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2 de Março de 2024

Vigiar e Punir - Resenha Crítica


Publicado por Lorena Póvoas há 4 anos

INTRODUÇÃO

Michel Foucault (1926/1984) foi um pensador e filósofo francês, que possui um acervo considerá-
vel de trabalhos publicados durante a carreira de escritor. Foucault também desenvolveu, no
Collège de France, a importante pesquisa e o estudo sobre a estrutura das instituições judiciais e
penitenciárias antigas e modernas.

A obra objeto desta resenha, qual seja, “Vigiar e Punir: História da Violência nas Prisões”, é sem
dúvida de grande importância para o meio jurídico e social, em especial no âmbito penal, pois faz
um verdadeiro estudo filosófico e histórico sobre o surgimento da prisão e sobre as penas en-
quanto meio de suplício e coerção, meio de disciplina e aprisionamento do ser humano, revelando
a face social e política desta forma de controle social aplicado ao direito e às sociedades de antiga-
mente, especialmente naquelas em que perdurou por muitos séculos o regime monárquico.

Apesar de passados mais de 40 anos desde a publicação da obra supracitada, as considerações fei-
tas por Michel Foucault continuam extremamente relevantes e recentes para a contemporanei-
dade, visto que o livro trata de temas que são de suma importância para a sociedade e que geram
grandes discussões tanto no plano acadêmico quanto no plano social.

“Vigiar e Punir: História da Violência nas Prisões” está construída em quatro partes, sendo elas o
“suplício”, a “punição”, a “disciplina” e a “prisão”.

1. Suplício

Foucault apresenta inicialmente o estudo e explanação do suplício no século XVIII como maneira
de punição aos condenados. Ele narra com riqueza de detalhes a tortura, suplício e esquarteja-
mento de um parricida chamado Damiens, em 1757, e expõe dois documentos que evidenciam dois
estilos penais diferentes.

O primeiro documento é a explanação de um suplício, que segundo o autor, eram “penas corpo-
rais, dolorosas, mais ou menos atroz [excesso de crueldade]”. Ainda segundo o autor, “era um
fenômeno inexplicável a extensão da imaginação dos homens para a barbárie e a crueldade”. Já o
segundo documento expõe alguns artigos do código de execução penal, com toda a sua utilização
limitada do tempo e sua sutileza cruel e punitiva.

Os suplícios eram a marca do período compreendido entre os séculos XVI e XVIII, no qual as pe-
nas privativas de liberdade eram totalmente desconsideradas. Obviamente, o sofrimento é um dos
pontos vitais deste tipo de pena, mas não é o único, posto que o objetivo dos suplícios ultrapassava
a mera
Evite interrupções punição
durante do condenado.
sua pesquisa. Faça loginMichel Foucault
ou crie uma conta. afirma que para uma pena ser considera umCADASTRE-SE
FAÇA LOGIN ou suplí- 
cio ela deve obedecer três critérios principais: “[...] uma pena, para ser considerada um suplício,
deve obedecer a três critérios principais: em primeiro lugar, produzir uma certa quantidade de so-
frimento que se possa, se não medir exatamente, ao menos, apreciar, comparar e hierarquizar; [...]
o suplício faz parte de um ritual. É um elemento na liturgia punitiva, e que obedece a duas exigên-
cias, em relação à vítima, ele deve ser marcante: destina-se a [...] tornar infame aquele que é a ví-
tima. [...] e pelo lado da justiça que o impõe, o suplício deve ser ostentoso, deve ser constatado por
todos, um pouco como seu triunfo. [...]” (p. 36 – 37)

O suplício tinha como característica predominante o poder do Estado sobre o corpo do sentenci-
ado, sendo este o principal alvo da repressão penal. Por ser um espetáculo punitivo, o suplício era
meticulosamente orquestrado para demonstrar o poder do soberano – monarca – sobre os seus
súditos, como forma de mostrar toda a sua força e a sua intolerância para com aqueles que ousa-
vam desafiar as leis impostas ou mesmo desafiar o seu poder. Dessa forma, o repúdio público à
que o corpo dos acusados era exposto constituía não só uma violência física, mas também uma vio-
lência psicológica em todos os atores do ato de penalização.

Vale ressaltar que a participação popular era fundamental nos rituais de suplício, pois conferiam-
lhe legitimidade. Pelo fato de as pessoas não serem meras espectadoras, o ritual que seria inicial-
mente considerado ilegal, tornava-se legalizado.

Visto que os suplícios eram uma forma de aprazer o soberano e seus interesses e, portanto, tinham
um conteúdo muito mais político do que jurídico, uma parcela da sociedade se voltou contra esta
forma condenatória. Assim, o pensamento e o desafio do momento era encontrar novas formas de
punir, pois o suplício havia se tornado intolerável. A tarefa de encontrar novas maneiras de punir
ficou à cargo dos legisladores, juristas, pensadores e filósofos do século XVIII.

2. Punição

A segunda parte de “Vigiar e Punir” é composta por dois capítulos, sendo eles: a “punição generali-
zada” e a “mitigação das penas”. No primeiro capítulo, Foucault versa sobre a mudança da forma
de punição e trata sobre os protestos contra os suplícios durante o século XVIII, pois os cidadãos
da época passaram a acreditar que a justiça criminal deveria punir o criminoso e não apenas se
vingar dos condenados.

Neste período houve uma transformação nos tipos de crime, que passaram de agressões e homicí-
dios para crimes patrimoniais, pois houve grande aumento de riquezas, e com o grande cresci-
mento econômico, o alvo principal dos crimes eram os bens.

A classe política dominante da época, qual seja, a burguesia, não se interessava se a pena fosse em-
pregada como uma forma de espetáculo, de modo que era necessário uma repressão efetiva, a fim
de diminuir a prática de tais desvios e, portanto, buscou-se uma forma mais humanitária de apli-
cação da sanção penal.

O período humanitário foi guiado pelos pensamentos de Cessare Beccaria. Ele abandona o caráter
cruel e irracional da aplicação da pena, trazendo, portanto, uma maior proporcionalidade entre o
crime e a respectiva sanção. Assim sendo, as punições vão diminuindo de intensidade, tendo inter-
venções, pois há uma considerada diminuição nos crimes de sangue.

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Apesar disso, o autor faz severas críticas a este movimento, pois para ele o discurso dos humanita-
ristas tratou-se meramente de um discurso político e econômico sustentado pelos burgueses, que
buscavam a diminuição dos crimes patrimoniais.

3. Disciplina

Para o autor, a ideia, e até mesmo a missão de acabar por completo com o sistema penitenciário é
deveras complexa e chega a ser irrealizável. O motivo é que, segundo Foucault, a prisão como co-
nhecemos hoje é apenas uma etapa em direção ao disciplinamento do indivíduo, o qual passaria
por várias etapas, como por exemplo a família, a escola e as estações de trabalho.

Desta forma, a prisão seria a última medida de controle sobre o indivíduo, a qual seria empregada
apenas quando as demais instituições disciplinares fracassassem, de modo que, em resumo, derru-
bar a prisão seria o mesmo que derrubar as instituições disciplinares.

Foucault lembra, em determinado momento no livro, que “[...] a disciplina fabrica assim corpos
submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças dos corpos (em termos
econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência) [...].”
(p. 164 – 165)

Assim, é necessário entender que é impossível dissociar a existência das instituições disciplinares
com o lado econômico, em especial com a burguesia. Foucault diz que a disciplina era (e ainda é)
utilizada como uma forma impedir que o subordinado se voltasse contra as ordens emanadas pelo
“superior”.

Ora, o mundo ideal para um burguês é justamente aquele em que o seu subordinado faz o que ele
manda sem questionamentos, de modo que trabalha sem revolta e gera, por consequência, mais ri-
quezas para ele.

Esta parte do livro sob análise é subdivida em três capítulos, sendo eles os “corpos dóceis”, os “re-
cursos para o bom adestramento” e o “panoptismo”.

Na visão do autor, um corpo dócil é aquele que pode ser utilizado, submetido a transformações e
aperfeiçoamentos, ou seja, um corpo dócil é aquele que é facilmente manipulável, disciplinável,
subjugável.

No subcapítulo “corpos dóceis” o autor descreve quatro mecanismos disciplinares na formação de


corpos dóceis. O primeiro é o chamado de “arte das distribuições”. Deste subcapítulo pode-se reti-
rar o entendimento de que a produção de um corpo dócil só é possível através de uma distribuição
no espaço físico. Aqui, Foucault certifica que a massa (popular) confusa se torna ferramenta de
trabalho eficiente, o que deixa evidente a ligação da disciplina como um mecanismo de controle a
ser utilizado a favor da burguesia.

O segundo mecanismo seria o “controle das atividades”, de forma a limitar o horário e controlar o
tempo. Em síntese, o correto seria pregar pela a ausência de ociosidade, de modo que não eram
permitidas distrações e “vagabundagem” por parte dos vigiados.

A “organização das gêneses”, por sua vez, determina que o indivíduo a ser docilizado passa por vá-
rias etapas de formação, seu processo é dividido em classes, medido por provas, melhorado por
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exercícios.
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Por fim, a “composição das forças” estabelece que todo treinamento converge para um ponto má-
ximo onde a composição de forças gera o máximo de eficiência, sendo que a máquina articulada
não permite refletir, o corpo treinado se liga e se reproduz.

Na última parte o livro, que talvez seja a mais conhecida da obra, Foucault disserta sobre o panop-
tismo, que foi desenvolvido por Jeremy Bentham no final do século XVIII, mais precisamente em
1791, sendo que a sua a expressão deriva da palavra grega “Panopticon”, a qual significa “o que
tudo vê”. Este sistema acreditava na hierarquia e no constrangimento espacial como estratégias
para atingir o controle sobre as pessoas.

Ele induz na pessoa observada um estado consciente e permanente de visibilidade, o que, segundo
declarou Foucault, assegura o funcionamento automático do poder.

O panoptismo encontra-se presente não só no nosso sistema penitenciário, mas também nos locais
em que há convivência social, com a utilização de câmeras.

4. Prisão

Atualmente, diversas são as críticas a respeito da situação carcerária brasileira, sendo inclusive fa-
lado na falência do sistema carcerário, que é falho não só no seu papel de ressocialização dos con-
denados, mas na oferta de condições minimamente dignas de humanidade. Diante disso, resta in-
dagar o motivo da pena privativa de liberdade continuar sendo a principal forma de expressão do
poder punitivo estatal, mesmo com um sistema falido.

Foucault tem uma boa explicação para isso. Segundo ele, a função real (oculta) da pena, ao contrá-
rio do que pregaram os juristas, não tem por objetivo o combate à criminalidade, mas simples-
mente busca criá-la.

“Se tal é a situação, a prisão, ao aparentemente “fracassar”, não erra seu objetivo; ao contrário, ela
o atinge na medida em que suscita no meio das outras uma forma particular de ilegalidade, que ela
permite separar, pôr em plena luz e organizar como um meio relativamente fechado mas penetrá-
vel. Ela contribui para estabelecer uma ilegalidade, visível, marcada, irredutível a um certo nível e
secretamente útil — rebelde e dócil ao mesmo tempo; ela desenha, isola e sublinha uma forma de
ilegalidade que parece resumir simbolicamente todas as outras, mas que permite deixar na sombra
as que se quer ou se deve tolerar. [...]” (p. 304)

Em outras palavras, a prisão não é um fracasso, mas sim, um sucesso, porque ela consegue, como
nenhuma outra instituição, produzir uma espécie de delinquência organizada, que normalmente é
violenta.

É pensando nisso, que se procurou durante muito tempo implementar o sistema panóptico dentro
do sistema penitenciário, pois este tem por objetivo exercer a disciplina sobre os condenados, a
fim de limitar o espaço do desviante, de modo a coibi-los de elaborem planos e montarem rebe-
liões contra o próprio sistema penitenciário.

É na parte final do livro que Foucault resume a tese principal de seu livro ao mostrar que antes da
prisão ser inaugurada como peça das punições, ela já havia sido gestada na sociedade a partir do
momento em que os mecanismos de poder repartiam, fixavam, classificavam, extraíam forças,
treinavam corpos, codificavam comportamentos, mantinham sob visibilidade plena, constituíam
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sobre eles um saber que se acumulava e se centralizava sobre os indivíduos. ou 
Foucault encerra o livro com um texto anônimo publicado no jornal La Phalange, de 1836, para
mostrar que os mecanismos apresentados em “Vigiar e Punir” não são o funcionamento unitário
de um aparelho (finalizado e vencedor), mas são estratégias postas em uma batalha que até hoje
não cessou.

CONCLUSÃO

A obra objeto desta resenha crítica é de suma importância para o plano acadêmico, em especial
para o direito penal, haja vista o fato dela traçar um verdadeiro estudo histórico e filosófico sobre
as punições e a pena como uma forma de coação e controle do indivíduo.

O próprio autor conclui pelo paradoxo da realidade e do modelo coercitivo de correção franqueado
pelo aprisionamento, na medida em que enquanto o modelo carcerário pensado teria como obje-
tivo primordial reprimir e reduzir a criminalidade e organizar a delinquência, em verdade passa a
contribuir para a manutenção dela, como um círculo vicioso e sem fim.

Vigiar e Punir, apesar de ter sido publicada em 1975, é na verdade uma obra atual e necessária à
compreensão da história do direito penal, do jogo e manutenção do poder constituído sobre a soci-
edade de um modo geral, que nos faz refletir sobre a proteção que este importante meio de con-
trole social pode oferecer enquanto poderoso instrumento garantidor dos interesses das classes
dominantes.

Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/vigiar-e-punir-resenha-critica/828900881

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