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SUMÁRIO: I - INTRODUÇÃO; II - SISTEMA PENITENCIÁRIO E DIREITOS FUNDAMENTAIS

DO SENTENCIADO; A) Surgimento e Evolução do Sistema Penitenciário; B) Estado atual do


Direito Penitenciário no Brasil; C) Direitos Fundamentais do Sentenciado; D) Crise da Pena
Privativa de Liberdade; III - ALTERNATIVAS À HUMANIZAÇÃO DO SISTEMA PRISIONAL
BRASILEIRO; A) Fatores que ensejam a Idéia Privatizante; 1) Privatização total das prisões;
1.1) Justificativas à privatização das prisões; 1.1.1) A crise do sistema penitenciário; 1.1.2) As
experiências estrangeiras; 1.1.3) A ideologia da lei e da ordem; 1.2) Obstáculos à idéia
privatizante; 1.2.1) Obstáculos éticos; 1.2.2) Obstáculos jurídicos; 1.2.3) Obstáculos políticos;
B) Parcerias Público-Privadas; C) Gestões Compartilhadas dos Presídios como alternativa à
Recuperação do Condenado; 1) O Método APAC; 2) O Método APAC e a Constituição Federal
de 1988; IV - CONSIDERAÇÕES FINAIS; V - REFERÊNCIAS.

II - SISTEMA PENITENCIÁRIO E DIREITOS FUNDAMENTAIS DO SENTENCIADO

A) Surgimento e Evolução do Sistema Penitenciário

O direito penitenciário resultou, em certo sentido, do desenvolvimento da ciência penitenciária.


A ciência penitenciária existente até a atualidade, é uma ciência naturalista, causal-explicativa,
que, quando da sua origem, se preocupava com dados da realidade, limitando-se “àquilo que
é”, à previsão dos efeitos de tais e quais causas e à indagação das causas que tinha produzido
tais ou quais efeitos (MIOTTO, 1992, p.18).

Felizmente, aos poucos, seguindo a própria ordem natural das coisas, foram se acrescentando
e pondo em paralelo, temas de caráter jurídico, próprios da ciência normativa, ou seja, da
ciência que se preocupa com o “dever ser”. Passou-se a pensar mais nos direitos dos
condenados, principalmente depois da Revolução Francesa (1789-1799), quando as
preocupações com os direitos humanos em geral foram impulsionadas.

É importante para compreender o sistema penitenciário atual, a informação de que em sua


origem, a prisão cautelar é anterior à existência da prisão-pena, a qual só veio a existir depois
que a humanidade conheceu o instituto da privação da liberdade. Assim, antes de ser uma
espécie de sanção, a prisão foi destinada a reter o condenado até a efetiva execução de sua
punição, a qual era sempre corporal ou infamante (FOUCAULT, 1997, p 207).

Como na época da vingança privada o revide não guardava proporção com a ofensa,
sucederam-se acirradas lutas entre grupos e famílias, que assim se iam debilitando,
enfraquecendo e até extinguindo. Surgiu, então, como primeira conquista no terreno repressivo,
o “talião”, conhecido pela máxima “olho por olho e dente por dente”. Por ele o castigo é
delimitado e a vingança não mais seria arbitrária e desproporcional (NORONHA, 1991, p. 20).
A lei do talião foi consagrada no direito escrito da época pelo Código de Hammurabi (por volta
de 1700 a.C.) em suas regras e punições.

A vingança deixou de ser privada e passou a ser divina (direito penal religioso, teocrático e
sacerdotal), pois a sociedade já concebia um poder social capaz de impor aos indivíduos
normas e condutas de castigo. Nesta época, a punição era rigorosa, pois que o castigo deveria
estar em relação com a grandeza da divindade ofendida (NORONHA, 1991, p.21). O caráter
religioso predominava nas leis dos povos do Oriente Antigo, a exemplo do Código
de Hammurabi, a Torah (a partir de Moisés, que viveu por volta de 1500 a.C.) e o Código
de Manú (entre 200 a.C. e 200 d.C.). Tem-se conhecimento de um tipo de prisão, talvez o
primeiro, no Código de Manú, onde o condenado era exposto em via pública e ali recebia sua
punição através de suplício, porém não era tida como pena (FIGUEIREDO, 1892, p.VII).
A vingança divina que de certo modo também era pública foi generalizada com o uso de juizes
e tribunais. O escopo era o de conter a criminalidade, mas por mais aterradores que fossem os
castigos e os suplícios infligidos contra os delinqüentes, por mais ostensiva que tenha sido a
pretensa exemplaridade das execuções das penas corporais e infamantes, nunca houve eficaz
efeito inibitório ou frenador da criminalidade (FARIAS JÚNIOR, 1996, p.24).

Na fase da vingança pública, que tem início no Período Helênico (323 a.C. - 30 d.C.) e vai até o
século XVIII, o objetivo transmuda-se para a segurança do príncipe ou soberano, através da
pena, também severa e cruel, com a finalidade de intimidar (NORONHA, 1991, p.21).

Conforme E. Magalhães Noronha (1991, p.21), na Grécia, a princípio o crime e a pena ainda
eram inspirados no sentimento religioso, pois o direito e o poder emanavam de Júpiter,
considerado o deus criador e protetor do universo. Dessa divindade provinha o poder dos reis e
em seu nome se procedia ao julgamento do litígio e à imposição do castigo.

No entanto, os filósofos e pensadores gregos e suas teorias influenciaram na concepção do


crime e da pena. Por exemplo, a idéia de culpabilidade através do livre arbítrio de Aristóteles,
acabou refletindo no campo jurídico, depois de se firmar no terreno filosófico e ético. Por sua
vez, Platão contribuiu para a idéia da intimidação da pena. Também foram os gregos que
classificaram o crime em público e privado, conforme a predominância do interesse do Estado
ou do particular. Porém, ao lado da vingança pública ainda permaneciam as formas anteriores
da vingança privada e da vindita divina. Não se concebia, ainda, um “direito penal”, embora a
Grécia seja hoje considerada seu berço mais remoto (NORONHA, 1991, p. 22). As penas em
geral eram castigos, multas, feridas, mutilações, morte (cuja forma dependia do delito
cometido) e exílio.

Roma também não fugiu às imposições da vingança, consagrada através do talião e da


composição, práticas adotadas pela Lei das XII Tábuas (450 a.C.). No período da realeza
também teve caráter religioso. No entanto, não tardou muito para a religião se separar da lei,
surgindo os crimina publica (perduellio, crime contra a segurança da cidade, e parricidium,
primitivamente a morte do civis sui uris) e os delicta privata. A repressão dos crimes privados
era entregue à iniciativa do ofendido, cabendo ao Estado a repressão aos crimes públicos.
Mais tarde surgem os crimina extraordinaria, interpondo-se entre aquelas duas categorias e
absorvendo diversas espécies ou figuras dos delicta privata. Finalmente, a pena se torna, em
regra, pública (NORONHA, 1991, p.22).

Conforme Geraldo Nogueira Júnior (2006, p.1), “no direito romano, a custódia dos acusados se
fazia pelo acorrentamento ou pela segregação, podendo estas ocorrer em estabelecimentos
estatais ou em casas particulares, destinando-se a assegurar a presença do réu no processo”.
Não se cogitava, ainda, da segregação como pena.

Já o direito medieval formado, basicamente, pelo direito canônico, pelo direito germânico e pelo
direito romano, adotou a pena de morte, executada por meio de formas cruéis, como fogueira,
afogamento, soterramento, enforcamento, e tinha finalidade intimidativa. As sanções penais
eram desiguais, variando conforme a condição social e política do delinqüente, sendo prática
comum o confisco, a mutilação, os açoites, a tortura e as penas infamantes. A par disso, o
arbítrio judiciário criou em torno da sanção penal uma atmosfera de insegurança, incerteza e
medo. “[...] assiste-se ao poder da Igreja em punir. A punição foi inspirada pelos Tribunais de
Inquisição, período em que a pena ensejava o arrependimento do infrator” (NOGUEIRA
JÚNIOR, 2006, p.1).

Os povos germânicos da época não conheceram a prisão cautelar, “tanto que o acusado se
apresentava livre para defender-se perante a assembléia” (NOGUEIRA JÚNIOR, 2006, p.1). De
forma diversa aconteceu com o direito canônico, quer se opondo à influência da força como
prova judiciária, quer salientando o elemento subjetivo do crime. Também chamado de direito
penal da Igreja, o direito canônico assimilou e adaptou o direito romano às condições sociais,
contribuindo para a subseqüente humanização do direito penal. Tentou banir as ordálias e os
duelos judiciários, sendo que as penas passaram a ter não só o fim da expiação, mas também
a regeneração do criminoso pelo arrependimento e purgação da culpa, o que, paradoxalmente,
levou à Inquisição. A legislação eclesiástica era contrária à pena de morte. O direito canônico
criou, contra a vingança privada, o direito de asilo e as tréguas de Deus. Combatendo a
vingança privada, em contrapartida fortaleceu o poder público (NORONHA, 1991, p.23).

Além do elemento voluntarístico do crime, o direito canônico empresta a finalidade à pena,


objetivando a regeneração ou emenda do criminoso pelo arrependimento ou purgação da
culpa. Tolerou punições rudes ou severas com o fim superior da salvação da alma do
condenado. Sofreu influências do Cristianismo, trazendo o grande benefício da consagração do
princípio da ordem moral, pois, até então predominava o princípio social do direito romano ou o
individual do germânico.

Porém, a Igreja passou a punir quem não confessasse a fé católica. Criou-se o Santo Oficio da
Inquisição no século XIII que se estendeu até o século XIX. Muitos meios cruéis de suplício
foram empregados. Milhões de infiéis que eram chamados de “hereges” e “apóstatas” foram
queimados vivos. As prisões destinadas aos suplícios eram, em geral, subterrâneas e
chamadas de “penitenciárias”, com celas individuais, escuras, imundas, porque segundo os
inquisidores, só assim seriam propícias à penitência, à expiação e à purgação. Conforme
Nogueira Júnior (2006, p.1):

[...] a punição ganhou uma conotação de vingança e de castigo espiritual, acreditando-se que
através dela poderia se reduzir à ira divina e regenerar ou purificar a alma do delinqüente,
cometendo-se todas as atrocidades e violências em nome de Deus. No direito eclesiástico, a
penitência era a melhor forma de punição, nesse sentido, conforme já salientado, a custódia do
acusado antecede até mesmo a pena privativa de liberdade. Diante disso, foram então
construídas prisões denominadas “penitenciários”, onde os acusados cumpririam penitência e
esperariam o momento em que seriam guiados para a fogueira. A denominação penitenciária é
utilizada por nós até os dias de hoje, como o local onde o acusado ou condenado irá
permanecer preso (grifo do original).

Portanto, foi somente, na sociedade cristã que a prisão tomou forma de sanção. Até então, a
pena de morte era usada severamente contra os infratores. Com o surgimento da pena de
reclusão, houve o enfraquecimento progressivo desse tipo de punição. Segundo Odete Maria
de Oliveira (1996, p.45):

As penas mais graves foram as primeiras a serem atenuadas para depois desaparecerem. À
medida que tais penas se retiram do campo da punibilidade, formas novas invadem os espaços
livres. A pena privativa de liberdade durante muito tempo guardou um caráter misto e indeciso.
Muitas vezes, era aplicada acessoriamente, até se desembaraçar, pouco a pouco, e atingir sua
forma definitiva. De prisão preventiva, passou posteriormente para prisão, na forma de pena
privativa de liberdade. Só no século XVIII é que foi reconhecida como pena definitiva em
substituição à pena de morte.

Assim, o cárcere para castigar os seres humanos foi uma criação do direito canônico, no qual
na “legislação da Igreja vigorava o cárcere de pena” (FUNES, 1953), com propósito de expiar
suas culpas pelo sofrimento, pela penitência. Entendia-se que pela solidão, a alma do indivíduo
se depurava do pecado e o remorso poderia trazer-lhe a consciência do crime, sendo obrigado
a meditar, todo o tempo, sobre sua culpa.
Na síntese de E. Magalhães Noronha (1991, p.23), esses três direito-bases do direito romano
(romano, germânico e canônico), não obstante seus fundamentos diversos, contribuíram para a
formação do direito penal comum que predominou durante toda a Idade Média, e mesmo
posteriormente, em vários países europeus. Porém, foi à influência do direito dos glosadores
(Escola Interpretativista) através do comentário e da exegese dos velhos textos, que revigorou
o direito romano[1]. Segundo o citado autor, aos glosadores se sucederam os “pós-glosadores”
(Escola dos Comentaristas), cujos ensinamentos se inspiram nos deixados pelos
precedentes[2]. Finalmente, os “Práticos” que embora presos à casuística, seus comentários,
tendo por base o direito romano e sentindo a influência do germânico e do canônico,
constituíram os primeiros delineamentos sólidos do direito penal[3].

No início da Idade Moderna, sobreveio o ciclo do terror, o período do absolutismo, do tiranismo,


do autocratismo e de muito arbitrarismo, em que o rei era a lei e o Estado. Muitos inocentes
foram condenados e muitos culpados ficaram impunes. Conforme João Farias Júnior (1996,
p.25):

As execuções tinham que seguir um ritual de teatralismo e de ostentação do condenado à


execração e à irrisão pública, as carnes eram cortadas e queimadas com líquidos ferventes, os
membros eram quebrados ou arrebentados na roda, ou separados do corpo através tração de
cavalos, o ventre era aberto para que as vísceras ficassem à mostra. Todos deveriam assistir
as cenas horripilantes. O gritar, o gemer, as carnes cortadas e queimadas, a expressão de dor,
enfim, todas as cenas horríveis deveriam ficar vivas na memória de todos.

Permanecia, porém, a fase da vingança pública, cuja preocupação maior voltava-se à defesa
do soberano e dos favorecidos. Predominavam o arbítrio judicial, a desigualdade de classes
perante a punição, a desumanidade das penas (principalmente a pena de morte e seus meios
cruéis) o sigilo do processo, os meios inquisitoriais, tudo isso aliado a leis imprecisas,
lacunosas e imperfeitas, favorecendo o absolutismo monárquico e postergando os direitos da
criatura humana (NORONHA, 1991, p.24).

Vivenciava-se a paranóia do suplício do excesso de poder. Mesmo assim, não obstante as


atrocidades e a barbárie dos suplícios impostos aos malfeitores, a criminalidade tornou-se
insustentável na França, a tal ponto de intolerância, abominação e repúdio ao caótico regime,
surgindo manifestações populares que acabaram resultando na Revolução Francesa, em 1789
e nas conseqüentes reformas institucionais. A Revolução Francesa, que deu início à Idade
Contemporânea, concorreu para a abolição das atrocidades, da barbárie dos suplícios e da
vingança pública e legou para a posteridade a institucionalização da pena de prisão (FARIAS
JÚNIOR, 1996, p.25).

Contudo, ainda antes da Revolução Francesa começaram a aparecer na Europa prisões legais,
destinadas a recolher mendigos, vagabundos, prostitutas e jovens delinqüentes, que se
multiplicavam principalmente nas cidades, mercê de uma série de problemas na agricultura e
de uma acentuada crise na vida feudal. Para César Barros Leal (2001, p.33;34) a prisão-pena
mais antiga foi a House of Correction, construída em 1552 na cidade de Bridewell, na
Inglaterra, com disciplina extremamente rígida para corrigir os criminosos. Tratava-se de uma
construção simples com grandes dormitórios sem divisões e espaços abertos. Outro presídio
foi construído na Holanda, em 1595, com duas alas, uma feminina e outra masculina. Em 1596
surge o modelo de Amsterdã, chamado Rasphuis, exclusivamente para homens. Nesta prisão,
o trabalho era obrigatório e a cela individual era utilizada para promover o arrependimento do
criminoso (penitência), através de leituras espirituais. Era destinada, a princípio, para prender
mendigos e criminosos jovens. No ano de 1597 foi criada, também em Amsterdã,
a Spinhis destinada às mulheres e uma seção especial para meninas adolescentes construída
na mesma cidade em 1600.
Ressalte-se que os primeiros presídios voltavam-se mais para o trabalho que à correção
propriamente dita. Abrigavam mendigos, prostitutas e vagabundos, maior problema social da
época, com o intuito de corrigi-los através do trabalho forçado. Lembre-se que esse foi um
período em que a industrialização estava em seu início, carente de operários e empregados
para a maquinofatura, não havendo espaço para “vagabundos” - era preciso que todos
trabalhassem e produzissem.

De acordo com Michel Foucault (1997, p.107), o modelo de prisão-pena que inspirou todos os
demais foi o Rasphuis, Amsterdam, aberto em 1596. Informa que seu funcionamento obedecia
a três grandes princípios: a) duração das penas podia, pelo menos dentro de certos limites, ser
determinada pela própria administração, de acordo com o comportamento do prisioneiro (essa
latitude podia, aliás, ser prevista pela sentença: em 1597 um detento era condenado a doze
anos de prisão que podiam se reduzir a oito se seu comportamento fosse satisfatório); b) o
trabalho era obrigatório, feito em comum (aliás, a cela individual só era utilizada a título de
punição suplementar; os detentos dormiam de dois ou três em cada cama, em celas que
continham de quatro a doze pessoas); e c) pelo trabalho feito, os prisioneiros recebiam um
salário.

Em suma, os detentos eram enquadrados em um horário estrito, um sistema de proibições e de


obrigações, uma vigilância contínua, exortações, leituras espirituais, todo um jogo de meios
para “atrair para o bem” e “desviar do mal”. Essa prisão não tinha celas, a não ser para
castigos provocados por alguma falta disciplinar cometida dentro da prisão. A administração
tinha certa autonomia sobre a pena, pois o administrador do presídio podia regular a pena de
acordo com o comportamento do interno. O trabalho era obrigatório e os detentos recebiam
salários. As normas eram rígidas, tanto em relação à disciplina, quanto aos horários, os
deveres. A vigilância era constante, bem como se promovia o estímulo à leitura religiosa e à
prática do bem.

É esse modelo de prisão que, segundo Michel Foucault (1997, p.107), serve de exemplo de
ligação entre a teoria de transformação pedagógica e espiritual dos indivíduos por um exercício
contínuo (característica do século XVI), e as técnicas penitenciárias (idealizadas na segunda
metade do século XVIII). Essa concepção de recuperação do criminoso ou vagabundo, através
da reflexão espiritual e da penitência, determinou os princípios fundamentais que cada uma das
três prisões implantadas na época desenvolveriam, numa direção particularizada. São elas:
a Manson de Force de Gand na Bélgica; as casas de trabalho da Inglaterra, a Walnut Street
Jail da Filadélfia e a Auburn dos Estados Unidos da América.

A Manson de Force, de Gand, fundada em 1627, foi inspirada na Rasphuis de Amsterdã e


reformada em 1775 pelo Conde Hippolyte Vilain XIV. Sua organização serviria de modelo para
a prisão norte-americana de Auburn, no Estado de Nova Iorque, iniciada em 1817[4]. O grande
mérito da prisão de Gand, entretanto, foi o de ter, pela primeira vez, realizado a classificação
dos presos por categorias jurídicas e morais (ANTUNES, 1958, cap.VII). A filosofia dessa
prisão consistia no entendimento de que a ociosidade é a causa dos delitos.

A cadeia de Gand organizou o trabalho penal em torno, principalmente, de imperativos


econômicos, tendo como fundamento, levantamentos prévios que constataram que os
malfeitores não eram os trabalhadores (que não tinham tempo para pensar em atividades
ilícitas), mas os vagabundos que se dedicavam à mendicância. A idéia foi de construir uma
prisão que realizasse a pedagogia universal do trabalho, com os seguintes objetivos: a)
diminuir o número de processos criminais dispendiosos para o Estado; b) não ser mais
necessário adiar os impostos para os proprietários dos bosques arruinados pêlos vagabundos;
c) formar uma quantidade de novos operários; e d) permitir aos verdadeiros pobres ter os
benefícios paritários da caridade necessária (FOUCAULT, 1997, p.108).
Imaginava-se que, de acordo com Michel Foucault (1997, p.108):

Essa pedagogia [da reconstrução do homo economicus] reconstituirá no indivíduo preguiçoso o


gosto pelo trabalho, recolocá-lo-á por força num sistema de interesses em que o trabalho será
mais vantajoso que a preguiça, formará em torno dele uma pequena sociedade reduzida,
simplificada e coercitiva onde aparecerá claramente à máxima: quem quer viver tem que
trabalhar. Obrigação do trabalho, mas também retribuição que permite ao detento melhorar seu
destino durante e depois da detenção.

Porém, esse processo de “reconstrução do indivíduo economicamente produtivo” exigia


aprisionamentos longos, pois em curto prazo, como de seis meses, por exemplo, não era
considerado tempo suficiente para corrigir os criminosos e levá-los ao espírito de trabalho.
Concebia-se, assim, que “a duração da pena só tem sentido em relação a uma possível
correção, e a uma utilização econômica dos criminosos corrigidos” (FOUCAULT, 1997, p.108).
Além disso, o detento trabalhava e recebia salário para pagar os gastos de seu internamento
na prisão, além de ter recursos quando sair para não voltar à mendicância.

O modelo inglês (casas de trabalho da Inglaterra em Worcester em 1697, em Lublin em 1707 e


em Gloucester, sudoeste da Inglaterra), acrescentou, ao trabalho, o isolamento como condição
essencial para a correção, visando uma transformação moral e religiosa, tendo como
fundamentos os que seguem: a) sobre os “malefícios” da prisão conjunta: a promiscuidade dá
maus exemplos e possibilidades de evasão no imediato, de chantagem ou de cumplicidade
para o futuro; a prisão se pareceria demais com uma fábrica deixando-se os detentos trabalhar
em comum; e b) sobre os “benefícios” do isolamento: o isolamento constitui um choque a partir
do qual o condenado, escapando às más influências, pode fazer meia-volta e redescobrir no
fundo de sua consciência a voz do bem; o trabalho solitário se tornará então tanto um exercício
de conversão quanto de aprendizado; não reformará simplesmente o jogo de interesses
próprios ao homo economicus, mas também os imperativos do indivíduo moral (FOUCAULT,
1997, p.109).

Porém, na prática, só parcialmente correspondeu ao esquema inicial, pois funcionava como


confinamento apenas para os criminosos mais perigosos e para os outros, os demais
trabalhavam juntos durante o dia e eram isolados à noite (FOUCAULT, 1997, p.119).

Já a prisão Walnut Street Jail construída em 1790 na Filadélfia (chamada de sistema


pensilvânico, sistema filadelfiano, sistema celular ou solitary system) tinha como diretriz a
disciplina, o trabalho e a leitura religiosa para recuperar o apenado, porém acrescia um
tratamento individual até então inédito, no qual cada preso era observado, cujos resultados
eram anotados em um relatório individual que continha detalhes de seu crime, as
circunstâncias deste e seu comportamento enquanto detento. Os dados de cada relatório eram
estudados com a intenção de identificar e adequar um tratamento que destruísse os antigos e
maus hábitos. De acordo com Michel Foucault (1997, p.110), este foi o mais famoso modelo,
porque “surgia ligado às inovações políticas do sistema americano e também porque não foi
votado, como os outros, ao fracasso imediato e ao abandono; foi continuamente retomado e
transformado até às grandes discussões dos anos 1830 sobre a reforma penitenciária”.

Ainda segundo Michel Foucault (1997, p.110), a prisão de Walnut Street Jail, em muitos pontos
e sob a influência direta dos meios Quaker[5], retomava o modelo belga e inglês: trabalho
obrigatório em oficinas, ocupação constante dos detentos e custeio das despesas da prisão
com esse trabalho, além de receber salário para ter recursos quando saísse para não voltar à
mendicância e ao crime.

Porém, ainda segundo Michel Foucault (1997, p.111-2), a Walnut Street Jail comporta alguns
traços que lhe são específicos, “ou pelo menos que desenvolvem o que estava virtualmente
presente nos outros modelos”, assim expostos pelo autor em comento: a) o princípio da não-
publicidade da pena: a condenação e os motivou devem ser conhecidos por todos, mas a
execução da pena deve ser feita em segredo; o público não deve intervir nem como
testemunha, nem como abonador da punição; e a certeza de que, atrás dos muros, o detento
cumpre sua pena de forma suficiente para constituir um exemplo; b) a solidão e o retorno sobre
si mesmo não bastam, tampouco as exortações puramente religiosas: deve ser feito um
trabalho também sobre a alma do detento e a administração do presídio tem a função de
empreender essa transformação; e c) a elaboração de relatórios dos presos cujos elementos
sejam utilizados na determinação dos cuidados necessários para destruir os antigos maus
hábitos.

A prisão Walnut Street Jail tornou-se uma espécie de observatório permanente que permitir
distribuir as variedades do vício ou da fraqueza. Assim, a partir de 1797, os prisioneiros
estavam divididos em quatro classes, assim enumeradas por Michel Foucault (1997, p.112): a)
a primeira era destinada aos explicitamente condenados ao confinamento solitário, ou que
cometeram faltas graves na prisão (sistema solitário: permaneciam durante todo o cumprimento
da pena enclausurados, sem comunicação com o mundo exterior, sendo-lhes permitido apenas
a leitura de livros religiosos, passear diariamente por algumas horas em um pequeno pátio
anexo à cela e só podiam se comunicar com o carcereiro); b) a segunda é a reservada aos que
são bem conhecidos por serem velhos delinqüentes, ou cuja moral depravada, temperamento
perigoso, disposições irregulares ou conduta desordenada é manifestada durante a prisão; c) a
terceira para aqueles cujo comportamento antes de depois da prisão demonstram que não são
delinqüentes comuns; e c) a quarta é especial, e funciona como uma classe de prova para
aqueles cujo temperamento ainda não é conhecido, ou que, se conhecidos, não merecem
entrar na categoria anterior.

Para essas três últimas classes era permitido o trabalho interno, mas em total silêncio. Nesse
processo, a prisão funciona como um aparelho de saber, e toda essa atenção e vigilância
visavam à correção interna do detento. Esse sistema foi elogiado porque a separação individual
impedia a corrupção dos condenados, do conluio para fugas ou movimentos de rebeldes,
comuns nos outros sistemas. Porém, esse sistema filadelfiano ou celular recebeu críticas
porque, apesar de constituir um sistema progressivo se comparado com os sistemas até então
vigentes, era severo em demasia e não levava à readaptação social do condenado. Visava
apenas à recuperação interna (FOUCAULT, 1997, p.112).

De acordo com Luiz Francisco Carvalho Filho (2002, p.25), contrapondo-se ao sistema prisional
a Filadélfia surge à prisão de Auburn, modelo norte-americano implantado em 1820, na cidade
de Auburn - Nova York, também conhecido como sistema norte-americano ou silent system.
Trata-se de um sistema de confinamento noturno, com trabalho diurno e refeições em comum,
mas o silêncio devia ser absoluto (os presos não podiam trocar palavras entre si, somente com
os carcereiros, ainda assim em voz baixa e com a devida licença prévia). Ao detento, impunha-
se um regime de rotina industrial com trabalho em oficinas que duravam de oito a dez horas
diárias, cuja organização era de competência das empresas. Com o passar do tempo, a
superlotação, a corrupção dos vigilantes e a crueldade da disciplina acabaram comprometendo
a imposição do isolamento e do silêncio. Esse sistema pecou pela imposição do silêncio
absoluto, que na prática não funcionou. Foi criticado, também, pela proibição de visita dos
familiares, por não valorizar o lazer e exercícios físicos, bem como pelo desprezo à instrução
dos internos. Porém, constitui o germe do sistema progressivo de cumprimento da pena, ainda
adotado em muitos países.

A institucionalização efetiva do sistema progressivo chamado de mark system (marcas,


pontuação pelo comportamento), conhecido como sistema progressivo inglês foi idealizado por
Alexander Maconochie, então governador da Ilha Norfolk (1840), na Colônia Britânica da
Austrália “no qual o detento, por méritos de trabalhos, adquiria vales e os perdia em caso de
indisciplina, num sistema de ‘débito - crédito’. Tais créditos poderiam levá-lo até o mérito da
liberdade condicional” (CARVALHO FILHO, 2002, p.27).

Esse sistema progressivo era dividido em três fases: a) período de prova: isolamento celular
diurno e noturno, com o objetivo de forçar o preso a refletir sobre seu crime, sendo eu o
trabalho era árduo e obrigatório e a alimentação mínima; b) trabalho em comum sob silêncio
absoluto: durante o dia o preso era segregado em um estabelecimento de trabalho comum,
com a regra do silêncio absoluto, mantendo o isolamento noturno; c) livramento condicional:
quando o preso merecia o ticket of leave, ingressava no livramento condicional, última etapa
desse regime. No livramento condicional, a liberdade era limitada e por um período
determinado. Findo o período, desde que o preso não tivesse dado motivos para sua
revogação, era concedida a liberdade de caráter definitivo.

De acordo com Luiz Francisco Carvalho Filho (2002, p.27), “esse modelo foi aperfeiçoado na
Irlanda, onde se criou a prisão intermediária, no qual antes da liberdade condicional o preso
trabalharia ao ar livre em estabelecimentos especiais, longe da prisão fechada”. O sistema
progressivo irlandês foi idealizado por Walter Crofton e trazia quatro períodos de cumprimento
da pena: a) período de prova: isolamento celular diurno e noturno, nos moldes do sistema
progressivo inglês; b) reclusão celular noturna e trabalho diurno em comum, também de forma
similar ao sistema inglês; c) período intermediário: trata-se da novidade desse sistema em
relação ao inglês que ocorria entre a prisão comum e reclusão celular noturna e a liberdade
condicional. É a prisão intermediária executada em estabelecimentos especiais, onde o preso
trabalhava no exterior do presídio, ao ar livre, geralmente em atividade agrícola; e d) liberdade
condicional: idêntico ao regime progressivo inglês.

Esse modelo se espalhou pelo mundo todo, tendo sido objeto constante de congressos
internacionais. Em síntese, o sistema prisional atual continua a indicar o internamento em celas
individuais e as oficinas de trabalho, primando pela segurança e disciplina.

Conforme Michel Foucault (1997, p.70) foi no século XVII que se desenvolveu a idéia de que “o
castigo deve ter a humanidade como medida”. O direito de punir, então, deslocou-se da
vingança do soberano à defesa da sociedade. Trata-se da fase da humanização das penas.
Todavia:

[...] se encontra então recomposto com elementos tão fortes, que se torna quase mais temível.
O malfeitor foi arrancado a uma ameaça, por natureza, excessiva, mas é exposto a uma pena
que não se vê o que pudesse limitar. Volta de um terrível super-poder. E necessidade de
colocar um princípio de moderação ao poder do castigo (FOUCAULT, 1997, p.83).

Foi apenas no século XVIII que se começou a cogitar de direito dos presos. Até então não
ocorria pensar nisso. Com a evolução da mente humana e os debates internacionais cada vez
mais acalorados sobre os direitos humanos, passou-se a reconhecer que os presos, provisórios
e condenados, sempre têm direitos não atingidos pela situação vital de presos, nem pela
situação jurídica, quer de presos provisórios, quer de condenados (MIOTTO, 1992, p.18).

Ao mesmo tempo em que foram reconhecidos direitos aos presos, eram elaborados e postos
em prática regulamentos e tetos normativos, cujos termos significavam, já por si mesmos, o
reconhecimento de direitos e deveres tanto para os presos como para o Estado, no exercício
do direito de punir, na fase processual e na fase de execução das penas. Esta interação entre
os regulamentos e normas referentes aos presos, com a consciência dos direitos humanos
fundamentais e respectivas preocupações, foi sumamente relevante para o reconhecimento da
autonomia do direito penitenciário, concretizado no Congresso Penitenciário Internacional,
realizado em Praga, em 1930.
O direito penitenciário foi tomando forma com o desenvolvimento da instituição prisional.
Destarte, antes do século XVII a prisão era apenas um estabelecimento de custódia em que
ficavam detidas pessoas acusadas de crime, à espera da sentença, bem como doentes
mentais e pessoas privadas do convívio social por condutas consideradas desviantes ou
questões políticas. Foi notadamente no século XVIII que a pena privativa de liberdade
institucionalizava-se como principal sanção penal e a prisão passa a ser, fundamentalmente, o
local da execução das penas (MIRABETE, 1995, p.310).

Nascem então as primeiras reflexões sobre organizações das casas de detenção e sobre as
condições de vida dos detentos. Apenas no porvir do século XX é que a Escola Positiva de
Direito Penal, cujo principal representante foi Cesare Lombroso (1835-1909), apregoava a
substituição da pena por tratamento, e pretendia pô-la em prática. Enquanto o tratamento
substitutivo da pena atribuía sua aplicação a técnicos e especialistas, o direito penitenciário,
reconhecendo direitos dos condenados, contribuía para o conceito ético-jurídico da pena, e
demandava jurisdicionalização da execução penal (MIOTTO, 1992, p.45).

Neste contexto, quando a execução penal passou a adquirir destaque nos estudos da
penalogia, dando relevância à execução da pena privativa de liberdade, não com finalidade
meramente retributiva e preventiva, mas também, e principalmente, a reintegração do
condenado na comunidade, é que surge na esfera científica a autonomia do direito
penitenciário como o conjunto de normas jurídicas relativas ao tratamento do preso e ao modo
de execução da pena privativa de liberdade, abrangendo, por conseguinte, o regulamento
penitenciário, no entender de Armida Bergamini Miotto (1992, p.18), ou o conjunto de normas
jurídicas reguladoras da execução das penas e medidas privativas de liberdade, como
pontifica Carlos Garcia Valdes (1982, p.17).

Contudo, o surgimento de um direito penitenciário e a consagração de direitos humanos dos


presidiários não foi o suficiente para humanizar o sistema prisional. Já no tempo do penalista
clássico Cesare Beccaria (1738-1794) a prisão era considerada “horrível mansão do desespero
e da fome” (BECCARIA, 1993, p.24), conceito ainda aplicável, como se denota da síntese
bastante realista da situação dos presídios brasileiros contemporâneos esposada por Cesar
Roberto Bitencourt (1993, p.142-5):

De um modo geral, as deficiências prisionais apresentam muito mais características


semelhantes aos tempos dos suplícios, é comum e corriqueiro se constatar nos presídios,
maus tratos verbais ou de fato, superpopulação carcerária, o que também leva a uma drástica
redução de desfrute de outras atividades que deve proporcionar o centro penal; falta de
higiene; condições deficientes de trabalho, o que pode significar uma inaceitável exploração
dos reclusos ou ócio completo; deficiências do serviço médico, que pode chegar em muitos
casos, a sua absoluta inexistência; regime alimentar deficiente; elevado índice de consumo de
drogas, muitas vezes originado pela venalidade e corrupção de alguns funcionários
penitenciários que permitem e até realizam o tráfico; reiterados abusos sexuais; ambiente
propício à violência, em que impera a utilização de meios brutais, onde sempre se impõe o
mais forte.

Pelo que se vê, muito não mudou, haja vista que na atual conjuntura brasileira a situação do
sistema carcerário também é dramática.

B) Estado atual do Direito Penitenciário no Brasil

Encontra-se em voga, na atualidade, as discussões relativas aos assuntos penitenciários,


sejam eles pertinentes à aplicação da pena, à execução penal, à privatização das prisões, à
majoração da pena, etc. Estes estudos e ponderações já não se limitam aos especialistas
diretamente interessados, mas extrapolam a órbita técnica do direito, atingindo o público em
geral, influenciado, principalmente, pelos meios de comunicação.

Apesar de estar em voga o tema, não são muitos os preocupados em estudar seriamente o
direito penitenciário e a sua elaboração doutrinária. Como pontua Armida Bergamini Miotto
(1992, p.46-7):

Com muita freqüência, lamentavelmente, questões penitenciárias e de execução penal são


tratadas empiricamente [“eu acho”...] até mesmo por professores universitários e ocupantes de
altos cargos no campo penitenciário. Entretanto, é pelo estudo em amplidão e profundidade
dos diversos aspectos e temas das realidades e valores, pelo exame de uns e de outros,
conforme os diversos pontos de vista, pela discussão bem fundada, que a elaboração de uma
ciência progride, e que se constrói sua doutrina. Para isso, fundamentais são, a par de
congressos e reuniões análogas, as publicações - artigos, ensaios, monografias, livros [...].
Pouco é, sem dúvida, o que tem sido feito nesse sentido.

O que se deve ter em mente, todavia, é que a prisão está em crise, que abrange também o
objeto ressocializador da pena privativa de liberdade, visto que grande parte dos
questionamentos e críticas que é feita à prisão refere-se à impossibilidade relativa ou absoluta
de obter algum efeito positivo sobre o apenado.

Mas o emblema que hoje é vivenciado no sistema penitenciário brasileiro não é novo, embora
peculiar, pelo fato de que na cultura brasileira uma crise não é entendida como resultado do
contexto histórico de uma época, ou seja, de contradições latentes que se tornam manifestas,
nem como produto de lutas e conflitos entre interesses contraditórios, tampouco como
expressão do jogo interno entre a lógica à continência da história. “Ao contrário, não se lida
com o conceito nem com a realidade da crise, mas com sua imagem e seu fantasma”
(CHAUÍ apud ARAÚJO JÚNIOR; et alli, 1995, p.27).

A problemática que aflige o sistema penitenciário brasileiro é estrutural e deve ser assim
enfrentada sob pena de se criar expectativas vãs. Trata-se de um problema que urge por
soluções concretas, que só poderão ser alcançadas se partir de estudos científicos de toda a
realidade, numa ótica conjuntural da sociedade. O “achismo” precisa ser urgentemente
substituído pelo estudo científico da conjuntura social dos tempos modernos, como legado do
desenvolvimento histórico.

Ao se analisar o direito penal clássico brasileiro, denota-se que este possui caráter
fragmentário que o conduz à intervenção mínima e subsidiária, cedendo às outras disciplinas
legais a tutela imediata dos valores primordiais da convivência humana e atuando somente em
último caso. De acordo com a doutrina tradicional, a norma penal incriminadora visa proteger
os bens jurídicos fundamentais da sociedade. Certamente que nem todos serão plenamente
resguardados, não de forma absoluta, o que seria impossível, mas dos considerados mais
graves. Além disso, o direito penal “só deve agir quando os demais ramos do direito, os
controles formais e sociais, tenham perdido a eficácia e não sejam capazes de exercer essa
tutela” (BATISTA, 1990, p.84).

Hodiernamente, um movimento doutrinário e correntista, chamado de “Movimento da Lei e da


Ordem”, tende a um novo direito penal brasileiro, mais preventivo, intervencionista, com
fundamentos na infusão do medo na população e na sugestão de uma garantia de
tranqüilidade social. A população encontra-se insegura frente a tantos fatos aterradores. Os
legisladores estão, de certa forma, atentos a estes acontecimentos e, cientes do problema
social que os homicídios, estupros, chacinas, etc. acarretam à estruturação da sociedade,
passaram a editar normas sancionadoras. Indiferentemente da natureza do fato, quer seja
criminal, ambiental, de consumo, lá está a norma, impondo sanções a cada infração. O direito
penal adquire a natureza de um conjunto de normas de atuação primária e imediata. A sanção
penal, por força disso, passa a ser considerada pelo legislador como indispensável para a
solução de todos os conflitos sociais (E. de JESUS, 1996, p.2).

Esta nova fisiologia da legislação penal brasileira, como pondera Damásio Evangelista de
Jesus (1996, p.2), produz efeitos negativos, extremamente ameaçadores do sistema penal
enquanto tal. A natureza simbólica e promocional das normas penais incriminadoras, num
primeiro plano, causa a funcionalização do direito penal, transformando-o na mão avançada de
correntes extremistas de política criminal. No Brasil, na ânsia de se resolver com urgência os
problemas de violência e crime, pressiona-se os congressistas à elaboração de leis penais
cada vez mais severas e iníquas. Esse movimento desmedido faz com que se perca a forma do
direito penal e processual penal. Os tipos incriminadores passam a ser descritos de forma
generalizada, para abranger o maior número de crimes. Esta inclusão de normas elásticas e
genéricas estão enfraquecendo os princípios da legalidade e da tipicidade. Um ordenamento
firmado em experiência, analisado, ponderado, legado de muitos anos de experiência, está
sendo rapidamente substituído por um modelo dispensado e até infundado. Na ânsia de
combater e extinguir o delito novas leis são incessantemente editadas. É notório que não são
penas mais rígidas que irão extinguir a prática de crimes.

O “Movimento de Lei e Ordem”, já atuante em outros países, e que a cada dia consegue mais
adeptos no Brasil, separa a sociedade em dois grupos: o primeiro deles composto de pessoas
boas, de homens de bem e, portanto, merecedores de proteção legal; o segundo, formado
pelos homens maus, os criminosos aos quais se endereça toda a rudeza e severidade da lei
penal. Nesta linha de pensamento:

Se parte, pues, de un maniqueismo de “buenos” y “malos” en el que claramente se califica de


malo al delincuente recluso, que es al único a quien hay que tratar, dejando intacto todo lo
demás. Todo ello con uma casi fastuosa visión clínica o médica del tratamiento que recuerde
los mejores tiempos de la Criminología Lomhrosiana y de sus tesis del “delincuente nato”. “El
delincuente como ser enfermo que hay que tratar”; ésta es, pues, la imagen y casi el
estereotipo de la ideologia medicamentosa del tratamiento, de ia que, con razón, se apartan
cada vez más los penitenciaristas más modernos (grifos do original) (HASSEMER; CONDE,
1989, p.154-5).

Neste sentido pontua Cesar Roberto Bitencourt (1993, p.11-2):

A prisão é uma exigência amarga, mas imprescindível. A história da prisão não é a de sua
progressiva abolição, mas de sua reforma. A prisão é concebida modernamente como um mal
necessário, sem esquecer que guarda em sua essência contradições insolúveis. O Projeto
Alternativo Alemão orientou-se nesse sentido ao afirmar que “a pena é uma amarga
necessidade de uma comunidade de seres imperfeitos como são os homens” (grifo do original).

É o que está acontecendo no Brasil. Cristalizou-se a idéia de que o direito penal pode resolver
todos os males que afligem os homens bons, exigindo-se a definição de novos delitos e o
agravamento das penas cominadas aos já descritos, tendo como destinatários os homens
maus (delinqüentes).

Para que o Brasil chegasse a este ponto, os meios de comunicação tiveram grande influência.
A violência sempre foi atrativa, ensejando maior publicidade aos delitos de maior gravidade. A
insistência do noticiário nos crimes como homicídio, assaltos, latrocínios, seqüestros e
estupros, criou a síndrome da vitimização. A população começou a crer que a qualquer
momento o cidadão pode ser vítima de um ataque criminoso, gerando a idéia da urgente
necessidade da agravação das penas e da definição de novos tipos penais, garantindo-lhe a
tranqüilidade, e essa pressão chegou aos legisladores, eleitos pelo povo.
Percebe-se que, o que existe na verdade, é a falsa crença do povo brasileiro que somente se
reduz a criminalidade com a edição de novas leis, ou seja, com a definição de novos tipos
penais, com o agravamento das penas, com a supressão de garantias do réu durante o
processo e a acentuação da severidade da execução das sanções. Nas palavras de Luiz Flávio
Gomes e Raúl Cervini (1995, p.28), “duas vêm sendo as premissas básicas dessa política
puramente repressiva no Brasil: incremento de penas (penalização) e restrição ou supressão
de garantias do acusado”.

A sanção detentiva é cominada para delitos de grande e de pequeno poder ofensivo, sendo de
pouca aplicação às penas alternativas. Deste modo, é comum se encontrar cumprindo pena
privativa de liberdade, muitas vezes sem separação celular, infratores de intensa
periculosidade e condenados que poderiam estar submetidos a medidas sancionatórias não-
detentivas. Não se faz à distinção devida entre a criminalidade de alta reprovação e a
criminalidade pequena ou média. Como se pretende fazer justiça se as atitudes dos
legisladores e juristas são totalmente injustas? Parece que estas pessoas encontram-se em
outro mundo, criando normas e decidindo sobre a vida humana, de seres humanos, sem
qualquer critério, com regras totalmente divorciadas da realidade.

Não se pensa o delinqüente como ser humano, nem o delito como uma atitude anormal do
indivíduo. O crime é considerado um comportamento normal, que atinge toda a humanidade,
sendo que o delinqüente, pessoa má por excelência, precisa ser punida impiedosamente. Esta
atitude, além de não baixar a criminalidade a níveis razoáveis, gerou a sensação popular de
impunidade, a morosidade da justiça criminal e o grave problema penitenciário.

Está mais do que discutido e comprovado, tanto cientificamente, através da cognose da


sociedade, dos tratados e escritos doutrinários firmados por renomados juristas, como também
pela prática cotidiana, que a pena privativa de liberdade, como sanção principal e de aplicação
genérica está falida, porque além de não readaptar o delinqüente, ela perverte, corrompe,
deforma, avilta, embrutece, é uma fábrica de reincidência, é uma universidade às avessas,
onde se diploma o profissional do crime. Resta a conscientização de que, se não é possível
eliminar a prisão de uma vez, deve ser conservada de forma limitada, ou seja, para os casos
em que ela é indispensável.

O Brasil é um país vasto, com uma imensidão de problemas sociais e de carência de pessoal
disponível para trabalhar pelo conjunto. Não faltam presídios no Brasil, mas formas alternativas
de se punir os delinqüentes que os tire da ociosidade e coloque-os em atividade junto à
comunidade, diminuindo os elevados índices de reincidência. A prisão só deve ser imposta em
relação a crimes graves de delinqüentes de intensa periculosidade, depois de atendidas todas
as fases de proteção aos direitos do indivíduo, principalmente no que consiste a defesa, para
que não se restrinja a liberdade de pessoas inocentes. Nos casos menos graves, deve ser
substituída pelas medidas e penas alternativas e restritivas de direito, como a multa, e
principalmente a prestação de serviços à comunidade, dentre outras.

A aplicação desmedida, de forma irrestrita da pena de prisão e seu agravamento, como vem
acontecendo no Brasil, não reduz a criminalidade. Em outro plano, a imposição da pena
privativa de liberdade sem um sistema penitenciário adequado gera a superpopulação
carcerária, de gravíssimas conseqüências, como se tem visto nas sucessivas rebeliões de
presos, fenômenos que vem ocorrendo em todos os países (E. de JESUS, 1996, p.7).

A pena privativa de liberdade, quando aplicada genericamente a crimes graves e leves só


aumenta o drama carcerário e não reduz a criminalidade. Mais do que isso é agravada pela
precariedade dos estabelecimentos prisionais no Brasil, que propicia o convívio indistinto de
pessoas de periculosidade diversa, constituindo-se numa autêntica universidade do crime
organizado, onde os detentos assimilam as sofisticadas condições e técnicas voltadas para a
prática criminosa. Nas palavras de Raul Eugênio Zaffaroni (1982, p.29), “devemos estar
convencidos de que a pena privativa de liberdade é o recurso extremo com que conta o Estado
para defender seus habitantes das condutas antijurídicas de outro”.

Para que a execução da sanção penal tenha efeitos satisfatórios, tanto para o condenado,
como para a sociedade, deve-se desenvolver um movimento global, que inclua medidas
sociais, econômicas e legais. O direito penal está inserido no grande contexto social. O
indivíduo delinqüente é oriundo da sociedade, cujas atitudes anormais são decorrentes
principalmente dos fatores econômicos e sociais da comunidade onde este ser foi gerado,
educado e preparado para a vida. A legislação clássica pertinente a este ramo do direito ainda
pode ser usada, desde que devidamente interpretada e adequada ao fato concreto. Ademais, já
estão previstas no Código Penal brasileiro, medidas e penas alternativas visando à redução da
criminalidade, a agilização da Justiça e a diminuição da população carcerária. Não são,
entretanto, aplicadas.

O que atrasa a evolução do sistema penitenciário não só no Brasil, como também em outros
lugares do mundo, são os mecanismos ideológicos legitimadores do poder punitivo do Estado
que propagam a idéia de que a imposição deste sofrimento irracional aos autores das condutas
conflituosas ou socialmente negativas, que a lei define como crimes, poderá trazer proteção,
segurança e tranqüilidade. Trata-se de falsas crenças, partindo fundamentalmente da
equivocada identificação da ação individualizada da criminalidade convencional como tradução
da idéia de violência, identificação que se constrói basicamente através da ocultação de dados
essenciais e da manipulação de sentimentos de medo e insegurança, de emoções provocadas
por uns crimes mais cruéis, por uns poucos fatos que comovem e assustam, especialmente
roubos, seqüestros e estupros.

Para Maria Lúcia Karam (1994, p.118), este ideário generalizado na reação punitiva é fruto de
uma perversa fantasia. Quando se fala em combate à impunidade, quando se pedem penas
mais rigorosas, quando se apela para a necessidade de maior aparelhamento, de maior
eficiência do sistema penal, esquece-se e se oculta que tal sistema só opera, e só pode operar
marginalmente, em um número reduzidíssimo de casos. A quantidade infinita de crimes que
permanece desconhecida ou impune, não é resultado de questões conjunturais ou de uma
eventual deficiência operacional. A excepcionalidade da concretização da reação punitiva é, ao
contrário, uma das regras básicas da atuação do sistema penal, baseando-se a lógica de seu
funcionamento na seleção de um ou outro autor de condutas conflituosas ou socialmente
negativas, definidas como crimes, para que, preso, processado ou condenado, seja identificado
e, assim, passe a desempenhar o papel de criminoso, enquanto os demais seguem
desempenhando seus papéis de cidadãos respeitadores da lei.

A reação punitiva do sistema atual, ao reverso do que se espera, acaba por produzir um maior
número de violência. Provocando o isolamento, a estigmatização e a submissão ao inútil,
profundo e desumano sofrimento da prisão daqueles que vão cumprir o papel de criminosos, o
sistema penal faz destes poucos selecionados pessoas mais desadaptadas ao convívio social
e, conseqüentemente, mais aptas a cometer novos crimes e agressões à sociedade,
funcionando, assim, como um poderoso realimentador da criminalidade, isto quando não é a
própria reação punitiva a criadora da criminalidade e da violência por ela gerada, como ocorre
em relação à chamada criminalidade de negócios ilícitos, como, por exemplo, o tráfico ilícito de
drogas, que muitas vezes continua nos presídios, onde os detentos por crimes mais leves
aprendem a comercializar, saindo dos presídios formados em comercialização de objetos
ilícitos.

É muito cômodo taxar as pessoas de boas ou más, encarcerando-as e abandonando-as ao


deslinde do sistema. Mesmo no cotidiano, existem pessoas que, por características
semelhantes à clientela do sistema penal, são vistos por supostos criminosos ou suspeitos.
Esta violência contra o ser humano se acentua quando se vive em um clima de pânico e de
alarme social em torno da criminalidade, como no Brasil de hoje, a provocar um generalizado
desejo de punição, uma intensa busca de repressão, uma obsessão por segurança.

Este problema se agrava com o eterno processo de deterioração econômica e social que
atravessam os países subdesenvolvidos. E, de fato, épocas de deterioração econômica
caracterizam-se por uma maior repressão, maior castigo. Em nome do desejado maior rigor,
permite-se e incentiva-se o desvio dos princípios inerentes ao Estado de Direito, produzem-se
e aplicam-se leis totalmente divorciadas dos princípios penais, em claro desrespeito aos
preceitos constitucionais.

Não é preciso relembrar que a punição sempre recai sobre os supostos ou propensos
criminosos, sendo raras as vezes que se impõe pena a um ou outro membro das classes
dominantes. Quando isso acontece, só serve para legitimar o sistema penal e ocultar seu papel
de instrumento de manutenção e reprodução da sociedade. Sendo a pena, em essência,
manifestação de poder, é necessária e prioritariamente dirigida aos excluídos, aos desprovidos
deste poder.

Sobre o controle da violência punitiva, Maria Lúcia Karam (1994, p.121) enfatiza que neste
quadro de apelo e aplauso à repressão penal, mais urgente se torna a necessidade de uma
nova atuação da Justiça Criminal, para que vá de encontro ao discurso e à prática dominantes,
partindo de uma compreensão crítica da função judiciária e da democratização do exercício de
tal função, de forma a dar um conteúdo ético ao direito penal, fazendo-o um instrumento de
limitação, controle e redução dos níveis de violência punitiva.

O momento decisivo é o da aplicação da pena, eis que a violência punitiva já se faz presente
pela própria imposição desse instrumento de limitação do poder punitivo do Estado. Também é
neste momento que se dá uma das mais significativas atuações do sistema penal, em sua
função de manutenção e reprodução do poder de classe do Estado, de manutenção e
reprodução das relações de dominação e exclusão.

Também é com a aplicação da pena que se distribui o status de criminoso, impostos àqueles
indivíduos que, sendo condenados, passarão a ser oficialmente distinguidos dos demais. A
aplicação política da Justiça Criminal, orientada no sentido de fazer do exercício do poder
contido na função judiciária um instrumento de limitação, controle e redução à violência punitiva
formal ou informal, no decisivo e inevitável momento da aplicação da pena, há que se
direcionar fundamentalmente no sentido de dar aplicabilidade efetiva àquelas garantias penais,
fazendo-as valer direta e indiretamente contra leis ordinárias e mecanismos outros que as
negam ou restringem.

C) Direitos Fundamentais do Sentenciado

Não tem como não criticar a situação do sistema penal e carcerário brasileiro. Contudo, não se
pode permanecer nas críticas sem reconhecer os avanços. As experiências passadas devem
ser estudadas para que sirvam de subsídios norteadores das práticas futuras. Embora ainda
exista um grande abismo entre o reconhecimento de direitos e sua prática, há que se valorizar
a consagração de direitos arduamente conseguidos. Se no passado acreditava-se que a
condenação supria todos os direitos e deveres dos aprisionados, na atualidade o pensamento é
outro. O espírito humano evoluiu e o direito acompanhou esta evolução. Já existe há algum
tempo a solidificação dos direitos humanos, ou seja, é reconhecida a existência de valores que
se agregam à organização jurídica da sociedade como direitos decorrentes da essência do ser
humano. Assim, exige-se que o Estado forneça suficiente garantia de respeito a esses direitos
no âmbito da própria eficácia normativa, respeito que se irradia, como discorre Sidnei
Agostinho Beneti (1996, p.10), em “duas ordens harmônicas, ou seja, nas relações recíprocas
dos integrantes da população do Estado e nas relações deste com a aludida população”.

Reconhece-se, assim, a existência de direitos fundamentais do condenado. Na expressão de


Hans-Heinrich Jeschek (apud BENETI, 1996, p.10):

Um relevante princípio da execução da pena, em seguida, é o reconhecimento do preso como


sujeito de direitos. Esses direitos a rigor devem conduzir, ao objetivo mais elevado da execução
penal, a significar que o preso deve ser apto no futuro a levar vida socialmente responsável
sem infrações penais.

Observa, no geral, José Frederico Marques (1960, p.53):

A justiça penal não pode ser instrumento de degradação dos direitos do homem. Mesmo o
delinqüente tem garantido a tutela dos bens jurídicos que lhe são mais caros; e só depois que a
viva fox iuris do magistrado o declara responsável criminalmente, é que seu
status libertatis pode sofrer as limitações decorrentes da sanção penal.

É, portanto, natural que a proteção aos direitos do preso assuma especial destaque histórico e
retórico em meio à proteção dos direitos das diversas espécies de sentenciados, ensejando,
em conseqüência, a maior quantidade de proteção legal e de proclamação supranacional
desse tipo de condenado.

Hodiernamente, existe uma série de direitos essenciais à garantia do sentenciado, alguns deles
constam de documentos internacionais, que devem ser cumpridos por todas as nações em
igual teor. Por exemplo, consta na Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969,
resumidamente, os seguintes direitos do sentenciado, dentre outros:

a) cada pessoa tem direito à vida, liberdade e segurança; ninguém será preso arbitrariamente
ou mantido no cárcere ou conduzido a outra terra;

b) quem sofrer lesão a direitos e liberdades tem direito à concessão de um processo eficaz
perante um juiz determinado pela lei;

c) a independência dos juízes e a atuação não partidária do Poder Judiciário devem ser
eficazes;

d) toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança. A liberdade de uma pessoa somente
pode ser suprimida nos casos seguintes e por meio das formas estabelecidas na lei: a) quando
presa de acordo com o direito, pelo juiz competente; e

e) toda pessoa tem direito ao respeito e à integridade física, psíquica e moral; a condenação
penal não pode recair em outra pessoa além do autor da infração; as penalidades privativas de
liberdade têm o objetivo da reinserção social do preso.

Por fim, é importante salientar que o respeito mútuo dos direitos fundamentais entre os seres
humanos deve ser garantido a todos e a cada um pelo Estado. Por isso é que não se concebe
a realização da justiça privada, por intermédio de organismos pré-estatais, como os
denominados “justiceiros”, “esquadrão da morte” ou “grupo de extermínio”, ainda que atuem
contra reais autores de delitos de grande expressão penal. A pretensa aplicação de sanção
penal à margem da atuação do Estado nega o ordenamento de garantia, inclusive o
ordenamento penal, ante a configuração da ilegalidade sob o pretexto da punição de
delinqüentes. De outro ponto de vista, contudo, dessa prática resultam conseqüências jurídicas,
por intermédio das quais é reafirmada a ordem penal do Estado de Direito, pois tais ações se
enquadram em tipos penais e passam a ser objeto de persecução penal.
Mas a preocupação dos estudiosos do sistema penitenciário da atualidade não se cinde
apenas na prática da justiça privada, mas também aos presídios. Se for condenável a prática
da “justiça pelas próprias mãos”, também não se pode admitir que, depois de legalmente
processado e condenado, o preso venha a sofrer injustiças carcerárias. A preocupação com os
direitos do apenado deve ultrapassar a condenação, e atingir, principalmente, o tempo em que
este indivíduo é retirado da sociedade para se recuperar e depois ser reinserido nela. Talvez
este seja o momento mais importante do processo penal para que se concretize a “justiça justa”
e a pacificação que a sociedade tanto almeja.

Este é o ponto de análise desta pesquisa bibliográfica. De forma alguma se defende que todas
as fases procedimentais de julgamento do acusado não sejam importantes. Sim, faz parte dos
direitos humanos fundamentais, previstos na esfera internacional, constitucional e legal.
Todavia, entende-se ser um contra-senso respeitarem-se os direitos do condenado até o
momento da condenação, depois disso, “despejá-lo” em presídios que funcionam como
verdadeiros depósitos de presos, com suas celas estreitas, com número excessivo de detentos,
tratados de forma indigna e desumana, sem que nenhum dos direitos fundamentais seja
devidamente respeitado.

Como este estudo pretende tratar, especificamente, das alternativas à humanização do sistema
prisional, são de salutar importância que se abordem os principais pontos onde os estudiosos
do direito se baseiam ao fundamentar suas posições. Já se falou do direito penitenciário, suas
origens, como se apresenta na atualidade, principalmente no Brasil, e alguns dos direitos,
internacionalmente reconhecidos para os condenados à prisão. Agora chegou o momento da
análise sobre a eficácia do sistema de aplicação da pena de prisão, investigada enquanto parte
integrante dos contextos: social, político e econômico.

D) Crise da Pena Privativa de Liberdade

Sempre que se institui uma norma penal, o Estado reveste-se do direito de punir em abstrato,
ou seja, adquire o direito de exigir que os indivíduos não cometam o fato nela previsto. Ao
cidadão, por sua vez, impõe a obrigação de não realizar a infração penal determinada.
Cometida a infração penal, o direito de punir que era abstrato, passa a revestir-se de
concreticidade. Significa dizer, no entendimento do penalista Damásio Evangelista de Jesus
(1996, p.1-2), que anteriormente ao cometimento do delito o Estado tinha o direito de exigir a
abstração da prática criminosa, mas após a realização do fato delituoso, a relação entre o
Estado e o delinqüente, que era de simples obediência penal, galgada no preceito primário da
lei incriminadora, passa a ter seu suporte no preceito secundário, que comina a sanção,
denominada de jurídico-punitiva, passível de execução.

O direito concreto de punir estabelece uma relação real de natureza jurídico-penal, e consiste
num poder-dever de o Estado punir o sujeito ativo do crime. Trata-se aqui do jus puniendi.

Após o trânsito em julgado da sentença condenatória, este poder-dever do Estado adquire a


feição de jus executionis, ou seja, passa a ter o dever de executar a sanção imposta pelo
julgador na sentença. Para isso possui o dever, e é revestido dos poderes necessários de
coação para fazer valer este direito de executar a punição devida.

A propósito, pontua José Frederico Marques (1956, p.120) que “o direito de punir é um direito
de coação indireta, pelo que a sanctio juris da norma penal só se aplica mediante o processo”.
Significa dizer que o direito concreto de punir e o direito de execução da pena não podem ser
exercidos diretamente pelo Estado, enquanto administração, porque não compete ao Poder
Executivo aplicar a sanção penal e executá-la, por intermédio de coação direta. Prescinde da
preexistência de um processo, através o qual, por intermédio da jurisdição, o Estado
indiretamente coage o agente do delito a executar a pena determinada.
Vale dizer que, sendo o jus executionis um prolongamento do direito de punir concreto,
decorrente de uma ordem judicial, a efetiva execução da sanção penal também depende de
ordem judicial por autoridade competente (E. de JESUS, 1996, p.3).

O direito penal é formado por um sistema global, integrado por diversos sistemas parciais.
Quando este direito é concretizado são acionados diversos institutos, como a cominação, a
aplicação e a execução das penas. Acontece que são totalmente divergentes os processos de
valoração da culpabilidade em cada um desses sistemas parciais. Por exemplo, a culpabilidade
é o fundamento da aplicação da pena, já o regime de execução tem como fator determinante à
periculosidade do agente. Se os critérios valorativos da culpabilidade são diferentes, e esta, por
sua vez, é o fundamento jurídico para se submeter o condenado ao cumprimento da sanção, à
fixação da pena, e a execução desta, dificilmente se conseguirá a eficácia da repreensão e a
recuperação do condenado, sem violação de um ou outro direito.

Desta forma, o processo de execução penal, mais especificamente quando aplica medidas
privativas de liberdade, passa a ser um procedimento totalmente afastado de muitos dos
princípios e regras de individualização, personalidade, proporcionalidade etc., como acentua
René Ariel Dotti (apud MIRABETE, 1995, p.37), ou seja, o aprisionamento acaba por modelar
valores e interesses opostos àqueles cuja ofensa determinou a condenação. Existe uma
disfunção do sistema penal global. O processo de execução precisa de autonomia em relação
às ciências penais. Carece, destarte, do desenvolvimento de métodos e meios que, embora
relacionados com o direito penal, direito processual penal, direito administrativo ou outros
ramos do direito, sejam oriundos de outras disciplinas e técnicas de atuação humana, com
medidas de informação, dissuasão e proteção destinadas a atenuar o sentimento de
insegurança social, que se agrava a cada dia e, de outro lado, a preparação do preso para a
vida social. Esta preparação do condenado tem que estar intimamente ligada com a
preparação da sociedade para recebê-lo. Para isso, a comunidade precisa ter motivos para
acreditar na eficácia da recuperação do preso, ou seja, na seriedade da justiça.

Necessita-se de uma definição legal de delito que restrinja o estudo e, em última instância, o
controle dos criminosos assim definidos por esta lei. É imprescindível que se elabore uma
definição de delito que reflita a realidade de um regime jurídico baseado no poder e no
privilégio; admitir a definição legal do delito socialista e fundada em direitos humanos habilita
para o exame do imperialismo, do racismo, do capitalismo, da discriminação e outros sistemas
de exploração que contribuem para a miséria do homem e privam as pessoas de suas
potencialidades humanas. Com uma definição radical, fundada nos direitos humanos, a solução
dos crimes reside na transformação revolucionária dos sistemas econômicos e políticos de
exploração.

Nos últimos tempos, mais especificamente a partir da década de sessenta, surgiu à idéia de
substituir parcialmente o controle carcerário por um controle comunitário da criminologia, isto é,
de passar de um controle segregativo para um controle integrador. Diversos juristas continuam
defendendo este entendimento, já conseguiram algumas vitórias, mas está longe de um
sistema punitivo satisfatório.

Uma das principais razões que de um modo imediato serviram de justificação para esse
impulso foi à crise das prisões como instrumento de controle da criminalidade. A massificação
da população penitenciária, com a seqüela de aumento da violência, difusão de doenças e
ausência de garantias dos direitos fundamentais, não representava nada mais do que a
exteriorização de um fracasso mais profundo: o fracasso da prisão em cumprir os objetivos de
prevenção, retribuição e reinserção que historicamente havia proclamado.

Uma boa parte da sociedade perdeu a esperança nas possibilidades de reabilitação oferecidas
pelas prisões, e fica observando horrorizada o não atendimento aos direitos humanos
fundamentais dos presos; esta descredibilidade aumenta nos casos de penas privativas de
liberdade, quando se percebe que os efeitos destruidores e dissocializadores produzidos pelos
presídios são infinitamente maiores do que os hipotéticos benefícios ressocializadores.

Não existe a preocupação de se adaptar cada condenado à sua pena de forma individualizada.
A “mistura prejudicial” estimula contatos nocivos, de condenados revoltados e/ou perigosos. O
regime de privação da liberdade, nos moldes como se apresenta hoje, não no direito penal
clássico, mas na prática nos presídios brasileiros, resulta numa verdadeira “escola de
marginalização”.

Questiona-se muito sobre a validade da pena de prisão no campo da teoria, dos princípios, dos
fins ideais ou abstratos da privação de liberdade, mas se deixa de lado o aspecto principal que
é o da sua execução, momento em que a pena aplicada sai do papel para atingir corpo, tornar-
se concreta. Como pondera Cesar Roberto Bitencourt (1993, 142-3):

Os problemas referentes à privação da liberdade devem ser abordados em função da pena tal
e como hoje se cumpre e se executa, com os estabelecimentos penitenciários que temos, com
a infra-estrutura e dotação orçamentária que dispomos, nas circunstâncias e na sociedade
atuais. Definitivamente, deve-se mergulhar na realidade e abandonar, de uma vez por todas, o
terreno dos dogmas, das teorias, do dever ser e da interpretação das normas.

Quando instituída e convertida em resposta penalógica principal, acreditou-se que a prisão


poderia ser um meio adequado para se conseguir a reforma do delinqüente. O tempo e a
prática trataram de derrubar esse otimismo, eis que atualmente predomina uma certa atitude
pessimista, que já não tem muitas esperanças sobre os resultados que se possa conseguir
com a prisão tradicional. Não só a prisão está em crise, como também o objeto ressocializador
da pena privativa de liberdade, principalmente pela impossibilidade de obter algum efeito
positivo sobre o apenado. Efeitos negativos, no entanto, é o que não faltam.

Segundo Cesar Roberto Bitencourt (1993, p.143), a conclusão de que o sistema penitenciário
está em crise, se baseia, sinteticamente, em dois argumentos cabais:

a) considera-se que o ambiente carcerário, em razão de sua antítese com a comunidade livre,
converte-se em meio artificial, antinatural, que não permite realizar nenhum trabalho
reabilitador sobre o recluso:

Neste sentido, manifestam-se Garcia-Pablo e Molina afirmando que a pena não ressocializa,
mas estigmatiza, que não limpa, mas macula, como tantas vezes se tem lembrado aos
expiacionistas; que é mais difícil ressocializar a uma pessoa que sofreu uma pena do que outra
que não teve essa amarga experiência; que a sociedade não pergunta porque uma pessoa
esteve em um estabelecimento penitenciário, mas tão somente se lá esteve ou não
(BITENCOURT, 1993, p.143).

Chegam, alguns autores, ao extremo de sugerir que a verdadeira solução ao problema da


prisão é a sua extinção pura e simples (COHEN apud BITENCOURT, 1993, p.144). Outros, não
tão radicais, entendem que, mesmo não existindo muitos pontos favoráveis à privação da
liberdade, enquanto esta for uma realidade necessária, a sua execução, em médio prazo,
continua sendo um problema jurídico. No entanto, renunciar atualmente as práticas
terapêuticas e perder, sob ponto de vista criminológico, o tempo de reclusão é uma insensatez.
A única solução, entendem, é a drástica redução da prisão àqueles casos em que não há outra
resposta possível[6].

b) sob outro ponto de vista, menos radical, porém, igualmente importante, insiste-se que na
maior parte das prisões do mundo, as condições materiais e humanas tornam inalcançáveis o
objetivo reabilitador. Não se trata de uma objeção que se origina na natureza ou na essência
da prisão, mas que se fundamenta no exame das condições reais em que se desenvolve a
execução da pena privativa de liberdade.

A infeliz realidade é que as graves deficiências das prisões não se limitam a narrações de
alguns países, ao contrário, existem centros penitenciários sem que a ofensa à dignidade
humana é rotineira, tanto em nações desenvolvidas como em subdesenvolvidas.

As mazelas das prisões não são privilégios apenas de países do terceiro mundo. De um modo
geral, as deficiências prisionais compendiadas na literatura especializada apresentam muitas
características semelhantes: mau trato verbal ou de fato; superpopulação carcerária; falta de
higiene e outras tantas já enumeradas no desenvolvimento deste estudo.

Sob esta perspectiva fala-se da crise da prisão como resultado de uma deficiente atenção que
a sociedade e, principalmente, os governantes têm dispensado ao problema penitenciário, que
leva a exigir uma série de reformas, mais ou menos radicais, que permitam converter a pena
privativa de liberdade em um meio efetivamente reabilitador.

Como vimos, as deficiências da prisão, as causas que originam ou evidenciam sua crise podem
ser analisadas em seus mais variados aspectos. Todavia, a conclusão leva à necessidade
urgente de se fazer algo de concreto, em face da insatisfatoriedade deste instituto punitivo.
Estando o sistema carcerário brasileiro em uma situação caótica, é natural que várias
alternativas aflorem, na tentativa de solucionar o problema. As principais propostas são:
privatização total dos presídios, parcerias público-privadas e gestões compartilhadas.

III ALTERNATIVAS À HUMANIZAÇÃO DO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO

A) Fatores que ensejam a Idéia Privatizante

A idéia da privatização das prisões foi tomando forma no Brasil na década de noventa.
Recorde-se que o governo de José Sarney (1985-1990), “herdeiro de uma política econômica
intervencionista”, contribuiu para o estrangulamento das possibilidades de investimento do
Estado, aumentou a dívida externa e gerou mais inflação. A falência deste sistema
extremamente intervencionista ocorreu quando se verificou que o Estado não conseguia mais
suportar o nível de investimento necessário para gerar desenvolvimento. Com vistas a diminuir
a dívida pública e fornecer algum tipo de liberdade econômica, a exploração de alguns serviços
e obras, antes de funções exclusivas do Estado, foram sendo passadas às mãos da iniciativa
privada.

É neste cenário de desestatização estatal que se começou a cogitar da privatização das


prisões brasileiras, surgindo pelo menor cinco fórmulas: a) a entrega da direção da prisão à
companhia privada; b) a entrega da construção à economia privada, que posteriormente a
aluga ao Estado; c) a utilização do trabalho dos presos nas prisões industriais pelos
particulares; d) a entrega de determinados serviços para o setor privado que hoje se chama de
terceirização; e d) a transferência da gestão plena dos presídios à iniciativa privada (SILVA,
1992, p.11). Neste estudo enfatiza-se a privatização total, a terceirização e a gestão
compartilhada com a sociedade civil.

1) Privatização total das prisões

Na definição de Bernardo del Rosal Blasco (1991, p.245), a privatização das prisões traduz-se
na “gestão plena por parte de empresas privadas, que desenvolvem seu trabalho a título
lucrativo, em centros ou estabelecimentos tutelares ou penitenciários, gestão que pode chegar
a incluir a construção do centro ou habilitação do já existente”.
Em 1993, quando o governo declarado impedido tentou introduzir no sistema penal brasileiro a
privatização das prisões, membros do Curso de Mestrado em Direito da Cidade, da Faculdade
de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ[7], realizaram um amplo estudo
científico sobre a privatização das prisões, na tentativa de encontrar pontos positivos, na ânsia
de confirmar ser esta a solução para a crise das prisões modernas, contudo, depararam-se
com inúmeros pontos negativos restando, ao final, totalmente descartada a idéia da
privatização como solução aos problemas enfrentados pela Administração da Justiça Penal
brasileira, principalmente no que se refere à execução da pena.

Passa-se agora a apresentar os fatores identificados pelos pesquisadores como propiciadores


da existência da proposta de privatização de presídios usados como justificativa pelos arautos
da privatização e, na seqüência, as principais implicações éticas, jurídicas e políticas
identificadas como potenciais à eventual implantação.

1.1) Justificativas à privatização das prisões

1.1.1) A crise do sistema penitenciário

Os defensores da privatização das prisões acreditam que a superada, falida e ineficiente pena
de prisão, nos moldes que se apresenta, ainda é a solução para o acentuado aumento da
criminalidade. Com base nesta justificativa, entendem que o problema reside em dois pontos
básicos: as deficiências do sistema carcerário e a insuficiência da receita do Estado. Defendem
que a construção de novas penitenciárias e melhoria das existentes seria suficiente para
minimizar a situação.

Se for feita uma rápida visita a um presídio brasileiro, principalmente os das maiores cidades,
percebe-se que existe superpopulação, maus tratos, falta de higiene, condenados de grande
periculosidade dividindo cela com “ladrões de galinha”, etc., saltando aos olhos que a solução
seria a construção de mais presídios, para que estes tivessem mais espaços, podendo separar
os presos em razão do crime cometido, individualizando a pena da forma que a teoria
preleciona, conseguindo, também, uma melhor higiene, atendimento médico, redução de
abusos sexuais etc. Trata-se de uma maneira simplista e ideológica de se solucionar um
problema de dimensões muito maiores do que imaginam. A grave crise que aflige o sistema
penitenciário brasileiro é estrutural e deve ser assim enfrentada sob pena de criarem-se
expectativas que não levarão a lugar algum.

O pesquisador João Marcello de Araújo Júnior e seus colaboradores (1995, p.27) ressaltam
que o direito penal é o ramo do direito mais sensível às modificações políticas. Por
conseguinte, a proposta da privatização deve ser contextualizada dentro da política neoliberal
de diminuição do Estado, que começou com a era Reagan e Tatcher da década de oitenta,
chegando ao Brasil pouco depois. Estes governos, como conta a história, deram início a um
processo de afastamento do Estado da intervenção econômica, fortalecendo a iniciativa privada
em vários campos sociais. Essa onda privatizante atingiu a seara penal em alguns países não
só quanto à privatização dos presídios, mas, até criando um conceito privado de segurança.
Dispondo sobre este assunto, Guilherme Magali Neto (apud ARAÚJO JÚNIOR; et alli, 1995,
p.28) pregou que:

Uma das agências desses sistemas mais atingido por esse fenômeno é a própria polícia.
Atualmente este corpo de funcionários do Estado enfrenta séria e acirrada concorrência, em
razão do vertiginoso aumento do número de empresas privadas que exploram o ramo da
segurança pública e individual. Este mercado, pelo qual circulam milhões de dólares
anualmente, foi, segundo especialistas, o que mais cresceu na última década. Existem países,
como Canadá e Estados Unidos da América, que o número de policiais privados ultrapassa os
policiais recrutados pelo Estado, chegando à proporção de dois por um. Significa dizer que as
empresas privadas lograram formar um exército composto do dobro de homens que aquele
mantido pelo Estado.

No Brasil vem acontecendo o mesmo fenômeno[8], não apenas em decorrência da previsão


legal para o exercício da atividade de vigilância e segurança privada (Lei nº 7.102, de 20 de
junho de 1983), mas também pelas empresas de segurança privada clandestina, a exemplo
das milícias.

É preciso deixar bem claro que a idéia privatizante não surgiu pura e simplesmente em
decorrência das deficiências do atual sistema de prisão, mas da privatização da economia
brasileira. A análise, o debate, o aprofundamento dos estudos referentes ao problema em
particular não mereceu destaque.

1.1.2) As experiências estrangeiras

De acordo com João Marcello de Araújo Junior e seus colaboradores (1995, p.29), o texto de
justificativa da proposta de lei do Governo Federal d 1993, dispunha que “a presente proposta
de privatização do sistema penitenciário brasileiro é oriunda de reflexões sobre as modernas e
recentes experiências que, nesse sentido, vêm sendo colocadas em prática em
estabelecimentos prisionais dos Estados Unidos, da França, da Inglaterra e da Austrália”.

O texto aparentemente é convincente, contudo a realidade do Brasil é totalmente diversa da


destes países citados; também que a forma de privatização aplicada em cada um deles é
bastante diversa e, por fim, que nenhuma dessas experiências resultou satisfatória. Em regra,
os objetivos não foram atingidos, com exceção de que algumas das empresas aumentaram
seus lucros com este sistema. Mas, em relação aos presos, não houve qualquer resultado
satisfatório, principalmente no que diz respeito à recuperação e reintegração do recluso à
sociedade.

Na verdade, a utilização de experiências estrangeiras deve ser muito cuidada já que as


realidades desses países são muito diferentes da brasileira. É claro que é importante estar
aberto às propostas e experiências de outras nações. Este estudo, porém, deve ser muito
criterioso, um verdadeiro trabalho de campo, porque importar informação preparada conforme a
necessidade de quem as vai ouvir, e aceitá-la como verdade, é no mínimo simplista.

1.1.3) A ideologia da lei e da ordem

Tema já discutido, este movimento está influenciando por demais a população brasileira,
chegando até a convencer estudiosos juristas. Se antes do surgimento desta política criminal
se discutia a falência das penas de prisões, no Brasil e no mundo, a partir desta passou-se a
pregar a pena privativa de liberdade como melhor forma de recuperar a credibilidade no
sistema penitenciário.

Significa dizer que, a partir do fracasso da política de tratamento reeducador, usa-se o


sensacionalismo da violência para se postular por um endurecimento das penas. A população,
indignada com o estado de guerra civil que enfrenta no cotidiano, apóia este movimento e
acredita piamente que a prisão como pena, castigo é a melhor forma de se minimizar os efeitos
da criminalidade.

A idéia da privatização aparentemente resolve a contradição da necessidade de construir mais


presídios e a adoção de políticas econômicas de forte restrição do gasto público. Mas, só
aparentemente.

1.2) Obstáculos à idéia privatizante


Encontrar soluções de hora para outra, como passe de mágica, é fácil, todavia, atingir os
resultados e efeitos que se almeja, torna-se um pouco mais difícil. No Brasil existem pelo
menos obstáculos de três ordens à idéia da privatização das prisões. Vejam-se,
resumidamente, cada um deles:

1.2.1) Obstáculos éticos

Resultou do estudo científico realizado por João Marcello de Araújo Junior e seus
colaboradores que, do ponto de vista ético, existe a teoria utilitarista, para os quais o ser
humano é considerado apenas o meio de realização de ideais superiores, sem qualquer
ajustamento à idéia de personalidade; e a teoria personalista, que se caracteriza pelo fato de
declarar a indisponibilidade da pessoa humana e reconhecer no indivíduo os atributos da
personalidade. Do estudo destas teorias decorrem, em matéria penal, alguns princípios, dentre
outros: “o princípio da inviolabilidade da vida, o princípio da integridade física e da saúde do ser
humano, o princípio da dignidade pessoal e princípio da liberdade individual”
(MANTOVANI apud ARAUJO JUNIOR; et alli, p.12).

Em análise aos comandos que emergem do artigo 5º, da Constituição Federal de 1988, tais
como: garantia da inviolabilidade dos direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, percebe-se que esta adotou a teoria personalista. Como se vê, ao princípio ético
da liberdade individual corresponde à garantia constitucional do direito à liberdade. Por outro
lado, a única coação moralmente válida é a exercida pelo Estado através da imposição e
execução de penas ou outras sanções. A “justiça pelas próprias mãos” foi sendo enterrada
enquanto a mente humana evoluía, chegando-se a um estágio evolutivo o qual não permite que
um indivíduo exerça sobre outro qualquer espécie de poder que se manifeste pela força.

Do exposto extrai-se que o Estado quer seja do ponto de vista moral ou jurídico, não está
legitimado para transferir a uma pessoa, natural ou jurídica, o poder de coação de que está
investido e que é exclusivamente seu, por ser, tal poder, violador do direito de liberdade.

Neste ponto, segundo os pesquisadores cariocas (ARAUJO JUNIOR; et alli, p.12) o aspecto
ético se confunde com o aspecto jurídico constitucional e fundamenta a inconstitucionalidade
da proposta de privatização.

Além disso, é intolerável, do ponto de vista ético, que um indivíduo, além de exercer o domínio
sobre outro, que por si só é imoral e inconstitucional, aufira vantagem econômica do trabalho
carcerário. Como é sabido, o trabalho nos presídios faz parte da natureza da pena, e somente
ao Estado será moralmente lícito obter receita sobre ele.

Não se trata de conjecturas, mas de um princípio consagrado nas Regras Mínimas para o
Tratamento dos Reclusos, estabelecidas pela Organização das Nações Unidas - ONU, ainda
em 1955. Estas regras determinam, em suma, o que segue:

71.1: o trabalho na prisão não deve ser penoso. [...]. 72.1: a organização e os métodos de
trabalho penitenciário deverão se assemelhar o mais possível aos que se aplicam a um
trabalho similar fora do estabelecimento prisional, a fim de que os presos sejam preparados
para as condições normais de trabalho livre. 72.2: contudo, o interesse dos presos e de sua
formação profissional não deverão ficar subordinados ao desejo de se auferir benefícios
pecuniários de uma indústria penitenciária. [...]. 73.1: as indústrias e granjas penitenciárias
deverão ser dirigidas preferencialmente pela administração e não por empreiteiros privados [...]
(Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros, de 1955).

Como se vê, não é de hoje que a Organização das Nações Unidas - ONU vem se opondo à
privatização das prisões. Por outro lado, é tradicional também no Brasil o respeito aos preceitos
da Organização das Nações Unidas - ONU, e com eles, os princípios éticos em matéria de
trabalho prisional. Significa dizer que é intolerável que exista quem enriqueça sobre a base
do quantum de castigo que seja capaz de infligir. Quanto mais castigar, mais lucro terá.

Para demonstrar isso é suficiente repetir as palavras de Oscar Stevenson (apud REALE
JÚNIOR, 1983, p.78) na Exposição de Motivos de seu Anteprojeto de Código Penitenciário
brasileiro de 1957: “veda-se, por outro lado, a locação do trabalho dos recolhidos a empresas
privadas. A interprise, ou contract system, à direita sujeição do recolhido a contratantes
particulares é sistema que a experiência condenou” Também o célebre Anteprojeto de Códigos
das Execuções Penais do Professor Lyra, assim estatuía no artigo 70: “o trabalho dos
recolhidos não poderá ser locado a empresas particulares” (REALE JÚNIOR, 1983, p.80).

Para finalizar e corroborar que já foi dito e fundamentado, a Lei de Execução Penal (Lei nº
7.210, de 11 de julho de 1984), hoje em vigor, estabelece, em seu artigo 34, que, in verbis:

Artigo 34: o trabalho poderá ser gerenciado por fundação, ou empresa pública, com autonomia
administrativa, e terá por objetivo a formação profissional do condenado. Parágrafo 1º: nessa
hipótese, incumbirá à entidade gerenciadora promover e supervisionar a produção, com
critérios e métodos empresariais, encarregar-se de sua comercialização, bem como suportar
despesas, inclusive pagamento de remuneração adequada. Parágrafo 2º: os governos federal,
estadual e municipal poderão celebrar convênio com a iniciativa privada, para implantação de
oficinas de trabalho referentes a setores de apoio dos presídios.

Como se vê, o único objetivo do trabalho dos prisioneiros é a formação profissional, jamais o
lucro ou a redução de despesas públicas.

1.2.2) Obstáculos jurídicos

Os obstáculos jurídicos são constitucionais e legais. O aspecto constitucional já foi analisado,


uma vez que o aspecto ético se confunde com o constitucional. O obstáculo legal decorre da
Lei de Execução Penal, que ressaltou o caráter jurisdicional e processual da execução, senão
vejamos:

No Brasil, já no início do século, a execução da pena deixou, de fato, o campo da mera


atividade administrativa, para interessar ao da atividade jurisdicional do Estado, com o que é
reconhecida à autonomia do direito de execução penal, exercido por jurisdição especializada. A
execução penal, com estrita observância das garantias próprias do Estado de Direito, deve
realizar-se por intermédio da atividade jurisdicional, no prosseguimento da intervenção do
Estado na órbita dos direitos do condenado (BENETI, 1996, p.4-6). Sobre esse assunto, René
Dotti (apud ARAUJO JUNIOR; et alli, 1995, p.15) assevera que:

Procurando reagir contra o vértice da insegurança e descrédito do condenado mundo das


prisões, a Lei de Execução Penal desde logo reconheceu a importância e a necessidade da
judicialização como fenômeno indispensável para regular os conflitos existentes na área da
execução das penas e das medidas de segurança [...]. Os órgãos da execução penal, conforme
orientação sistemática da lei de regência, foram previstas em forma inter-relacionada.

Daí decorre, no entendimento de João Marcello de Araújo Junior e seus colaboradores (1995,
p.15), que a administração penitenciária participa da atividade jurisdicional do Estado. Os
funcionários dos presídios, além da gestão financeira e disciplinar, dão continuidade aos
trabalhos do juiz. Significa dizer que a administração penitenciária participa, portanto, da
execução de decisões judiciais.

Destas colocações conclui-se, logicamente, que sendo a execução penal uma atividade
jurisdicional, e sendo a atividade jurisdicional indelegável, a administração penitenciária
somente poderá ser exercida pelo Estado. Nem precisa dizer, conquanto, que a violação da
indelegabilidade da atividade jurisdicional importa em inconstitucionalidade. Assim sendo,
verifica-se que a Lei de Execução Penal, além de proibir que o trabalho carcerário seja
gerenciado por empresas privadas, ceda, também, a delegação da gestão penitenciária aos
particulares[9].

1.2.3) Obstáculos políticos

Dificilmente o Brasil inova nas instituições de suas leis. Normalmente as “copia” de outros
países. Até ai, se a realidade é similar e as leis satisfatórias e comprovadamente eficientes,
não há grandes reprovações. Todavia, quando se tenta implantar no Brasil um instituto que, na
prática, não trouxe os resultados esperados nos países de origem, há que se questionar muito
sobre os verdadeiros interesses que legitimam tal atuação. É o que se está tentando fazer em
relação à privatização das prisões no Brasil.

A idéia de privatizações nasceu nos Estados Unidos da América, como conseqüência da crise
da pena indeterminada. Acontece que no início dos anos oitenta, os Tribunais Federais
americanos, em face do lastimável estado em que se encontrava o seu sistema penitenciário
(até então os Tribunais Federais americanos aplicavam a política do hands off, ou seja, a
execução da condenação ficava exclusivamente por conta das autoridades administrativas,
sem qualquer participação do juiz), passaram a intervir diretamente na execução. Em razão
disso, determinaram a interdição de diversos estabelecimentos carcerários. Entretanto,
afrontando esta determinação, o empresariado exercia pressões junto aos poderes públicos no
sentido da privatização das prisões.

Diante das divergências, e do estado emergencial em que se encontrava o sistema da


execução da pena naquele país, a solução política encontrada foi ceder às pressões dos
empresários, entregando à iniciativa privada algumas prisões, escolhidas as destinadas a
jovens infratores. A oposição de tal atividade, com base no obstáculo ético, foi tão grande que
não permitiu o seu progresso.

Aliado ao ponto de vista econômico estava o ponto de vista científico, ou seja, a idéia da
privatização estava atRelada à ideologia do tratamento, que resultou um fiasco, daí sustentar
Rupert Cross (apud ARAUJO JUNIOR; et alli, 1995, p.18), que é “chegado o momento de
abandonar a crença de que a prisão pode reformar”. Diferente não aconteceu na Europa e na
França. Tanto é verdade que até nos países escandinavos, sempre apontados como exemplo
em matéria prisional, as experiências com os “estabelecimentos sociais terapêuticos” foram
abandonadas (ARAUJO JUNIOR; et alli, 1995, p.19).

Do exposto, constata-se que a adoção das privatizações das prisões, caso fossem superados
os obstáculos éticos e jurídicos, esbarraria no obstáculo político-criminal.

Como concluem João Marcello de Araújo Junior e seus colaboradores (ARAUJO JUNIOR; et
alli, 1995, p.19): “privatizar prisões significa consagrar um modelo penitenciário que a ciência
criminológica revelou fracassado e, além disso, considerado violador dos direitos fundamentais
do sEr humano”.

Assim, a privatização das prisões, além de violar os modernos princípios da política criminal
humanista, é imoral, ilegal e engorda os cofres já abarrotados de algumas empresas. É
inaceitável, como se vê, que o apelo a simples interesses econômicos e financeiros seja
suficiente para superar desde “a perspectiva da legitimidade da assunção do poder de castigar
e fazer executar o julgado” (BLASCO, 1991, p.245) por particulares, todo o complexo problema
social, político, filosófico e jurídico que envolve o tema. Significa dizer, nas palavras de João
Marcello de Araújo Junior (1995, p.20) que “os valores científicos, éticos e constitucionais não
podem ser reduzidos a uma mera questão de custo/benefício”.
B) Parcerias Público-Privadas

Apesar de escassas discussões sobre a privatização das prisões pelos afetos à área criminal,
já existem no Brasil algumas experiências de administração prisional em um contexto público-
privado. Dentre ela, três se destacam como caminhos que uma política de reintegração poderia
seguir com os devidos ajustes. A pioneira é a chamada “Prisão Industrial de Guarapuava -
PIG”, inaugurada em Guarapuava, no Estado do Paraná, no dia 12 de novembro de 1999.

Conforme Fábio Medina Osório e Vinicius Diniz Vizzotto (2005, p.1), a Prisão Industrial de
Guarapuava “foi construída com recursos dos Governos Federal e Estadual, numa parceria
estratégica”. Sua arquitetura prisional foi projetada visando “o cumprimento das metas de
ressocialização do interno e a interiorização das unidades penais (preso próximo da família e
local de origem)” política adotada pelo Governo do Estado do Paraná, que “busca oferecer
novas alternativas para os apenados, proporcionando-lhes trabalho e profissionalização,
viabilizando, além de melhores condições para sua reintegração à sociedade, o benefício da
redução da pena”. Ainda segundo Fábio Medina Osório e Vinicius Diniz Vizzotto (2005, p.1):

Nesta prisão, a administração da penitenciária foi terceirizada, mas não de modo total. A
empresa contratada é a Humanitas Administração Prisional S/C, na verdade um sub-ramo da
empresa Pires Segurança. O trabalho exercido por tal empresa envolve "o atendimento aos
presos no que se refere à alimentação, necessidades de rotina, assistência médica, psicológica
e jurídica dos presidiários”. Por seu turno, o governo do Paraná “é responsável pela nomeação
do diretor, do vice-diretor e do diretor de disciplina, que supervisionam a qualidade de trabalho
da empresa contratada e fazem valer o cumprimento da Lei de Execuções Penais” (grifos do
original).

No Estado do Paraná, pioneiro no campo das terceirizações dos presídios, as iniciativas se


multiplicaram. O índice de reincidência criminal dos egressos do presídio de Guarapuava é de
seis por cento. De Maringá, no mesmo Estado, alcança trinta por cento. A média nacional é
gritante: mais de oitenta por cento de reincidência criminal. No sistema paranaense de parceria
público-privada, é desenvolvido um programa “onde o Estado se responsabiliza pela
administração e segurança interna e a empresa envolvida oferece ensino profissionalizante e
trabalho qualificado dentro do presídio”. Elimina-se, desta forma, “a ociosidade do apenado,
contribui-se para a sua socialização e, simultaneamente, as despesas públicas são reduzidas”
(FREIRE; RIBEIRO; 2007. p.1).

Porém, apesar das vantagens em relação aos presídios públicos, o modelo de parceria
paranaense ainda apresenta problemas, os quais não podem ser ignorados nem subestimados
pelos gestores públicos, a exemplo da “falta de controle sobre os agentes empregados no
sistema”, o que “conduziu a sérios danos e riscos à sociedade” e dos altos custos das
parcerias.

Contudo, é forçoso concluir que “com mais investimento em estrutura e redes de apoio, os
presos não voltarão a reincidir ou reincidirão em percentuais ínfimos, reduzindo-se a violência
urbana relacionada ao retorno de pessoas perigosas ao convívio social” (OSÓRIO; VIZZOTTO,
2005, p.1).

Outros Estados brasileiros também vêm adotando alternativas visando à humanização do


sistema prisional, embora a essência seja diminuir as despesas estatais. Por exemplo, no
Ceará foi construído o Presídio Industrial Regional de Cariri - PIRC, onde existe uma joalheria
em parceria com uma empresa privada. O volume de produção é de 250 mil peças por mês, o
equivalente a vinte e cinco por cento da produção da empresa, incluindo suas atividades
externas (OSÓRIO; VIZZOTTO, 2005, p.1).
Em geral, as experiências nacionais de parcerias público-privadas não são homogêneas,
“embora apresentem pontos comuns em termos de dificuldades”, tais como de controles sobre
os funcionários e dos custos do empreendimento. Contudo, “trata-se de pauta que pode ser
enfrentada com eficácia em editais bem montados e articulados” (OSÓRIO; VIZZOTTO, 2005,
p.1).

No âmbito legislativo, em decorrência das experiências de terceirização de serviços


penitenciários com resultados considerados pelo legislativo de “bastante satisfatórios”, como
ocorre nos Estados do Paraná e do Ceará, “onde se observou à melhoria da qualidade das
condições de funcionamento dos presídios sem prejuízo da segurança, não tendo sido
registradas fugas ou rebeliões”, está em tramitação um projeto que pretende “disciplinar a
terceirização de serviços no âmbito dos estabelecimentos penais, aí incluídos os que se
destinam à custódia de menores infratores”.

Trata-se do Projeto de Lei nº 2.825, de 2003, de autoria do Deputado Sandro Mabel, que desde
maio de 2008 está sob análise da Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público -
CTASP, aos cuidados do relator designado Deputado Roberto Santiago, cuja pretensão é no
sentido de que:

[...] serviços como assistência médica, jurídica, psicológica, de assistência social, de


fornecimento de alimentação e vestuário, de limpeza e, ainda, de segurança possam ser
prestados por empresas privadas especializadas em administração penitenciária e de custódia
de menores, que possuam em seus quadros profissionais com treinamento específico para
essas finalidades. O projeto prevê também que possam ocorrer em hospitais particulares,
mediante autorização do juiz da execução, a internação ou o tratamento ambulatorial de
pessoas penalmente incapazes, inimputáveis ou semi-imputáveis, bem como o cumprimento de
pena por pessoas portadoras de doenças infecto-contagiosas, toxicômanas ou portadoras do
vírus da AIDS [do inglês Acquired Immunodeficiency Syndrome ou Síndrome da
Imunodeficiência Adquirida - SIDA]. Nesse último caso, a construção e as condições de
funcionamento de hospitais particulares deverão observar as regras estabelecidas pelo
Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, bem como as normas fixadas em
legislação específica (MABEL in justificativa do Projeto de Lei nº 2.825, de 2003).

Ainda segundo o próprio autor do projeto em tela, com a terceirização dos serviços, haverá, na
verdade, uma gestão mista dos estabelecimentos prisionais e de custódia de menores, pois
continuará com o Estado o poder de nomear os respectivos dirigentes, cabendo à iniciativa
privada tão-somente a operacionalização das atividades mencionadas. Não se trata de delegar
indevidamente nenhuma atividade estatal, pois os aspectos relativos ao cumprimento da pena
continuarão sob a responsabilidade do Estado, particularmente dos juízes de execuções
penais. Seguindo as regras gerais de contratação aplicáveis à administração pública, os
contratos celebrados com empresas privadas devem ser precedidos de licitação. Como
garantia adicional no exame da conveniência e oportunidade da medida proposta, sugere-se a
audiência prévia dos Conselhos Penitenciários, da Ordem dos Advogados do Brasil, do
Ministério Público e da curadoria de menores (MABEL in justificativa do Projeto de Lei nº 2.825,
de 2003).

Em relação às críticas existentes quanto a uma possível transferência indevida de atividades


estatais, Sandro Mabel (in justificativa do Projeto de Lei nº 2.825, de 2003) entende-as
descabidas, acompanhando, nesse prisma, o pensamento do jurista Luiz Flávio Borges D’Urso
(1999, p.74), que ao comentar o tema privatização dos presídios (no entender de Sandro Mabel
o termo mais apropriado “terceirização”), assim se manifesta:

E mais, na verdade, não se está transferindo a função jurisdicional do Estado para o


empreendedor privado, que cuidará exclusivamente da função material da execução penal,
vale dizer, o administrador particular será responsável pela comida, pela limpeza, pelas roupas,
pela chamada hotelaria, enfim, por serviços que são indispensáveis num presídio. Já a função
jurisdicional, indelegável, permanece nas mãos do Estado, que por meio de seu órgão-juiz,
determinará quando um homem poderá ser preso, quanto tempo assim ficará, quando e como
ocorrerá punição e quando o homem poderá sair da cadeia, numa preservação do poder de
império do Estado, que é o único titular legitimado para o uso da força, dentro da observância
da lei.

Esse, contudo, não é o pensamento de João Marcello de Araújo Junior e seus colaboradores.
Defendem que a execução penal é considerada como exercício de jurisdição e não é passível
de delegação, segundo o qual se depreende o sistema constitucional pátrio. Recorde-se que no
âmbito do direito administrativo brasileiro, os serviços públicos de segurança pública são
indelegáveis. Em síntese, assim se manifesta a respeito Hely Lopes Meirelles (1994, p.295):

Os serviços públicos são os que a Administração presta diretamente à comunidade, por


reconhecer a sua essencialidade e necessidade para a sobrevivência do grupo social e do
próprio Estado. Por esta razão, tais serviços são considerados privativos do Poder Público, no
sentido de que só a Administração deve prestá-los, sem delegação a terceiros, mesmo porque,
geralmente exigem atos de império e medidas compulsórias em relação aos administrados.
Exemplos desses serviços são os de defesa nacional, os de polícia, os da preservação da
saúde pública (MEIRELLES 1994, p.295).

Certamente existe todo um sistema de sobrevivência de um país. Um Estado, para que seja
verdadeiramente democrático e respeite a liberdade de seus cidadãos, precisa agir
coativamente em alguns aspectos. Viver em sociedade significa dizer que cada cidadão cede
um pouco de sua liberdade, respeitando a liberdade do outro. Se estas restrições não forem
respeitadas por algum dos cidadãos, o Estado intervém, agindo coativamente, aplicando a
sanção devida. Estes serviços prestados pela Administração Pública, diretamente à
comunidade, são reconhecidos e considerados essenciais e necessários para a sobrevivência
do grupo social e do próprio Estado, por isso mesmo, considerados privativos do Poder
Público.

Para mudar isso deve-se mudar a forma de viver, a concepção de Estado, e tudo mais.
Privatizar mesmo que de forma terceirizada é como transferir este poder coativo do Estado a
um cidadão em particular, ficando este com poderes sobre a vontade de outras pessoas,
derrubando, inclusive, o princípio constitucional da igualdade. Ademais, existem argumentos de
ordem ética e de política criminal que não podem ser olvidados. Admitir que um particular lucre
com a privatização da liberdade de outrem é o mesmo que renegar todo o legado dos ideais
iluministas e libertários do século XVIII.

Todavia, não se trata de um problema sem solução, como se pode constatar grosso modo.
Para todos os percalços existe uma saída brilhante. Não há de ser diferente com o sistema
penitenciário brasileiro. Se o sistema penitenciário de hoje está nas garras da falência e o
sistema “futurista” de privatização já está ultrapassado, certamente existem outros instrumentos
que podem ser utilizados como forma salutar e inteligente de revitalizar o sistema penitenciário
brasileiro. Dentre elas, enumeram o coordenador João Marcello de Araújo Junior e seus
colaboradores (1995, p. 109) as seguintes:

a) despenalização de condutas de menor potencial ofensivo, tornando a atividade jurisdicional


mais célere e útil;

b) maior utilização das penas restritivas de direito, evitando-se o estigma do encarceramento e


a perda do potencial produtivo do preso;
c) descentralização administrativa, de modo a conferir aos diretores de penitenciárias maiores
poderes para que possam tornar mais dinâmicas suas atividades;

d) utilização do sistema de arrendamento onde o particular edifica a penitenciária e


posteriormente a aluga ao Estado que, depois de um determinado tempo passa a ter a
propriedade do imóvel. Desta forma evita-se que o governo desembolse uma quantia elevada,
ao mesmo tempo, o sistema de arrendamento amortiza o gasto público por vários anos,
tornando possível à construção de um sistema penitenciário federal, até então inexistente, e a
reforma e ampliação dos sistemas penitenciários Estaduais;

e) a participação privada também pode ocorrer na forma de fornecimento de certos serviços e


bens para os presos, desde que obedecidos os mandamentos legais (licitações públicas). É
importante ressaltar, todavia, que nem todo serviço público pode ser privatizado;

f) a segurança e a direção dos estabelecimentos penitenciários só podem ser prestados pelo


Estado; e

g) para que a participação privada possa alcançar o nível de abrangência necessária,


conveniente seria a elaboração de uma lei específica sobre o tema que estabelecesse a
resolução de questões muito particulares, tais como: possibilidade de o preso, em juízo, obrigar
o particular a cumprir o que acertara contratualmente com a administração; responsabilidade e
atribuições da empresa privada e do governo; prazo para a transferência da propriedade
imóvel, onde estiver situada a penitenciária para o governo; forma de pagamento ao particular:
dinheiro, títulos da dívida pública, etc.

Com certeza o tema envolvendo participação da iniciativa privada na gestão de presídios é


polêmico e de prática variada de país para país. Contudo, se considerado inviável como
sistema a substituir o atual, na sua totalidade, certas modalidades de participação privada não
só podem como devem ser admitidas no sistema brasileiro, notadamente em se tratando de
organizações Não-Governamentais. Sob esta perspectiva, é possível vislumbrar-se um sistema
penitenciário mais justo e humano no futuro. Prova disso é o exemplo prático do Método APAC,
uma forma de gestão compartilhada administrado com competência e seriedade, que se bem
aplicado efetivamente recupera o condenado e prepara, juntamente com sua família, o retorno
salutar ao convívio social, que se passa a analisar.

C) Gestões Compartilhadas dos Presídios como alternativa à Recuperação do


Condenado

Viu-se que a prisão, sob o aspecto físico, vem sofrendo modificações de toda espécie ao longo
da história, segundo determinada visão de época, visando garantir segurança etc. Entretanto, o
que mais deve preocupar é a maneira de se executar a pena, os cuidados dispensados ao
penitente. Pena e prisão se aliam passam a ter sentido humano, dentro de uma proposta
moderna e honesta, vista sob a ótica de uma indispensável justiça restaurativa: o Estado
realiza, agora, na prisão, durante o cumprimento da pena, tudo quanto deveria ter propiciado
ao cidadão, em época oportuna e, criminosamente, deixou de fazê-lo.

Na atualidade, a execução penal tem por objetivo “efetivar as disposições de sentenças ou


decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e
do internado” (artigo 1º, da Lei de Execução Penal). Como se vê, esta lei trata, de modo amplo,
da execução das penas e das medidas de segurança privadoras de liberdade. Também adota
providências assistenciais de laborterapia e de reabilitação do condenado, o que leva à certeza
da inclusão do justo critério da autonomia plena de um direito da execução penal no direito
positivo brasileiro.
Aliás, o item 12 da Exposição dos Motivos desta Lei enfatiza que “a execução das penas das
medidas de segurança deixa de ser um livro de Código de Processo Penal para ingressar nos
costumes jurídicos do país, com autonomia inerente à dignidade de um novo ramo jurídico: o
direito da execução penal”. Contudo, essa colocação, no entendimento de Mário Ottoboni
(1997, p.20-1), não exime os juristas de se deterem nos estudos necessários para situar
corretamente o direito penitenciário, com todos os encargos próprios à revolução histórica, à
análise de acontecimentos atuais e, inclusive, aos direitos humanos e tratados internacionais
acerca do assunto. A execução penal restringe-se à lei própria, sob ponto de vista das
conquistas legais de assistência e de tratamento do condenado.

Acontece que no momento da aplicação da pena e sua posterior execução, surge dúvidas
principalmente quanto à competência dos Poderes Judiciário e Executivo. Questiona-se o
marco inicial e onde termina a competência administrativa das atividades ligadas à execução.

É sabido que ao Poder Judiciário compete determinar a prisão, impor a pena e a forma de
cumpri-la, conceder e revogar benefícios, resolver incidentes de execução, fiscalizar as
condições em que o condenado cumpre pena e ao Poder Executivo a missão de administrar o
presídio, assistir e preparar o preso para o retorno ao convívio da sociedade.

Isso, entretanto, não exime o juiz de fiscalizar a execução da pena, exigindo a correta aplicação
da lei, em especial no que diz respeito à recuperação do preso. Ada Pelegrini Grinover
(apud OTTOBONI, 1997. p. 22) esclarece que:

A execução penal é uma atividade complexa, que se desenvolve entrosadamente nos planos
jurisdicional e administrativo, e não se desconhece que dessa atividade participam dois
poderes: o Judiciário e o Executivo, por intermédio, respectivamente, dos órgãos jurisdicionais
e estabelecimentos penais.

Constata-se que na prática, por diversas razões que variam entre falta de tempo, falta de
interesse e má-vontade, muitas vezes o Poder Judiciário encerra suas funções com a prolação
da sentença condenatória. Assim infelizmente, cessada a função do juiz da condenação, o
condenado normalmente fica entregue às mãos das autoridades administrativas e aos seus
caprichos, quase sempre recheados de abusos e excessos. Estas, assim como a literal falta de
estrutura do próprio Estado, também não colaboram para a socialização do preso.

Quando o magistrado não se atenta para o fato de que a execução penal é também função
judicial, descaracteriza o princípio da humanização da pena e tornam letra morta os direitos dos
presos. Ademais, é função legal do magistrado “zelar pelo correto cumprimento da pena e de
medidas de segurança” (artigo 66, inciso VI, da Lei de Execução Penal). É evidente, leciona
Mário Ottoboni (1997, p.49), que:

O zelo pelo correto cumprimento da pena não implica somente exigir o respeito à dignidade do
condenado como pessoa humana, mas, acima de tudo, requer o empenho pelo trabalho de
socialização, sem o qual haverá apenas a punição do infrator, de pouco significado para a
sociedade e para o sentenciado.

Não se legou ao Estado tão somente o direito de punir, mas, prioritariamente, o dever de
recuperar o condenado preparando-o convenientemente para voltar ao convívio social. Assim o
é porque a função da pena é dupla: punitiva e recuperativa. Punitiva pela sua própria natureza
e de emenda do infrator na sua essência. O delinqüente é condenado e preso por imposição da
sociedade, ao passo que recuperá-lo é um imperativo de ordem moral, do qual ninguém deve
se escusar. A sociedade somente se sentirá efetivamente protegida quando o preso for
recuperado.
O Estado enquanto persistir em ignorar que é indispensável cumprir a sua obrigação no que diz
respeito à recuperação do condenado, deixará a sociedade desprotegida. Infelizmente, as
prisões brasileiras são verdadeiras escolas de criminalidade.

O sistema penitenciário brasileiro está em crise. Um dos maiores indicadores de seu fracasso é
o elevado índice de reincidência criminal entre os presos, que gira em torno de oitenta e seis
por cento. Também ficou constatado que a privatização das prisões, apesar de trazer alguns
benefícios, está mais voltada em sua essência à redução de gastos do Poder Público do que à
efetiva recuperação do preso. Todavia, existem outros caminhos que podem ser trilhados para
que a execução penal no Brasil possa assumir o seu papel de modo sério e definitivo, se as
autoridades se dispuserem a deixar de lado a inércia e o comodismo tão prejudiciais às
propostas de mudança.

Refere-se, basicamente, ao pioneirismo brasileiro da experiência de um revolucionário método


de recuperação de presos empregado pela Associação de Proteção e Assistência aos
Condenados - APAC, que já está implantado em mais de 130 cidades brasileiras e em países
como Argentina, Equador, Estados Unidos da América, Peru, Escócia, Coréia do Sul e
Alemanha.

1) O Método APAC

Em 1972, teve início uma pesquisa elaborada por quinze pessoas, iniciada no acervo da
Faculdade do Vale do Paraíba, para verificar a situação do preso a nível nacional. A
necessidade de constatação concreta deu vazão à transformação do trabalho de pesquisa
bibliográfica em laboratório experimental. O trabalho começou a ser desenvolvido com cem
presos na antiga Cadeia de Humaitá, que tinha celas de quatro metros por quatro, com os
presos dormindo no chão; um verdadeiro depósito humano, sem perspectiva alguma de futuro.
Descobriu-se que a maioria (noventa e sete por cento) dos presos era fruto de famílias
desestruturadas. Constatou-se também que havia contradições no sistema penitenciário. No
presídio ninguém confia em ninguém. Ao mesmo tempo em que um indivíduo é preso porque
furtou, queimou maconha, etc., no presídio os furtos são comuns e a droga entra normalmente.

Criou-se assim, a primeira Associação de Proteção e Assistência aos Condenados - APAC, em


1972, na cidade de São José dos Campos, no Estado de São Paulo, presidida pelo criados do
Método APAC, Mário Ottoboni. Trata-se de um método para ser utilizado na recuperação de
presos. Ganhou personalidade jurídica em 15 de junho de 1974. A princípio tinha a finalidade
de desenvolver, no presídio, uma atividade relacionada com a recuperação do preso, suprindo
a deficiência do Estado nessa área, atuando na qualidade de órgão auxiliar da justiça e da
segurança na execução da pena. Trata da função social da pena, que é a recuperação do
condenado.

É uma organização não-governamental, uma entidade civil de direito privado, tendo um


estatuto-padrão adotado em todas as cidades onde se instalou. Cada Associação de Proteção
e Assistência aos Condenados - APAC tem vida própria e todas são filiadas a Fraternidade
Brasileira de Assistência aos Condenados - FBAC, reconhecida de utilidade pública, que tem
por objetivo orientar, dar cursos, assistir juridicamente, manter a unidade de propósitos, além
de promover a cada três anos congressos de seus filiados para estudar os problemas ligados à
socialização do condenado.

Os Estatutos da Associação de Proteção e Assistência aos Condenados - APAC foram


elaborados nos termos da legislação civil brasileira no que disciplina a constituição, o registro, a
dissolução e demais providências das associações de caráter beneficente e assistencial sem
fins lucrativos.
Desde suas origens as Associações de Proteção e Assistência aos Condenados, doravante
“Método APAC”, vivem a experiência de administrar presídios sem recorrer à polícia, e os
resultados obtidos são animadores. O estágio inicial continua a ser cumprido em presídio
comum, e a promoção ao primeiro e segundo estágio, que serão analisados em seguida, está
sempre vinculada ao mérito do preso e ao interesse da família em acompanhar as
programações da Entidade, revelando preocupações com a emenda do recuperando.

O Método APAC consiste, fundamentalmente em: atos religiosos; palestras de valoração


humana; biblioteca; instituição de voluntários padrinhos; pesquisas sociais (conhecer as
causas); representantes de celas; faxinas; trabalho na ala, nas delegacias, etc.; reunião de
grupo (para descobrir os erros e corrigi-los); concurso de composição e higiene da cela; contato
com a família; conselho de sinceridade e solidariedade dos recuperandos (OTTOBONI, 1997,
p.31).

Ademais, possui tríplice finalidade: a) é órgão auxiliar da Justiça, subordinado ao juiz das
Execuções, destinado a preparar o preso para voltar ao convívio social. Aplica metodologia
própria, cumprindo, assim, a finalidade pedagógica da pena; b) protege a sociedade,
devolvendo ao seu convívio apenas homens em condições de respeitá-la. Fiscaliza o
cumprimento da pena e opina sobre a conveniência das concessões de benefícios e favores
penitenciários, bem como sobre sua revogação; e c) é órgão de proteção aos condenados, no
que concerne aos direitos humanos e de assistência, na forma prevista em Lei, desenvolvendo
um trabalho que se estende, à medida do possível, aos familiares, eliminando a fonte geradora
de novos criminosos e evitando que os rigores da pena extrapolem a pessoa do condenado
(OTTOBONI, 1997, p.34).

No Método APAC nada se improvisa; tudo é fruto de uma longa e sofrida experiência. Um
trabalho científico que, graças ao empenho e dedicação de seus pesquisadores e
investigadores, se corporificou com resultados realmente revolucionários.

O Método APAC funciona da seguinte forma:

a) estágio inicial: os presos do regime fechado passam a cumprir pena no Estágio Inicial, que
consiste em uma etapa única, mas com estágios que se distinguem pela separação da cela e
pelos estímulos criados. Em tudo, para prosseguir, o preso deve reunir méritos. Conquistar. No
estágio inicial dá-se o contato com o Método.

A entidade levanta as causas do crime, trava conhecimento com a família do recuperando.


Efetua-se uma proposta de recuperação. O preso requer a assistência da APAC, ou seja, não é
obrigado a aceitar o tratamento oferecido.

b) primeiro estágio: em regime fechado, o primeiro estágio, logo depois do estágio inicial, visa
desenvolver o senso de responsabilidade do preso, com representantes de cela, trabalhos na
ala do presídio, participação no Conselho de Sinceridade e Solidariedade, alfabetização e
Jornada de Libertação com Cristo. Numa etapa mais avançada, pode obter autorização para
participar de atividades socializadoras.

c) segundo estágio: hoje consagrado como regime semi-aberto, onde os presos ajudam nos
serviços burocráticos da própria APAC, que instalou no local sua Secretaria Administrativa.
Essa colaboração se estendeu à Delegacia de Polícia, ao Fórum e ao próprio presídio. Esse
regime intermediário permite melhor conhecimento da personalidade do preso. Entendem ser
fundamental desligá-lo das amarras que o ligavam ao presídio. Uma reintegração lenta, mas
segura, como treinamento para a liberdade, é a receita ideal.

Os “apaqueanos” como são chamados, entendem que o surgimento da Lei de Execução Penal
e a reforma da parte geral do Código de Processo Penal:
[...] representa um retrocesso sob muitos aspectos. Perdemos conquistas duramente
alcançadas; em troca, surgiram benefícios a infratores, a perigosos assaltantes, tecnicamente
primários, que não passam pelas dificuldades dos presídios e já começam a desfrutar a pena
em regime semi-aberto ou aberto, representando um grave incentivo à criminalidade
(OTTOBONI, 1997, p.34).

Segundo eles, a experiência mostra que não existe primariedade, salvo raríssimas
exceções[10], entre aqueles que agem contra o patrimônio, traficantes, estelionatários,
receptadores, porque quando um criminoso desses é pego, processado e condenado, já
cometeu uma série de infrações idênticas e acaba nas casas de albergados[11], quando não
vão cumprir a pena na própria residência.

Ressalte-se que o sistema de prisão albergue, tal como vem sendo aplicado, beneficiando o
sentenciado sem antes prepará-lo convenientemente, traz resultados utópicos, pois apresenta
defeitos estruturais incuráveis. Prejudicam a sociedade e o próprio preso, ambos portadores de
estigmas profundos e receios de conviverem juntos.

Segundo Mário Ottoboni (1997, p.36-7), o Método APAC desde o início submete o preso a um
“tratamento” composto de:

a) palestras de conhecimentos gerais: aulas de religião, valorização humana, alfabetização,


supletivo, terapia de grupo com psicólogos, Jornada de Libertação com Cristo, desenho
artístico e curso de datilografia e enfermagem, violão, corte de cabelo etc.;

b) trabalho artístico (artesanal). Contrariando a atual Lei de Execução Penal, incentiva-se o


trabalho artístico. A arte desperta o interesse pelo belo e aguça a criatividade. Isto ajuda o
homem a se libertar interiormente, já que ele fica entretido em fazer o melhor; mas é importante
destacar que esse trabalho é terapêutico, individual, e, portanto, nunca é permitida a produção
em série, o que desvirtuaria a proposta;

c) cursos intensivos sobre o Método APAC;

d) gincana, concursos, esporte; e

e) atribuição ao preso de responsabilidade dentro do presídio. Isto se dá, sobretudo ajudando a


administrar a casa, mantendo-a limpa e organizada e não permitindo o desvirtuamento da
finalidade pedagógica da pena.

As principais inovações do Método APAC consistem na valorização humana como base do


método, na religião como fator essencial na recuperação, na assistência à família do
condenado, na instituição de padrinhos, e já tem repercutido não só no Brasil, como também no
exterior.

As vantagens do Método APAC, cuja relação de mais de cem itens foi elaborada a partir dos
elementos fornecidos pelos próprios recuperandos, durante o Curso Intensivo de Estudo e
Aperfeiçoamento do Método APAC, quando do momento específico do curso em que os
presidiários, através de comparação com os presídios convencionais, destacam as vantagens
do Método APAC, vai desde a ausência de polícia no presídio, cuja segurança e fiscalização é
executada pelos recuperandos com maior número de méritos conquistados, respeito à família,
respeito entre os recuperandos, assistência eficiente à saúde, alfabetização obrigatória, uso de
talheres e pratos na alimentação, sala forte transformada em capela, único presídio
administrado por voluntários, premiação mensal à melhor cela do presídio, ausência de
superlotação, higiene pessoal, dentre outras.

2) O Método APAC e a Constituição Federal de 1988


A Constituição Federal de 1988, no capítulo dedicado aos direitos e deveres individuais e
coletivos, prescreve no inciso I, do artigo 5º, que “a criação de associações e, na forma da lei, a
de cooperativas independem de autorização [...]”. E prescreve ainda no inciso XVII do mesmo
artigo que “é plena a liberdade de Associação para fins lícitos, vedada a caráter paramilitar”. E,
para esgotar a matéria, a Lei de Execução Penal, em seu elenco de providências para acudir o
preso, estabelece em seu artigo 2º sobre a Assistência Religiosa, a atual Constituição Federal
de 1988 (artigo 5º, VI) arremata: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantidas na forma da lei, a proteção aos
locais de culto e de suas liturgias”.

Portanto, nesse caso, a atividade religiosa só pode ser realizada no próprio presídio, e se o
trabalho da APAC se restringisse apenas à assistência religiosa, já lhe estaria
constitucionalmente assegurado o livre exercício de evangelização no estabelecimento penal,
dependendo tão-somente de a autoridade competente determinar o horário mais conveniente à
administração sem, no entanto, inviabilizar a proposta. Veja-se que estas justificações se fazem
necessárias em decorrência das inúmeras críticas e tentativas de desmantelamento da
entidade.

Enfim, prega a APAC que é preciso tomar consciência de que não basta prender, é necessário
socorrer, desenvolvendo-se um persistente e estruturado trabalho ressocializador. As visitas
esporádicas aos presídios, principalmente dos profissionais do direito (promotores e juízes), a
qualquer título ou até mesmo para a elaboração de relatórios de problemas centenários, que
todos conhecem e que nada resolvem, pouco representam.

Como prega Mário Ottoboni (1997, p.50), “não existem condenados irrecuperáveis, mas, tão
somente, os que não recebem tratamento adequado”.

Pouco ou nenhum sentido existe no sistema progressivo de pena - o ideal, diga-se de


passagem - se, no regime fechado o condenado não for submetido a um rigoroso tratamento
socializador para que vença as causas geradoras do criminoso. Se os constituintes brasileiros
não incluíram na Constituição Federal de 1988 a pena de morte e a prisão perpétua, é porque
existe a crença na recuperação do delinqüente. Até porque, “uma execução penal
desumanizada atenta precisamente contra a segurança do Estado”, já afirmava Hilde Kaufman
(1977, p.55).

A experiência do Método APAC tem trazido bons resultados, apresentando índices de


reincidências inferiores a cinco por cento, sendo, portanto, um caminho a ser seguido e
constantemente aperfeiçoado.

IV - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não há divergências doutrinárias quando se fala que o sistema penitenciário está em crise. A
cada dia acumulam-se mandatos de prisões a serem cumpridos, e a falta de estrutura das
polícias estaduais e federal tornam, muitas vezes, ineficazes os pronunciamentos judiciais.

Para agravar o problema, inexiste um sistema penitenciário federal, vez que os condenados
pela justiça federal cumprem pena em estabelecimentos estaduais que, por sua vez, são
insuficientes para absorver o grande número de condenados à pena privativa de liberdade.

Estes problemas todos geram a degradação das condições físicas dos estabelecimentos
prisionais, gerando a chamada “sobrepena” (termo muito usado por João Marcello de Araújo
Junior) aos condenados que por sua vez leva a um ambiente cuja revolta e promiscuidade
imperam. Talvez seja por isso que alguns magistrados relutam em aplicar a pena de prisão,
entendendo ser melhor deixar o condenado cumprindo pena em liberdade, do que interná-los
numa escola de crimes. Provavelmente a recuperação ainda é mais satisfatória, porque se um
determinado indivíduo, condenado por furto a dois anos de reclusão, cumprir esta pena em
liberdade, provavelmente vai reincidir no crime. Todavia, se preso, quando for posto em
liberdade terá uma chance infinitamente maior de cometer latrocínios.

Desta forma, é necessário buscar soluções para tais problemas. A experiência de países
estrangeiros pode, muitas vezes, ser útil neste momento em que idéias reformadoras devem
ser engendradas. Todavia, não devem ser puramente copiadas, sem qualquer critério ou
estudo sobre elas.

O sistema de privatização das prisões, como se quer implantar, é imoral, ilegal, além de violar
os princípios modernos da política criminal, principalmente no que diz respeito à falência da
pena de prisão.

Se a pretensão é manter o modelo atual, fundado na ideologia do tratamento, deve-se atender


ao lobbi das empresas de vigilância privada e das empresas que vendem alimentação pronta e
entregar a elas as prisões brasileiras e, com elas, o que resta de dignidade dos presos.

O importante não é fazer experiência com indivíduos colocados compulsoriamente à disposição


do Estado, pois isso é inconcebível num Estado de Direito. O que é verdadeiramente
importante é exigir-se do Estado e de seus representantes, que tenham a vontade política de
mudar o modelo carcerário e a estrutura do que hoje existe.

Os profissionais do direito não podem permitir que assunto de tão elevada importância seja
decidido por interesses políticos, respaldados pela sociedade, influenciada pelo “Movimento da
Lei e Ordem”, ou seja, pelo sensacionalismo da violência, tão difundido pelos meios de
comunicação, para se postular o endurecimento das penas. A idéia da privatização,
aparentemente, resolve a contradição da necessidade de construir mais presídios e a adoção
de políticas econômicas de forte restrição do gasto público. A população, deliberadamente
“enganada” pelas aparências veste a camisa e organiza-se na luta por uma maior rigorosidade
das penas e redução de gastos, convicta de que está no caminho certo.

Mais uma vez, ressalta-se a importância de estudos científicos sobre a realidade brasileira e
suas prioridades entre as inúmeras necessidades insatisfeitas, mas de forma séria, madura,
com ponderações e visão futurista.

Muitos são os obstáculos à privatização das prisões. Os juristas brasileiros precisam resistir às
seduções do poder econômico, que pretendeu e ainda pretende eternizar, com lucro pessoal,
um método prisional superado e perverso.

É público e notório que as prisões brasileiras, nos tempos hodiernos, são palco das mais
variadas formas de crime. Os noticiários seguidamente mostram como bandidos controlam o
tráfico de drogas de dentro dos presídios. Este é um dos motivos práticos temerários, que por
si só já derruba por terra a idéia de privatização das prisões. É possível, e bem provável que as
empresas que irão administrar as prisões caiam em mãos do crime organizado, estabelecendo-
se um fenômeno de confusão entre administradores e administrados.

Não é mera conjectura. Trata-se de um risco real que se ajusta aos temores já apresentados
em relação ao perigo representado pelas empresas de vigilância, que mantém um verdadeiro
exército privado, e agora pretendem dominar as cadeias. Quem poderá afirmar que uma
dessas empresas não venha a formar uma joint-venture com alguma congênere americana.
Certamente aumentaria o tráfico de drogas, mulheres, crianças e outros mais, sem que nada
pudesse ser feito para impedir.

A este argumento pode-se acrescentar o fato de que, como sabemos, o objetivo teórico da
administração penitenciária é combater a criminalidade e não obter lucro; ora, as empresas que
desejam participar da administração penitenciária visam obter lucro e retirar vantagens
econômicas da própria existência da criminalidade; logo, tais empresas, que têm interesses em
manter seus lucros, não irão lutar contra a criminalidade.

Restou claro, do exposto, que uma das estratégias do discurso pró-privatização atribui a
responsabilidade do sistema penitenciário a seus opositores, pregando que por serem
conservadores não querem aderir à modernização, ilidindo, de pronto, possíveis
questionamentos sobre a eficácia concreta do projeto.

É verdade que ninguém, em sã consciência, pode defender as atuais condições do sistema de


privatização de liberdade, portanto, esta constatação não justifica que se deve aderir à primeira
proposta apresentada. O jargão “se estou na porta do inferno não custa fazer um pacto com o
diabo” certamente não se aplica, haja vista que o preço a ser pago poderá ser a própria vida.

Se existe um mal que aflige a sociedade brasileira, e que precisa ser solucionado com
urgência, é o da ausência de vontade política de questionar um modelo de justiça criminal
antiquado, defasado e devastador da condição humana do delinqüente.

Já foi comprovado que o ser humano não sobrevive sem a convivência com outros da sua
espécie. Todavia, viver em sociedade e agir egoisticamente também não é uma forma salutar
de sobrevida. Os problemas sociais devem ser discutidos e resolvidos em conjunto com toda a
sociedade, não de acordo com o pensamento e os interesses de alguns, em detrimento dos
valores sociais.

Também não se pode reduzir o problema à questão da falta de verbas, pois o isolamento do
ser humano em razão do crime é um assunto muito delicado para ser resolvido com cálculos
contábeis.

A gestão pública é a única possível, o que se tem é que encontrar mecanismos além da
solução da segregação para a delinqüência humana. Condenar a Administração Pública pelas
mazelas do sistema carcerário é, no mínimo, simplista e não condiz com a magnitude da
questão.

Os políticos brasileiros precisam se conscientizar que administrar um Estado é antes de tudo,


procurar da forma mais satisfatória possível, solucionar os problemas que afligem os
administrados. Se trabalhassem com seriedade e boa-fé, chegariam à conclusão de que o que
é necessário não é uma política de expansão do sistema penitenciário. É preciso modernizá-lo,
utilizando-se da participação dos empresários quando possível, exceto quanto às questões de
trabalho, guarda e direção dos estabelecimentos. A diretriz fundamental deve basear-se na
substituição da pena privativa de liberdade, como única forma de sanção, pela utilização mais
cotidiana, mas ampla de penas privativas de direito, e da despenalização de condutas de
menor potencial ofensivo. Estes devem ser os princípios seguidos no futuro.

Por fim, deve-se ter em mente que a direção do sistema penitenciário é um poder-dever do
Estado, não um direito disponível, trata-se do exercício de uma competência própria, que se
relaciona com as próprias finalidades essenciais do órgão político, logo, a participação de
particulares neste setor é uma forma de negar-se o próprio conceito da necessidade do Estado
como órgão competente para a manutenção da paz social.

Se o Estado já provou a sua incapacidade para sozinho resolver o problema e, ao longo desses
anos, enriqueceu a legislação brasileira com benefícios e favores penitenciários, muito mais
preocupado em avaliar os estabelecimentos penais, quase sempre superlotados, do que
beneficiar a sociedade, recuperando o condenado.
Não há como negar que compete ao Estado dirigir o sistema penitenciário, todavia também é
certo que o Estado não reúne condições de atuar eficazmente nessa área, o que inspirou o
legislador a inserir na Lei de Execução Penal, artigo 4º, que “o Estado deverá recorrer à
cooperação da comunidade nas atividades de execução da pena e da medida de segurança”.

Assim, a busca de auxílio da comunidade é, inquestionavelmente, o melhor caminho a ser


percorrido para suprir as deficiências do Estado na aplicação da assistência que ele mesmo
preconiza.

Sem a execução de um programa de trabalho bem elaborado dentro dos presídios, a situação
atual tende a se agravar. É inadmissível que, neste país, a melhoria do sistema penitenciário
seja unicamente condicionada à exploração do trabalho do preso. É evidente que um
diagnóstico errado do problema não conduz a solução alguma.

No entendimento de Mário Ottoboni (1997, p.119-0), é indispensável que os Tribunais de


Justiça sejam despertados para a gravidade do problema penitenciário e baixem Provimentos
que regulamentem a atuação dos juízes de direito, exigindo maior atenção para os
sentenciados, especialmente no sentido de designarem magistrados que se identifiquem com
as exigências da execução da pena e que permitam, sem restrições, a participação da
comunidade para realizar um trabalho consciente.

O mesmo vale para os representantes do Ministério Público. Não se pode conceber que os
promotores, em sua grande maioria, permaneçam omissos ou desinteressados quanto ao
destino do condenado. É preciso haver sintonia de entendimento no cumprimento do dever da
Justiça e do Ministério Público, a fim de se evitar, ao menos parcialmente, os abusos
pertinentes à área de segurança, propiciando que o fim social do direito, na esfera da execução
penal atinja o bem comum.

O sistema penitenciário brasileiro necessita de uma legislação humana, moderna e que possa
ser colocada em prática, permitindo solucionar, de modo definitivo e sério, esse grave e
desafiante problema, que tanta vergonha causa ao povo brasileiro.

Que se acabem as medidas paliativas, como indultos, comutação de penas e outros que visam
tão somente abrir vagas nos estabelecimentos penais.

Também que se leve às salas de aula das universidades o problema da execução da pena,
para a formação de autoridades preparadas, conscientes e abertas para a efetiva solução do
problema.

Somente quando estas proposições, fruto de uma sofrida vivência, se adequarem à realidade
brasileira, é que se poderá proclamar a humanização da pena, sem sabor de demagogia e de
promoção pessoal.

Não se pode continuar ignorando o sofrimento e a miséria dos brasileiros que cumprem pena
privativa de liberdade, tratados como párias e lixo da sociedade.

Enquanto isso não ocorre à sociedade se vê cada vez mais penalizada com o retorno ao seu
convívio de agressores treinados nas prisões brasileiras, com a convivência da superlotação,
da ociosidade e da promiscuidade.

Nada se pensa ou acontece por acaso. Existem razões para se ponderar, discutir e considerar
também na criação de novos preceitos jurídicos, principalmente quando se trata de um tema
tão polêmico, uma vez que nada foi satisfatoriamente discutido e nenhum projeto eficaz foi
apresentado na solução de um tema de dimensões profundas ou talvez timidamente, no seio
da sociedade moderna.
Não resta a menor dúvida de que é necessário debater sobre todas as novas propostas na
tentativa salutar de solucionar os problemas brasileiros, principalmente no que diz respeito à
aplicação da pena aos condenados. O que não se pode permitir, todavia, é que se discuta de
forma superficial e imediatista, algo de tão importância para o mundo jurídico e para a
sociedade como um todo. É importante enfatizar a necessidade premente de um debate sério e
científico sobre todas as pretensas inovações, mais precisamente sobre a privatização das
prisões, tema tão em voga, mas com isolados estudos sérios a respeito.

Não se pode, jamais, perder de vista que o direito penal será tanto mais eficaz quanto mais se
aproximar das garantias constitucionais, quanto mais assegurar o direito do mais fraco (da
vítima, na hora da prática do crime; do acusado no momento do processo necessariamente
acusatório e do sentenciado por ocasião da execução da pena).

V - REFERÊNCIAS

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BRASIL, Legislação. Lei nº 7.102, de 20 de junho de 1983. Dispõe sobre segurança para
estabelecimentos financeiros, estabelece normas para constituição e funcionamento das
empresas particulares que exploram serviços de vigilância e de transporte de valores, e dá
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Notas:

[1] A Escola dos Glosadores consiste em um grupo de juristas que através da glosa, ou seja,
análise e interpretação de textos, reavivou a recepção do direito romano justinianeu no
ocidente (o Código de Justiniano - Corpus Iuris Civilis ou Corpo de Direito Civil, é uma obra
jurídica fundamental, publicada entre 529 e 534 d.C, por ordens do imperador bizantino
Justiniano I), que se desenrolou desde os fins do século XI, até meados do século XIII, no
interior da Itália, na Universidade de Bolonha. Seu maior mérito foi ter contribuído com a Magna
Glosa ou Glosa Ordinária de Acúrsio, para a vinculação do ensinamento à prática jurídica Entre
os glosadores, destacam-se: Irnério (1085-1125), Búlgaro (De Judiciis), Placentino (De
varietate actionem), Bernardo de Dorna (Summula de libellis), Tancredo e Acúrsio, dente
outros.

[2] Esta Escola teve início na Itália, no Século XII, com vigência até 1900. Seus seguidores
manifestavam profundo respeito pelo direito romano, entretanto, em seus estudos não partiram
da análise das leis de Justiniano, mas do exame dos casos práticos - difusão do ius commume.
Os principais pós-glosadores são: Cino da Pistoia, Bártolo de Assoferrato (1314-1357),
Jacobus de Bellovisu (1270-1335) e Albertus Gandinus (Tratactus de maleficiis, de 1262),
dentre outros.

[3] A Escola dos Práticos (séculos XVI e XVII) se baseou na prática, na rotina, no uso habitual,
sem se preocupar com a teoria. Elegerem a prática forense como elemento central do
desenvolvimento da ciência jurídica. Entre outros, referem-se Júlio Claro de Alexandria (1525-
1575), Prosperio Farinácio (1554-1613), Benedito Carpsov, Antonio Matheus, Nicola Vigelus,
Mathias Berlich, Beaunamoir, Pierre Ayrault e outros.

[4] Essa prisão, em seu projeto original previa a construção de sessenta e uma celas duplas,
mas William Britten, primeiro diretor, transformou cada cela em solitárias, entendendo que
individualmente seria mais fácil manipular os prisioneiros.

[5] Quaker é o nome dado a um membro de um grupo religioso de tradição protestante,


chamado “Sociedade dos Amigos”.

[6] Partilham deste entendimento, dentre outros, Borja Mapelli Caffarena e Francisco Muñoz
Conde (BITENCOURT, 1993, p. 143).

[7] Coordenador: João Marcello Araújo Júnior; colaboradores: Alexandre Ferreira de


Assumpção Alves; Carlos José de Souza Guimarães; Eliane Costa dos Santos; Ercília Rosana
Carlos Reis; Erivan Santiago França Filho; Geisa de Assis Rodrigues; Maria Juliana Moraes de
Araújo; Marcelo de Figueiredo Freire e Rosângela Maria Sá Borges (ARAUJO JÚNIOR; et alli,
1995. 119 p.).

[8] “Os vigilantes privados em atividade no país superam em cerca de 5% o total de policiais
militares de todos os estados brasileiros. Segundo dados da Coordenação de Controle da
Segurança Privada da Polícia Federal, existem hoje no país 431.600 vigilantes, ou seja, 19.700
a mais do que os 411.900 policiais militares estimados pelo Ministério da Justiça. Esse
“exército” da segurança privada também supera, em 35%, o efetivo total das Forças Armadas,
que é de 320.400 homens. Com 139.800 homens, o estado com maior número de vigilantes
privados é São Paulo, que também concentra o maior número de policiais militares (cerca de
80 mil). De acordo com o relatório da Polícia Federal, o Rio de Janeiro é o segundo colocado,
com 45.600 homens atuando na segurança privada. Além dos 431 mil vigilantes em atividade
no país, há mais 1,1 milhão cadastrados, mas não-ativos, no sistema da Polícia Federal. Se o
número total de cadastrados for levado em consideração, o contingente de homens da
segurança privada no Brasil supera os da Polícia Militar e das Forças Armadas, juntas, em
117%. Conforme a Polícia Federal, o número de empresas em ação no Brasil em todos os
segmentos da segurança privada (segurança patrimonial, pessoal, de escolta e de transporte
de valores) chega a 2.668 (ABDALA, 2008, p.1).

[9] As Nações Unidas recomendam, em suas Regras Mínimas, que os participantes da


execução penal, em todos os níveis, sejam funcionários públicos em sentido estrito: “56.3: para
lograr tais fins, será necessário que os membros trabalhem com exclusividade como
funcionários penitenciários profissionais, tenham a condição de funcionários públicos e,
portanto, a segurança de que a estabilidade em seu emprego dependerá unicamente da sua
boa conduta, da eficácia do seu trabalho e de sua aptidão física. A remuneração do pessoal
deverá ser adequada, a fim de se obter e conservar os serviços de homens e mulheres
capazes. Determinar-se-á os benefícios da carreira e as condições do serviço tendo em conta o
caráter penoso de suas funções” (Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros, de
1955).

[10] Salvo a primariedade legal, ou seja, a condenação do infrator pela primeira vez.

[11] Vale ressaltar que na prática essas Casas de Albergados, Patronatos, Centros de
Observações não passam de mera teoria, coisa inaplicável.

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