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O Clamor Por Pena De Morte E Prisão Perpetua Sob O Argumento Da

Fragilidade Das Leis Atuais

Resumo: O Direito Penal tem que exercer na sociedade um papel


transformador, para tantos, cumpre marejar a restauração da segurança jurídica
e o equilíbrio entre o crime e sua penalização; não é elemento que pode ser
usado como esteira de vingança, nem contudo, pode prescindir do crime, sua
questão repousa no equilíbrio, como se pode dizer, “nem muito céu, nem muita
terra”; desta forma, acompanha a humanidade com o foto de ser agregador, de
resposta rápida; porém, não precipitado, a ponto de alcançar inocentes e, por
extensão promover a desaprovação de qualquer ato que fira a lei, demonstrando
através de sanções esta desaprovação efetiva e certeira.

Palavras Chaves: Pena de Morte. Criminalidade. Direito Penal. Punição.


Controle.

Abstract: Criminal Law must play a transformative role in society, for many, it is
important to strive to restore legal security and the balance between crime and
its punishment; it is not an element that can be used as a revenge trail, nor,
however, can it do without the crime, its question rests on balance, as one might
say, “not too much sky, not too much earth”; in this way, it accompanies humanity
with the aim of being an aggregator, of quick response; however, not hasty, to
the point of reaching innocent people and, by extension, promoting the
disapproval of any act that violates the law, demonstrating this effective and
accurate disapproval through sanctions.
Keywords: Death Penalty. Crime. Criminal Law. Punishment. Control.

Sumário: Introdução; 1. Violência punitiva: um fenômeno trazido do passado; 2.


O clamor por sangue ou por justiça ?; 3. Tecnologia do Poder Punitivo; 4. A
política do direito de punir; Bibliografia.

Introdução
A sociedade passou por um longo período para se estabilizar como um Estado
de Direito quando o respeito à pessoa humana passou a ter consonância e
determinante, considerada avançada. A dignidade do ser humano passou a
assumir o primeiro e mais importante plano na sociedade chamada moderna, a
preocupação em ao menos oferecer condições de justiça igualitária começou por
distinguir-se em todas as camadas sociais tornando possível imaginar uma
mudança brusca no paradigma. O Direito Penal com sua forma de penalização
passou a exercer papel fundamental nesta metamorfose de inovações, as penas
cruéis foram substituídas pela pretensão de penas que pudessem reinserir a
pessoa criminosa na sociedade, havendo com isso uma reintegração e
ressocialização. O caminho até este momento foi árduo, houve muitos erros,
muitos excessos, muita vingança com o nome de justiça, mas se recobrou o
senso crítico e se avançou para um estado de coisas mais razoáveis e
aceitáveis.

Contudo, acontecimentos marcantes começaram a conspirar contra esta


conquista após séculos de labuta.

A violência descontrolada e sem precedentes passou a povoar diariamente os


jornais escritos e televisivos assombrando a todos com sua face mais cruenta.
Crimes bárbaros constantemente noticiados e repetidamente reproduzidos a
exaustão, geram um inconformismo e repúdio passando a ser tema
diuturnamente discutido em todos os meios de comunicação. E como se só isso
por si não bastasse, as redes sociais com seu longo poder de alcance passaram
também exercer um papel decisivo neste debate.

Mudanças de humor e de perspectiva tomaram conta destes meios de massa e


o que se está presenciando é quase que a volta a um sistema medieval onde o
clamor por uma resposta mais dura e pronta das autoridades passou a ser
exigida de forma assustadora. Vídeos com cenas de pessoas das mais diversas
formações e atividades usando da chamada “justiça com as próprias mãos”
passaram a ser frequentes e a vibração e culto a estes personagens, algumas
vezes anônimas outras escancaradas tem sido frequente. Estes têm sido
tratados quase como heróis da sociedade.
O bom senso está sendo relegada a posição de escárnio e quase nada se tem
feito para impedir esta verdadeira escalada de violência. O direito está anos luz
de se quer ser discutido o que se presencia é o clamor da violência em troca da
violência deflagrada, a pena em regime recluso, a quantidade de anos a ser
cumprido está sendo abandonado pela justiça imediata e sumária, com a volta
da frase no mínimo temerária: “bandido bom é bandido morto”. A proposta de
pena de morte é assunto diário dos telejornais e, não raro em salas de aula nos
cursos de Direito.

O quadro que se avizinha não é dos melhores uma vez projetar uma volta a um
passado que só se deveria visitar para aprender através dos erros praticados.
Este fantasma tem assumido voz, controle e tomado à frente das conquistas até
aqui conseguidas.

A proposta deste trabalho é discutir com uma visão crítica da história a violência
exacerbada usando como pano de fundo a sociedade contemporânea buscando
no filósofo Michel Foucault em especial sua obra Vigiar e Punir, elementos que
contraste o suplício na execução da pena, pela reflexão que esta volta ao
passado transformaria a sociedade. Para tanto se perscrutará esta obra,
trazendo à baila outros escritores que compactuam de forma sensível ao tema,
propondo discussão e conversando com o assunto traçando paralelo com as
ideias prolatadas apresentando o contraponto entre questões de direito,
sociologia e filosofia para então responder as premissas propostas.

A atenção à coluna vertebral do tema será perseguida para tornar o texto límpido
e claro, possibilitando a discussão e a crítica, sempre pronta e aceita para que o
tema não assuma o caráter de “verdade absoluta”.

Dentro da pretensão não há a minimização da pena, ou a discussão dos


problemas acontecidos para uma pessoa viver no crime. O que se propõe discutir
é sim a forma como se está alardeando fazer a aplicação da penalização de
delitos. Não haverá a defesa inconsequente de que se deve permitir o não
cumprimento de pena, o que se busca é discutir se o melhor caminho, se a saída
é fazer a justiça acontecer mesmo que se necessário com as próprias mãos.
Este perigo de se julgar, condenar e aplicar sumariamente uma penalização (por
exemplo, o linchamento) é que não se pode conceber num Estado de Direito. O
pior caminho é se achar no direito de assumir o papel de promotor, juiz e
carrasco.

Há mecanismos que outros países usaram e foram bem sucedidos para mudar
este quadro aterrador sem, contudo, exercer o papel de Tribunal de Justiça
independente. Buscar a todo custo manter o direito, a coerência neste debate é
de suma importância uma vez ser este o caminho sensato e coerente a ser
exercido.

Diante desta constatação fatalista cumpre perguntar: Qual o tipo de sociedade


se espera construir com esta ideia de vingança? Qual o papel que o direito deve
assumir doravante? Aonde uma sociedade com esta sede de vingança chegará?
A violência como resposta a violência empregada é a solução? Qual o papel da
mídia e das redes sociais nesta ideia?

Manter esta linha de questionamento respondendo estas questões passa ser


sumamente importante sendo o cerne desta obra.

1. Violência punitiva: um fenômeno trazido do passado

As cores da violência mais cruel podem ser visitadas ao se buscar ler e estudar
sobre a forma como as penas eram aplicadas nos séculos passados. A aplicação
da pena era um espetáculo popular apregoado como forma de inibir e acabar
com a possibilidade da existência do crime na sociedade.

Assumindo forma de um espetáculo público como uma celebração, as pessoas


do povo eram convidadas a presenciarem a execução das sentenças onde o
suplício era a forma mais comum de se vindicar o que se chamava de justiça.
Não raro as formas mais cruéis eram aplicadas publicamente dilacerando,
queimando, amputando, usando cavalos para partir a pessoa ao meio,
degolação, o uso de todas as espécies de instrumentos cortantes com lâminas,
estripamento, toda sorte de tortura, as mais lancinantes possíveis eram
exercidas para devolver o sentimento de punidade tão importante no fomento do
poder do Estado de punir.

O mais das vezes, apesar da coerência de seus resultados, ela não passa de
uma instrumentação multiforme. Além disso seria impossível localizá-la, quer
num tipo definido de instituição, quer num aparelho do Estado. Estes recorrem a
ela; utilizam-na, valorizam-na ou impõem algumas de suas maneiras de agir.
Mas ela mesma, em seus mecanismos e efeitos, se situa num nível
completamente diferente. Trata-se de alguma maneira de uma microfísica do
poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade
se coloca de algum modo entre esses grandes funcionamentos e os próprios
corpos com sua materialidade e suas forças. Ora, o estudo desta microfísica
supõe que o poder nela exercido não seja concebido como uma propriedade,
mas como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não sejam atribuídos
a uma “apropriação”, mas a disposições, a manobras, a táticas, a técnicas, a
funcionamentos; que se desvende nele antes uma rede de relações sempre
tensas, sempre em atividade, que um privilégio que se pudesse deter; que lhe
seja dado como modelo antes a batalha perpétua que o contrato que faz uma
cessão ou a conquista que se apodera de um domínio. (FOUCAULT: 2008, p.26).

Basileu Garcia também descortina este período, demonstrando como o suplício


assumir um papel determinante na aplicação da pena.

Para se ter ideia do que representou no passado o sistema de atrocidades


judiciárias, não será necessário remontar a mais longe que há três séculos.
Na França, por exemplo, ainda depois do ano de 1700, a pena capital era
imposta de cinco maneiras: esquartejamento, fogo, roda, forca e decapitação.
O esquartejamento, infligido notadamente no crime de lesa-majestade,
consistia em prender-se o condenado a quatro cavalos, ou quatro galeras,
que se lançavam em momento em diferentes direções. A morte pelo fogo
verificava-se após ser amarrado o condenado a um poste, em praça pública,
onde era o corpo consumido pelas chamas. E costume houve, também, de
imergir o sentenciado em chumbo fundido, azeite ou resina ferventes. O
suplício da roda era dos mais cruéis: de início, o paciente, que jazia amarrado,
era esbordoado pelo verdugo, até se lhe partirem os membros. Em seguida
era colocado sobre uma roda, com a face voltada para o céu, até expirar.
(GARCIA: 1956, p. 15 e 16).

Esta instrumentalização que Foucault se refere é sem dúvida o cerne da questão,


pois era a forma do Estado/Poder demonstrar publicamente sua força e o
controle que deveria ser respeitado a todo custo, sem que houvesse nenhuma
dúvida e se quer tentativa de burlar esta orla de predomínio. Tal era o modelo
ostentado por esta instituição uma dominação total e completa do indivíduo.

A violência, excesso, abuso, sim, talvez; mas no fundo desses excessos,


violências e abusos não é simplesmente, não é fundamentalmente a maldade
do príncipe que vai estar em questão. O que está em questão, o que explica
isso tudo é que o governo, no momento em que viola essas leis da natureza,
pois bem, ele simplesmente as desconhece. Ele as desconhece porque
ignora sua existência, ignora seus mecanismos, ignora seus efeitos. Em
outras palavras, os governos podem se enganar. E o maior mal de um
governo, o que faz que ele seja ruim, é ele ser ignorante. (FOUCAULT: 2008,
p. 23)

Para entender melhor esta época e os atos do poder de governar, vale lembrar:
Como prática governamental há de se entender a forma como o poder
soberano transita dentro da esfera de comando. É importante não perder de
vista o manto sagrado atribuído ao soberano impingindo assim,
características de deus a seu comando, pessoa e função, habilitando-o a
desenvolver sem muita preocupação a extensão de seu domínio. Não é difícil
perceber a ausência de compromisso em não errar, uma vez estar perto da
infalibilidade dos deuses o que permite fatalmente criar as mais diversas
possibilidades de governar, sem o receio de que mesmo errando alguma
consequência recaia sobre seu governo. Foucault afirma, contextualizando
esta questão que “quem governa tem um objetivo ilimitado”. (FOUCAULT. O
nascimento da clínica. 2008. p. 10). (DUARTE: 2014, p. 37).

O que chama atenção nesta descrição toda era o envolvimento da população


vibrando e a cada ato de tortura extrema empregada, como se disso dependesse
suas vidas futuras, era possível ver famílias inteiras assistindo e presenciando
esta danação, inclusive com seus filhos ainda infantes como se fosse o programa
predileto a ser assistido.

Contudo, não se tem notícia do fim do crime nestes tempos, nem tampouco que
a violência praticada por criminosos tenham acabado.

Cumpre lembrar as palavras de Magalhães Noronha ao tratar da existência e


permanência do crime incrustado na Sociedade:

A história do direito penal é a história da humanidade. Ele surge com o


homem e o acompanha através dos tempos, isso porque o crime, qual
sombra sinistra, nunca dele se afastou. (...) – (NORONHA: 1991, p. 20).

O que se via era a troca explícita dos atos delituosos pelo suplício sem que com
isso houvesse se quer o fim dos atos criminosos. O que se percebe na leitura
crítica deste tempo é que à medida que a tortura, suplício, e violência contra o
criminoso crescia, o crime não diminuía, se assim não fosse, por que então se
retirou das sentenças esta forma de punição? Qual foi o resultado desta prática
em termos de fim do crime?
Vejamos o que é dito sobre este tempo:

Vivo em uma época que, por causa de nossas guerras civis, abundam os
exemplos de incrível crueldade. Não vejo na história antiga, nada pior do que
os fatos dessa natureza, que se verificam diariamente e aos quais não me
acostumo. Mal podia eu conceber, antes de o ver, que existissem pessoas
capazes de matar pelo simples prazer de matar; pessoas que esquartejam o
próximo, inventam engenhosos e desconhecidos suplícios e novos gêneros
de assassínios, sem ser movidos nem pelo ódio nem pela cobiça, no intuito
único de assistir ao espetáculo dos gestos, das contrações lamentáveis, dos
gemidos, dos gritos angustiados de um homem que agoniza entre torturas.
(MONTAIGNE: 1996, p. 367)

O texto do filósofo Montaigne foi escrito em 1580, o que contextualiza o tempo


aqui apresentado, demonstrando que havia por parte de várias pessoas uma
abjeta aversão pelo espetáculo empreendido, não impedindo que muitas outras
vibrassem e assistisse de forma participativa todo este dantesco espetáculo.

Diante desta descrição dantesca se permite pensar que havia se instituído de


forma clara e evidente a violência autorizada, sem penalização, o Estado podia
exercer tal implemento sem contudo ser culpado.

Assim se pode descrever a questão pungente da violência:


A violência se expressa no excesso, na gratuidade, na banalidade com que
se apresenta no dia-a-dia (...) vem-se infiltrando profundamente no tecido das
relações sociais. É cada vez mais parte do cotidiano (...) o impacto desse
quadro na vida subjetiva se exprime tanto na corrosão dos laços sociais – na
destruição dos espaços de convivência e ação comuns, no isolamento cada
vez maior dos indivíduos e no abandono de horizontes compartilhados
quando no campo do sofrimento psíquico e da psicopatologia (...) ela está
entranhada em nossa estrutura social e permeia o tecido de nossos laços
intersubjetivos. (...) O declínio do poder em função da redução da capacidade
de agir em conjunto cria um caldo para o florescimento da violência. Como
compreender as raízes dessa violência? Qual seu impacto na experiência
subjetivados indivíduos? (BEZERRA: 2005, p116,118.).

Pode se indagar também sobre a forma de se julgar os crimes, quanto de justiça


era fornecido para aplicação de castigos desta monta? Como eram os
julgamentos praticados nesta época? Havia possibilidade do contraditório? O
advogado de defesa tinha acesso ao processo e tempo hábil para apresentar
uma defesa razoável?
A título de apreciação vejamos como eram conduzidos estes julgamentos:

De acordo com a ordenação de 1670, que resumia, e em alguns pontos


reforçava a severidade da época precedente, era impossível ao acusado ter
acesso às peças do processo, impossível conhecer a identidade dos
denunciadores, impossível saber o sentido dos depoimentos antes de recusar
as testemunhas, impossível fazer valer, até os últimos momentos do
processo, os fatos justificativos, impossível ter um advogado, seja para
verificar a regularidade do processo, seja para participar da defesa. Por seu
lado, o magistrado tinha o direito de receber denúncias anônimas, de
esconder ao acusado a natureza da causa, de interrogá-lo de maneira
capciosa, de usar insinuações. Ele constituía, sozinho e com pleno poder,
uma verdade com a qual investia o acusado; e essa verdade, os juízes a
recebiam pronta, sob a forma de peças e de relatórios escritos; para eles,
esses documentos sozinhos comprovavam; só encontravam o acusado uma
vez para interrogá-lo antes de dar a sentença. (FOUCAULT: 2008, p.32)

Este quadro aterrador demonstra a celeridade dos julgamentos e a não


preocupação com a defesa do réu. O acesso praticamente nulo da defesa
demonstra quão zeloso em punir era o Estado, e quão pouco valor se dava a
amplitude da defesa. A temeridade talvez nunca descoberta seja se este
processo pródigo tenha punido quantos inocentes, uma vez não ser dada a
defesa condições de em sua plenitude desbaratar o arcabouço jurídico da época.
Afirmar que todos os condenados, todos que passaram pelo suplício foram
realmente culpados, diante do texto exposto é uma temeridade, e com isto em
mente fica claro que a justiça era algo que passava longe da pena e que o
importante era sem dúvida demonstrar o poder do Estado em punir, do que
descobrir a questão primal, se a pessoa condenada era realmente culpada dos
crimes a ela imposta.

Para que se possa ainda pensar sobre este fato cumpre lembrar-se de Cesare
Beccaria:

Mas, a superstição e a tirania os perseguem; acusam-nos de crimes


impossíveis ou imaginários; ou então são culpados, mas somente de terem
sido fiéis às leis da natureza. Não importa! Homens dotados dos mesmos
sentidos e sujeitos às mesmas paixões se comprazem em julgá-los
criminosos, têm prazer em seus tormentos, dilaceram-nos com solenidade,
aplicam-lhes torturas e os entregam ao espetáculo de uma multidão fanática
que goza lentamente com suas dores. Quanto mais atrozes forem os
castigos, tanto mais audacioso será o culpado para evitá-los. Acumulará os
crimes, para subtrair-se à pena merecida pelo primeiro. Os países e os
séculos em que os suplícios mais atrozes foram postos em prática, são
também aqueles em que se viram os crimes mais horríveis. O mesmo espírito
de ferocidade que ditava leis de sangue ao legislador, punha o punhal nas
mãos do assassino e do parricida. Do alto do trono, o soberano dominava
com uma verga de ferro; e os escravos só imolavam os tiranos para
possuírem novos. À medida que os suplícios se tornam mais cruéis, a alma,
semelhante aos fluidos que se põem sempre ao nível dos objetos que os
cercam, endurece-se pelo espetáculo renovado da barbárie. A gente se
habitua aos suplícios horríveis; e, depois de cem anos de crueldades
multiplicadas, as paixões, sempre ativas, são menos refreadas pela roda e
pela força do que antes o eram pela prisão. (BECCARIA: 1999, p. 62,63).

A busca do direito e não de saciar o povo com sangue de vingança deve ser o
grande objetivo do direito. Resguardar o que se chama justiça deve ser o grande
ideal de qualquer Estado que pretenda governar regido pelo senso de equidade
devendo se afastar de promover barbáries em nome de uma pseudojustiça.

O direito tem que exercer na sociedade um papel transformador e para tanto,


cumpre marejar a restauração da segurança jurídica entre o crime e a sua
penalização.

Lembrar-se da obra a Luta pelo Direito é salutar, ainda mais em tempos onde se
clama por sangue:

A paz é o fim que o direito tem em vista, a luta é o meio de que se serve para
conseguir. Por muito tempo pois que o direito ainda esteja ameaçado pelos
ataques da injustiça – e assim acontecerá enquanto o mundo for mundo –
nunca ele poderá subtrair-se à violência da luta. A vida do direito é uma luta:
luta pelos povos, do Estado, das classes, dos indivíduos. Todos os direitos
da humanidade foram conquistados na luta; todas as regras importantes do
direito devem ter sido, na sua origem, arrancadas àquelas que a elas se
opunham, e todo direito, direito de um povo ou direito de um particular, faz
presumir que se esteja decidido a mantê-lo com firmeza. O Direito não é uma
pura teoria, mas uma força viva. Por isso a justiça sustenta numa das mãos
a balança em que pesa o direito, e na outra a espada de que se serve para
defender. A espada sem a balança é a força brutal; a balança sem a espada
é a impotência do direito. Uma não pode avançar sem a outra, nem haverá
ordem jurídica perfeita sem que a energia com que a justiça aplica a espada
seja igual à habilidade com que maneja a balança. O direito é um trabalho
incessante, não somente dos poderes públicos mas ainda de uma nação
inteira. (IHERING: 1999, p. 1)

É sumamente importante relembrar que o direito busca a paz e não a guerra,


não o sangue pelo sangue, não a vingança por vingança é à base de toda
estrutura que se tem pretensão de chegar como sociedade equânime. Exigir que
se buscasse justiça sem ao menos oferecer mecanismos para seu uso é
empreender um Estado totalitário onde a decretação de sentenças não possa
ser contestada é começar a ruir toda a luta pelo direito. O contraditório em
qualquer processo penal é de tal importância que denega-lo seria o mesmo que
partir para uma execução sumária sem ao menos haver um julgamento.

A admissão de sentenças prolatadas sem o direito de defesa, sem ouvir a parte,


sem se importar na busca da verdade, macula o direito e o expõe a risco de
desaparecer. Há se esperar equilíbrio de um Estado como instituição para
apaziguar os ânimos daqueles que são imediatistas.

2. O clamor por sangue ou por justiça?

O contexto histórico era favorável a este tratamento ao criminoso por ser uma
sociedade violenta em seu matiz, as guerras eram travadas corpo a corpo e
duravam décadas, espalhando um rastro de sangue e terror, de forma especial
ao velho continente, a Europa em todos os seus rincões. Então presenciar cenas
onde o sangue era um fim em si mesmo era comum, era costume.

A própria estrutura da sociedade onde as pessoas caçavam e matavam animais


para comer dava este condão sanguinário, tornando algo sem importância
presenciar atos onde o sangue a ser derramado era comum. Com isto em mente
visitar a história do direito penal é currial para compreender a extensão destes
atos e perceber como se é visto este período com a lente da violência chamada
de justiça.

A historia do Direito penal é uma historia de crimes moraes, de tyrannias, de


horrores, de tormentos, e de sangue, que fazem estremecer a humanidade,
que hoje contempla os factos, e que não póde, na presença delles, deixar de
recuar tremendo. Parece impossivel, que hovessem legisladores, juizes,
executores da alta justiça, a representar activamente nas repetidas scenas
de supplicios os mais variados, todos corporaes, todos afflictivos, a respeito
dos quaes a imaginação do homem procurasse com esmero a preferência e
a invenção de martyrios os mais dolorosos contra seres da mesma espécie,
contra irmãos, contra filhos. Os homens, peóres que as feras, a pretexto de
punir os malefícios, commeteram crimes mais reprehensiveis, que os que
pretenderam reprimir. Deram o exemplo de crueldade, da violação dos
direitos individuaes, e dos da propriedade (Theoria do Direito Penal, vol. 1, p.
XXX/XXXI). (grafia original) (DOTTI: 2004, p. 124).

Sucumbindo à violência muitas vezes desproporcional, se justificava com o findo


de proteger o Estado e seu regente impondo o medo e temor. A ideia de
reabilitação, resocialização ou mesmo reinserção estavam distantes e não havia
se quer o pensamento de poder o criminoso passar por um processo de remissão
de seus crimes, uma vez praticado o ato criminoso ele deveria ser punido com
rigor.
O clamor por sangue era costumeiro, sua exigência algo determinante para a
chamada justiça vindicativa, segundo a mentalidade da época, o controle do
governo sobre a população afastando de forma cabal as pessoas da
possibilidade do crime.

Na esteira desta postura cumpre notar o seguinte, o que se entendia como


suplício?

O suplício é uma técnica e não deve ser equiparado aos extremos de uma
raiva sem lei. Uma pena, para ser um suplício, deve obedecer a três critérios
principais: em primeiro lugar, produzir uma certa quantidade de sofrimento
que se possa, se não medir exatamente, ao menos apreciar, comparar e
hierarquizar; a morte é um suplício na medida em que ela não é simplesmente
privação do direito de viver, mas a ocasião e o termo final de uma graduação
calculada de sofrimentos: desde a decapitação —que reduz todos os
sofrimentos a um só gesto e num só instante: o grau zero do suplício — até
o esquartejamento que os leva quase ao infinito, através do enforcamento,
da fogueira e da roda, na qual se agoniza muito tempo; a morte suplício é a
arte de reter a vida no sofrimento, subdividindo-a em “mil mortes” e obtendo,
antes de cessar a existência, the most exquisite agonies.6 O suplício repousa
na arte quantitativa do sofrimento. Mas não é só: esta produção é regulada.
O suplício faz correlacionar o tipo de ferimento físico, a qualidade, a
intensidade, o tempo dos sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do
criminoso, o nível social de suas vítimas. Há um código jurídico da dor; a
pena, quando é supliciante, não se abate sobre o corpo ao acaso ou em
bloco; ela é calculada de acordo com regras detalhadas: número de golpes
de açoite, localização do ferrete em brasa, tempo de agonia na fogueira ou
na roda (o tribunal decide se é o caso de estrangular o paciente
imediatamente, em vez de deixá-lo morrer, e ao fim de quanto tempo esse
gesto de piedade deve intervir), tipo de mutilação a impor (mão decepada,
lábios ou língua furados). (FOUCAULT: 2008, p.31).

Como se pode perceber havia toda uma estratégia para aplicação de um


suplício e ainda, todo um ritual a ser seguido, para que aquele que estava sendo
supliciado não morresse antes do momento certo, antes de proporcionar um
espetáculo magistral de dor e agonia. Havia um código jurídico da dor. Foucault
apresenta em preto e branco com funcionava:

Há um código jurídico da dor; a pena, quando é supliciante, não se abate


sobre o corpo ao acaso ou em bloco; ela é calculada de acordo com regras
detalhadas: número de golpes de açoite, localização do ferrete em brasa,
tempo de agonia na fogueira ou na roda (o tribunal decide se é o caso de
estrangular o paciente imediatamente, em vez de deixá-lo morrer, e ao fim de
quanto tempo esse gesto de piedade deve intervir), tipo de mutilação a impor
(mão decepada, lábios ou língua furados). (FOUCAULT: 2008, p. 31).
O que o suplício significava:
“Pena corporal, dolorosa, mais ou menos atroz [dizia Jaucourt]; e
acrescentava: é um fenômeno inexplicável a extensão da imaginação dos
homens para a barbárie e a crueldade.” (FOUCAULT: 2008, p.31).

A justiça era facilmente confundida com vingança se sobrepondo facilmente a


uma punição exemplar. A medida desta pseudo justiça era a dor causada, ou o
sentimento de retribuir o mal cometido. Percebe-se a falta de compromisso de
entender valores humanos, a vida, a dignidade era tratada como moeda de
pouco valia e os atos de revanche eram facilmente percebidos.

De lições práticas, o abandono dos atos ilícitos praticados, o fim do delito, não
era pensado na época, o que se fazia crer que era sangue por sangue, suplício
por suplício, sofrimento por sofrimento. Cumpre lembrar as palavras de Beccaria:

Os países e os séculos em que se puseram em prática os tormentos mais


atrozes, são igualmente aqueles em que se praticaram os crimes mais
horrendos. (BECCARIA: 1999, p. 50).

Tendo este pano de fundo onde os países que praticavam estes “tormentos mais
atrozes” não se livravam dos crimes mais horrendos, verifica-se que o fato de
estarem instituídas estas penalizações brutais não diminuía nem tampouco
arrefecia a criminalidade e prática de crimes. Com isto em mente é fácil perceber
que o castigo imposto não corroborava com a diminuição da violência. Se assim
era, então qual o papel do suplício? Justiça ou vingança? Aplacar a ira dos
populares ou estabelecer a força do Estado Monarca? O que de fato e verdade
havia nesta postura do governante?

Abandonando o arcabouço dessas ideias medievais, o Estado assume a


política interna e há então necessidade de um poder de polícia. Surge um
Estado de polícia voltado às pessoas residentes no Estado e que necessitam
serem controladas. Surgem tratados de polícia, com diferentes normas
sistematizando o objeto da polícia – sendo este quase infinito. Em suma,
quem governa o Estado e tem que controlar os súditos através do poder
público, passa a ter um objetivo ilimitado, pois se trata de um estado de
equilíbrio sempre desequilibrado para manutenção de seu povo, em que a
relação Estado/ Súdito é sempre frágil, deixando assim os habitantes do
Estado sempre a necessitar do governo de forma total e segura – não para o
povo, mas para quem governa. Nesse Estado de polícia não há limitação em
seus objetivos, demonstrando ser a razão do Estado atingir em seu apogeu
uma forma ilimitada de controlar seus habitantes. (DUARTE: 2014, p. 33).

Os espetáculos eram demonstrações de poder e força do Estado, era uma forma


de apresentar ao povo o controle do monarca e a amplitude alcançada por ele,
sem que com isso perdesse seu objetivo central que é controlar os “súditos”, de
forma a não terem controle sobre a própria vida. Essa dependência gerada por
este poder é claramente observável e transmitir esta dependência é o cerne de
quem pretende controlar.

Neste ponto requerer justiça, ou equidade era totalmente desnecessário para o


governante, afinal o suplício servia com outros propósitos e não somente a
aplicação de uma pena. Era acima de tudo empreender a visão de predomínio,
de disciplina, de controle.

A ideia de justiça estava longe de ser compreendida, estava distante de ser


desejada e a busca do imediatismo e a retribuição por atos danosos ocupavam
o desejo de quase todos. Como entender a justiça se ela não era propagada?

Para tanto cumpre construir o que começou a mudar neste conceito mal
compreendido:

A ideia de justiça é certamente o ponto de partida não apenas para a História


do Direito, como também para o despertar da reflexão ética, nos primeiros
tempos da vida histórica. Desde as sociedades mais primitivas, sempre houve
a preocupação de instaurar normas e fixar princípios que asseguram não
apenas a ordem, como também a sobrevivência dos grupos humanos.
(PISSARRA E FABBRINI, 2007, p. VII).

À medida que o tempo se passou e a mudança de segurança do poder central


do monarca começou por ruir, as práticas extensivas de violência no suplício
começaram por ser abandonadas dando lugar ao conceito de justiça
restaurativa. Importava agora substituir o suplício por elementos que
substituíssem e aplacasse o clamor popular. Mas o poder deveria ser mantido a
todo custo, então as formas cruentas foram aos poucos sendo trocadas por
penas de caráter menos aflitiva, ao menos visivelmente. Começou-se a repensar
esta ideia de espetáculo para tornar menos público à aplicação da pena.

Dentre tantas modificações, atenho-me a uma: o desaparecimento dos


suplícios. Hoje existe a tendência a desconsiderá-lo; talvez, em seu tempo,
tal desaparecimento tenha sido visto com muita superficialidade ou com
exagerada ênfase como “humanização” que autorizava a não analisá-lo. De
qualquer forma, qual é sua importância, comparando-o às grandes
transformações institucionais, com códigos explícitos e gerais, com regras
unificadas de procedimento; o júri adotado quase em toda parte, a definição
do caráter essencialmente corretivo da pena, e essa tendência que se vem
acentuando sempre mais desde o século XIX a modular os castigos segundo
os indivíduos culpados? Punições menos diretamente físicas, uma certa
discrição na arte de fazer sofrer, um arranjo de sofrimentos mais sutis, mais
velados e despojados de ostentação, merecerá tudo isso acaso um
tratamento à parte, sendo apenas o efeito sem dúvida de novos arranjos com
maior profundidade? No entanto, um fato é certo: em algumas dezenas de
anos, desapareceu o corpo supliciado, esquartejado, amputado, marcado
simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado como
espetáculo. Desapareceu o corpo como alvo principal da repressão penal.
(FOUCAULT: 2008, p. 12).

Os suplícios públicos começaram a deixar de existir na forma de penalizar o


culpado e se passou a tomar seu tempo, não mais seu corpo como forma de
sacrifício pelo mal causado. É de se pensar que este abandono do suplício, ou
a pena impingida ao corpo deixou de existir porque seu resultado foi pífio,
inexpressivo, não alcançou um dos objetivos centrais que era intimidar a prática
delituosa. Com isso percebe-se que punir de forma exemplar não diminuiu a
violência dos atos humanos, nem tampouco desenvolveu um senso de medo
para continuar a praticar todos os atos criminosos.

A necessidade de repensar a forma como seria aplicada a pena aos que


cometessem crimes passou a ser de suma importância, mesmo vergando o viés
de perceber que o poder central tinha seu crédito em assim fazer, praticando os
espetáculos, ficou claro que depois de todas as revoluções ocorridas esta prática
não seria mais tolerada, e que o próprio governante poderia ser vítima da própria
ânsia de vingança, a mudança passou a ser mais do que necessária, passou a
ser iminente.

Fica evidente que havia diferenças entre alguns seres humanos dentro da
sociedade, alguma inclinação para maldade, para o crime, para o delito. Agora
se precisava chegar à forma como se deveria praticar o que começa a surgir com
muita força: a justiça. O equilíbrio da justiça passava pela maneira como se ia
buscar punir aqueles que se desviassem dos princípios e leis estabelecidas.

Primeiro, os homens descobriram suas diferenças individuais. Depois,


notaram ser impossível fundar sobre essas diferenças suas normas de
conduta. E foi assim que chegaram a descobrir a necessidade de buscar um
princípio que ficasse acima dessas diferenças. Dessa forma, a noção de
justiça surgiu da necessidade de instaurar normas capazes não apenas de
fixar os limites do uso da força e do exercício do poder, como também de
restabelecer o equilíbrio nas relações entre pessoas. (PISSARRA E
FABBRINI, 2007, p. VII).
O exercício do poder passava agora pelas relações com as pessoas da
sociedade, estabelecendo equilíbrio e equidade. O uso da força, demonstrações
de dureza, de crueldade, sai de cena para entrar o uso do equilíbrio, da
equidade, do justo sentido.

É perceptível que a própria população se cansou dos espetáculos de suplício e


começou por esperar verificar certa bondade do poder dominador. A sede de
sangue passa a ser substituído pela sede de justiça, os valores apregoados
pelos pensadores, filósofos começam a assumir forma e a reivindicar o exercício
da prudência, ao estabelecer a prática de como se deve cobrar a culpa das
pessoas que são condenadas. Não bastava mais apenas apontar o culpado,
aqueles que teriam que responder pelo crime, agora se observava a maneira
como eles seriam tratados, o grau de civilidade empregado para torna-lo
sociável, e como se daria este processo de ressocialização. Essa mudança de
paradigma se deve aos novos valores empregados após a revolução francesa e
a independência americana.

Com essa mudança de pensamento, a sociedade começa a avançar para não


aceitação do emprego da força, do derramamento de sangue a qualquer tempo,
e a retomada de uma vida plural em sociedade.

Rousseau dispõe de maneira absolutamente eficaz sobre esta ideia:

Suponhamos os homens chegando àquele ponto em que os obstáculos


prejudiciais à sua conservação no estado de natureza sobrepujam, pela
resistência, as forças de que cada indivíduo dispõe para manter-se nesse
estado. Então, esse estado primitivo já não pode subsistir, e o gênero
humano, se não mudasse de modo de vida, pereceria. Ora, como os homens
não podem engendrar novas forças, mas somente unir e orientar as já
existentes, não têm eles outro meio de conservar-se senão formando, por
agregação, um conjunto de forças, que possa sobrepujar a resistência,
impedindo-as para um só móvel, levando-as a operar em concerto. Essa
soma de forças só pode nascer do concurso de muitos: sendo, porém, a força
e a liberdade de cada indivíduo os instrumentos primordiais de sua
conservação [...]. (ROUSSEAU: 1999, p. 69).

Houve com isso apenas uma mudança na forma, não no projeto final de controle
do poder central, mas mesmo assim esta mudança arquitetou algo mais sutil,
mas leve em comparação com os grandes espetáculos proporcionados à época
dos suplícios.
Cumpre notar as palavras que Foucault descerra ao tratar deste momento onde
se repensa esta prática e a substitui por outra mais palatável, menos chocante:

A punição pouco a pouco deixou de ser uma cena. E tudo o que pudesse
implicar de espetáculo desde então terá um cunho negativo; e como as
funções da cerimônia penal deixavam pouco a pouco de ser compreendidas,
ficou a suspeita de que tal rito que dava um “fecho” ao crime mantinha com
ele afinidades espúrias: igualando-o, ou mesmo ultrapassando-o em
selvageria, acostumando os espectadores a uma ferocidade de que todos
queriam vê-los afastados, mostrando-lhes a frequência dos crimes, fazendo
o carrasco se parecer com criminoso, os juízes aos assassinos, invertendo
no último momento os papéis, fazendo do supliciado um objeto de piedade e
de admiração. (FOUCAULT: 2008, P. 12).

Havia é claro um longo caminho para descobrir o que se fazer para proporcionar
a justiça as penas aos transgressores. Qual a medida certa? Como aplica-la de
forma a servir de exemplo? Qual a dosimetria adequada? Como evitar excesso
e mesmo assim servir de referencial para desestimular a novas práticas?

Considerando que a demonstração de poder estava ainda alicerçada e combalia


à sombra do governante, nada mais salutar do que se instituir leis que
ancorassem esta travessia sem tumultuar as pretensões de exercício de força e
poder. As palavras de Montesquieu soam sonoras a este respeito:

A experiência mostra que todo homem que tem poder é tentado a abusar
dele. Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição
das coisas, o poder faça parar o poder. Uma Constituição pode ser de tal
modo que ninguém será obrigado a fazer coisas que a lei não obriga, nem
será impedido de fazer as que a lei permite. Para o cidadão, a liberdade
política é esta tranqüilidade de espírito que provêm da opinião que cada um
possui de sua segurança. E, para que se tenha essa liberdade, é preciso que
o governo seja de tal modo que um cidadão não possa temer outro cidadão.
(MONTESQUIEU, 1995, p. 118).

O poder sem controle é o desejo de todo governante, o sonho de realizar sem


nenhum tipo de fiscalização seus projetos, sem haver sem censura e sem haver
qualquer tipo de contrariedade, mas é claro que esta ideia deve ser solapada em
sua nascente, uma vez a história demonstrar o que ocorre quando assim um
governante é deixado sem reservas alguma.

Cumpre observar como se dá estas mudanças na seguinte citação:


Percebemos uma mudança significativa calcada em novos mecanismos, em
seus efeitos e também em seus princípios. Isso não significa imaginar que
com essa arte de governar haverá um apagamento, supressão ou até
abolição da razão de Estado, conforme apresentado. É uma forma de se
adaptar e, dentro dessa adaptação se proteger usando esses novos
mecanismos que lhe oferta a possibilidade de permanecer no governo, ou
seja, no poder. A busca concentra-se em se manter governando. As
mudanças chegam com novidades aqui e acolá, em mudanças na vivência
social. (DUARTE: 2014, p.39).

E como se pode construir este poder? Foucault responde;


Pois se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio
da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento, à maneira de um
grande superego, se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria
muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos a nível do desejo
como se começa a conhecer e também a nível do saber. O poder, longe de
impedir o saber, o produz. (FOUCAULT. 2003, p. 114)

Desta forma se arquiteta a função do poder, sem a necessidade de repressão,


censura exclusão ou impedimento, nesta máxima aparente de liberdade, de
abertura se esconde o pior tipo de controle, pois, sem demonstrar seus
tentáculos, o Estado assume como que invisivelmente manter tudo sob sua égide
e mãos, sem, contudo precisar criar espetáculos. A mudança de postura é
evidente e clara, assume-se um aspecto quase que democrático, propõe a
liberdade, mas, no entanto está fiscalizando, controlando, dominando
absolutamente tudo. Por isso, o saber é libertador, se impõe contra esta forma
de governo, de regência invisível, destrona a possibilidade de imposição, de
inibição disciplinar, Foucault apresenta dessa forma esta questão:

Trata-se da insurreição dos saberes não tanto contra os conteúdos, os


métodos e os conceitos de uma ciência, mas de uma insurreição dos saberes
antes de tudo contra os efeitos de poder centralizadores que estão ligados à
instituição e ao funcionamento de um discurso científico organizado no
interior de uma sociedade como a nossa. (FOUCAULT: 2003, p.171).

Esta espécie de controle é o mais danoso, pois não tem limites não mostra seus
aspectos tolhendo seus cidadãos, sua aparência é dulcificada, quase inofensiva,
mas por trás de toda esta aparência há um monstro sedento por sangue.
Sobra apenas à possibilidade de sentir seus efeitos, sua sede pela prática do
poder sem limites, sua disciplina exacerbada. Este é sem dúvida o pior dos
mundos.

Foucault apresenta sem sofismas esta questão e como se livrar das algemas
que se impõe neste sistema:

Trata-se da insurreição dos saberes não tanto contra os conteúdos, os


métodos e os conceitos de uma ciência, mas de uma insurreição dos saberes
antes de tudo contra os efeitos de poder centralizadores que estão ligados à
instituição e ao funcionamento de um discurso científico organizado no
interior de uma sociedade como a nossa. (FOUCAULT. 2003, p.171).

O saber em toda sua grandeza é libertador, proporciona condições de libertar


dos grilhões do poder imposto pelo Estado. Mesmo que haja o recuo na questão
do suplício do corpo, descortinando novas pretensões e um sistema diferente, a
ideia central e constante é de controlar.

Foucault apresenta como o Estado se transforma para começar a exercer seu


controle:

O panoptismo é um dos traços característicos da nossa sociedade. É uma


forma de poder que se exerce sobre os indivíduos em forma de vigilância
individual e contínua em correção, isto é, de formação e transformação dos
indivíduos em função de normas. Este tríplice aspecto do panoptismo –
vigilância, controle e correção – parece ser uma dimensão fundamental e
característica das relações de poder que existem em nossa sociedade.
(FOUCAULT: 2005, p. 103).

*Panoptismo – sig. panóptico, descrito por Michel Foucault em Vigiar e Punir,


constitui uma ‘máquina’, idealizada por Bentham no século XVIII, cuja arquitetura
é formada por uma torre central e uma construção circular periférica. Nesta se
encontram indivíduos a serem vigiados – prisioneiros, loucos, escolares,
trabalhadores, isolados em células, formando “uma coleção de individualidades
separadas” – enquanto naquela se encontram os vigias. As salas da construção
periférica são determinadas por janelas externas (por onde entra a luz) e por
janelas internas (frente à torre central). E é justamente essa a eficiência do
dispositivo panóptico: “ver sem ser visto”; à torre é possível ver tudo o que
acontece no prédio externo, ao passo que este nem sabe se é, ou não, vigiado.
“A visibilidade é uma armadilha”. As conseqüências são imediatas: separados
pelas paredes – cada um em sua célula – os indivíduos são analisados
individualmente. Já a possibilidade de serem vigiados a todo instante incita um
sentimento de auto-regulamentação. Ou seja, o indivíduo constrói (ou assimila)
uma série de condutas que permanecem dentro de um limite aceitável – o bom
senso não é transgredido. Nas palavras do autor, o dispositivo induz “um estado
consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento
automático do poder”, com um objetivo inicial, base representativa do
panoptismo: disciplinar. (FOUCAULT: 2008).

**Panoptismo – segundo Foucault “é um dos traços característicos da nossa


sociedade. É uma forma de poder que se exerce sobre os indivíduos em forma
de vigilância individual e contínua em forma de controle de punição e
recompensa e em forma de correção, isto é, de formação e transformação dos
indivíduos em função de certas normas. Este tríplice aspecto do panoptismo –
vigilância, controle e correção – parece ser uma dimensão fundamental e
característica das relações de poder que existem em nossa sociedade”.
(FOUCAULT: 2005, p. 103).

***Panoptismo – Foucault amplia sua ideia de panoptismo com a seguinte


declaração: “Em uma sociedade como a sociedade feudal não se encontra nada
semelhante ao panoptismo. Isto não quer dizer que em uma sociedade de tipo
feudal ou nas sociedades europeias do século XVII não tenha havido instâncias
de controle social e de punição e recompensa. Entretanto, a maneira pela qual
elas se distribuíam era completamente diferente da maneira através da qual elas
se instalaram no fim do século XVIII e no começo do século XIX. Vivemos hoje
em uma sociedade programada, no fundo, por Bentham, uma sociedade
panóptica, sociedade onde reina o panoptismo”. (FOUCAULT: 2005, p.103).

A busca pela informação correta, pela liberdade, por justiça não deve deixar de
fazer parte da história mais cara do homem. Se recuar aceitar imposições
desproporcionais é de suma importância, para tanto, as palavras de Bobbio
reflete bem este espírito empreendedor:

(...) direito do homem, a democracia e a paz são três momentos necessários


do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e
protegidos, não há democracia, não existem as condições mínimas para a
solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a
sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhe são
reconhecidos alguns direitos fundamentais. (...) Os direitos do homem, por
mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em
certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas
liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de
uma vez e nem de uma vez por todas. (BOBBIO: 1992, p. 68).

Começa a aparente era dos direitos, onde a busca de garantias fundamentais


arregimentando soluções mais pacificas, e menos conflitosas estendendo
benefícios de um processo mais coeso voltado à busca do ser humano na
sociedade, e dando a parcial visão de transparência e cuidado da pessoa
humana.

Na visão Foucaultiana todo este cuidado era estritamente calculado e pensado


para parecer algo onde demonstrasse certa mudança da sociedade, contudo, o
mesmo controle anterior e disposição de se manter a disciplina desejada seriam
mantidos sem parcimônia alguma. O texto Foucaultiano continua a destilar a
forma como toda esta mudança se daria:

Mas se analisarmos de perto as razões pelas quais toda a existência dos


indivíduos se encontra controlada por estas instituições, vemos que se trata,
no fundo; não somente de apropriação, de extração da quantidade máxima
de tempo, mas também, de controlar, de formar, de valorizar, segundo um
determinado sistema, o corpo do individuo. Se fizéssemos uma história do
controle social do corpo, poderíamos mostrar que, até o século XVIII
inclusive, o corpo dos indivíduos é essencialmente superfície de inscrição de
suplícios e de penas; o corpo era feito para ser supliciado e castigado. Já nas
instâncias de controle que surgem a partir do século XIX, o corpo adquire
uma significação totalmente diferente; ele não é mais o que deve ser
supliciado, mas o que deve ser formado, reformado, corrigido, o que deve
adquirir aptidões, receber um certo número de qualidades, qualificar-se como
o corpo capaz de trabalhar. (FOUCAULT, 2005, p. 119).

Se faz necessário se dizer que a LEP (Lei de Execução Penal) no seu art. 31,
caput, aqui no Brasil determina que todo preso deve trabalhar, assim reza o texto
legal: “O condenado à pena privativa de liberdade está obrigado ao trabalho na
medida de suas aptidões e capacidade”. (Curiosamente, por motivos
incompreensíveis, os presos aqui no Brasil, em quase sua maioria não
trabalham).
O governo não deixaria sua disposição em controlar tudo e todos, apenas daria
uma pequena abertura como demonstração de evolução, mas mantendo as
rédeas totalmente em suas mãos.

Relações de poder, não relações de sentido. A História não tem sentido, o


que não quer dizer que seja absurda ou incoerente. Ao contrario, é inteligível
e deve poder ser analisada em seus menores detalhes, mas segundo a
inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas. (FOUCAULT. 2003, p.
05)

As relações de poder que o Estado defende e mantém está acima do interesse


humano, está voltado a manter a todo custo seu poder expandi-lo, sem nenhuma
cerimônia, o que afinal parece ser uma constante na história da humanidade. Um
poder controla a maioria das pessoas, enquanto sobrevive acima de qualquer
julgamento, parâmetro e ou qualquer prestação de contas. Por mais que se
possa ver certa mudança da monarquia para a República, os resquícios reais,
monárquicos ainda podem ser vistos e sentidos.

Os detentores do poder se sentem como deuses, como onipotentes, pois o poder


ensoberbece, embriaga seus ocupantes de cargos como se eles fossem
invencíveis e estivessem acima do bem e do mal.

A história comprova isso de forma absoluta, não há quem tenha ocupado o posto
mais alto de um país que em algum momento, ou em todo ele tenha se
comportado como Imperador.

Esta convivência com o poder inebria do mais simples ao mais orgulhoso, ao


mais humilde ao orgulhoso, todos sucumbem a seu vitupério. Não há quem
escape, todos são engolidos e devorados.

3. Tecnologia do Poder Punitivo

Uma vez acabado a época dos suplícios havia necessidade de se reformular a


aplicação da pena, agora contando com o tempo daqueles que transgredissem
as leis, os recolhendo ao cárcere, e tomando seu tempo como forma de punição.
Analisando com acuidade este momento da história, não escapa ao filósofo a
sensibilidade de perceber o que realmente estava acontecendo:
Durante todo o século XVIII, dentro e fora do sistema judiciário, na prática
penal cotidiana como na crítica das instituições, vemos formar-se uma nova
estratégia para o exercício do poder de castigar. E a “reforma” propriamente
dita, tal como ela se formula nas teorias de direito ou que se esquematiza nos
projetos, é a retomada política ou filosófica dessa estratégia, com seus
objetivos primeiros: fazer da punição e da repressão das ilegalidades uma
função regular, coextensiva à sociedade; não punir menos, mas punir melhor;
punir talvez com uma severidade atenuada, mas para punir com mais
universalidade e necessidade; inserir mais profundamente no corpo social o
poder de punir. (FOUCAULT: 2008, p. 69 e 70).

Havia ciência de que só esta manutenção da pessoa em cárcere não seria


suficiente para desconstruir a ideia de punição ao corpo, veja o que o texto
Foucaultiano apresenta neste período.

O afrouxamento da severidade penal no decorrer dos últimos séculos é um


fenômeno bem conhecido dos historiadores do direito. Entretanto, foi visto,
durante muito tempo, de forma geral, como se fosse fenômeno quantitativo:
menos sofrimento, mais suavidade, mais respeito e “humanidade”. Na
verdade, tais modificações se fazem concomitantes ao deslocamento do
objeto da ação punitiva. Redução de intensidade? Talvez. Mudança de
objetivo, certamente. Se não é mais ao corpo que se dirige a punição, em
suas formas mais duras, sobre o que, então, se exerce? A resposta dos
teóricos — daqueles que abriram, por volta de 1780, o período que ainda não
se encerrou — é simples, quase evidente. Dir-se-ia inscrita na própria
indagação. Pois não é mais o corpo, é a alma. À expiação que tripudia sobre
o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração,
o intelecto, a vontade, as disposições. Mably formulou o princípio decisivo:
Que o castigo, se assim posso exprimir, fira mais a alma do que o corpo.
(FOUCAULT: 2008, p. 18)

Como se pode ver pelo que o filósofo afirma a mudança era apenas de objetivo,
ou seja, aparente, não visceral, não transformadora nem muito menos redentora.
A figura humana ainda é tratada como objeto, o crime ainda possuía rosto, só
não se faz mais os espetáculos sangrentos, suplícios públicos, estes atuam na
esfera do coração, do intelecto, da vontade, como se escreveu “que o castigo
[...] fira mais a alma do que o corpo”. Desta feita a trajetória deixa de ser
sangrenta e cruenta para ser desmoralizadora aviltante a pessoa, rompendo com
a dignidade de quem sofrerá tal pena, que roube a paz, qualquer possibilidade
de virtude, de equilíbrio, que destrua a dignidade em sua íntima relação com a
mente e o corpo, que não sobre nenhuma faísca de humanidade, que transforme
a pessoa num condenado marcado pela sociedade. Em suma Foucault evoca a
forma como o poder agora atua sobre o corpo:

Mas quando penso na mecânica do poder, penso em sua forma capilar de


existir, no ponto em que o poder encontra o nível dos indivíduos, atinge seus
corpos, vem se inserir em seus gestos, suas atividades, seus discursos, sua
aprendizagem, sua vida quotidiana. O século XVIII encontrou um regime por
assim dizer sináptico de poder, de seu exercício no corpo social, e não sobre
o corpo social. (FOUCAULT: 2008, p. 131).

Ora, diante disso, qual a diferença do suplício público que poderia conduzir a
morte e tal situação aviltante? A morte da pessoa levada ao cárcere é social, não
carnal. E os efeitos desta morte social certamente se estenderia a toda sua
família. Percebe-se que a mudança enfim não trouxe lenitivo? Percebe-se que a
pseudo mudança de padrão não trouxe solução?

[...] a prisão foi o grande instrumento de recrutamento. A partir do momento que


alguém entrava na prisão se acionava um mecanismo que o tornava infame, e
quando saía, não podia fazer nada senão voltar a ser delinquente. Caía
necessariamente no sistema que dele fazia um proxeneta, um policial ou um
alcaguete. A prisão profissionalizava. (FOUCAULT: 2008, p. 133).

O problema continua tão vivo como sempre foi à medida redirecionada não altera
a condição, não consegue estabelecer se quer a possibilidade de uma
transformação social, o que se vê pura e simplesmente é a troca de um castigo
pelo outro, de uma punição por outra, sem ao menos se preocupar em tratar do
problema em si, mas afasta-lo do seio da sociedade, como em todos os tempos
se fez.

Qual a origem do problema crime? Por que as pessoas continuam a delinquir?


O que leva uma pessoa a despeito do que se apregoa na sociedade buscar uma
vida de crimes? Como diminuir esta contínua ascensão? Quais mecanismos
poderiam se buscar para ressocializar uma pessoa contumaz na prática do
crime?

O que se vê desde sempre é a despreocupação com estas indagações, trocando


possíveis soluções por simples contorno do problema, encarcerar, tirando o
indivíduo de circulação e saciar o descontentamento popular com este
incomodo. Simples assim!
Descrevendo este problema crônico, Foucault, levanta a situação de forma real
e sem rodeios:

Que as punições em geral e a prisão se originem de uma tecnologia política


do corpo, talvez me tenha ensinado mais pelo presente do que pela história.
Nos últimos anos, houve revoltas em prisões em muitos lugares do mundo.
Os objetivos que tinham, suas palavras de ordem, seu desenrolar tinham
certamente qualquer coisa de paradoxal. Eram revoltas contra toda uma
miséria física que dura há mais de um século: contra o frio, contra a sufocação
e o excesso de população, contra as paredes velhas, contra a fome, contra
os golpes. Mas eram também revoltas contra as prisões-modelos, contra os
tranqüilizantes, contra o isolamento, contra o serviço médico ou educativo.
Revoltas cujos objetivos eram só materiais? Revoltas contraditórias contra a
decadência, e ao mesmo tempo contra o conforto; contra os guardas, e ao
mesmo tempo contra os psiquiatras? De fato, tratava-se realmente dos
corpos e de coisas materiais em todos esses movimentos: como se trata disso
nos inúmeros discursos que a prisão tem produzido desde o começo do
século XIX. O que provocou esses discursos e essas revoltas, essas
lembranças e invectivas foram realmente essas pequenas, essas ínfimas
coisas materiais. Quem quiser tem toda liberdade de ver nisso apenas
reivindicações cegas ou suspeitar que haja aí estratégias estranhas. Tratava-
se bem de uma revolta, ao nível dos corpos, contra o próprio corpo da prisão.
O que estava em jogo não era o quadro rude demais ou ascético demais,
rudimentar demais ou aperfeiçoado demais da prisão, era sua materialidade
na medida em que ele é instrumento e vetor de poder; era toda essa
tecnologia do poder sobre o corpo, que a tecnologia da “alma” — a dos
educadores, dos psicólogos e dos psiquiatras — não consegue mascarar
nem compensar, pela boa razão de que não passa de um de seus
instrumentos. É desta prisão, com todos os investimentos políticos do corpo
que ela reúne em sua arquitetura fechada que eu gostaria de fazer a história.
(FOUCAULT: 2008, p. 29).

Nas palavras de Foucault o que estava em jogo “era sua materialidade na


medida em que ele é instrumento e vetor de poder”, o importante nesta mudança
era se conservar o que sempre este em jogo: o poder. A mudança de instrumento
onde pudesse controlar e se manter o corpo sobre “a tecnologia do poder”.

O termo controle aparece no vocabulário de Foucault de maneira cada vez


mais frequente a partir de 1971-72. Designa, num primeiro momento, uma
série de mecanismos de vigilância que aparecem entre XIX e que têm como
função não tanto punir o desvio, mas corrigi-lo e, sobretudo, preveni-lo: ‘Toda
a penalidade do século XIX transforma-se em controle, não apenas sobre
aquilo que fazem os indivíduos – está ou não em conformidade com a lei? –
mas sobre aquilo que eles podem fazer, que eles são capazes de fazer,
daquilo que eles estão sujeitos a fazer, daquilo que eles estão na iminência
de fazer ’. Essa extensão de controle social corresponde a uma ‘nova
distribuição espacial e social da riqueza industrial e agrícola’: é a formação
da sociedade capitalista, isto é, a necessidade de controlar os fluxos e a
repartição espacial da mão de obra, levando em consideração necessidades
da produção e do mercado de trabalho, que torna necessária uma verdadeira
ortopedia social, para a qual o desenvolvimento da polícia e da vigilância das
populações são os instrumentos essenciais. (REVEL: 2005, p.29).

Como se pode perceber o que estava em questão era a velha máxima o controle
para ostentar a necessidade de se manter um poder central, um conjunto de
construção arquitetônico onde só se pudesse concentrar toda disciplina regida
por um único centro de comando.

Conseguir se chegar ao âmago do poder, estudar, pesquisar o que leva ao crime


não era sobremaneira importante, mas ostentar e dar a impressão de garantia
de manutenção da sociedade, por que tentar acabar com o crime, se ele gera
dividendo? Por que gastar tempo e dinheiro em diminuir a ação de criminosos
se eles serviriam para demonstrar a força do Estado? Por que se buscaria
solução em aplicar recursos para ressocializar se esta bandeira retorna como
forma de se manter um controle central? Enfim, por que acabar com a violência
se ela cria a insegurança dos povos, a ponto de construir um sentimento de
necessidade de se ter um governo?

A tecnologia do poder percebe esta questão e trabalha com ela para que dê
muitos frutos, não importando que para isso seja necessário se arquitetar planos
mirabolantes e gastos aos milhões para a manutenção da segurança. O que
realmente importa, o que passa a ser necessário é a falsa sensação de
tranquilidade de se manter este ou aquele governo, afinal, a proposta de manter
a “paz” é o que busca o ser humano desde seus primórdios.

Se há um crime alguém tem que se punido, para estabelecer a sensação mesmo


que breve de punição, Foucault descreve de forma sublime esta ostentação:

[...] se tornou indispensável pelo funcionamento da penalidade do século XIX.


Tornou-se necessário por este álibi, que funciona desde o século XVIII, que
diz que se impõe um castigo a alguém, isto não é para punir o que ele fez,
mas para transformá-lo no que ele é. A partir deste momento, atribuir
juridicamente uma pena, ou seja, proclamar a alguém ‘vamos cortar sua
cabeça, atirá-lo na prisão, ou mesmo simplesmente aplicar-lhe uma multa
porque você fez isto ou aquilo” é um ato que não tem nenhuma significação.
A partir do momento em que se suprime a ideia de vingança, que outrora era
atributo do soberano, do soberano lesado em sua própria soberania do crime,
a punição só pode ter significação numa tecnologia de reforma. (FOUCAULT:
2008, p. 138).
É bem verdade que tal compreensão soa cínica demais para ser verdade, é claro
que tal digressão apresenta quase que um fundo cinematográfico, quase uma
história de super herói, mas será que esta não é a máxima a ser compreendida?
Será que inconscientemente não é o que se vende como se fosse uma
mensagem subliminar?

Hobbes trata deste aspecto em seu livro Leviatã:

Entende-se que a obrigação dos súditos para com o soberano dura enquanto,
e apenas enquanto, dura também o poder mediante o qual ele é capaz de
protegê-los. Porque o direito que por natureza os homens têm de defender-
se a si mesmos não pode ser abandonado através de pacto algum.” (Hobbes:
1979, p. 135).

Esta dissecação de Hobbes de que “a obrigação dos súditos para com o


soberano dura enquanto, e apenas enquanto, dura também o poder mediante o
qual ele é capaz de protegê-los”, dá a exata noção de como funciona a questão
de proteção dentro do governo. Enquanto as pessoas que vivem em um Estado
se sentem seguras, elas compreenderão a necessidade de se manter aquele
soberano, acabando esta sensação, deixando de existir, o detentor do poder
deixará de ser importante e o que se verá é a necessidade de substituí-lo, ou
deixar este o governo. O poder dura exatamente o tempo que se demonstrar
necessário, não mais que isso.

Com isto em mente fica mais claro entender o que Foucault queria dizer ao se
referir ao soberano:

A forma secreta e escrita do processo confere com o principio de que em


matéria criminal o estabelecimento da verdade era para o soberano e seus
juízes um direito absoluto e um poder exclusivo. Ayrault supunha que esse
procedimento (já estabelecida no que tange ao essencial no século XVI) tinha
por origem o medo dos tumultos, das gritarias e aclamações que o povo
normalmente faz, o medo de que houvesse desordem, violência e
impetuosidade contra as partes talvez até mesmo contra os juízes; o rei
quereria mostrar com isso que a “força soberana” de que se origina o direito
de punir não pode em caso algum pertencer à “multidão”. Diante da justiça
do soberano, todas as vozes devem-se calar. (FOUCAULT: 2008, p. 32,33).
(grifos nossos).

A “força soberana”, “justiça do soberano”, “todas as vozes devem-se calar” é a


constatação de ostentação de esse poder imanente pretendido pelo soberano.
É como se este poder estivesse acima de qualquer coisa, fosse quase divino,
onipotente, indelével, superior. Com esta prática contumaz o soberano
conseguia se mantiver no poder, acaba-se esta sensação entre o povo e o fim
do reinado estava decretado, daí ser de suma importância se manter este
controle surreal, não dando espaço algum para outros pensamentos que não de
dependência total deste poder central.

Na segunda metade do século XVIII, este sistema de tolerância muda. As


novas exigências econômicas, o medo político dos movimentos populares,
que vai se tornar lancinante na França, depois da Revolução, tornam
necessário um outro esquadrinhamento da sociedade. Foi preciso que o
exercício do poder se tornasse mais fino, mais estreito, e que se formasse,
desde a decisão tomada centralmente até o indivíduo, uma rede tão contínua
quanto possível. (DROIT: 2004, p. 46).

Com isto em mente fica claro que toda manutenção deste poder e seu estado de
coisas dependia de certa necessidade premente, ora existindo violência,
havendo descontrole, insegurança, o soberano era mais do que necessário, era
desejado, almejado e uma figura indispensável para que o Estado gozasse de
tranquilidade, demonstrar poder audaz, força na execução de sentenças,
aprisionar as pessoas sob um manto de certeza era todo objetivo deste que
desejava estar no poder.

Hobbes continua suas considerações sobre a necessidade do soberano e como


fazer com que ele possua condições de cuidar da população:

A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das


invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes
assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e
graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir
toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembleia de homens, que
possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só
vontade. O que equivale a dizer: designar um homem ou uma assembleia de
homens como representante de suas pessoas, considerando-se e
reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que
representa sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser
respeito à paz e segurança comuns; todos submetendo assim suas vontades
à vontade do representante, e suas decisões a sua decisão. Isto é mais do
que consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles,
numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos
os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada
homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este
homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de trans-ferires a
ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito
isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim
civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes, (para falar em
termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do
Deus Imortal, nossa paz e defesa. Pois graças a esta autoridade que lhe é
dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder
e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades
de todos eles, no sentido da paz em seu próprio país, e ela ajuda mútua
contra os inimigos estrangeiros. É nele que consiste a essência do Estado, a
qual pode ser assim definida: Uma pessoa de cujos atos uma grande
multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por
cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de
todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a
defesa comum. (HOBBES, 1974, p. 110) (destaques nosso).

É salutar apreciar o que Thomas Hobbes aponta como única solução para
defender as pessoas é o estabelecimento de “um tal poder”, que traga segurança
e paz a população. Ele continua dizendo que deve se escolher um homem, que
represente a todos considerando ele como capaz de promover e disseminar a
tão sonhada tranquilidade entre os homens e com palavras quase que
impensadas ainda descreve, como isso deve ser feito: Cedo e transfiro meu
direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de
homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira
semelhante todas as suas ações, é uma procuração com plenos poderes para
agir, transigir, coordenar, decidir o que é melhor para a vida de todos. Como ideal
é quase que necessário, porém, o grande problema é o que tal homem faz
quando está de posse desse poder, e não é um simples poder ele é grande
suficiente para desviar a atenção, para se tornar egoísta e imprudente. Por isso
se pergunta, quais são de verdade seus planos e projetos, quais são as medidas
a serem atingidas? Há realmente interesse em buscar o bem comum? Ou aquilo
que realmente interessa ao homem comum? Fará ele àqueles que depositaram
este poder em suas mãos o que desejam ou, será seus projetos pessoais mais
importantes que o coletivo?

O que se pode perceber com o tempo é ser a concentração do poder danosa,


dando ares de não ter quer prestar contas, não ter que explicar suas ações e
pior, agir como se tudo que fizesse estivesse dentro da normalidade. É
importante salientar que o poder transferido do povo a um governante é
representativo não com a atmosfera de soberania, onde seus atos não podem
ser inquiridos, ser contestados. O atual sistema é representativo e como tal
depende da vontade popular, do projeto maior que é de atendimento ao conjunto,
ao todo e não a uma parte da sociedade.

Tércio Sampaio Ferraz em sua obra Estudos de Filosofia do Direito, assim


apresenta a questão:

Nesse sentido, a primeira característica de uma relação de poder é que ele


se dispensa de produzir as condições de sua instauração e de sua
perpetuação. Quando essas condições ocorrem o poder é legítimo, isto é,
está apto a transmitir desempenhos seletivos. [...] Ou seja, a relação de poder
é assimétrica, pois só um lado pode desconfirmar o outro só aceita ou nega.
E essa possibilidade unimaterial não necessita de justificação (vale), pois
uma autoridade que precise justificar-se perdeu a autoridade: por isso, o
detentor se baseia, mas não precisa invocar nem tradição nem positivação.
Entende-se assim que uma relação de autoridade sempre escamoteia,
dissimula as relações de força que estão em sua base, agregando sua própria
força àquelas relações. (FERRAZ: 2003, p. 61).

A legitimação do poder se dá através das condições de sua instauração,


ocorrendo quando há esta relação assimétrica. Essa é unilateral, dispensando
justificativas, pois este poder se baseia na força.

O povo renova, oferece e mantém tacitamente este poder sem cobranças ou


questionamentos entendendo que ele fará todo o necessário para construir o
bem comum. Se há uma dependência tal que se necessite de mais tempo para
esta instauração, será dado, por essa necessidade primal ter sido criada,
alimentada e transposta a população como um vício, tornando-a dependente e
aquiescente de tal forma de governo, em outras palavras como bem afirma
Tércio Ferraz; [...] “Entende-se assim que uma relação de autoridade sempre
escamoteia, dissimula as relações de força que estão em sua base agregando
sua própria força àquelas relações”.

4. A política do direito de punir

O Estado como ente soberano e absoluto, decretou sua capacidade de punir


usando da figura do Rei, se o monarca podia tudo, isso seria apenas mais uma
das suas atividades. Embora novos tempos tenham surgido, a herança de
onipotência foi mantida e tem sido sustentada ao longo dos anos. A punição a
toda sorte de transgressão pertence ao poder central que define como será.
O suplício foi sendo substituído por outras formas menos sangrentas de punir,
sem publicamente se demonstrar ser sanguinária a pena aplicada. A política de
punir foi dando espaço para a prisão que passou a ser uma ferramenta comum
e indispensável.

Foucault comenta esta transformação vertendo sua visão desta nova prática.

Desde o começo a prisão devia ser um instrumento tão aperfeiçoado quando


a escola, a caserna ou o hospital, e agir com precisão sobre os indivíduos. O
fracasso foi imediato e registrado quase que ao mesmo tempo que o próprio
projeto. Desde 1820 se constata que a prisão, longe de transformar os
criminosos em gente honesta, serve apenas para fabricar novos criminosos
ou para afunda-los ainda mais na criminalidade. Foi então que houve, como
sempre nos mecanismos de poder, uma utilização estratégica daquilo que era
um inconveniente. A prisão fabrica delinquente, mas os delinquentes são
úteis tanto no domínio econômico como no político. Os delinquentes servem
para alguma coisa. (FOUCAULT: 2008, p.131,132).

Como se pode observar não é algo novo o fracasso das cadeias, remonta 1820
e se demonstra que nos primórdios não houve melhora do prisioneiro, pelo
contrário há a afirmação taxativa que sempre se produziu dentro das prisões
mais criminosas ao invés de reduzir o surgimento de novos indivíduos com esta
prática.

Não é difícil imaginar a razão primária, um ambiente onde a violência é


prestigiada, onde se valoriza a lei do mais forte, onde só sobrevive aquele que
usa da força, seria quase impossível se esperar mudança no comportamento de
quem entra ali já inclinado à violência.

Cumpre observar a forma como se apresenta PODER e VIOLÊNCIA, como se


distinguem na aplicação de seu exercício:

Violência e poder, não são a mesma coisa. [...] O poder é um saber fazer e
violência é uma ação que está dirigida para suprimir ou destruir o outro. O
poder é:“ uma ação, uma potência, atividade para modificar; um ato
verdadeiramente intersubjetivo, que leva a modificar os sujeitos em relação
com a sua identidade, porque um sujeito impor sua presença19 é inerente.
São movimentos de imposição, recíprocos onde um sujeito deixa sua marca
no outro e o coloca em uma nova subjetividade. E se a marca existe nos força
a fazer algo com ela: recebê-la, modificá-la e modificar a si mesmo.
(BERENSTEIN: 2006, p 4).
Uma simples observação desde tempos do castigo na forma de suplício para o
castigo do tempo mantendo prisioneiro aquele que comete crimes, não resultou
em mudanças para sociedade, o crime continuou campeando por todo tecido
social, e pelo que se pode perceber só aumentou, não diminuiu em momento
algum, nem na época do suplício, nem tão pouco nos tempos atuais, é
peremptório seu crescimento e transformação, hoje existindo uma multiplicidade
de crimes em sua forma, jamais vista antes e passando pelo chamado “crime
organizado”. Para efeito de classificação e compreensão do que vem a ser crime
organizado, há entre os doutrinadores que assim classifica e posiciona esta
questão: “estrutural (número mínimo de pessoas integrantes), finalístico (rol de
crimes a ser considerado como de criminalidade organizada) e temporal
(permanência e reiteração de vínculo associativo)”. (Araújo Silva: 2003, p. 34).
Diante desta estrutura se pode chegar ao que se pode considerar como crime
organizado e seus tentáculos na sociedade.

Para melhor entender esta nova fase cumpre verificar o que se conceitua como
“crime organizado”.

O crime organizado possui uma textura diversa: tem caráter transnacional na


medida em que não respeita as fronteiras de cada país e apresenta
características assemelhadas em várias nações; detém um imenso poder
com base numa estratégia global e numa estrutura organizativa que lhe
permite aproveitar as fraquezas estruturais do sistema penal; provoca
danosidade social de alto vulto; tem grande força de expansão, compreendo
uma gama de condutas infracionais sem vítimas ou com vítimas difusas;
dispõe de meios instrumentais de moderna tecnologia; apresenta um
intricado esquema de conexões com outros grupos delinquenciais e uma rede
subterrânea de conexões com os quadros oficiais da vida social, econômica
e política da comunidade; origina atos de extrema violência; exibe um poder
de corrupção de difícil visibilidade; urde mil disfarces e simulações e, em
resumo, é capaz de inerciar ou fragilizar os Poderes do próprio Estado.
(GOMES, 1997, p. 75)

Com a ascensão do crime organizado fica evidente a derrota do Estado para o


crime, afinal este hiato criado, escancara as entranhas do poder que deveria
evitar esta situação a todo custo e que acabou por perder, permitindo tacitamente
que tal poder paralelo surgisse e criasse fôlego a ponto de desafiar como se
pode ver o Estado como instituição, como aquele que representa a segurança,
e se curva a este poder chegando a até transacionar, dialogar e estabelecer uma
convivência quase de convivência mínima.

Uma demonstração clara se pode encontrar no livro de Amorim; CV_PCC :


A irmandade do crime, que assim expõe a organização criminosa: [...]
Subestimado pelo governo, que não conhece a realidade das cadeias, o PCC
criou raízes em todo o sistema carcerário paulista. Nas prisões, diretores
ultrapassados, da época repressão [no regime militar], tentavam resolver o
problema de maneira que em foram doutrinados: porretes, choques, água fria,
porrada ... Não foi suficiente. Em menos de três anos, já eram três mil. Em
menos de dez anos, 40 mil. (AMORIM: 2004, p. 375).

Este quadro é bem esclarecedor de como a simples cadeia tem criado


ramificações para mais e piores crimes, não impede o crescimento e ainda
possibilita a criação de novas modalidades que a cada dia surge sem controle
daquele que deveria oferecer à base de segurança a sociedade.

A política do poder de punir do Estado não está sendo suficiente e nem eficiente,
há uma falência rudimentar na base da segurança pública, o discurso e a forma
de aplicar a pena aos culpados não surte efeito.

As cadeias não reabilitam, e quando estes presos saem, encontram uma


sociedade que não os aceitam, e o ciclo volta. Por isso, a criação do crime
organizado foi tão pródiga, encontrou um ambiente propício para sua existência
e líderes que conseguem organizar ações e promover o caos.

Um resumo de como foi estes ataques à soberania do Estado e sua vertente de


punir:

Há seis anos, em 11 de maio, a Secretaria de Administração Penitenciária decidiu


transferir 765 presos para a penitenciária 2 de Presidente Venceslau após escutas
telefônicas terem levantado suspeitas de que facções estariam planejando rebeliões
para o Dia das Mães, que ocorreria dali a dois dias. No dia seguinte, após a
transferência do líder do PCC Marcos Willians Herba Camacho, o Marcola, motins
foram realizados em penitenciárias do Estado de forma articulada. Na noite do dia
12 de maio, integrantes da organização criminosa deram início ao maior atentado
contra as forças de segurança pública do Estado da história. Essa ação deixou mais
de 20 mortos. Delegacias, carros e bases da Polícia Militar, Polícia Civil e
metropolitana e até o Corpo de Bombeiros foram atacados. No dia seguinte, a onda
de ataques foi intensificada e ocorreram atentados no litoral e interior de São Paulo.
(http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/sp/2012-06-24/em-2006-onde-de-ataques-
amedrontou-sao-paulo-relembre.html).

E o caos criado nesta mancha negra da história nacional terminou com um saldo
tremendamente ruim, o Estado se ajoelhou diante da organização e desde então
não conseguiu mais vencê-la.
Os jornais da época relataram o saldo final deste atentado:
Sexta-feira, 12 de maio: anoiteceu em São Paulo. E iniciava-se a maior onda
de violência já promovida no Estado por uma facção criminosa, o PCC
(Primeiro Comando da Capital), conhecido entre os detentos como o
"Partido". Em oito dias, o governo contou 373 ataques. Oficialmente, 154
pessoas morreram, sendo 24 PMs, 11 policiais civis, nove agentes
penitenciários, 110 cidadãos - 79 deles suspeitos de ligação com o PCC.
Tratava-se de uma resposta da facção a uma tentativa da polícia de isolar
seus principais líderes em presídios de segurança máxima no interior do
Estado, num total de 765 presos removidos. Na mesma sexta-feira, oito
detentos - apontados com o núcleo da facção - foram levados à sede do Deic
(Departamento de Investigações sobre Crime Organizado), na capital
paulista. Já na sexta-feira, em todo o Estado ocorreram rebeliões em 24
unidades. Internos da Febem também se rebelam. Articulados, homens
abriram fogo contra bases da Polícia Militar, da Guarda Civil Metropolitana,
viaturas, delegacias, Grande São Paulo e interior. Ocorreram ataques
também a endereços comerciais, agências bancárias, estações de Metrô e
ônibus, incendiados pelo Estado. Outras duas séries aconteceriam em julho
e agosto, ambas com menor intensidade em relação a maio.Durantes as
ações, a população de São Paulo viu o comércio baixar as portas, escolas e
universidades cancelarem aulas, expediente encerrado mais cedo, shoppings
fechados. O comércio registrou queda nas vendas de 90%. A pressa do
paulistano ganhou outros contornos. Havia ansiedade de chegar em casa. A
vida noturna da capital deixou de existir. Tradicionalmente congestionadas,
as principais vias da cidade ficaram intransitáveis bem antes do horário do
"rush". Pessoas espremiam-se ainda mais no metrô e em ônibus, outros alvos
da facção. São Paulo parou... Nas manchetes da imprensa
internacional.(http://noticias.uol.com.br/ultnot/retrospectiva/2006/materias/pc
c.jhtm).

Num ambiente deste instalado não é incomum, surgir defensores da volta da


pena retributiva onde o condenado deve pagar numa proporção que vingue o
crime cometido. Neste momento é importante lembrar que o Direito não tem a
função de vindicar justiça por atos praticados, mas a justiça retributiva a que
tantos lutaram ao longo dos séculos, foi exatamente para deixar longe do alcance
a menor possibilidade de se voltar a um momento onde a justiça clamava por
sangue e que os espetáculos assumiam uma parte importante na vida social. O
avanço que se conseguiu alcançar para deixar afastado este tempo, não pode
prescindir de todas as conquistas para devolver o desejo de “olho por olho, dente
por dente”, de Talião.

As penas cruéis e sangrentas matava o espírito humano. Após a prática dos


castigos e o emprego implacável das penas nada mais sobrava da pessoa que
passava pelo suplício. E como esperar que tanto aqueles que passavam por
estas barbáries e aqueles que assistiam a este espetáculo pudessem manter a
humanidade, se a menor possibilidade desta condição havia sido totalmente
retirada? Quando se apaga a fagulha que nos diferencia dos irracionais, não será
mais possível exigir comportamento diverso.

Inaugura-se após este período a manutenção do poder do Estado agora sob


nova égide a “era dos castigos incorpóreos” (Foucault: 2008, p.85), o projeto
político de se manter com a temeridade dos habitantes se mantém, pois entende
ser esta a única forma de controle possível.

Cumpre observar como se dará este desdobramento:

Essa semiotécnica das punições, esse “poder ideológico” é que, pelo menos
em parte, vai ficar suspenso e será substituído por uma nova anatomia
política em que o corpo novamente, mas numa forma inédita, será o
personagem principal. E essa nova anatomia política permitirá recruzar as
duas linhas divergentes de objetivação que vemos formar-se no século XVIII:
a que rejeita o criminoso para “o outro lado” – o lado da natureza; e a que
procura controlar a delinquência por uma anatomia calculada das punições.
Um exame da nova arte de punir mostra bem a substituição da semiotécnica
punitiva por uma nova política do corpo. (FOUCAULT: 2008, p. 86).

Considerações Finais

Este não é um problema que oferece soluções fáceis e rápidas. A pretensão


deste trabalho é oferecer um ferramental para reflexão e visita ao passado de
tratamento cruel e sanguinário. Mesmo tendo toda dureza hoje exigida os
problemas com o crime não melhorou, não acabou e nem tampouco se há notícia
se quer que em algum momento da história da humanidade que tal situação
tenha ocorrido.

Diante disso e percebendo hoje países como Suécia, Noruega e Islândia onde a
criminalidade é muito baixa, cumpre o observar o que levou estes países a
conseguirem tal feito.

Muitos quadros e respostas podem surgir, porém é de primal importância


perseguir fatores que contribua para o progresso da sociedade e não sua
desvalorização e regressão aos tempos passados.

Não se trata de uma defesa alucinada dos Direitos Humanos, mas de propor algo
funcional ao invés do mecânico e fracassado. Está lançado o grande desafio, de
não empurrar o problema criminal apenas para dentro do castigo (ou rigor nas
penas), mas de enfim perceber o problema como algo pungente e se cercar de
possibilidades melhores para resolvê-lo.

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