Você está na página 1de 27

1

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

JÉSSICA CAROLINA DINIZ

A IMPOSSIBILIDADE E A FALTA DE NECESSIDADE EM APLICAR A JUSTIÇA


RESTAURATIVA NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A
MULHER.

MARINGÁ
2019
2

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

JÉSSICA CAROLINA DINIZ

A IMPOSSIBILIDADE E A FALTA DE NECESSIDADE EM APLICAR A JUSTIÇA


RESTAURATIVA NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A
MULHER.

Artigo apresentado à UNIFAMMA – Centro Universitário


Metropolitano de Maringá, como parte dos requisitos para
aprovação no curso de Graduação. Área de Concentração:
Direito.
Orientador: Prof. Esp.: Carlos Eduardo Pires Gonçalves

MARINGÁ
2019
3

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

JÉSSICA CAROLINA DINIZ

A IMPOSSIBILIDADE E A FALTA DE NECESSIDADE EM APLICAR A JUSTIÇA


RESTAURATIVA NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A
MULHER.

Artigo apresentado à UNIFAMMA – Centro Universitário


Metropolitano de Maringá, como parte dos requisitos para
aprovação no curso de Graduação. Área de Concentração:
Direito.
Orientador: Prof. Esp.: Carlos Eduardo Pires Gonçalves

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________

Professor Orientador: Esp. Carlos Eduardo Pires Gonçalves

_____________________________________

Professor: Dr.

___________________________________

Professor: Me.

Data de Aprovação:_____ de ________ de______.


4

Dedico este trabalho àqueles que dão sentido a tudo em


minha vida, que tornam meus dias mais felizes, aos meus
amores Rhoelder e Manuela.
5

AGRADECIMENTOS

Primeiramente agradeço a Deus pelo dom da vida, por me proporcionar a realização


do sonho da graduação em Direito e por me rodear de pessoas maravilhosas, as quais foram
imprescindíveis para a realização desse sonho.
Gratidão ao meu esposo Rhoelder Pronsati, pelo amor demonstrado através de carinho
e cuidado para comigo e com a nossa filha, por me apoiar e por não me deixar desistir todas
as inúmeras vezes que esta possibilidade foi considerada por mim. Obrigada meu amor!
A minha filha Manuela Diniz Pronsati, por quem eu chorei diversas vezes de saudade
na faculdade. Ela quem me faz buscar sempre a minha melhor versão, a quem carrego no
peito um amor incondicional, a ela dedico a realização do meu sonho e agradeço
profundamente seu olhar ao fingir estar entendendo o motivo de eu ter que me ausentar todas
as noites.
Aos meus familiares e amigos que incontáveis vezes pronunciaram palavras de ânimo,
para me auxiliar nesta jornada.
Meu eterno agradecimento e admiração aos mestres, que me transmitiram tanto
conhecimento nestes longos anos, professores que ensinaram o Direito, mas também, com
imensa humildade e humanidade ensinaram lições para a vida.
Por fim, agradeço por ter compreendido a importância da educação desde cedo através
do meu pai Serafim Diniz Neto (in memoriam), que hoje não está entre nós, mas seus
ensinamentos ainda permanecem bem vivos em minha vida.
6

RESUMO

O presente artigo fará uma análise da aplicação da Justiça Restaurativa em casos de


violência doméstica, apurando se ela é mesmo efetiva quando aplicada nestes casos. Devido
ao incentivo do CNJ à aplicação da Justiça Restaurativa pelos Tribunais e Varas em casos de
violência doméstica contra a mulher, tornou-se a discussão do tema de grande relevância, pois
traz questionamentos quanto a não necessidade e não possibilidade de aplicação de
mecanismos restaurativos, tendo em vista a própria natureza restaurativa da Lei Maria da
Penha e a vedação que a mesma impõe a aplicação de outras normas com institutos
restauradores, resguardando, ao mesmo tempo, uma dasfinalidades da Lei, qual seja uma
punição mais atenuante ao agressor.
Palavras-chave: Justiça Restaurativa. Violência Doméstica. Lei Maria da Penha.
7

ABSTRACT

This article will analyze the application of Restorative Justice in cases of domestic violence,
determining if it is really effective when applied in these cases. Due to the encouragement of
the CNJ to the application of Restorative Justice by the Courts in cases of domestic violence
against women, it has become a discussion of the topic of great relevance, as it raises
questions about the need and non-possibility of applying restorative mechanisms, In view of
the very restorative nature of the Maria da Penha Law and the prohibition that it imposes the
application of other norms with restorative institutes, while safeguarding one of the purposes
of the Law, which is a more attenuating punishment of the aggressor.
Keywords: Restorative Justice. Domestic violence. Maria da Penha Law.
8

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9

1 - A JUSTIÇA RESTAURATIVA ....................................................................................... 10

2 - A LEI MARIA DA PENHA ............................................................................................. 13

3 - A APLICAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA EM CASOS DE VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA ......................................................................................................................... 21

3.1 - A IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA EM


CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ............................................................................ 22

3.2 - A DESNECESSIDADE DE APLICAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA EM


CASOS QUE ENVOLVAM A LEI MARIA DA PENHA. ................................................. 23

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 25

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 27
9

INTRODUÇÃO

A violência contra a mulher é um problema que a sociedade ainda enfrenta como fruto
do machismo e de uma sociedade que há muito teve a imagem do homem associada como o
único provedor e mantenedor, e em contrapartida a imagem da mulher única e exclusivamente
relacionada à maternidade e cuidados com o lar. Este comportamento social, por muito tempo
considerado comum, concedeu à imagem masculina uma característica de domínio e controle
sobre as vontades e ações da mulher, ocorrendo, por conseguinte, toda espécie de violência
contra ela por parte do próprio companheiro.
Com o passar dos anos ainda se pode notar resquícios da sociedade patriarcal e
machista nos lares, através da ocorrência de violências diversas contra as mulheres. Um ciclo
de violência, muitas vezes difícil de ser quebrado, principalmente pela condição de
vulnerabilidade da vítima.
Após anos de sofrimento e silêncio, uma luz surge no fim do túnel com o advento da
Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) que trouxe mecanismos para coibir, prevenir, punir
e erradicar a violência doméstica contra a mulher. Através dela as mulheres que viviam numa
realidade de violência doméstica puderam reconhecer que eram vítimas de violência, e muitas
delas num ato de coragem denunciaram seus agressores, pois apesar de uma Lei pioneira, com
muito ainda o que ser discutido e colocado em prática, muitas mulheres enxergaram
esperança, na possibilidade de reconstruírem suas vidas longe de qualquer violência, a partir
do momento em que vigorou Lei Maria da Penha.
Em 2017, diante da recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aos
tribunais e varas, para aplicar nos casos de violência doméstica, os mecanismos da Justiça
Restaurativa, que é um meio consensual de resolução de conflito, cujo objetivo primordial é
fazer com que o acusado reconheça seu erro e busque de alguma forma repará-lo. Portanto em
casos de violência contra a mulher o judiciário em determinado momento, após explicar à
vítima sobre Justiça Restaurativa, propõe a ela colocar em prática os mecanismos de
mediação a fim de ela juntamente com o agressor e a comunidade, encontrem uma solução ao
conflito visando reparar o dano e responsabilizar o agressor.
Porém a aplicação da Justiça Restaurativa em casos de violência doméstica contra a
mulher, não é viável, tendo em vista o próprio teor da Lei Maria da Penha e ainda os riscos à
revitimizar a mulher que sofreu violência.
A partir destas premissas, o presente trabalho objetiva uma análise ao tema a fim de
demonstrar a impossibilidade e desnecessidade de aplicação da Justiça Restaurativa em casos
10

de violência doméstica contra a mulher, além de demonstrar os possíveis riscos à


revitimização.
Preliminarmente foi apresentado a Justiça Restaurativa, sua história, seu objetivo
central, bem como sua aplicabilidade.
No segundo capítulo, foi exposto o histórico da Lei Maria da Penha, sua abrangência e
aplicabilidade, bem como sua função e seus desdobramentos.
Por fim, analisou-se ainda, a aplicação da Justiça Restaurativa nos casos que se
enquadram a Lei Maria da Penha, objetivando demonstrar a impossibilidade, desnecessidade e
riscos ao aplicar métodos restaurativos nos casos de violência doméstica, devido ao próprio
teor e objetivo da Lei Maria da Penha que dispõe sobre a atuação do Estado e da sociedade
para aplicação das políticas públicas de assistência a vítima e agressor, bem como à
comunidade, as quais efetivamente aplicadas já seriam suficientes para diminuição dos
numerosos casos de violência doméstica contra a mulher, bem como prevenir novos casos e
erradicar toda e qualquer discriminação de gênero.
Empregou-se no presente estudo o método teórico bibliográfico consistente na análise
de obras e artigos científicos que visam sobre o tema.

1 A JUSTIÇA RESTAURATIVA

As práticas da justiça restaurativa iniciaram na década de 1970, tornando-se um


movimento social na década de 90 do século XX, apesar de alguns estudiosos do tema
afirmarem, que a técnica é milenar e antes da estatização e centralização da justiça penal ela
era o meio de justiça dominante.
No momento de seu surgimento, na década de 1970, a Justiça Restaurativa surge
constituída de práticas ou programas alternativos desenvolvidos em diversos locais, dentre
eles Canadá, Nova Zelândia e em alguns Estados americanos.
Diversos autores que contribuíram para a disseminação das fundamentações e noções
da justiça restaurativa podem ser citados, dentre estes autores estão Howard Zehr, Mark
Umbreit, além da atuação de profissionais dos sistemas judiciais que também contribuíram
para o início da aplicação das práticas restaurativas.
No ano de 1990 a justiça restaurativa emerge na justiça criminal, tornando-se um
movimento social que mudou o modo de perceber e de responder ao crime, trazendo um
enorme impacto tanto nas práticas jurídicas de diversos países, quanto no âmbito acadêmico.
11

Conceituar a justiça restaurativa é algo muito complexo devido ao fato de que ela não
possui procedimentos e métodos específicos e obrigatórios, é totalmente informal, sendo
possível a aplicação de diferentes práticas, de acordo com a necessidade de cada comunidade.
Apesar da difícil definição da justiça restaurativa é possível identificar sua
essencialidade, qual seja a afastabilidade do Estado em punir o agente, bem como
apacificação dos envolvidos no conflito, através da reparação dos danos causados à vítima
constituída na responsabilidade do ofensor.
A respeito da aplicação das práticas da justiça restaurativa na atualidade, o autor
Carlos Eduardo Vasconcelos, em sua obra “Mediação de Conflitos e Práticas e Restaurativas”
explica:
A justiça restaurativa tem, atualmente, como paradigmas preponderante, a) o
protagonismo voluntário da vítima, do ofensor e de pessoas da comunidade
diretamente afetada, com a colaboração de mediadores (facilitadores); b) a
autonomia responsável e não hierarquizada dos participantes; e c) a
complementaridade crítica em relação às práticas do direito retributivo oficial,
contribuindo, assim, para a concretização dos princípios fundamentais do Estado
Democrático de Direito. (2008, p.261)

As práticas da Justiça Restaurativa são iniciadas pela triagem que consiste na pré-
mediação ou no pré-círculo os quais têm como objetivo ouvir as partes, explicar o que é e
como funciona o andamento das práticas restaurativas, preparando cautelosamente o encontro
e reforçando o papel das partes, bem como a obrigação de uma comunicação construtiva (não
violenta) entre elas.
Alguns critérios devem ser obedecidos nas triagens, neste sentido pontua Carlos
Eduardo Vasconcelos:

São indicados como critérios a serem avaliados nas triagens (pré-círculo ou pré-
mediação), a) a gravidade ou implicação comunitária do ato infracional; b) o indício
de que o autor do fato estaria disposto a assumir essa condição de autor; c) a
inexistência de antecedentes; d) a sanidade mental de vítima e ofensor; e) a livre
manifestação de vontade dos candidatos; f) a apreciação individualizada da
experiência de sofrimento manifestada por vítima(s) e ofensor(es). (2008, p.261)

Há diversas práticas usadas na justiça restaurativa, dentre elas destaca-se a mediação


vítima-ofensor, os círculos de diálogo não decisórios e também diversos modelos de círculos
restaurativos, decisórios ou não, sendo que quando são decisórios necessariamente são
precedidos da triagem (pré-mediação ou pré-círculo).
Os encontros restaurativos na esfera criminal ocorrem por meio da prática de
mediação vítima-ofensor ou círculos de diálogo, tendo em vista que a ofensa pode ter sido
física, moral, patrimonial ou psicológica.
12

A mediação vítima-ofensor consiste basicamente em colocar vítima e ofensor em um


mesmo ambiente onde há segurança jurídica e física, onde ambos participarão conjuntamente,
inclusive com a possibilidade da presença de integrantes das famílias, além de representantes
da comunidade a qual tenha sido atingida pelo fato danoso, com o auxílio de um facilitador.
Os facilitadores restaurativos são profissionais que coordenam as práticas
restaurativas, os quais possuem capacitação em técnicas autocompositivas e consensuais de
solução de conflitos, próprias da Justiça Restaurativa. São profissionais de todas as áreas, não
necessariamente relacionados a área jurídica, podendo ser voluntários ou indicados por
entidades parceiras, além de Servidores do Tribunal e agentes públicos. O facilitador é,
portanto, um terceiro imparcial, que busca facilitar o diálogo entre as partes, para que as
mesmas, em conjunto, encontrem uma solução para o conflito. Tal solução busca sempre
reparar o dano causado, tanto diretamente à vítima, quanto à comunidade.
Os objetivos da prática da Justiça Restaurativa é satisfazer as necessidades de todos os
envolvidos, através de intervenções de terceiros, com a utilização de métodos restaurativos,
responsabilizando a todos que de alguma forma contribuíram para o fato danoso,
empoderando a comunidade, e por fim reparando o dano causado à vítima e ainda
recuperando a sociedade a qual foi dilacerada por causa do conflito.
Após a resolução do conflito entre as partes através da aplicação da justiça
restaurativa, surge então os chamados resultados restaurativos, que são os acordos advindos
do processo restaurativo. Nos resultados restaurativos constam a forma de reparação do dano
tanto à vítima, quanto à comunidade, e como exemplo pode ser citado a restituição de um bem
e a prestação de serviços à comunidade.
A Justiça Restaurativa tem como finalidade institucional ser instrumento de
aperfeiçoamento da Justiça formal e busca, sobretudo, a restauração dos relacionamentos
existentes antes do conflito, com o protagonismo dos envolvidos.
No Brasil, ainda em fase inaugural, a justiça restaurativa tem como referência os
programas restaurativos aplicados em Porto Alegre/RS, São Caetano do Sul/SP e Brasília/DF.
Conforme o protocolo de cooperação dos Tribunais de Justiça do Brasil, através da
Resolução 225 do CNJ, pode ser definida da seguinte maneira a justiça restaurativa:

A Justiça Restaurativa constitui-se como um conjunto ordenado e sistêmico de


princípios, métodos, técnicas e atividades próprias que visam a conscientização
sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e
violência. (BRASIL. 2019)
13

A Resolução 225 do CNJ tornou a Justiça Restaurativa mais abrangente, podendo ser
utilizada no âmbito do Juizado Criminal e atualmente, e até mesmo em casos de violência
doméstica, alegando o CNJ que a utilização da mesma não exclui o sistema criminal, ou seja,
não pode ser excludente de pena ao agressor.
Como na prática da Justiça Restaurativa não há a figura do juiz, mas sim do facilitador
é comum ver a atuação dos facilitadores nos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e
Cidadania (CEJUSC) e nos Núcleos Especiais Criminais (NECRIM). Ao CEJUSC compete
solucionar conflitos no âmbito cível, enquanto que ao NECRIM atua no âmbito penal,
buscando solucionar os crimes de menor potencial ofensivo, consistentes nas ações penais
privadas ou nas ações penais públicas condicionadas a representação.
De acordo com o Conselho Nacional de Justiça, a Justiça Restaurativa pode ser
aplicada em qualquer fase do processo, até mesmo durante o tempo da sentença e ainda pode
ser uma alternativa à prisão ou fazer parte da pena.
Importante salientar, entretanto, que apesar de buscarem modelos e exemplos de
países que já utilizam de práticas restaurativas no âmbito penal há algum tempo, é necessário
analisar com cautela a realidade do Brasil, pois não há que se esperar resultados iguais ao de
outros países, tendo em vista sociedades com realidades tão distintas, nesse sentido o ilustre
doutrinador Guilherme de Souza Nucci, em sua obra “Manual de Direito Penal, 15ª edição”
pondera:

A Justiça Restaurativa pode ser um ideal válido para a Política Criminal brasileira
nos campos penal e processual penal, mas, insistimos, sem fantasias e utopias e
abstendo-se o jurista (bem como o legislador que o segue) de importar mecanismos
usados em países com realidades completamente diferentes da existente no Brasil.
(NUCCI. 2019, p.359)

Sendo assim, apesar de serem recomendadas pelo Conselho Nacional de Justiça, as


práticas restaurativas no âmbito penal merecem cautela em suas aplicações, considerando a
realidade da nossa sociedade, bem como o bem tutelado em cada caso.

2 A LEI MARIA DA PENHA

A Lei Maria da Penha leva o nome da mulher que por anos lutou e esperou pela
condenação do seu agressor, o próprio marido.
14

Maria da Penha Maia Fernandes é biofarmacêutica, e foi casada com o professor


universitário Marco Antonio Herredia Viveros.
Em 1989 Maria da Penha após seis anos de violência sofreu a primeira tentativa de
assassinato pelo marido, quando este atirou em suas costas enquanto ela ainda dormia, o que
resultou em sua paraplegia.
Na ocasião, Vivero alegou terem sido atacados por assaltantes, e que na luta corporal
Maria da Penha havia levado um tiro com uma arma do próprio Vivero.
Após alguns meses Vivero tentou novamente contra a vida de Maria da Penha ao
empurrá-la da cadeira de rodas, tentando eletrocutá-la no chuveiro.
A investigação deu início em junho de 1983, mas somente em setembro do ano
seguinte que a denúncia foi apresentada ao Ministério Público do Estado do Ceará, e o
primeiro julgamento ocorreu somente oito anos mais tarde.
Apesar de em 1991 os advogados de Vivero terem conseguido anular o julgamento,
em 1996 ele foi julgado e condenado a 10 anos de reclusão, mas recorreu.
Mesmo com uma luta intensa em busca de justiça e também com inúmeras pressões
internacionais o processo seguiu em lentidão, e em 15 anos a contar do primeiro crime, ainda
não havia nenhuma decisão da Justiça Brasileira.
Com o auxílio de ONGs Maria da Penha conseguiu levar seu caso à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, que ineditamente acatou uma denúncia de violência
doméstica.
Em 2002, após 19 anos dos crimes cometidos, Vivero foi preso para cumprir dois anos
de prisão, pois os crimes já estavam quase prescritos.
No relatório final a Comissão Internacional de Direitos Humanos da OEA
(Organização dos Estados Americanos) mencionou o compromisso assumido pelo Brasil,
através da ratificação dos Tratados Internacionais assinados em 1984 e 1994 (Convenção
Cedow: Convenção da Organização das Nações Unidas Sobre a Eliminação de Todas as
Formas de discriminação contra a mulher; e Convenção de Belém do Pará: Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher). E ainda
recomendou várias ações com a finalidade de proteger os direitos humanos das mulheres com
finalidades específicas de prevenir, punir e erradicar a discriminação e a violência contra a
mulher.
Após isso, comissões foram formadas com pessoas que contribuíram para a criação do
Projeto de Lei 4.599/04, que apresentava mecanismos de defesa à vítima por parte do Estado,
e ainda uma punição mais severa aos que fossem condenados por violência contra a mulher.
15

O Projeto foi aprovado por unanimidade no Congresso Nacional e em 07 de agosto de


2006 e foi sancionado como Lei Federal n° 11.340, batizada de Lei Maria da Penha, e
finalmente a violência contra a mulher ganhava um novo olhar, agora por um prisma jurídico.
A Lei 11.340/06 traz em seus dispositivos mecanismos que buscam coibir e prevenir a
violência doméstica contra a mulher, conforme dispõe o artigo 1° da Lei:

Art. 1º Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e
familiar contra a mulher, nos termos do § 8° do art. 226 da Constituição Federal, da
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher,
da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do
Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em
situação de violência doméstica e familiar.

Ao explicar violência de gênero Alice Bianchini expõe em sua obra “Coleção Saberes
Monográficos - Lei Maria da Penha”:

Importantes características da violência de gênero: decorre de uma relação de poder


de dominação do homem e de submissão da mulher; esta relação de poder advém
dos papéis impostos às mulheres e aos homens, reforçados pela ideologia patriarcal,
os quais induzem relações violentas entre os sexos, já que calcados em uma
hierarquia de poder; a violência de gênero é uma espécie de violência contra a
mulher que, por sua vez, é uma espécie de violência doméstica. (BIANCHINI. 2018,
p.276)

E ainda em seus artigos 2° a 4° a Lei Maria da Penha, reforça os direitos humanos e


garantias fundamentais que todas as mulheres possuem e que serão assegurados pela família,
sociedade e Poder Público.
A Lei também explica no artigo 5° o que caracteriza violência doméstica contra a
mulher, e nos incisos do referido artigo que contextos ela se aplica:

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a
mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão,
sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio
permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente
agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos
que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou
por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha
convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de
orientação sexual. (BRASIL. 2006)
16

Sendo assim, importante destacar que toda violência doméstica é baseada no gênero, e
isso tem a ver com os papéis desempenhados pelo homem e pela mulher na sociedade e como
estes papéis são interpretados. Na maioria dos casos os papéis desempenhados pelas mulheres
se mostram inferiorizados pelos homens, os quais julgam ter papéis mais importantes e isso
faz com que eles acreditem que tenham um domínio sobre a relação e sobre a mulher. Neste
sentido pontua Alice Bianchini em sua obra “Coleção Saberes Monográficos - Lei Maria da
Penha”:

Os papéis sociais atribuídos a homens e a mulheres são acompanhados de códigos


de conduta introjetados pela educação diferenciada que atribui o controle das
circunstâncias ao homem, o qual as administra com a participação das mulheres, o
que tem significado ditar-lhes rituais de entrega, contenção de vontades, recato
sexual, vida voltada a questões meramente domésticas, priorização da maternidade.
Resta tão desproporcional o equilíbrio de poder entre os sexos, que sobra uma
aparência de que não há interdependência, mas hierarquia autoritária. Tal quadro
cria condições para que o homem sinta-se (e reste) legitimado a fazer uso da
violência e permite compreender o que leva a mulher vítima da agressão a ficar
muitas vezes inerte e, mesmo quando toma algum tipo de atitude, a acabar por se
reconciliar com o companheiro agressor, após reiterados episódios de violência.
Pesquisa da Fundação Perseu Abramo conclui que é comum as mulheres sofrerem
agressões físicas, por parte do companheiro, por mais de dez anos. Diversos estudos
demonstram que tal submissão decorre de condições concretas (físicas, psicológicas,
sociais e econômicas) a que a mulher encontra-se submetida/enredada, exatamente
por conta do papel que lhe é atribuído socialmente. (BIANCHINI. 2015, p.33)

O parágrafo único do art.5º ressalta que as relações elencadas no artigo independem de


orientação sexual, ou seja, a Lei Maria da Penha aplica-se também a vítimas homossexuais e
transexuais.
Outro ponto importante para destacar, é a respeito dos contextos da violência de
gênero, os quais são: doméstico, familiar ou uma relação íntima de afeto (Art.5º, incisos I, II e
III da Lei 11.340/2006). Então de acordo com a Lei o espaço doméstico é o lugar de convívio
permanente entre pessoas, que podem ser da mesma família ou não, abarcando inclusive
pessoas que esporadicamente agregam-se ao ambiente doméstico, como por exemplo, uma
empregada doméstica, babá, etc. No âmbito familiar consiste na violência de gênero causada
por um ou mais membros da família, assim considerados os parentes.
Além disso, o art. 7º da Lei Maria da Penha traz em seu teor um rol de espécies de
violência doméstica contra a mulher, sendo elas física, psicológica, sexual, patrimonial e
moral (incisos I a V). Tal rol não é taxativo, tendo em vista que no caput do artigo traz a
menção “entre outros”, ou seja, as espécies de violência doméstica contra a mulher,
destacadas nos incisos do Art. 7º são exemplificativa, podendo incluir outras formas de
violência que não estejam mencionadas no referido artigo, porém só serão enquadradas à Lei
17

Maria da Penha quando praticadas baseada no gênero e ocorrida no âmbito doméstico,


familiar ou de relação íntima de afeto.
A violência física consiste no tipo de violência de maior incidência nos casos de
violência doméstica. Consiste em toda ofensa à integridade física e corporal, praticada com o
emprego de força, como por exemplo, socos, ponta pés, etc.
A violência psicológica é uma das causas mais recorrentes, no entanto as vítimas
geralmente não reconhecem como sendo algo ilícito ou injusto. No inciso II do art.7° da Lei
Maria da Penha é possível notar sete condutas que podem causar violência psicológica na
mulher, são elas: conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima, conduta que
prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento, conduta que vise degradar as ações da
mulher, conduta que vise controlar as ações da mulher, conduta que vise controlar seus
comportamentos, conduta que vise controlar suas crenças, conduta que vise controlar suas
decisões. Estas condutas precisam ser praticadas por alguns dos seguintes meios: ameaça,
constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição
contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração, limitação do direito de ir e vir, ou
qualquer outro meio que cause à mulher prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.
A violência sexual nos casos de violência baseada no gênero, por sua vez, tratada no
inciso III do art.7° da Lei 11.340/2006, traz um rol também não taxativo, que considera
violência sexual qualquer conduta que por meio de intimidação; ameaça; coação; ou ainda
com o uso da força constranja a mulher a presenciar, manter ou participar de relação sexual
indesejada, e também a conduta que mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação
que induza a mulher a comercializar ou utilizar de qualquer modo a sua sexualidade, impeça
de usar qualquer método contraceptivo, a force ao matrimônio, gravidez, aborto ou
prostituição, e ainda, é considerado violência sexual qualquer conduta que limite ou anule os
direitos sexuais (livre exploração da orientação sexual) e reprodutivos (livre escolha do
número de filhos que deseja ter) da mulher.
A violência patrimonial que além de disposta no inciso IV do art.7° da Lei Maria da
Penha, também está disposta no art. 5° da Convenção de Belém do Pará e consiste na conduta
de reter, subtrair ou destruir total ou parcialmente os bens (objetos, instrumentos de trabalho,
documentos pessoais, bens, valores, direitos, recursos econômicos, incluindo os destinados a
satisfazer as necessidades) da mulher. A violência patrimonial é de suma importância no rol
de espécies de violência, pois através dela muitas vezes o homem acredita ter as rédeas da
situação e faz com que a mulher seja totalmente dependente dele economicamente, neste
18

sentido Alice Bianchini em sua obra “Coleção Saberes Monográficos - Lei Maria da Penha”
expõe:

É de suma importância tal preocupação, posto que a ausência de autonomia


econômica e financeira da mulher contribui para sua subordinação e/ou submissão,
ao enfraquecê-la, colocando-a “em situação de vulnerabilidade, atingindo
diretamente a segurança e dignidade, pela redução ou impedimento da capacidade de
tomar decisões independentes e livres, podendo ainda alimentar outras formas de
dependência como a psicológica” (FEIX, 2011: 208). (BIANCHINI. 2015, p.54)

A violência moral disposta no inciso V do art.7° da Lei 11.340/2006 compreende toda


a conduta de calúnia (imputar falsamente fato criminoso), difamação (imputar prática de fato
desonroso que atinge a reputação da vítima) e injúria (atribuição de qualidades negativas à
vítima) contra a mulher.
Portanto, a violência doméstica é toda ação ou omissão, baseada no gênero, ocorrida
no âmbito doméstico, familiar, ou de uma relação íntima de afeto, e que cause à mulher
morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.
Apesar da Lei Maria da Penha se destinar principalmente a mulheres, independente de
sua orientação sexual, em situação de violência doméstica familiar, ela também é direcionada
para fins assistenciais e/ou protetivos a outras pessoas envolvidas no âmbito de violência,
como por exemplo, os familiares da vítima e o próprio agressor.
A Lei 11.340/2006 traz no artigo 19, §3º, a possibilidade de o juiz conceder aos
familiares medidas protetivas ou rever as já concedidas, mediante oitiva do Ministério
Público. No art. 22, III, alíneas a e b, expõe a extensão da medida protetiva concedida,
proibindo o agressor de se aproximar inclusive dos familiares da vítima. E o art. 30 atribui à
equipe de atendimento multidisciplinar o desenvolvimento de trabalhos de orientação,
encaminhamento, prevenção e outras medidas direcionadas aos familiares da vítima, em
especial crianças e adolescente. Portanto a Lei Maria da Penha reconhece o quanto os
familiares da vítima são afetados pelo histórico de violência, e traz mecanismos sociais e
protetivos à estas pessoas.
Neste mesmo sentido a Lei também traz dispositivos que regulam a interação social e
preventiva do agressor. A Lei Maria da Penha dispõe sobre a criação dos centros de educação
e reabilitação dos agressores, o que ainda são poucos no país. A questão é que tal medida não
pode ser imposta pelo judiciário apenas para privar o agressor de uma consequência mais
gravosa, como a pena privativa de liberdade, é necessário, portanto, que o agressor reconheça
que é violento, tenha o desejo de mudança e se comprometa a participar das atividades dos
19

centros de educação e reabilitação, pois se assim não for, o resultado não será o esperado, ou
seja, a desconstrução do perfil violento não será efetivo, é a ideia que Alice Bianchini em sua
obra “Coleção Saberes Monográficos - Lei Maria da Penha”, explora:

O tratamento, se imposto por um juiz ou aceito pelo agressor apenas para evitar um
mal maior, qual seja, a prisão, não é o ideal. Os agressores podem se comportar
nesses centros da maneira como eles imaginam que os outros esperam que eles se
comportem e dizer coisas que imaginam que os outros esperam que eles digam. Se o
comprometimento obtido dos agressores para com a reflexão, em contrapartida, for
real, e a assunção de responsabilidades subsistir à assunção de culpa, os resultados
podem ser bastante satisfatórios. (BIANCHINI. 2015, p.70)

A Lei Maria da Penha também alterou alguns pontos do Código de Processo Penal e
do Código Penal, pois por se tratar a violência doméstica contra a mulher de um crime
bárbaro e até mesmo considerá-la uma violação dos direitos humanos, a Lei trouxe
mecanismos que além de coibir e prevenir, protegem a vítima, prova disto é o processo penal
diferenciado.
O rito processual nos casos de violência doméstica contra a mulher possui pela Lei
uma forma mais simplificada que torna o processo mais célere, garantindo de fato a proteção
da mulher.
A aplicação do Código de Processo Penal em casos de violência doméstica é
subsidiária, de acordo com o art.13 da Lei 11.340/2006.
Medidas Protetivas de Urgência são autorizadas pelo juiz em casos de violência
doméstica contra a mulher. São exemplos de medidas protetivas afastamento do lar ou do
local de convivência entre o agressor e a vítima, proibição de aproximar-se o agressor da
vítima, e há também a suspensão de visitas aos filhos, bem como a prestação de alimentos
provisórios à prole.
As Medidas Protetivas podem ser aplicadas de imediato pelos juízes e ainda de acordo
com a Lei 13.827/2009, o juiz pode requisitar o auxílio de força policial, determinar busca e
apreensão, e a remoção de pessoas que estejam em convívio com a vítima, ou o pagamento de
multas.
Um ponto interessante de alteração da Lei 13.827/2009, foi que em Municípios que
não forem sede de Comarca, poderá o delegado determinar de imediato que o agressor seja
afastado da vítima, ou ainda poderá o Policial o fazer quando o Município não for sede de
Comarca e não houver nenhum delegado disponível no momento da denúncia (Art. 12-C, Lei
13.827/2009).
20

Importante destacar que não se aplica em casos de violência doméstica contra a


mulher o procedimento sumaríssimo da Lei n. 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais
Criminais), conforme dispõe o art. 41 da Lei Maria da Penha. Sendo assim, há somente dois
procedimentos aplicáveis aos casos de violência doméstica contra mulher, o procedimento
comum e o procedimento especial, devendo ser analisado cada caso, para então enquadrá-los
em algum procedimento.
Uma mudança atual da Lei Maria da Penha foi incluso os parágrafos 4º, 5º e 6º ao
artigo 9º da Lei, os quais em seu teor trazem a obrigação do agressor em ressarcir o que foi
gasto pela vítima com médico particular ou em caso de a vítima ter utilizado dos serviços
médicos públicos, o agressor será obrigado a ressarcir os gastos ao SUS, neste caso o Estado
poderá cobrar do agressor os gastos para tratamento da vítima de violência e os recursos
obtidos serão repassados ao ente da federação que prestou o serviço de saúde. Tal obrigação
do agressor em ressarcir os valores, se dará apenas com recursos dele, não podendo atingir o
patrimônio da vítima e nem da prole.
Outra mudança recente é a que em todo registro de notícia do crime, que envolva
violência doméstica contra a mulher, deve constar se a vítima é portadora de algum tipo de
deficiência, se da violência resultou alguma sequela que deixou a vítima com alguma
deficiência ou ainda se a violência agravou qualquer deficiência preexistente. E a
consequência jurídica é que o Ministério Público terá acesso a essa informação importante, e
consequentemente nesses casos em que a vítima possui uma deficiência, a adquire ou tem
agravamento de uma já existente devido à violência sofrida, a pena será atenuada, pois no
Código Penal há a previsão expressa do aumento de pena quando a vítima é deficiente.
A violência contra a mulher continuou ocorrendo em quantidade assustadora, mesmo
após a vigência da Lei Maria da Penha, fazendo com que números crescentes de homicídios
dolosos perpetrados contra mulheres chamassem cada vez mais atenção, o que, por
conseguinte, resultou em uma lei específica que trata de homicídios contra mulheres, a Lei de
Feminicídio (Lei 13.104/2015).
A Lei 13.104/2015 trata o feminicídio como crime hediondo, enquadrado inclusive na
Lei 8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos) e ainda, alterou o artigo 121 do Código Penal,
caracterizando o feminicídio como uma qualificadora ao crime de homicídio, trazendo à tona
novamente a importância de punir os agressores das mulheres vítimas de violência doméstica.
Todas as Leis e alterações legais que implicaram numa maior proteção à mulher têm
seus vieses enraizados no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, buscam
proteger, sobretudo, os Direitos Humanos de cada mulher que por anos silenciaram a opressão
21

sofrida em seus lares, uma opressão instituída pela cultura do patriarcado e do machismo,
onde a “união familiar” se sobrepunha, a todo e qualquer custo, às vontades, emoções e
integridades (física e psicológica) da mulher.

3 A APLICAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA EM CASOS DE VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA

De acordo com a recomendação feita no ano de 2017, pela presidente do Conselho


Nacional de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, nos casos de
violência doméstica contra a mulher é recomendada a utilização das práticas da Justiça
Restaurativa pelos Tribunais e Varas. Obviamente que o destaque da aplicabilidade da Justiça
Restaurativa em casos de menor potencial ofensivo (Resolução 225/2016 do CNJ) trouxe esta
luz ao Judiciário, porém faz-se mister analisar com cautela a aplicação da Justiça Restaurativa
no âmbito penal, sobretudo no âmbito da violência doméstica contra a mulher.
A cautela a ser observada na aplicação da Justiça Restaurativa nos casos de violência
doméstica contra a mulher, se dá ao fato de que a Justiça Restaurativatem em seu teor
pressupostos com base no abolicionismo penal, o que de acordo com o ilustre doutrinador
Guilherme de Souza Nucci inspira cautela, pois qualquer que seja a justiça (retributiva ou
restaurativa) não deve ser usada como solução absoluta ao sistema penal, pois de acordo com
ele, a retribuição que foi o pilar exclusivo do direito penal não se manteve e não será a
migração por completo a restauração que trará o equilíbrio ao sistema penal brasileiro.
Em segundo plano é preciso ter cuidado e verificar se a aplicação da Justiça
Restaurativa nos casos de violência doméstica não tem causado uma revitimização dessas
mulheres que sofrem violência, devido ao fato de que como resultado das práticas
restaurativas, muitas reatam o relacionamento com o agressor, e se forem vítimas de violência
novamente, podem não ter mais coragem de buscar o auxílio do judiciário, seja por vergonha
ou até por descrédito na justiça.
Há uma distinção entre os delitos, e devido a esta distinção é necessário a aplicação de
punição voltada à retribuição para alguns casos e a aplicação da restauração para outros casos,
considerados de menor potencial ofensivo, neste sentido o penalista Guilherme de Souza
Nucci, pontua em sua obra “Manual de Direito Penal, 15ª edição”:

Há crimes que merecem punição, com foco voltado mais à retribuição do que à
restauração (ex: homicídio, extorsão mediante sequestro, tráfico ilícito de drogas).
Outros, sem dúvida, já admitem a possibilidade de se pensar, primordialmente, em
22

restauração (ex.: crimes contra a propriedade, sem violência; crimes contra a honra;
crimes contra a liberdade individual). (NUCCI. 2019, p.359)

Sendo assim, a utilização das práticas restaurativas é adequada à alguns casos


delitivos, devendo ser utilizada somente naqueles em que não houve emprego de violência e
nos que a tutela jurisdicional não seja a vida, logo, é incabível em contextos que envolvam a
violência doméstica contra a mulher, tendo em vista os riscos envolvendo o bem maior
tutelado pelo direito penal, ou seja, a vida.

3.1 A IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA EM CASOS


DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

A Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Criminais) tem como princípios
orientadores a oralidade, a simplicidade, a informalidade, a economia processual e a
celeridade, conforme disposto em seu artigo 2º, e tem como objetivo (artigo 62) reparar os
danos e aplicar penas não privativas de liberdade.
Diante disso, importante afirmar que a criação dos Juizados Especiais Criminais (Lei
9.099/95) foi um marco na justiça de todo país, principalmente por carregar em seu teor um
modelo de Justiça Restaurativa. Entretanto, houve um incômodo no tocante a sua
aplicabilidade no âmbito da violência doméstica contra a mulher, devido ao artigo 41 da Lei
Maria da Penha que dispõe expressamente sobre a não aplicabilidade da Lei dos Juizados
Especiais Criminais:

Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher,
independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro
de 1995. (BRASIL, 2006)

A discussão tem como alegações o fato de a violência doméstica contra a mulher não
poder ser considerada crime de menor potencial ofensivo, pois se assim fosse considerada
seria um desrespeito a valoração normativa do bem jurídico tutelado pela Lei Maria da Penha.
Na ocasião em que foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal a constitucionalidade
do artigo supramencionado, a Defensoria Pública da União (DPU) defendeu ser o dispositivo
inconstitucional, pois no entendimento dela ia contra o disposto no artigo 89 da Lei dos
Juizados Especiais Criminais, por não permitir pedido de suspensão do processo, a decisão
dos ministros do STF reconheceu ser o artigo 41 da Lei Maria da Penha constitucional, e teve
como fundamento o art. 226, § 8º da Constituição Federal, que dispõe que o Estado
23

assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando


mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações, e também foi levado em
consideração a regra de tratar desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades.
O artigo 41 da Lei 11.340/06, portanto, veda por completo todos os institutos
despenalizadores da Lei dos Juizados Especiais Criminais em casos de violência doméstica
contra a mulher, pois a Lei 9.099/95 contraria a natureza da Lei Maria da Penha que é a
aplicação de uma punição mais rígida ao agressor, considerando o bem tutelado, quais sejam
os direitos humanos das mulheres.
Além disso, uma eventual aplicação dos institutos despenalizadores dos Juizados
Especiais Criminais em casos de violência doméstica desabonaria a finalidade da sanção
penal, que nada mais é que uma retribuição pelo dano causado e a prevenção de novos crimes.
Portanto a recomendação do Conselho Nacional de Justiça em aplicar a Justiça
Restaurativa em casos de violência doméstica, contraria o disposto no artigo 41 da Lei Maria
da Penha, visto que a mesma norma veda a aplicação de outro diploma legal com cunho
restaurativo.

3.2 A DESNECESSIDADE DE APLICAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA EM


CASOS QUE ENVOLVAM A LEI MARIA DA PENHA.

Embora identificado no artigo 41 da Lei 11.340/06 a não possibilidade da aplicação de


mecanismos restaurativos em casos de violência doméstica, ainda importante salientar, que
além de não ser possível, também não é necessário a aplicação de qualquer mecanismo
externo a Lei Maria da Penha para cumprir com o fim restaurador e obter um resultado
decrescente de casos de violência doméstica contra a mulher, pois a própria Lei traz em seus
dispositivos mecanismos restaurativos à vítima, ao agressor e à comunidade.
Como exemplo de dispositivos suficientes para mudar o atual cenário de violência
doméstica do Brasil pode ser citado o art. 35 da Lei Maria da Penha, que reforça a questão da
reeducação do agressor, consistindo em a União, Estados e Municípios criarem e promoverem
centros de reabilitação ao agressor, bem como o juiz obrigá-lo a comparecer a programas de
recuperação e reeducação. Tais medidas, no entanto, existentes para que única e
exclusivamente o agressor reconheça seu erro e os motivos que o levam a cometer violência,
bem como cesse com o comportamento violento, o que não significa que ao participar de tudo
isso o processo contra ele não continue ocorrendo. Além do mais, a Lei dispõe (Art. 8º e
24

seguintes) que o Estado deve prestar total amparo a vítima, a fim de que ela se recomponha, e
consiga seguir a vida sem a dependência (sobretudo econômica e emocional) do companheiro.
No tocante a participação e restauração da comunidade as políticas públicas de
campanhas de enfrentamento a violência de gênero e de educação de direitos humanos e das
mulheres nas escolas, bem como a atuação de entidades das comunidades, são exemplos de
mecanismos restaurativos para a comunidade, a qual tem o poder de atuar em conjunto com o
Estado para erradicar a violência de gênero.
Sendo assim, não é necessário a implementação de outros mecanismos restaurativos,
tendo em vista que a própria Lei Maria da Penha traz em seus dispositivos o dever do Estado
a assistir à vítima, aplicar as ações cabíveis para reeducar o agressor e ainda a promoção da
atuação da comunidade, ou seja, o efetivo cumprimento da Lei traria um resultado positivo de
mudança no quadro de violência doméstica contra a mulher no Brasil.
Portanto, conclui-se que o efetivo cumprimento das políticas públicas inseridas na Lei
Maria da Penha, as quais possuem caráter restaurativo, já seria suficiente para cumprir com o
objetivo de restauração, qual seja o envolvimento da comunidade, bem como o amparo a
vítima e a reeducação, bem como a responsabilização do agressor.
Não há necessidade de se falar em alternativas, antes de colocar em prática o que está
previsto na Lei Maria da Penha. O Estado não pode se abster de executar o que é dever dele, e
o Judiciário não pode simplesmente adotar as práticas restaurativas em casos tão graves como
a violência doméstica contra a mulher, cuja luta para obter tutela jurisdicional foi longa e
intensa, sob o argumento de que o sistema penal atual é um fracasso (algo que obviamente
deve ser repensado e reestudado), neste sentido o ilustríssimo penalista Guilherme de Souza
Nucci, discorre:

Vale ressaltar, no entanto, que qualquer solução adotada na esfera legislativa passa,
necessariamente, pelas mãos do Poder Executivo, que precisa liberar verbas para a
implementação de inúmeros programas de prevenção, punição e recuperação de
criminosos. Não é possível que o Parlamento modifique sistematicamente leis,
fornecendo a impressão de que isso basta à solução no combate à criminalidade, sem
que o administrador libere as verbas necessárias ao seu implemento. (NUCCI. 2019,
p.355)

Sendo assim, o repasse de verbas pelo Estado para investimentos de devidas


aplicações e implementações de políticas públicas já previstas na Lei Maria da Penha, seria,
portanto, o caminho para uma efetiva mudança no quadro de violência doméstica contra a
mulher no Brasil.
25

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A natureza da Justiça Restaurativa se concentra em restauração das relações, que


promove um reconhecimento de responsabilidade do autor e uma reparação do dano à vítima
e a comunidade, porém há que se ter cautela quanto à sua aplicação na esfera penal,
especialmente em casos de violência doméstica contra a mulher.
A violência doméstica contra mulher é um reflexo da sociedade machista e patriarcal
que por séculos tratou a mulher apenas como um objeto existente na comunidade, sem
qualquer função a não ser o cuidado com a casa, com o marido e com os filhos. Tal
tratamento para com a mulher atravessou os séculos, e apesar de ter adquirido inúmeros
direitos, a figura feminina ainda sofre as consequências da cultura patriarcal, através de
inúmeras espécies de violência.
A Lei Maria da Penha adveio após anos de lutas das mulheres, e inovou rompendo
com o tradicional processo penal, trazendo um processo de cunho extremamente social e
multidisciplinar, possibilitando a intervenção na história de violência das vidas de muitas
mulheres, protegendo-as, recuperando o agressor e até mesmo adotando medidas cíveis para
assegurar a subsistência da vítima.
A aplicação Justiça Restaurativa em casos de violência doméstica contra a mulher, traz
riscos ao sistema penal, sobretudo, traz riscos às vítimas de violência doméstica, as quais
podem ser revitimizadas com a aplicação da técnica, tendo em vista a característica de
vulnerabilidade de cada uma delas, o que, por conseguinte, não incomum, implica em muitos
casos, o restabelecimento do relacionamento da vítima com o agressor.
Não é possível a aplicação da Justiça Restaurativa em casos que envolvam a Lei Maria
da Penha, tendo em vista que a própria Lei não admite a utilização de outras Leis com teor
restaurativo, conforme disposto em seu artigo 41.
Também não é necessária a utilização de técnicas restaurativas em situações de
violência doméstica contra a mulher, pois a própria Lei Maria da Penha possui políticas
públicas que se devidamente colocadas em práticas cumpre com o objetivo de reparação da
vítima, do agressor e da comunidade.
Diante disso, conclui-se que o combate à violência doméstica, necessita do efetivo
cumprimento das políticas públicas pelo Estado, ou seja, uma implementação plena, efetiva da
Lei Maria da Penha, para que o objetivo da mesma seja alcançado, visando coibir, prevenir e
erradicar a violência e discriminação contra a mulher. Tais políticas públicas em conjunto
com as normas jurídicas devem agir em defesa da vítima e resguardar os seus direitos
26

fundamentais, bem como olhar a necessidade de recuperação do agressor e da comunidade,


não deixando de punir, tão pouco de assistir as necessidades de cada parte envolvida.
27

REFERÊNCIAS

BIANCHINI, Alice. Coleção Saberes Monográficos - Lei Maria da Penha. 4 ed. São
Paulo. Ed. SaraivaJur, 2018.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível


em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 21 de
Novembro de 2019.

BRASIL. Lei nº 11.340/2006, de 07 de agosto de 2006. Brasília, 07 de agosto de 2006, 185º


da independência e 118º da República. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em 21 de
novembro de 2019.

BRASIL. Resolução de Nº 225 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de 31 de maio de


2016. Dispõe sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário
e dá outras providências. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-
content/uploads/2016/05/resolucao_225_31052016_02062016161414.pdf. Acesso em 21 de
novembro de 2019.

FERNANDES, Valéria DiezScarance. Lei Maria da Penha: O Processo Penal no Caminho


da Efetividade. Ed. Atlas, 2015.

JESUS, Damásio de. Violência contra a mulher: aspectos criminais da Lei n. 11.340/2006,
2ª ed. Ed. Saraiva, 2015.

KIST, Fabiana. O valor da vontade da vítima de violência conjugal para a punição do


Agressor: oficialidade, oportunidade e justiça restaurativa. Ed. JH Mizuno, 2019.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal,15ª ed. Ed. Forense, 2019.

MEIADO, Guilherme de Paula. Justiça Restaurativa: novos olhares sob o sistema penal
brasileiro. Disponível em:http://www.unisalesiano.edu.br/biblioteca/monografias/60449.pdf.
Acesso em 21 de novembro 2019.

PEREIRA, Lincoln Luiz. Justiça Restaurativa. Disponível


em:http://www.femparpr.org.br/monografias/upload_monografias/LINCOLN%20LUIZ%20P
EREIRA.pdf. Acesso em 21 de novembro 2019.

VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de Conflitos e Práticas e Restaurativas.


Ed. Método, 2008

JESUS, Davi Reis de Jesus. Justiça Restaurativa para os autores de violência doméstica e
familiar contra a mulher: uma possibilidade de prevenção e protagonismo. Disponível
em:
https://www.ibccrim.org.br/docs/2019/liberdade_27.pdf?fbclid=IwAR3dbvwaCfucurfiJN5P7
6pc6XSwlIFG0JyR8hzc2BLAfIJCMK6FEXHi8Vo

Você também pode gostar