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Janeiro de 2009
Breves Notas sobre o Abolicionismo Penal 1
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Bruna Soares Angotti Batista de Andrade a1
a1 Aluna do curso de Pós-Graduação em Criminologia do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais -
IBCCrim; aluna do mestrado em Antropologia Social da Universidade de São Paulo – USP; pesquisadora
do Núcleo de Antropologia do Direito-NADIR e coordenadora de projeto na Conectas Direitos Humanos.
angotti.bruna@gmail.com.
Resumo
O presente artigo consiste em uma breve apresentação do Abolicionismo Penal
priorizando o pensamento de três principais autores: Louk Hulsman, Nils Christie e
Thomas Mathiesen. Apresenta o Abolicionismo Penal não como uma escola de
pensamento heterogêneo, mas como proposta de ruptura com o sistema punitivo vigente
e como denúncia às suas arbitrariedades. Explicita o pensamento dos autores no que
tange às mudanças na forma de ensino do Direito Penal e da Criminologia, no método
utilizado para resolução de conflitos, bem como modificação dos termos usados como
dados herméticos pelo sistema de justiça criminal e operadores do direito. Vale ressaltar
que este artigo é uma homenagem póstuma a Louk Hulsman, abolicionista holandês,
falecido em 29 de janeiro de 2009.
Abstract
1 Este artigo utiliza, em parte, a Tese de Láurea apresentada à Banca Examinadora da Faculdade de
Direito do Largo de São Francisco, Departamento de Direito Penal, sob a orientação da Profa. Dra.
Janaína Conceição Paschoal, em outubro de 2006 e o Trabalho de Conclusão de Curso orientado pelo
Prof. Dr. Edson Passetti na Faculdade de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo – PUC-SP, Departamento de Ciência Política, em março de 2007.
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changes in the educational methods of the Criminal Law and Criminology, strategies
aimed at solving conflicts, as well as transformations of the terms used by the criminal
system. It is important to highlight that this article is in honor of Louk Hulsman, Dutch
abolitionist, who died in January 29th, 2009.
Sumário:
1. Introdução
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teóricos diversos, transitando entre posições de cunho marxista - Thomas Mathiesen e
Nils Christie -, libertário/fenomenológico - Louk Hulsman - e estruturalista - Michel
Foucault (ZAFFARONI, 2001, p.98 e PASSETTI, 2003, p. 221). Nessa perspectiva, não
há uma escola abolicionista, ou um pensamento único, mas sim, diretrizes e objetivos
comuns: a supressão da pena de prisão e da pena autoritariamente imposta.
2 Situação Problema representa situação considerada reprovável em determinado tempo e espaço, que
deve ser colocada em pauta por todos aqueles envolvidos na questão e a reparação cabida, por todos eles
decidida. (HULSMAN, 1993, p.101.)
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O presente artigo faz uma breve apresentação do Abolicionismo a partir do
pensamento de três autores consagrados na literatura: Louk Hulsman, Thomas
Mathiesen e Nils Christie. Objetiva-se introduzir o leitor à discussão por eles
proporcionada, principalmente no que tange à crítica ao sistema de justiça criminal,
delineando suas propostas de abolição desse sistema.
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Juntamente à Nova Defesa Social, a Criminologia Crítica, nascida no final da
década de 1960, a partir de uma perspectiva sociológica da criminologia, também
representa ponto de partida do Abolicionismo Penal. Agrupadas sob a denominação de
Criminologia Crítica estão, de acordo com Gabriel Ignácio Anitua, inúmeras correntes
heterogêneas que mais se assemelhavam nas críticas que nas propostas feitas (ANITUA,
2007, p. 657). Os defensores da Criminologia Crítica, em geral, assumiam uma
perspectiva marxista de análise do sistema penal, uma vez que afirmavam ter este, alto
teor ideológico, estando a serviço da classe social dominante.
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Atualmente, a maior manifestação do Abolicionismo Penal se dá através do
ICOPA (International Circle of Penal Abolitionists), movimento internacional que
promove encontros bienais desde 1983. Trata-se de congresso que reúne estudantes,
teóricos, militantes, presos e simpatizantes do assunto em todo o mundo. Já em sua
décima primeira versão em 2006, o encontro já teve como temas ao longo de sua
história, o Abolicionismo teórico, abolição das prisões e da pena, Abolicionismo
regional, caminhos para o Abolicionismo, justiça transformativa restaurativa e
alternativa, dentre outros.3 Cabe ressaltar que o ICOPA surgiu no comitê Quaker de
prisões e justiça, no Canadá, como tentativa de promover discussões acerca do tema em
diferentes lugares, promovendo o compartilhamento de experiências práticas e teóricas.
No Brasil, o Abolicionismo Penal se mostra presente principalmente nas
academias: tanto nas Ciências Sociais quanto no meio jurídico se discute a matéria. Na
Pós Graduação em Ciências Sociais da PUC-SP existe o Nu – Sol (Núcleo de
Sociabilidade Libertária), responsável pela grande maioria de dissertações de mestrado
e doutorado acerca do tema, bem como pela realização de seminários, cursos, revistas e
livros referentes à questão. Já no meio jurídico, tanto em São Paulo, no IBCCrim
(Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), quanto no Rio de Janeiro, no Instituto
Carioca de Criminologia, e em Curitiba, no Instituto Paranaense de Criminologia
existem produções nesse sentido. Há também, no Brasil, pesquisadores isolados que
estudam o tema.4
3 www.justiceaction.org.au
4 Por exemplo, Luiz Bogus Chies e Salo de Carvalho.
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O Abolicionismo acadêmico é a abolição de uma forma de retratar a justiça
criminal - a forma oficial. O foco principal desse Abolicionismo está, como o próprio
nome diz, nas universidades, dado o papel de transmissão de conhecimento e produção
de saberes desempenhado neste meio. Para Louk Hulsman e Nils Christie, a grande
maioria dos cursos de Direito Penal nas universidades reproduz a perspectiva da justiça
criminal, mostrando-a como forma de resolução de problemas públicos, como realidade
necessária e natural. Trata-se de cursos dogmáticos, pautados no “dever ser” jurídico, na
codificação e nas etapas do processo e cuja preocupação principal se baseia em dar
respostas prontas ao invés de suscitar questionamentos. A criação de cursos de
criminologia que provoquem questionamentos referentes à justiça criminal, ao sistema
carcerário, à política criminal, às funções da pena, dentre outros, é fundamental para a
produção de um pensamento acadêmico crítico e transformador.
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da criminologia nas universidades que sirva como contraponto crítico ao Direito Penal
dogmático (CHRISTIE, 1998, pp. 195 e 196).
O Abolicionismo como movimento social, por sua vez, tem como foco principal
a estrutura punitiva e a formulação de atitudes e vivências que rompam com tal
edificação. É a abolição de práticas e de “verdades” que sustentam a sociedade punitiva,
a partir da submissão da linguagem e dos métodos utilizados pela justiça penal à análise
crítica. As artificialidades e equívocos delimitados servem como ponto de partida à
crítica feita à lógica da punição: conceitos, expressões, “verdades” e estruturas são
Nesse sentido, torna-se latente o questionamento das bases ideológicas que sustentam a
justiça criminal e a propositura de vivências não hierárquicas em detrimento da
imposição unilateral da força. O Abolicionismo como movimento social permite que a
sociabilidade e o controle social sejam abordados em perspectivas horizontais,
redimensionando a resolução de conflitos.
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unanimidade da literatura na definição de suas posições como sendo abolicionistas.
Foucault, por sua vez, apesar de sua inestimável importância para a crítica ao sistema
punitivo e aos discursos do poder, não será aqui analisado em detalhe, por não tratar
diretamente da abolição do sistema penal, por não oferecer estratégias rumo ao
Abolicionismo e, também, por não ser sua definição, como abolicionista, consenso na
literatura. A contribuição de Foucault, por sua vez, exige uma diferenciação dos demais
abolicionistas que não seria possível fazer no presente artigo.
6 O livro, composto por duas partes – Conversas com um Abolicionista do Sistema Penal e A Perspectiva
Abolicionista: Conversação em Dois Tempos – é de autoria de Louk Hulsman e Jacqueline Bernart de
Celis. Enquanto o autor é responsável pelo desenvolvimento da segunda parte, a autora desenvolve a
primeira que se resume em uma entrevista com o autor. Na entrevista, concedida a Jaqueline De Celis, o
autor afirma que se tornou abolicionista quando já lecionava na universidade, quando, ao ter de pensar a
melhor forma de explicitar o sistema penal para os alunos, concluiu ser este sistema extremamente
irracional e ineficaz.
7 Estes temas serão analisados nos tópicos seguintes.
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manifesta na relação entre pais e filhos, entre professores e alunos, entre Estado e
sociedade, entre chefe e subalterno. A abolição da punição, nesse ínterim, inicia-se, para
Hulsman, em cada um dos indivíduos, para então se exteriorizar na prática em todas as
esferas do cotidiano social.
Anitua ressalta que Hulsman foi por vezes criticado, sendo acusado de
desconhecer o pensamento jurídico. Em defesa, argumenta que:
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produtiva capitalista, sendo necessária a ruptura com as formas de dominação da classe
dominante manifestas tanto na estrutura jurídica como na econômica e política.
Mathiesen questiona o sistema prisional e as explicações que são dadas para a sua
necessidade e manutenção, denunciando a irracionalidade deste e as falácias da
prevenção geral, do potencial de reabilitação, da prevenção especial e de outras
justificações para a pena. Propõe que a irracionalidade do cárcere seja denunciada para
que haja uma mudança na forma de compreendê-lo, sendo a mudança cultural
fundamental para impedir a hiperinflação carcerária vivida nas últimas décadas. A seu
ver, deter o crescimento do sistema carcerário é tarefa urgente para evitar o “novo
holocausto” para o qual caminham as sociedades ocidentais (MATHIESEN, 1994).
8 Christie descreve uma importante reunião organizada pelo KROM, todos os anos, cujo intuito é a
discussão do sistema carcerário por diferentes setores da sociedade norueguesa: operadores do sistema
penal, juizes, promotores, políticos, estudantes, professores, leigos, presos e representantes da mídia se
reúnem anualmente para debater a questão. Tal encontro pode ser considerado um exemplo de diálogo
entre velhos e novos paradigmas proposto por Mathiesen. (Christie, 1998, p. 32).
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Para o autor, nos primeiros momentos de abolição, celas socialmente aceitas,
segundo determinadas épocas e situações, devem ser mantidas, por certo período de
tempo. Tal postura é criticada por Passetti que acredita que esta permissão pode vir a
justificar arbitrariedades diversas, sendo a abstração da permissão facilitadora de
manifestações autoritárias por parte do poder punitivo (PASSETTI, 2003, pp. 213 e
214).
9“Roubo do conflito” é uma expressão utilizada pelos autores abolicionistas para designar o fato de o
Estado “tomar para si” os conflitos ocorridos entre indivíduos, impedindo assim a autotutela.
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própria polícia. Ainda, mostra-se extremamente crítico com relação ao sistema
carcerário, que imprime no corpo do condenado (ao aprisioná-lo) o estigma de
delinqüente, infligindo dores aos que foram por este selecionados.
Assim, ressalta ainda que o sistema carcerário está, a cada dia, tornando-se uma
rentável empresa que utiliza o condenado como matéria prima, principalmente nos
paises desenvolvidos. Apesar de o presidiário custar caro ao Estado, presídios geram
empregos e são verdadeiras minas para empresas de produtos eletrônicos e de segurança
(FONSECA e OLIVEIRA, 1998, p.18).
10Como exemplo de situações semelhantes o autor cita a perseguição a minorias em entrevista concedida
a Ana Sofia Schmidt de Oliveira e André Isola Fonseca, na qual se intitula abolicionista minimalista.
1998, p.16.
11Expressão em contraposição a Abolicionismo de percurso, dirigida, como já citado, por Passetti a Louk
Hulsman. (PASSETTI, 2004a, pp. 28-30).
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como no Abolicionismo de percurso, com universalismos, trabalhando sem a
interrupção direta com um meio de resolução, mas com a construção de uma nova moral
que se manifesta no querer da sociedade. Tanto o itinerário quanto o percurso são
caminhos. No entanto, o primeiro possui roteiro, enquanto que o segundo é pautado na
experimentação, sendo, ambos, estratégias de abolição de uma estrutura ilógica.
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A mudança da linguagem em sala de aula e em produções acadêmicas se faz
necessária quando se quer estimular a reflexão acerca da realidade não ontológica de
situações “etiquetadas” como tal. Assim, para se superar a lógica do sistema penal é
fundamental que se supere o vocabulário que a sustenta (HULSMAN, 1993, p.95).
12Marc Ancel é autor da obra A Nova Defesa Social, escrita na década de 50. O movimento da nova
defesa social tinha como principal objetivo a realização de exame crítico das instituições vigentes, a
humanização, a reforma e também a abolição dessas instituições. No Brasil o livro de Ancel foi publicado
pela editora Forense em 1979.
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fundamental para que atitudes abolicionistas realmente possam ser colocadas em
prática. Segundo Hulsman:
(...) seria preciso se habituar a uma linguagem nova, capaz de exprimir uma
visão não estigmatizante sobre as pessoas e situações vividas. Falar de ‘atos
lamentáveis’, ‘comportamentos indesejados’, ‘pessoas envolvidas’, ‘situações
problemáticas’, já seria um primeiro passo no sentido de se formar uma nova
mentalidade, derrubando as barreiras que isolam o acontecimento e limitam as
possibilidades de resposta, que impedem, por exemplo, que se compare, do
ponto de vista emocional ou do traumatismo experimentado, um ‘furto com
arrombamento’ a dificuldades no trabalho ou nas relações afetivas. Livre da
compartimentalização institucional, uma linguagem aberta facilitaria o
surgimento de novas formas de enfrentar tais situações (HULSMAN, 1993, p.
96).
Também, vale dizer que o considerado crime em determinada esfera pode não o
ser em outra. Por vezes, a esfera privada possui leis próprias que imperam dentro de
muros privados: o que é crime “na rua” não é, por vezes, crime “dentro de casa”. Nesse
sentido, a relatividade do conceito impera em um mesmo espaço, o que pressupõe que
condutas semelhantes são julgadas e resolvidas de maneiras diferentes. Nils Christie é
enfático ao dizer que:
(...) atos não são, eles se tornam alguma coisa. O mesmo acontece com o crime.
O crime não existe. É criado. Primeiro, existem atos. Segue-se depois um longo
processo de atribuir significados a esses atos. A distância social tem uma
importância particular. A distância aumenta a tendência de atribuir a certos atos
o significado de crimes, e às pessoas o simples atributo de criminosas. Em
outros ambientes – e a vida familiar é apenas um de muitos exemplos – as
condições sociais são tais que criam resistências a identificar os atos como
crimes e as pessoas como criminosas (CHRISTIE, 1998, p.13).
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resolvidos os conflitos fora da esfera penal é uma importante questão suscitada na
literatura abolicionista. Para Louk Hulsman:
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Tais conclusões são alvo de grandes críticas dos abolicionistas, que denunciam a
irracionalidade da pena ao ser esta resposta a atitudes sujeitas a tantas oscilações e
relativizações por parte do sistema punitivo. Tais autores criticam, ainda, a tendência
desse sistema em lidar com o “crime” como sendo uma verdade absoluta e perigosa que
ameaça o convívio social. Por fim, ressaltam que o conceito de crime também é fator de
uniformização, o que impede que a justiça criminal analise as situações específicas em
suas particularidades tornando-a extremamente mecânica e desumanizada.
4.1. Situação-Problema
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sim, é acompanhada de uma nova abordagem da problemática que envolve as situações
conflituosas a partir da perspectiva da “situação-problema”. O termo, que foi
introduzido na literatura abolicionista por Louk Hulsman, representa não só uma
definição de situações conflituosas, mas, principalmente, uma forma de lidar com estas.
Nas palavras do autor:
A ferramenta conceitual óbvia para iniciar esta nova maneira de olhar para a
realidade é substituir o ‘comportamento criminoso ou criminalizável’, como
pedra fundamental da nossa linguagem profissional, pelo conceito de ‘situação
problemática’. A introdução do conceito de situação problemática é uma
estratégia para levantar questões. A primeira questão é: quem acha que esta
situação (vagamente formulada) é problemática? Quando tivermos uma resposta
a esta primeira pergunta, temos de fazer uma distinção entre os que
responderam. Em princípio não estamos interessados nas respostas de
profissionais não envolvidos diretamente (HULSMAN, 2003, p.208).
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Uma das principais críticas à lei penal feita pelos abolicionistas é de que esta
uniformiza a resolução de conflitos a partir da lógica da punição. A simples
denominação de crime já vincula toda situação tipificada à esfera penal e assim ao
sistema punitivo oficial, que envolve privação de liberdade, restrição de direitos,
pagamento de multas e prestação de penas alternativas.
O modelo punitivo diz respeito a alguma forma de punição sugerida pelas partes
em diálogo. O Abolicionismo penal lida com a liberdade e não com espaços de
aprisionamento.13 Já o modelo conciliatório envolve, como o próprio nome sugere, a
conciliação entre as partes envolvidas no conflito através da mediação de algum
13Vale ressaltar, porém, que Thomas Mathiesen, como já analisado anteriormente, não descarta a
possibilidade de que existam, para determinadas situações, celas socialmente aceitas.
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membro da comunidade, ou mesmo de algum representante do judiciário. Trata-se da
principal maneira, segundo Hulsman, de lidar com a situação-problema, e inspira-se no
direito civil. O compensatório, decorrente da impossibilidade de conciliação, requer que
a ação problemática praticada seja repensada em termos materiais, concordando o
agressor em restituir, de alguma forma à vítima, aquilo que lhe fora subtraído. É
fundamental ressaltar que, com base nesse modelo, cabe também ao Estado ressarcir a
vítima caso o infrator não tenha condições de o fazer. O modelo terapêutico, por sua
vez, envolve alguma forma de acompanhamento psicológico do agressor14. Por fim, o
modelo educativo (ideal para pequenos agrupamentos e comunidades) abrange não só o
infrator como também a própria comunidade, uma vez que ressalta a necessidade de
reflexão acerca do ocorrido, para que seja possível detectar alguma falha na estrutura
social que possa ter causado o comportamento adverso.
14Edson Pasetti, ao falar do modelo terapêutico ressalta a necessidade, explicitada por Foucault, de se
tomar cuidados para que o modelo terapêutico não conduza à substituição da prisão pelo asilo.
(PASSETTI, 2003, p. 214).
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Para Louk Hulsman, vítimas são aquelas pessoas que se sentem abominadas com
um evento ou uma série deles (HULSMAN, 1993, p.200). Segundo o autor, o sistema
penal não escuta aqueles diretamente envolvidos na questão, mas sim uniformiza suas
reclamações sob um modelo padronizado de inquérito processual: desde o início há
adequação do conflito à lógica da estrutura penal. Ainda, afirma, que a partir da
denúncia, passa a haver uma alienação da vítima, que perde toda a possibilidade de
intervir de maneira positiva, sendo desta seqüestrada qualquer vontade. A seu ver:
Louk Hulsman afirma que é fundamental que haja uma mudança de foco que
vise à vítima e não apenas ao agressor (HULSMAN, 1993, p.146). Esta preocupação é
compartilhada por Thomas Mathiesen que considera a falta de inserção da vítima no
processo penal, prejudicial, pois impede respostas outras que não aquelas padronizadas
pelo sistema penal. Além disso, afirma que o Estado deixa a vítima completamente
desprotegida de qualquer apoio, uma vez que não existem centros de apoio à esta,
estando a preocupação do sistema apenas dirigida ao transgressor. Nesse ínterim,
Mathiesen propõe uma solução:
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(...) ao invés de aumentar a punição do transgressor de acordo com a gravidade
da transgressão, o que é básico no sistema atual, eu proporia o aumento de apoio
à vítima de acordo com a gravidade da transgressão. Em outras palavras, não
uma escala de punições para os transgressores, mas uma escala de apoio às
vítimas. Certamente esta seria uma mudança radical, mas que seria racional do
ponto de vista das vítimas e, provavelmente, também útil para superar a
resistência ao desmantelamento do sistema atual (MATHIESEN, 1997, p.276).
Segundo Maria Lúcia Karam, é necessário que haja uma ruptura com a “força
ideológica” criada em torno do aparato criminal para que, então, seja possível a
conscientização dos malefícios desse. Tal força faz com que o sistema apareça como
única instância capaz de resolver situações conflituosas e negativas sujeitas à
necessidade de controle social. Nesse sentido, é fundamental que cesse o discurso
maniqueísta que garante a sobrevivência da estrutura penal e tende a dividir as pessoas
em boas e más, castigando sempre as últimas. A manutenção de uma estrutura
sustentada por ideologia baseada em abstrações semelhantes é também a manutenção da
violência institucionalizada da justiça penal (KARAM, 2004, pp.103 a 107). O mesmo
é defendido por Louk Hulsman que, como já dito, aposta na desconstrução do
vocabulário oficial para que seja possível a abordagem de questões em níveis distintos
do penal. A linguagem representa uma barreira que, juntamente com o sistema, devem
ser transpostos, para que se pratique uma nova forma de lidar com conflitos.
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inutilidade que representa, do seu potencial criminogêneo, da falácia da reintegração e
ressocialização, dentre outros – é capaz de provocar mudanças significativas em sua
estrutura, ou seja, mudanças no olhar podem provocar mudanças no agir. Nesse ínterim,
a constatação da incoerência do cárcere, por parte da sociedade, pode talvez incentivar
uma militância combativa que acarrete a deslegitimação do Estado como
monopolizador do uso da força e da coerção. A proposta de Thomas Mathiesen de
criação de um espaço público alternativo, diferente daquele a serviço do Estado e das
instituições, capaz de estimular o debate acerca do sistema carcerário, como já
explicitado acima, representa uma maneira viável para que o sistema carcerário seja
explicitado “sem cortes” e “sem censuras” à população.
15 É importante ressaltar aqui que no próprio conceito de crime está embutida a carga social que vincula
sua solução aos moldes penais. (COSTA, 1999, p. 348).
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O autor percebia nos exercícios de resolução de situações-problema em esferas
comunitárias - através de mediações, arbitragens e outras práticas - a existência da
sociedade sem penas. Hulsman cita três formas, já colocadas em prática, de resolução
alternativa de conflitos, a saber, os “confrontos”, as arbitragens e os “community
boards”. Os “confrontos” são formas de resolução de pequenos conflitos penais que
consiste na tentativa de conciliação entre vítima e agressor ainda na instância policial,
evitando assim a necessidade de continuação do processo até os tribunais. Este método
de resolução ocorre dentro da lógica penal e tem como principal função desonerar o
judiciário. Segundo o autor, seu mérito reside na prática de apaziguamento de conflitos,
o que significa um progresso, ainda que dentro da lógica penal. As arbitragens, por sua
vez, são realizadas por conciliadores treinados para intervenção em conflitos e
consistem na conciliação a partir do diálogo e formulação de propostas pelas partes.
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Por fim, pode-se dizer que o Abolicionismo é prática libertária cotidiana. É
atitude contrária à punição e ao castigo. É investimento em uma sociedade sem penas
que já existe e se desenvolve à margem da sociedade punitiva. É a ruptura com os
códigos que engessam a resolução de conflitos e tipificam condutas. Abolir é afastar,
anular, suprimir. O Abolicionismo Penal é prática na fronteira, no limite, que não só
rompe com a égide do castigo, como principalmente ergue-se como estilo de vida, como
prática que, nas palavras de Hulsman, faz bem à saúde.
6. Conclusão
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política declara guerra, utilizando-se da violência (nesse caso presente no confinamento)
como forma de contenção. Na sociedade punitiva a guerra prolonga-se ao infinito.
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parte importante na resolução do conflito. É a quebra com a estrutura hierarquizada de
poder punitivo.
7. Bibliografia
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ANITUA, Gabriel Ignácio. Histórias dos Pensamentos Criminológicos. Rio de
Janeiro: Revan, 2007.
_______________. Los Límites del Dolor. Trad. Mariluz Caso. México: Fondo
de Cultura Econômica, 1984.
KARAM, Maria Lúcia. Pela Abolição do Sistema Penal. In: PASSETTI, Edson
(Coord.). Curso Livre de Abolicionismo Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004.
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MATHIESEN, Thomas. Prison on Trial – a Critical Assessment. London: Sage
Publications, 1994.
FONSECA, André Isola e OLIVEIRA, Ana Sofia Shmidt de. Conversa com um
Abolicionista Minimalista. In Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo:
Revista dos Tribunais, n. 21, ano 6, p. 13-21, jan./mar. 1998.
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