardas, especialmente para manterem sua
segurança; exploração do trabalho penal, como venda de prisioneiros como escravos;
organização do crime, solidariedade e hierarquia entre os criminosos; as condições
de identificação e a vigilância dos ex-detentos os levavam a praticar novos crimes. Até
hoje as críticas são as mesmas: a prisão ao tentar corrigir não pune; a prisão gasta
muito para fazer um trabalho ineficaz. E a resposta é a mesma também: deve-se fazer
exatamente o que está no roteiro para que a instituição seja eficaz: principio da
correção; da classificação; da modulação das penas; do trabalho como obrigação e
como direito; da educação penitenciária; do controle técnico da detenção; das
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instituições anexas. “O sistema carcerário junta numa mesma figura discursos e


arquitetos, regulamentos coercitivos e proposições científicas, efeitos sociais reais e
utopias invencíveis, programas para corrigir a delinquência e mecanismos que
solidificam a delinquência. O pretenso fracasso não faria então parte do
funcionamento da prisão?”, questiona o autor. Tentando perceber algo que não é
explicitamente dito, Foucault afirma que há uma utilidade nos fenômenos que a crítica
à prisão denuncia (isto é, na manutenção da delinquência, indução a reincidência,
transformação do infrator ocasional em delinquente): é que os castigos não objetivam
suprimir as infrações, mas distingui-las, distribuí-las, utilizá-las; trata-se de uma tática
geral das sujeições, visando uma dominação, uma administração das infrações e não
exatamente um aparelho para tornar dóceis os que praticam os crimes. Tendo em
vista o tratamento diferenciado (tolerância ou intolerância) aos delitos praticados por
um indivíduo se pertencente a uma classe ou não, ou se possuidor de um determinado
tipo de histórico que justificaria sua natureza ou não, para Foucault não há uma
separação entre ilegalidades e legalismo, mas entre ilegalidade e delinquência. O
maior objetivo da prisão foi ter fabricado a delinquência, fazendo-a legítima, aceita,
por isso até hoje a prisão perdura. Concomitantemente, os jornais, os noticiários e a
literatura constituíam a estética do crime que ajudava a legitimar a “produção da
delinquência”. Mas, por outro lado, existia também um contra-noticiário que jogava
com os fatos dos crimes, mostrando a devassidão e a miséria espiritual em que viviam
os burgueses, colocando culpa na sociedade pelos desfalecidos e criminosos das
classes populares. Um exemplo é o jornal La Phalange, que Foucault redescreve o
diálogo entre um infrator de 13 anos e o juiz. Ali o autor quer mostrar as lutas sendo
praticadas na sociedade. De alguma forma, se o juiz fosse o indivíduo das classes
populares estaria ele sofrendo os efeitos do poder da classe dominante e o garoto
“infrator” ocupando seu lugar.

Foucault data a formação completa do sistema carcerário francês em 1840, ano


de inauguração de Mettray (instituição para detenção de jovens infratores
condenados) ou no dia em que um menino infrator lamentou sua saída da mencionada
colônia penal (talvez dando a prova da eficácia do sistema disciplinar que lá
funcionava). “’A mínima desobediência é castigada e o melhor meio de evitar delitos
graves é punir muito severamente as mais leves faltas; em Mettray reprime-se
qualquer palavra inútil’; a principal das punições infligidas é o encarceramento em
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cela; pois ‘o isolamento é o melhor meio de agir sobre o moral das crianças; é aí
principalmente que a voz da religião, mesmo se nunca houvesse falado a seu coração,
recebe toda a sua força e emoção’; toda a instituição para penal, que é feita para não
ser prisão, culmina na cela em cujos muros está escrito em letras negras: ‘Deus o vê’”.
Este é o princípio essencial do panóptico, sentir-se vigiado mesmo quando ninguém
está vendo, coagido a fazer o correto e seguir a norma. Em Mettray, os chefes e
subchefes não agem como pais, juízes, professores, contramestres, mas são um
pouco de cada um. Na expressão do autor, são ortopedistas da individualidade.
Interessante notar que para trabalharem no local, os chefes e subchefes precisam
dominar uma técnica disciplinar que eles apreendem quando são submetidos a um
treinamento que consiste em fazê-los sofrer coisa semelhante aos infratores. Por fim,
os chamados efeitos do carcerário são os seguintes: espraiamento de poderes
disciplinares no corpo social; recrutamento dos grandes delinquentes e a produção
destes; criação da legitimidade de punir e disciplinar; invenção de uma relação íntima
entre natureza e lei, a norma; criação de um saber que objetiva o comportamento
humano, através da observação contínua via panóptico (e de sua relação com as
ciências humanas); isso explica sua continuidade sólida diante do pretenso fracasso
da prisão. Contudo, e apesar de toda esta maquinaria descrita, Foucault encerra o
livro com um texto anônimo publicado no jornal La Phalange, de 1836, para mostrar
que estes mecanismos apresentados em “Vigiar e Punir” não são o funcionamento
unitário de um aparelho (finalizado e vencedor), mas são estratégias postas em uma
batalha que até hoje não cessou.
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3. REFERÊNCIA

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel


Ramalhete. 42ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. Do original em francês: Surveiller et
punir.

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