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Sobre a responsabilidade dos intelectuais

Devemos cobrar-lhes os efeitos práticos de suas prescrições teóricas?


Paulo Roberto de Almeida*

Resumo: Ensaio de natureza opinativa sobre o papel dos intelectuais marxistas na


trajetória prática do socialismo no século 20, com seus resultados nefastos em
termos de perdas de vidas humanas e de terríveis sacrifícios sociais.
Contrariamente à opinião de alguns, de que Marx e Engels não podem ser
considerados responsáveis pelo Gulag e pelos crimes cometidos em nome do
socialismo, deve-se, sim, atribuir-lhes plena responsabilidade pelos descaminhos
do socialismo real, posto que ambos eram homens de partido, ambos
manifestavam desprezo pela democracia representativa e recomendavam uma
revolução violenta para a implantação da ditadura do proletariado. De forma
geral, qualquer intelectual deve ser considerado responsável pelos efeitos práticos
de suas obras, pensamento, recomendações.
Palavras-chave: Marxismo, socialismo real, Gulag, responsabilidade intelectual.

seus livros e ensinamentos? Ou, dito


mais precisamente: deveriam ser
considerados responsáveis pela utilização
que se faz ou que se fez de suas ideias e
prescrições? Quem sabe até por suas
omissões, conivências e silêncios?
Aproveito para dizer logo o que motiva
este meu pequeno ensaio: deveriam
intelectuais do século 19, como Marx e
Engels, ser considerados culpados (ou
inocentes, segundo argumentam alguns)
pelo que sucedeu, no século 20, a
sociedades tão diversas quanto a Rússia,
a China, Cuba ou Coréia do Norte? Ou
seja, levam eles alguma culpa pelos
milhões de mortos provocados pelos
experimentos socialistas em cada um
desses países (e em vários outros mais)?
Estariam eles na origem do mal?
Interrompo para um breve parênteses:
O Pensador, de August Rodin (1840-1917) permito-me sugerir aos que acreditam
O tema é bastante conhecido e eu que esses ‘milhões de mortos’ são apenas
começo imediatamente pelo enunciado um ‘pequeno detalhe da história’ e que o
do problema: deveriam os intelectuais ser socialismo é, a despeito dos ‘poucos
responsabilizados por suas ideias, por erros’ cometidos’, uma boa coisa – posto
que seus princípios fundadores, os de

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uma sociedade sem classes, igualitária, inferior aos do socialismo de cunho
livre do capitalismo, seriam marxista – mas que, no segundo caso, as
‘essencialmente positivos’ –, que eles culpas objetivas precisariam ter sua
desistam de ler este ensaio aqui mesmo. ‘filiação’ traçada aos argumentos usados
Pessoas que preferem ignorar fatos pelos perpetradores desses crimes.
concretos do século 20 talvez não devam Expliquei-me: se, por acaso, as pregações
ser perturbadas em suas crenças; elas têm de Jesus Cristo abrigassem qualquer
todo o direito de manter as fantasias de incitação à morte de “desviantes” – de
seu mundo imaginário. Não me dirijo a qualquer tipo –, ele poderia, ou deveria,
essas pessoas, apenas àquelas que não sim, ser responsabilizado por aqueles
pretendem esconder a realidade, e que perversidades apontadas; mas restaria
sabem, objetivamente, que os provar essa vinculação de modo objetivo,
socialismos reais provocaram dezenas de com provas documentais (e eu lançava o
milhões de mortos ao longo do século 20. desafio, a qualquer pessoa, de encontrar
Fecha parênteses. nos textos dos evangelhos alguma
incitação aos fenômenos descritos
Volto a perguntar: podemos concordar
acima). Esse era o estado do debate,
com aqueles que pretendem isentar os
infelizmente interrompido, não por
intelectuais pelas conseqüências práticas
minha iniciativa, mas que pretendo
que decorrem de suas doutrinas e de seus
retomar agora.
ensinamentos? Em outros termos,
deveríamos aderir ao velho mote que diz Uma visita rápida a Norberto Bobbio
que a teoria é uma coisa, mas que a Antes, contudo, de voltar aos meus
prática é outra, muito diferente daquela? argumentos, permito-me citar um trecho
Em suma, vamos concordar com a escusa de um dos ensaios mais conhecidos do
de que só poderíamos ser considerados famoso jurista italiano: “Quale
culpados por aquilo que fizermos, Socialismo?” (publicado originalmente
objetivamente, não existindo a figura da em MondOperaio, a. 29, n. 5, dez. 1976,
‘culpa intelectual’? p. 55-63), do qual transcrevo (e traduzo
Levanto estas questões a propósito de um do italiano) o seguinte trecho, irônico,
debate, entrecortado, que mantive com para dizer o mínimo:
um colega acadêmico, que me disse que Não gostaria de deixar passar em
Marx não era responsável pelos mortos silêncio uma outra tese...: a tese
do Gulag, assim como Jesus Cristo não segundo a qual Marx não deve ser
poderia ser considerado responsável considerado responsável pelas más
pelas cruzadas, pela Inquisição, pelas aplicações da sua teoria (por
perseguições aos heréticos, enfim, por exemplo, o stalinismo), não mais do
todos os crimes cometidos em nome da que Locke, Montesquieu ou Croce
religião cristã ou da Igreja Católica. podem ser considerados
responsáveis pelas más formas do
Minha resposta, na época, foi a de que, Estado representativo que temos sob
no primeiro caso, deveríamos, sim, nossos olhos. Me surpreende que um
considerar Marx culpado pelos crimes estudioso sério... não leve em
cometidos em nome de sua doutrina, ao consideração que uma opinião desse
longo de um século 20 especialmente tipo conduz diretamente à tese, tão
mortífero – no qual o fascismo e outras cara aos ‘evasores’, da
perseguições odiosas também exibem sua ‘irresponsabilidade dos intelectuais’.
cota de responsabilidade por vários Um intelectual pode sustentar
qualquer coisa: sempre é inocente.
milhões de mortos, mas em escala

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Nietzsche pode ter escrito perorações fato de ser proletária, fosse mais
longas de um quilometro (somando democrática do que a burguesa, e
fragmentos de duas ou três linhas que assim estivesse na origem de um
obsessivamente repetidas) em defesa novo Estado que apressasse o
do instinto contra a razão, da processo de extinção do Estado, não
vontade de potência contra a nos exime de observar que a única
democracia pacífica, da moral dos prova que ele teve à sua disposição,
senhores contra a dos escravos, para as instituições da Comuna de Paris,
desmascarar ‘a conjuração universal eram muito fugazes para que se
das manadas, contra os pastores, pudesse construir uma teoria sobre
animais predadores, solitários e elas; a história, até aqui, não lhe deu
cesarísticos’, mas o nazismo não tem razão.
nada a ver com isso. Pareto pode ter
Depois, não é de fato verdade que
tratado depreciativamente e
Locke, Montesquieu e Croce tenham
diminuído a burguesia do seu tempo
sido absolvidos. Por quem? Não,
por não ter sabido contrapor a
certamente, pelos escritores
violência contrarrevolucionária à
marxistas. Com as obras anti-Locke,
violência revolucionária, mas o
as anti-Montesquieu (existe uma,
fascismo está fora de questão. Hegel
inclusive, de Althusser) e as anti-
pode ter escrito que o Estado é tudo
Croce, chamados recorrentemente de
e o indivíduo nada (‘Tudo o que o
ideólogos da classe burguesa, de
homem é, ele deve ao Estado: apenas
‘lacaios’ da classe dominante, ou de
neste ele tem a sua essência’), mas
porta-bandeiras da reação, se poderia
aqueles, Gentile à frente, que
preencher toda uma estante de
fizeram dele o precursor do Estado
biblioteca. Aquilo que é lícito aos
ético da memória fascista, apenas
marxistas não deveria ser lícito a
divagaram, e o teórico da ética do
escritores não marxistas com
Estado, sobretudo agora que tornou-
respeito a Marx, a Engels ou a
se o pai de Marx, é puro como um
Lênin?
anjo.
Muito cômodo, de fato muito
Marx e seu amigo Engels
cômodo, separar as obras intelectuais
desmantelaram o Estado
da história que elas geraram e
representativo, sustentaram que todo
daquela que elas ajudaram a gerar,
Estado, pelo simples fato de ser
mesmo pela via indireta, e colocá-las
Estado, é uma ditadura, que a
em uma espécie de status naturae
passagem do Estado burguês ao
incorruptae, em um estado de
Estado proletário seria simplesmente
perpétua inocência, não maculadas
a passagem de uma ditadura a outra,
pela lama da história. Nós, pequenos,
sempre sustentaram que o importante
pequeníssimos, somos ou não somos
era que se mudasse o sujeito
responsáveis pelo que escrevemos?
histórico e tudo teria corrido melhor,
Claro que somos. E por que
independentemente das formas (se
escreveríamos se não acreditássemos
entende jurídicas) sob as quais o
que alguém fosse ler? Nós, portanto,
novo sujeito se teria ‘organizado’, e
somos responsáveis, e os grandes,
agora [1976] nos permitimos nos
que dispõem de uma audiência bem
surpreender pelo fato de que os
mais vasta e duradoura, não o são?1
Estados socialistas continuam a ser
ditaduras e que seus chefes se
1
proclamam os únicos intérpretes do Cf. “Quale socialismo?”, In: Norberto Bobbio,
marxismo-leninismo? Que Marx Etica e Politica: scritti di impegno civile (Milano:
acreditasse de boa fé que a Arnoldo Mondadori, 2009), p. 1306-1308; existe
democracia proletária, pelo simples edição brasileira dessa obra: Qual Socialismo?
(Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987).

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No mesmo sentido vai a observação podemos ter certeza de que aquilo que foi
crítica do sociólogo alemão Ralf construído em nome do marxismo seria a
Dahrendorf, numa conferência proferida expressão verdadeira da obra marxiana.
na Columbia University, em1994, Uma justificativa derivada é a de que,
quando ele advertia que “os intelectuais como muitos disputam o legado
têm responsabilidade pública. Onde eles histórico, a tradição intelectual que a
se calam, as sociedades perdem seu obra original representa, não se poderia,
futuro.”2 por isso mesmo, vincular os malfeitos
práticos que foram cometidos em nome
Desvios cristãos e marxistas: similares,
da doutrina ao formulador original das
semelhantes, comparáveis?
proposições.
Pois bem, volto agora ao debate
A primeira dificuldade, intelectual e
supracitado sobre a responsabilidade dos
intelectuais sobre eventuais prática, desse tipo de argumentação é a
própria equiparação de Karl Marx a Jesus
consequências de seus escritos e
Cristo: ela não é apenas simplória e
propostas. Um dos argumentos
comumente usados em meios acadêmicos desprovida de qualquer equivalência
histórica real, mas é profundamente
para isentar os teóricos ‘fundacionais’ de
qualquer responsabilidade sobre o que enganosa quanto ao conteúdo mesmo das
fizeram seus seguidores a partir das teses mensagens de cada um. Senão vejamos.
originais, no caso os crimes do Equiparar Cristo e Marx – de maneira
socialismo no século 20, é o de que seria totalmente arbitrária e de uma forma
preciso diferenciar Marx dos marxismos. completamente anacrônica do ponto de
Ou seja, Marx, que disse uma vez que vista da metodologia histórica – para, em
não era ‘marxista’, não teria nada a ver seguida, desculpá-los, prévia e
com a obra prática de seus seguidores, automaticamente, de qualquer bobagem,
suas recomendações quanto à derrubada besteiras ou mesmo crimes, que
do poder da burguesia e a implantação da seguidores, discípulos ou quaisquer
‘ditadura do proletariado’ não seria outros indivíduos posteriores possam ter
absolutamente consideradas uma causa cometido em nome da doutrina original,
direta dos totalitarismos que se é uma operação no mínimo indevida, e
reivindicaram de seu nome no século no limite desonesta intelectualmente.
passado. Cristo, ao que se sabe, é um personagem
A justificativa corre aproximadamente histórico sobre o qual não temos fontes
originais completas e isentas de qualquer
segundo esta linha: da mesma forma que
não podemos responsabilizar Jesus Cristo dúvida interpretativa, o que obviamente
pelo que os cristãos fizeram e fazem em não é o caso de Marx, cidadão com
seu nome, também seria absurdo registros históricos disponíveis e obras
publicadas em vida. Cristo, de seu lado,
identificar de forma absoluta a teoria de
não parece ter feito obra teórica ou
Karl Marx com as práticas, e mesmo as
empírica registrada diretamente, ou seja,
interpretações teóricas, dos seus
ele não foi autor de nenhum manuscrito,
seguidores. Em outros termos, não
a não ser de parábolas, ensinamentos,
2
predicações e outras formas de
Cf. Ralf Dahrendorf, Após 1989: Moral, transmissão oral de princípios, valores,
Revolução e Sociedade Civil (São Paulo: Paz e
Terra, 1995), conferência: “A responsabilidade concepções, das quais tomamos
pública dos intelectuais: contra o novo medo do conhecimento pelo registro indireto e
esclarecimento” (27.11.1994); esclarecimento posterior de quatro evangelistas e alguns
talvez deva ser traduzido como Iluminismo.

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comentaristas esparsos, dos quais apenas doutrinais que poderiam sustentar
dois conviveram ou foram aqueles ‘trabalhos práticos’ de cunho
contemporâneos do personagem repressivo? Ao contrário, as mensagens
histórico. ‘transmitidas’ parecem padecer de certa
ingenuidade humanitária e, sobretudo,
Ou seja, no plano teórico, não se poderia
exalam recomendações que poderiam ser
imputar diretamente a Jesus Cristo
julgadas, por qualquer pessoa normal,
qualquer responsabilidade pelo uso que
como excessivamente tolerantes ou
seguidores fizeram dessas predicações,
ingênuas; aquela coisa de ‘oferecer a
pois o próprio personagem não guarda
outra face’, em lugar de simplesmente
conexão direta, pelo menos registrada,
aplicar a lei do Talião, ou diretamente
com as fontes alegadas da doutrina. Mas,
passar o adversário na espada, como
ainda que se fizesse tal vinculação, seria
alguns recomendariam.
preciso também provar, no plano prático,
que os crimes realmente cometidos em Existe, pois, um obstáculo ‘estrutural’ a
nome do cristianismo – que seria o esse tipo de equiparação que marxistas
‘marxismo’ dos cristãos – podem ser ‘tolerantes’ pretendem fazer em direção
vinculados a pregações, normas, projetos de Marx ou mesmo de Lênin (embora
e programas que encontrariam neste caso as desculpas se tornem ainda
sustentação na doutrina original; quais mais forçadas). Não acredito que
seriam estes?: conversão forçada do qualquer tipo de exegese – do tipo da que
‘gentio’, eliminação de heréticos, se poderia fazer com o Alcorão, por
perseguição e tortura de ‘dissidentes’, exemplo – chegaria jamais a encontrar
censura ao pensamento e à expressão de alguma filiação genética ou mesmo
outras religiões, proibição de reuniões e filosófica entre o comportamento de
movimentos organizados com o fito de cristãos intolerantes de séculos
disseminar doutrinas julgadas em posteriores e o conjunto de referências
desacordo com a linha original, conceituais e prescrições de cunho moral
interdição de obras expressando opiniões atribuíveis ao personagem original da
divergentes ou contrarias à ‘boa doutrina’ doutrina cristã. A pretensa similaridade
etc. Quais são as ‘parábolas’ fundadoras de funções ou de papéis é inepta no plano
desses crimes, de onde citar: “Cf. Jesus conceitual e totalmente incabível no
Cristo, apud Marcos, Mateus...”? plano da prática.
O desafio aos que pretendem fazer esse O que Marx tem a ver com o
tipo de equiparação é significativo: pode- socialismo do século 20?
se, com alguma certeza histórica, imputar Minha tese é muito simples: desculpar
a Cristo alguma, uma sequer, das Marx pelo que fizeram os marxistas em
barbaridades que seus discípulos e seu nome não é apenas ilógico, no plano
seguidores fizeram em seu nome, em formal, como é totalmente equivocado no
termos de massacres de heréticos, plano material, ou seja, no da história
cruzadas contra os infiéis, perseguição de concreta da humanidade desde o final do
desviantes? Ainda que não se saiba, ao século 19 até os nossos dias. Marx não
certo, se os evangelistas foram ou não apenas assinou textos, como recomendou
fiéis às suas prescrições (de resto, a revolução proletária, a expropriação
esparsas) – que é o que se poderia alegar violenta da burguesia e a implantação de
em defesa de Marx, contra alguns uma ditadura do proletariado como forma
‘marxistas infiéis’ –, quais seriam, de de transição para o socialismo,
toda forma, os textos ou recomendações recomendações seguidas fielmente (e até

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agravadas) por Lênin, que mandou Comuna de Paris, até as últimas etapas
simplesmente eliminar fisicamente todos de sua vida. Desde o Manifesto
os que pertenciam à classe inimiga, Comunista (1848) até Lutas de Classe na
independentemente de culpa individual. França (1871) e a Crítica do Programa
de Gotha (1875), o trabalho
Deve-se, em primeiro lugar, descartar
como ridícula a alegação de que Marx organizacional e as prescrições quanto a
não pode ser responsabilizado pelo que medidas imediatas e de médio prazo para
a constituição do Estado revolucionário,
ocorreu muito depois que seus escritos
foram elaborados e eventualmente sob a ditadura do proletariado, ocupam
circulados, num contexto – o do século grande espaço em sua obra e são por
19 – totalmente diferente daquele que demais evidentes para serem descartadas
como simples recomendações teóricas,
prevaleceu no século 20, dominado por
guerras terríveis, deslanchadas por sem conexão com o mundo real. As
contradições inter-imperialistas, segundo vinculações são tão diretas que a
a conhecida interpretação leninista. O paternidade foi reconhecida em primeira
equívoco aqui cometido consiste em mão por aqueles mesmos que pretendiam
pretender escusar o arquiteto pela obra representar fielmente o seu pensamento,
mal feita dos engenheiros que lhe a começar por Lênin.
seguiram, ou seja, isentar Marx, autor da O que fez Lênin para aplicar as ideias
primeira concepção e do próprio plano de Marx, e as suas...
das fundações, pela edificação viciada,
Os discípulos tentaram seguir fielmente o
mas teoricamente justificada, perpetrada
que Marx escreveu e recomendou e,
por Lênin e seguidores.
portanto, a mesma responsabilidade
Não é possível, simplesmente, escusar incumbe a todos os demais seguidores do
Marx pela autoria intelectual da obra credo, tanto no plano intelectual, como
prática posterior de seus discípulos, posto prático. Não é preciso ter lido
que, de forma alguma, ele pretende se Solzenitzyn e seu ciclo sobre o
isentar, ele próprio, de uma Arquipélago do Gulag para constatar
responsabilidade já anunciada desde a aquilo que os próprios comunistas já
11a. tese sobre Feuerbach. De resto, basta sabiam desde os tempos de Lênin e
reler Miséria da Filosofia, para constatar Trotsky, pelo menos. Aliás, o próprio
o desprezo com que ele trata Proudhon e Solzenitzyn traça, em seu Lênin em
outros ‘socialistas utópicos’; Marx não Zurique, um poderoso retrato intelectual,
tinha nenhuma compaixão ou tolerância e psicológico, do líder exilado, revelando
com aqueles que ele considerava seus em termos claros as bases do que viria
adversários intelectuais; aliás, ele os depois, como obra intelectual e prática.3
esmagaria pessoalmente se pudesse.
No terreno das ideias, os vínculos são
Pode-se também reler os textos dos
evidentes. Basta verificar o que se lia nas
bakuninistas sobre Marx e todas as
universidades soviéticas e chinesas ao
diatribes inter-tribais que dividiram,
tempo da construção do socialismo: os
desde essa época, blanquistas,
pais fundadores, obviamente. Tudo isso é
revolucionários profissionais ou simples história, agora. Mas o que se pensa que
terroristas.
constitui leitura obrigatória, em Havana
Marx era um homem de partido, e como
tal atuou, desde os tempos da Liga dos
Comunistas, passando pela Primeira 3
Cf. Alexander Solzenitzyn, Lénine à Zurich
Internacional e mais adiante, pela (Paris: Seuil, 1975).

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ou Pyong-Yang?: Adam Smith4, John ‘justiça expedita’: desde os primeiros
Stuart Mill, Alfred Marshall? Marx e dias da revolução de 1917 ordenou à
Lênin ainda estão no currículo acadêmico Cheka, a polícia política criada para
nesses lugares, assim como estiveram esmagar a ameaça ‘contra-
anteriormente nas economias revolucionária’, que fuzilasse sem
precursoras. Dessa forma, Marx deve ser hesitação não só os opositores declarados
plenamente responsabilizado pelos do novo regime, mas também os
desastres econômicos do socialismo, que representantes da classe proprietária em
fizeram tantas vítimas, talvez mais, do geral, capitalistas, grandes comerciantes
que os crimes diretos de Stalin e Mao e latifundiários, religiosos, enfim, os
Tsé-Tung. As fomes e privações potenciais ‘inimigos de classe’. Criador
ocorridas na Ucrânia, nos anos 1930, e na do Gulag, em sua primeira emanação, ele
China, na passagem dos anos 1960, justificava assim o trabalho da Cheka: “A
foram o resultado direto das concepções Cheka não é uma comissão de
econômicas originais, tanto quanto do investigação nem um tribunal. É um
voluntarismo de Stalin e Mao, órgão de luta atuando na frente de
provavelmente os ditadores absolutos batalha de uma guerra civil. Não julga o
num século que conheceu vários outros inimigo: abate-o... Nós não estamos
da mesma espécie. lutando contra indivíduos. Estamos
exterminando a burguesia como uma
Não se pode, contudo, isentar Lênin das
classe. A nossa primeira pergunta é: a
barbaridades stalinistas e maoístas do
século 20. Muitos true believers que classe o indivíduo pertence, quais
acreditam que Lênin teria sido um líder são suas origens, criação, educação ou
genial, e que apenas Stalin foi o monstro profissão? Estas perguntas definem o
assassino de velhos bolcheviques e o destino do acusado. Esta é a essência do
criador dos primeiros campos de Terror Vermelho.”6
concentração claramente políticos5. Na Stalin se encarregou de aplicar
verdade, a raiz de tudo, do Gulag, dos sistematicamente as recomendações de
julgamentos fraudulentos, da crueldade Lênin, e o fez de forma completa,
inaudita contra os ‘inimigos de classe’, começando por incorporar como
está em Lênin, que deve ser considerado ‘clientes’ da máquina de terror
como plenamente responsável pelo maior administrada por ele os seus próprios
sistema escravocrata da era moderna, por colegas de partido. A amplitude da
ele montado, mas incrementado e repressão, ampliada e desenvolvida no
desenvolvido em dimensões seu mais alto grau no Gulag de Stalin,
verdadeiramente ‘industriais’ por Stalin. justifica que apliquemos a este a
categoria de genocídio, noção que
Lênin, o verdadeiro inventor do terror
moderno, apreciava Robespierre e sua costuma estar associada apenas aos
terríveis experimentos raciais nazistas,
antes e durante a Segunda Guerra
4
Caberia, aliás, corrigir o título do último livro Mundial. Independentemente de suas
de Giovanni Arrighi: Adam Smith vai a Pequim;
funções ‘didáticas’, de intimidação direta
deve ser o contrário, posto que não ocorreu
nenhuma mudança na postura do filósofo e aberta contra a própria população da
escocês, nem sua obra foi corrigida; os chineses é União Soviética, o Gulag teve um
que caminharam em direção da Escócia.
5
Os primeiros campos de concentração, para
6
maior precisão, foram feitos pelos ingleses na Citado por Paul Johnson, Tempos Modernos: o
guerra dos Boers, na África do Sul, mas tinham, mundo dos anos 20 aos 80 (2ª ed.; Rio de Janeiro:
em princípio, utilidade militar-estratégica. Instituto Liberal, 1998), p. 35.

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importante papel econômico na história que matou 6 ou 7 milhões de cidadãos
do socialismo naquele país, chegando a ‘livres’ igualmente. A taxa de mortos
representar, a produção de um terço do sobe para seu máximo de 25% em 1942,
seu ouro, muito do carvão e da madeira e para declinar para menos de 1% nos anos
grandes quantidades de outras matérias- 1950, quando o sistema ‘industrial’ do
primas. Os prisioneiros passaram a Gulag já tinha sido instalado em sua
trabalhar em qualquer tipo de indústria, plenitude.
vivendo num país dentro de outro país.7
No total, 2,7 milhões de cidadãos
O sistema do Gulag, que chegou a reunir soviéticos podem ter morrido no sistema
476 campos em diferentes cantos da do Gulag, o que de todo modo representa
URSS, constituía um Estado dentro do apenas uma pequena parte dos
Estado, regulando diversos aspectos de desaparecidos durante todo o regime
um universo concentracionário que não stalinista e uma parte ainda menor dos
teve precedentes, teve poucos imitadores sacrificados pelo sistema soviético.9 Os
efetivos (a despeito da terrível eficácia autores do Livro Negro do Comunismo
mortífera dos campos de concentração estimam em 20 milhões as vítimas do
nazistas) e certo número de seguidores, regime soviético, o que pode ser uma
sendo os mais efetivos exemplos os indicação plausível da realidade (outros
sistemas ‘correcionais’ da Coréia do colocam entre 12 e 15 milhões de
Norte e de Cuba (o do Khmer Vermelho, mortos). Vários historiadores se
no Camboja, era mais o de uma ‘máquina aproximam da cifra de 28 milhões de
de matar’, como tinha sido o caso mais cidadãos soviéticos para o número total
extremo de todos, o nazista). de ‘clientes’ de todo o sistema
concentracionário soviético, em sua
De acordo com os próprios dados do
longa história de ‘terror vermelho. 10
sistema,8 o número de prisioneiros
passou de cerca de 200 mil no início dos O Gulag foi a face mais visível da
anos 1930 para 2,5 milhões no momento tragédia soviética, mas certamente não a
da morte de Stalin. O turnover, única ou exclusiva. O terrível legado do
obviamente, foi muito maior: muitos socialismo do século 20 comporta ainda
prisioneiros morreram, alguns escaparam sua modalidade chinesa: com efeito, se
(poucos), vários eram incorporados ao outros experimentos centralizadores e
Exército Vermelho ou à própria concentradores no domínio econômico
administração dos campos (cruel ironia). também produziram pequenas e grandes
As ‘taxas de desaparecimentos’ catástrofes – como os sistemas fascistas
refletiram também as terríveis condições do entre guerras, bem como o próprio
de vida na URSS: passou-se de 4,8% de socialismo soviético, convertido em
mortos em 1932 para 15,3% no ano escravismo moderno desde o início da
seguinte, o que indica o impacto da
epidemia de fome induzida pela 9
Um número provavelmente maior foi
coletivização stalinista da agricultura, sacrificado na fome epidêmica, em grande parte
induzida por Stalin, no curso do violento processo
de “deskulakização” conduzida na Ucrânia no
7
Ver o livro de Anne Applebaum: Gulag: uma início dos anos 1930; ocorreram cenas de
história dos campos de prisioneiros soviéticos canibalismo que depois seriam repetidas no
(Rio de Janeiro: Ediouro, 2004). “grande salto para a frente” da China (1958-
8
Segundo estatísticas da própria NKVD, que foi 1962).
10
sucessora da Cheka e antecessora do KGB, Ver Stéphane Courtois et alii (orgs.), Le Livre
informações consolidadas num apêndice ao livro noir du communisme. Crimes, terreur, répression
de Applebaum, op. cit. (Paris: Robert Laffont, 1997).

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industrialização forçada de Stalin – ao pelos assim chamados intelectuais não
longo de suas histórias respectivas, fossem caracterizadas por dois
poucas aventuras humanas igualaram o comportamentos típicos de uma atitude
monumental fracasso econômico e social ao mesmo tempo defensiva e evasiva:
que foi o experimento socialista chinês, por um lado, se tenta diminuir o impacto
em sua modalidade específica de desses terríveis processos de eliminação
maoísmo delirante. de cidadãos – ou seja, a violação
repetida, continuada, extensiva, dos
Os historiadores – e os demógrafos –
direitos humanos de milhões de pessoas,
ainda não possuem os números
e, por outro, se assiste ao continuado
definitivos, mas é provável que a
esforço de rejeitar as economias de
trajetória maoísta tenha provocado algo
mercado e as democracias burguesas,
como 50 a 60 milhões de vítimas, o que
edulcorando (ou melhor, deformando) a
faz de Mao Tsé-Tung o campeão
absoluto no registro das mortandades verdadeira história do socialismo no
século 20 (provavelmente ainda agora, no
provocadas pelo homem ao longo do
século 20, bem à frente de Hitler e de século 21). As duas reações devem ser
entendidas, no contexto desta discussão,
Stalin. Entre os mortos de fome e por
como uma tentativa de desculpar os ‘pais
canibalismo do “grande salto para a
fundadores’ da doutrina, alegando os
frente”, entre o final dos anos 1950 e
costumeiros desvios.
começo dos 60, passando pelos
assassinados e massacrados da revolução Não por outra razão o marxismo se
cultural, de meados dessa década, e todos encontra hoje em crise, e ela não é,
os encarcerados e reprimidos do Gulag simplesmente, derivada de diferenças de
chinês ao longo de 30 anos, o maoísmo interpretação teórica em torno do “que
conseguiu drenar como poucas dinastias Marx verdadeiramente quis dizer”, e sim
antigas as veias da sociedade chinesa.11 em decorrência desse vínculo estrutural
Todavia, o Khmer Vermelho, no entre a sua doutrina e suas consequências
Camboja, pode ter sido responsável, práticas no século que se passou. Uma
proporcionalmente à população do país, nova, e breve, visita, a Norberto Bobbio
por uma maior “produtividade” na pode resumir a questão:
eliminação de pessoas inocentes. A crise atual não deriva de um erro
O que isso tem a ver com a de previsão, mas da constatação
responsabilidade dos intelectuais? incontrovertível de um fato real: a
falência catastrófica da primeira
A compilação acima de algumas tentativa de realizar uma sociedade
estatísticas (apenas) sobre as experiências comunista em nome de Marx e do
de exterminação de simples cidadãos – marxismo, ou então de Marx na
muitos, inclusive, comunistas sinceros, companhia de Engels, seguido de
talvez sinceros demais – não precisaria Lênin e depois de Stalin no decurso
ser feita se os cenáculos freqüentados de uma sucessão interpretada como
uma filiação, ou derivação do
mesmo pai. A comparação entre as
11
Uma tentativa de balanço, não definitiva até igrejas tradicionais e a igreja
abertura dos arquivos do regime comunista chinês comunista foi feita tantas vezes que
e até trabalhos mais acurados dos demógrafos parece uma banalidade ou uma
profissionais, do custo humano do experimento perversidade entre adversários
comunista na China foi efetuada por Jean-Louis irredutíveis. Mas mesmo sob esse
Margolin, no capítulo “Chine: une longue marche aspecto, isto é, sob o aspecto da
dans la nuit”, In: Courtois, Le Livre noir du
communisme, op. cit.
verdade fundamentada num

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princípio de autoridade e de voluntária, no limite de um tipo de
sucessivas autorizações de outras atitude intelectualmente desonesta e
autoridades, é surpreendente. inaceitável.
Existem aqueles que, em face de
fatos reais, tremendamente Pode-se considerar, igualmente, que os
perturbadores como Auschwitz, ‘marxistas’ brasileiros – as aspas se
chegaram a falar da ‘falência de devem a que poucos, atualmente,
Deus’ (...). Por que, em face do parecem ter lido Marx, como se
gulag stalinista não se deveria falar depreende dos escritos primários que
da falência de Marx?12 circulam em certos periódicos – jamais
Em outros termos, com base no registro conheceram os socialismos reais (aliás,
de enormes violências cometidas pelos em rápido desaparecimento, a ponto,
socialismos reais, em nome de Marx e talvez, de justificar a criação de algum
Lênin, ao longo do século 20, que todos museu de antiguidades nessa área, para
os supostos intelectuais conhecem, ou ajudar no esclarecimento dos mais
pelo menos deveriam necessariamente jovens). 13 De fato, os acadêmicos mais
conhecer, parece, por um lado, jovens jamais tiveram contato direto com
inexplicável, e por outro lado, as realidades descritas aqui, posto que
inaceitável, que os mesmos personagens não conheceram qualquer tipo de
que frequentam as mesmas academias socialismo e não podem, por isso mesmo,
que todos frequentamos, pretendam não sequer imaginar que, por trás das belas
apenas diminuir, minimizar, ou consignas revolucionárias (emolduradas
claramente ignorar a dimensão desses por alguns ícones tão falsos quanto
crimes, como pretendam, sem qualquer desconhecidos, como o de Che Guevara),
espírito crítico, sustentar as mesmas teses se esconde um dos empreendimentos
e propostas de organização da sociedade mais nefastos já conhecido na história da
que provocaram as situações descritas humanidade.
acima. Estes argumentos não se referem apenas
Pode-se honestamente considerar a à dimensão dos desastres econômicos e
continuada defesa de equívocos dos sofrimentos sociais infligidos a
históricos e políticos por parte desses populações inteiras por uma ou duas
acadêmicos como sendo derivada de um
13
insuficiente conhecimento da história, Um exemplo da penúria de idéias – e também
ou, então, provocada por uma ignorância do excesso de impropérios – desferidos a
propósito de uma simples resenha de um desses
metodológica fundamental quanto ao livros quer sequer mereceriam figurar numa
modo de funcionamento econômico das biblioteca que poderia ser hipoteticamente
sociedades – equívocos, diga-se de classificada na estante do marxismo, pode ser
passagem, que a ‘economia política’ encontrado em um artigo do autor que seguiu-se à
distorcida do marxismo contribui para resenha em questão: “Marxistas totalmente
contornáveis” [Resenha de Jorge Nóvoa (org.):
alimentar – mas é mais difícil aceitar, Incontornável Marx (Salvador/São Paulo:
obviamente, a postura daqueles que Unesp/UFBA, 2007)], Espaço Acadêmico (ano 7,
preferem deliberadamente ignorar essas n. 84, maio 2008, disponível:
evidências amplamente conhecidas e http://www.espacoacademico.com.br/084/84res_
registradas nos melhores livros de pra.htm); “Manifesto Comunista, ou quase...:
dedicado a “marquissistas” à beira de um ataque
história. No mínimo, se trata de miopia de nervos (a propósito de uma simples resenha)”,
Espaço Acadêmico (ano 8, n. 85, junho de 2008;
disponível:
12
Cf. Bobbio, Etica e Política, op. cit., p. 1374; http://www.espacoacademico.com.br/085/85pra.h
ensaio: “Invito a rileggere Marx” (1993). tm).

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gerações (e se supõe que isso seja por praticamente três gerações, pode-se
demais conhecido de todos, em vista das parafrasear a conhecida frase marxiana
estantes vazias dos empórios socialistas). do 18 Brumário: doravante, se espera
Deve-se mencionar, principalmente, os apenas que a história jamais se repita,
crimes cometidos contra os direitos sequer como farsa.
humanos mais elementares, ou ainda
Não é correto que a ignorância do
aqueles situados no plano das misérias
processo histórico possa ser invocada em
morais do socialismo: um regime de
defesa dos que continuam a exibir
mentiras, de fraudes, de delações
equívocos monumentais do tipo aqui
organizadas, de regimes policialescos e
discutido; em todo caso, um
de mediocridades intelectuais como
procedimento básico se aplica aos que
jamais ocorreu em muitas, talvez a
fazem da academia o centro de suas
maioria, das ditaduras ditas de direita
atividades: a honestidade intelectual é a
denunciadas pelos mesmos acadêmicos
primeira exigência de quem trabalha com
que pretendem ainda defender a causa do
o registro dos fatos históricos e sua
socialismo marxista. interpretação no plano das ciências
Em relação a esses regimes, que por boa humanas. Espero apenas que esta não
parte do século 20 se estenderam a seja mais uma frase vazia...
territórios e populações imensas durante

*
PAULO ROBERTO DE ALMEIDA é Doutor em Ciências Sociais, Mestre em Planejamento
Econômico, Diplomata de carreira.

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