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penais: as diferentes
abordagens e propostas
CRIMINAL ABOLITIONIST VIEWS: THE DIFFERENT
APPROACHES AND PROPOSALS
REVISTA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO | São Paulo, v. 4, n. 2, p. 209-222, jul./dez. 2022
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INTRODUÇÃO
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1. Histórico e síntese dos abolicionismos
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Se as pessoas realmente soubessem o quão fragilmente a prisão, assim como as
outras partes do sistema de controle criminal, as protegem – de fato, se elas sou-
bessem como a prisão somente cria uma sociedade mais perigosa por produzir
pessoas mais perigosas ‒, um clima para o desmantelamento das prisões deveria,
necessariamente, começar já. (MATHIESEN, 2003, p. 95)
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ao abolicionismo penal, razão pela qual é considerado por diversos autores como
integrante da vertente abolicionista (PASSETTI, 2004, p. 105; ACHUTTI, 2014, p. 39;
ANDRADE, 2006, p. 465; ANGOTTI, 2009, p. 256).
Seu pensamento gira em torno da conceituação do crime e de como essa defini-
ção depende de valorações, não havendo uma caracterização intrínseca. De acordo
com CHRISTIE (2011, p. 23), “[...] atos não são; eles se tornam. Pessoas não são, elas se
tornam”, ou seja, não existe um crime em si mesmo, mas, sim, uma escolha do que é ou
não crime. O termo funciona como uma esponja, absorvendo atos e pessoas (CHRIS-
TIE, 2011, p. 16), e pode existir ou deixar de existir dependendo tanto da sociedade e
cultura em que se está inserido quanto da época (KARAM, 2004, p. 73).
Com esse raciocínio, seguindo a tendência da criminologia crítica, CHRISTIE
desvia o foco do crime e criminoso e estuda o processo de criminalização, inteiran-
do-se sobre o que faz com que certas maneiras de agir sejam criminalizadas, bem
como os motivos de pessoas específicas serem consideradas criminosas.
Em sua obra Uma razoável quantidade de crime, CHRISTIE descreve sua análise
sobre a verticalidade e horizontalidade das relações interpessoais e de como influen-
ciam o fenômeno da criminalização, indicando que as características individualistas
e distâncias decorrentes da sociedade atual exercem influências no processo de cri-
minalização. Em uma sociedade pautada mais na coletividade, as pessoas conhecem
mais umas às outras, o que interfere nesse mencionado processo (CHRISTIE, 2011, p. 23).
O crime é um fenômeno criado pelo homem [ser humano]. Entre pessoas que se
conhecem, é menos natural aplicar categorias criminais. Podemos não gostar do
que fizeram e até tentar evitá-lo, mas não sentimos necessidade de usar as catego-
rias simplórias da lei penal. Se aplicados, esses rótulos não aderem com a mesma
amplitude. (CHRISTIE, 2011, p. 107)
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vítima, feito por ela mesma; c) análise feita pela comunidade sobre a possibilidade de
punições; e d) verificação das necessidades do causador do conflito (ACHUTTI, 2014,
p. 46-47). Nesse molde, profissionais ‒ advogados, assistentes sociais, sociólogos etc.
‒ são bem-vindos, mas não podem tomar as rédeas da situação, visto que a atuação de
pessoas próximas ao conflito é fundamental e reflete um modelo de participação, e
não de representação, como ocorre no presente.
A verticalização, aspecto estrutural do exercício de poder (ZAFFARONI, 1991, p.
15), provoca episódios de lastimáveis punições e aplicações conscientes de dor (CHRIS-
TIE, 2011, p. 119), que ignoram por completo as histórias de cada pessoa envolvida,
julgando-as como se pudessem tratar todos os impasses com um único modo: punição.
Tendo em conta seus estudos, CHRISTIE (2011, p. 127-128) conclui que se deve evitar
a punição, e não procurar punições alternativas. Diz, no entanto, que existem casos
específicos em que há uma imensa dificuldade de implementação de métodos alter-
nativos às prisões, como, por exemplo, homicídios, razão pela qual a abolição total do
sistema penal não seria possível.
Porém, por intermédio da horizontalidade, CHRISTIE (2011, p. 83) assevera que a
figura monstruosa que se cria sobre o considerado criminoso é desfeita quando se
obtém contato com a pessoa. Deve-se tentar, sempre, buscar negociar em vez de esco-
lher a utilização de violência. A importância de sair do campo da punição e adentrar
outros planos de resolução de conflitos é extraída, principalmente, da necessidade de
dialogar, que tem de ser prioridade (CHRISTIE, 2011, p. 150-151).
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pessoas encarceradas e ex-encarceradas4. Sobre seu funcionamento, MATHIESEN
(2003, p. 108) disserta: “Em resumo, tentamos criar uma rede de opinião e informação
atravessando os limites formais e informais entre segmentos dos sistemas políticos
e administrativos relevantes” (MATHIESEN, 2003, p. 108), sem, contudo, contentar-se
com meras reformas, não perdendo o foco da abolição (BELUSSO e DUTRA, 2017, p. 87).
Não é possível afirmar, apesar disso, que o KROM não admite reformas, já que, a
partir da década de 1980, houve uma mudança de compreensão em relação aos obje-
tivos da organização, passando a se dedicar a uma redução da expansão do sistema
e, consequentemente, aceitando reformas consideradas positivas (BRAGA, 2012, p.
109-110).
Avançando para as propostas de MATHIESEN, tem-se três “instâncias” que
declara serem as responsáveis por permitirem e induzirem a construção e preser-
vação do sistema penal: a) administradores do sistema em silêncio; b) intelectuais que
acreditam no sistema ou que não o questionam; e c) mídia, que proporciona verdadei-
ros eventos sensacionalistas (ANGOTTI, 2009, p. 254).
Com essas bases, MATHIESEN elabora que, provavelmente, a revelação explícita
da irracionalidade do sistema e a mudança da opinião pública gerariam uma alte-
ração nas atitudes de políticos, na medida em que poderiam perder eleitores, e o
advento de novos ares na política criminal (MATHIESEN, 2003, p. 96). Como, porém,
buscar essas transformações?
MATHIESEN sugere uma vasta lista de possibilidades que podem não somente
colaborar com a alteração da percepção da opinião pública, mas, essencialmente, com
a abolição de todo o sistema penal. Dentre elas, menciona a compensação econômica
por parte do Estado quando há o cometimento de atitudes conflituosas, apoio simbó-
lico em situações de pesar e luto, abrigos de proteção, centros de apoio para mulheres
agredidas, mudanças na política de drogas, moradias decentes, programas de traba-
lho e aumento de apoio às vítimas de acordo com a gravidade das ações (MATHIESEN,
2003, p. 96-97).
Além disso, um dos pontos mais discutidos nas obras de MATHIESEN é a atuação
da mídia, que opera como uma “camada de proteção” do sistema penal.
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Sabendo que a mídia, em especial, manipula e influencia fortemente a opinião pública,
propõe a formação de um “espaço público alternativo”. Em tal espaço, a argumentação
e o pensamento livre de sensacionalismos banais representariam os valores domi-
nantes (MATHIESEN, 2015, p. 28).
Três devem ser os pilares do ambiente: a) liberação do poder de absorção da grande
mídia, isto é, da capacidade de distorcerem a realidade e transmitirem conteúdos
sobre a área criminal de maneira frívola; b) restauração da autoestima e sentimento
de pertencimento dos chamados “movimentos raízes”, que podem colaborar com a
abolição; e c) reconstrução da noção de responsabilidade dos intelectuais, no sentido
amplo da palavra ‒ acadêmicos, artistas, músicos, escritores e atores (MATHIESEN,
2015, p. 28-29; MATHIESEN, 2003, p. 107).
Por último, entende-se que não se deve buscar o abolicionismo impedindo o
avanço na defesa de maiores direitos e garantias, como a descriminalização de con-
dutas e outras situações que possam auxiliar o fim do sistema penal. O abolicionismo,
contudo, deve permanecer como foco (BELUSSO e DUTRA, 2017, p. 91).
Principal nome do abolicionismo penal, Louk Hulsman, foi professor de Direito Penal
na Universidade de Erasmus de Rotterdam, nos Países Baixos, e defendeu ardua-
mente a abolição completa do sistema penal, sem exceções5 (HULSMAN, 2018, p. 143).
Da mesma forma que CHRISTIE, não compreende que o crime exista por si mesmo,
por se tratar de uma construção social (HULSMAN, 2018, p. 81). O conceito de crime
pode, por isso, ser desconstruído, exercendo-se, em uma interpretação nietzschiana,
uma transvaloração dos valores, ou, em outros termos, uma “[...] mudança radical dos
valores impostos e fixados na sociedade [...]” (GONÇALVES, 2016, p. 186). Nas pala-
vras de HULSMAN (2018, p. 80), “conforme você tenha nascido num lugar ao invés de
outro, ou numa determinada época e não em outra, você é passível ‒ ou não ‒ de ser
encarcerado pelo que fez, ou pelo que é”.
Esse entendimento, somado à realidade criminal, fez com que HULSMAN consi-
derasse que, para uma efetiva abolição do sistema penal, a mudança deve se iniciar
em cada pessoa e, posteriormente, concretizada na sociedade (ANGOTTI, 2009, p.
257-258).
Como, porém, mudar? Ao se aproximar de situações empíricas que embasaram
suas fundamentações para o abolicionismo, HULSMAN reforça a ideia de que a puni-
ção não é a única maneira de resolver situações problemáticas (HULSMAN, 2018, p.
124-125)6. A punição penal produz o pensamento pautado apenas no castigo, na vin-
gança, e ignora os danos causados aos envolvidos, o que, obviamente, não deveria
ser o intuito.
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Diante do caos que se vislumbrava nos sistemas penais em sua época – e que ainda
se mantém –, HULSMAN disponibilizou diversas propostas, que dividiremos, para
melhor compreensão, em: a) propostas voltadas às resoluções de conflitos e b) pro-
postas focadas em alterar a lógica estrutural punitiva.
“Para mim, não existem nem crimes nem delitos, mas apenas situações problemá-
ticas. E sem a participação das pessoas diretamente envolvidas nestas situações, é
impossível resolvê-las de uma forma humana” (HULSMAN, 2018, p. 119).
Como a frase acima evidencia, HULSMAN reflete que os conflitos, ou situações
problemáticas, devem possuir como base a interação direta entre os envolvidos,
sobretudo autor e vítima. Ao contrário do que acontece nos dias de hoje, não se deve
supor que todas as vítimas terão as mesmíssimas reações e necessidades, tampouco
que os acusados percebam o mal que causaram sem que possam conversar com os
ofendidos (HULSMAN, 2018, p. 101). O modo como as acusações criminais são reali-
zadas e como o sistema penal conduz o processo não permitem que os implicados
tenham suas vontades conhecidas e, muito menos, ponderadas.
Para uma abordagem eficiente, propõe, portanto, três maneiras de solucionar confli-
tos. A primeira é chamada de “confronto” e se respalda no enfrentamento direto entre
os envolvidos no conflito, no diálogo “cara-a-cara”. A segunda é a arbitragem, em que
há a participação de um conciliador para auxiliar na resolução do conflito, ouvindo
as partes, identificando seus problemas e oferecendo acordos. Em uma terceira via,
preferida de HULSMAN, estão as Community Boards, identificadas como comissões
conciliatórias formadas por indivíduos “conectados” às pessoas envolvidas nas situa-
ções problemáticas discutidas, afetivamente ou não. Esses integrantes das comissões
são treinados para reconhecerem os problemas existentes e ampararem os envolvidos
na busca por uma solução (BELUSSO e DUTRA, 2017, p. 84; HULSMAN, 2018, p. 153-155).
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2.3.2 Alteração da lógica estrutural punitiva
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na prática operativa, o sistema penal não exerce seu poder para tutelar bens jurí-
dicos nem regras sociais mínimas, e nem é eficiente para nenhum dos dois objetos.
Qualquer das afirmações não passa de racionalização discursiva legitimadora do
exercício de poder do sistema penal; se os encararmos como dados de realidade ou
como programação suscetível de realização, não faremos mais que cair em outra
ilusão. (ZAFFARONI, 1991, p. 254)
“O sistema mata as família”, como diz a música “Corpo e Alma”, do grupo de rap Inqué-
rito7, e “esperar que o sistema penal acabe com a ‘criminalidade’ é esperar em vão”
(HULSMAN, 2018, p. 127).
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REFERÊNCIAS
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220 OLHARES ABOLICIONISTAS PENAIS: AS DIFERENTES ABORDAGENS E PROPOSTAS
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Notas de fim
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