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Tradução publicada no site do Kátharsis.

Traduzido por Eduardo Francisco Alves.

Publicado originalmente em:


POLITZER, G., A Filosofia e os Mitos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, pp. 47-
53. A presente edição possui notas adicionais (N.E.) e alterações realizadas por Bruno Bian-
chi.

Para quem você escreve?

G. Politzer

Todos que assistiram à reunião realizada pela A.E.A.R.1 para concluir a pesquisa de
Commune sabem que ali foram tiradas conclusões de grande clareza por nossos camaradas
Vaillant-Couturier2, Aragon3 e Ehrenburg4. Eles destacaram, ao mesmo tempo, que a discussão
que organizamos tem um significado que está longe de ser simplesmente “documentário”. A
pergunta de Commune subentende as classes e a luta de classes. Por isso, sua colocação é um
ataque, não contra o escritor a quem é feita, mas contra a burguesia, que não deseja que essa
pergunta seja colocada. Mas esse ataque provoca a contraofensiva, donde, em toda uma série
de respostas, a procura, intencional ou não, de meios de escapar à questão, de fazê-la voltar-se
contra nós, de anulá-la. Precisamente nas respostas desta categoria apareceram argumentos que
já encontramos com frequência, mas aos quais são sensíveis não apenas aqueles que ainda estão
afastados de nós, mas também alguns entre os que já estão conosco. Por isso é necessário não

1
N. E. Associação dos Escritores e Artistas Revolucionários, fundada em março de 1932.
2
N. E. Marie-Claude Vaillant-Couturier (1912-1996), jornalista e militante comunista francesa, participante ativa
da Resistência durante a Segunda Guerra Mundial. Auxiliou na produção de publicações clandestinas, inclusive
de Politzer. Foi presa junto com Georges Politzer e outros membros do Partido Comunista Francês, sendo realo-
cada para diferentes campos de concentração até ser libertada em 1945 pelo Exército Vermelho em Ravensbrück.
3
N. E. Louis Aragon (1897-1982), poeta e romancista francês, membro do Partido Comunista Francês e da Resis-
tência durante a Segunda Guerra Mundial.
4
Ilya Ehrenburg (1891-1967), escritor e jornalista ucraniano, militante comunista participante das duas Guerras
Mundiais e da Guerra Civil Espanhola.
1
negligenciar esses argumentos.

Drieu La Rochelle5 disse, em sua intervenção, que nós da A.E.A.R. éramos uns “con-
vencidos”. Não nos disse de que; esse tema ele não desenvolveu. Mas outros já o desenvolveram
e continuam a fazê-lo, apresentando-nos como “dogmáticos”, na esperança de conseguirem
com isso inspirar aos intelectuais apegados ao “espírito crítico” e à “independência intelectual”
um horror definitivo a nosso respeito. Na esperança também de que nós terminássemos nos
intimidando e, para não passarmos por uma seita, fizéssemos concessões.

É muita diplomacia desperdiçada. Há, na A.E.A.R., um certo número dos nossos que
estão convencidos da justeza do marxismo e que desejam ser marxistas consequentes. Mas sem-
pre esteve fora de questão fazer dessa atitude uma condição de admissão na A.E.A.R. A dis-
cussão durante a reunião vem prová-lo eloquentemente, não porque tenhamos discutido com
escritores que não fazem parte da A.E.A.R., mas porque as intervenções dos membros da
A.E.A.R. demonstraram certas diferenças de pontos de vista. Pode-se dizer que nossa camarada
Édith Thomas6 tenha sustentado um ponto de vista marxista? É evidente que não. Eu no entanto
estimo não apenas que ela possa fazer parte da A.E.A.R., mas que seja normal que isso ocorra.
Pois o que importa não é o fato material da discordância de certos camaradas com o marxismo.
O que importa é a atitude deles em face dessa discordância. Pois há a discordância daqueles
cuja honestidade e boa-fé se provam notadamente pelo fato de que, pensando diferentemente
daqueles entre nós que se esforçam por serem marxistas consequentes, não obstante proíbem à
burguesia, por seus atos, explorar essas diferenças em seu interesse, não transformam suas
discordâncias em máquina de guerra contra o marxismo e não permitem que outros o façam e,
em todo caso, estão conosco na ação. Esses podem vir para a A.E.A.R., e faremos todos os
esforços para que venham. Mas também existe a discordância daqueles que fazem, de suas
diferenças com o marxismo, máquinas de guerra contra o marxismo; os que alimentam as cam-
panhas antimarxistas, os que ajudam a burguesia a empreender sua cruzada contra o marxismo.
Esses não são dos nossos; pertencem à burguesia e não têm nada a fazer na A.E.A.R.

E uma vez que tal é a nossa linha de conduta, as histórias de bicho-papão que se

5
N. E. Pierre Drieu La Rochelle (1893-1945), escritor francês colaborador do fascismo e da ocupação alemã da
França durante os anos 1930. Após a libertação de Paris, cometeu suicídio em 1945.
6
N. E. Édith Thomas (1909-1970), escritora, historiadora e jornalista francesa, participando da Resistência fran-
cesa e militando pelo Partido Comunista Francês em 1942. Após o fim da guerra, dedicou-se ao estudo e pesquisa
da história das mulheres na França, no feminismo do século XIX e em figuras históricas como Joana d’Arc, Louise
Michel e George Sand.
2
propalam sobre nosso “dogmatismo” destinam-se unicamente a mascarar o fato muito simples
de que, antes de tudo, desejamos operar a separação dos intelectuais honestos, de um lado, e
dos lacaios da burguesia, de outro lado.

Isso tudo posto, não escondemos nem o fato de que, se somos convencidos, desejamos
também convencer, nem as bases sobre as quais realizamos nosso esforço de convicção. Penso
que não há lugar para nos intimidarmos com recriminações do gênero da que nossa camarada
Edith Thomas exprimiu em sua intervenção: ela não deseja que Marx e Engels sirvam de “mar-
telos” — foi assim que ela se exprimiu —, mas, no mesmo instante, declarou que escrevia para
liquidar seus conflitos, o que é uma teoria freudiana. E, dessa forma, no instante preciso em que
nossa camarada pensava fazer um ato de independência, separando-se dos pensadores proletá-
rios que são Marx e Lênin, foi apenas para submeter-se — sem nenhuma intenção, estou certo
— ao pensador burguês que é Freud.

Será então necessário, a fim de não passarmos por dogmáticos, renunciar a fazer esta
explanação à nossa camarada e a fazer, de um modo geral, explanações desse gênero? É exata-
mente esse o objetivo da chantagem burguesa do “liberalismo”. Pois que enquanto estivéssemos
renunciando a afirmar nossa ideologia marxista-leninista, a burguesia não estaria renunciando
a propagar a sua própria ideologia. A cada recuo eventual de nossa parte, corresponderia uma
ofensiva ideológica da parte dela. E enquanto estivéssemos renunciando a dar conhecimento de
nossos textos, “a fim de não aborrecer nossos camaradas”, nós os estaríamos deixando pura e
simplesmente ao sabor dos textos da burguesia. Mas é precisamente essa famosa chantagem
que não nos impressiona. Considero o marxismo-leninismo como uma ciência no sentido pró-
prio da palavra. Classifico as caras escandalizadas que, diante de afirmações deste gênero, fa-
zem os espíritos pretensamente positivos — do tipo daquele lógico de bacharelado que se chama
Rougier7 e que desejou demonstrar o caráter escolástico do marxismo — na mesma categoria
das caretas profissionais das prostitutas.

Longe de esconder os textos de Marx, de Engels e de Lênin, nós procuraremos fazer


com que sejam cada vez mais conhecidos. Mostraremos o caráter científico do marxismo-leni-
nismo, fazendo ver como ele, sozinho, permite que se compreendam os acontecimentos;

7
N. E. Louis Rougier (1889-1982), filósofo francês, estudioso da Lógica, influenciado por figuras como Henri
Poincaré e Wittgenstein.
3
pensamos mesmo que em todos os ramos da ciência surgirão, também na França, pesquisas que,
nas ciências naturais e nas ciências sociais, serão fruto de uma aplicação consequente do método
materialista dialético.

Mostraremos, ao mesmo tempo, como o marxismo-leninismo permite desmascarar im-


placavelmente todos os logros por meio dos quais a burguesia procura sujeitar os intelectuais
honestos, precisamente em nome da independência do espírito.

E aqui nos deparamos de novo com a pergunta “para quem você escreve? ” Ouvindo
falar especialmente Benda8, Lalou9 e Crémieux10, tenho a impressão de que eles estavam per-
suadidos: 1º de que o escritor sabe necessariamente para quem escreve; 2º que depende apenas
dele escrever para X ou para Y.

Ora, o fato de escrever constitui um ato que tem, na sociedade, repercussões determi-
nadas. Existe esse fato e existe a consciência dele tomada pelo escritor. Eis aí duas coisas dife-
rentes — e não é simplesmente a resposta que o escritor dá à pergunta “para quem você es-
creve?” que decide para quem de fato ele escreve. Fiquei com a impressão de que Benda está
persuadido de que, uma vez que tem a intenção de escrever para o homem platônico, escreve
automática e efetivamente para ele. Não obstante, seus leitores se recrutam entre os homens que
são homens concretos. Seus escritos confirmam, reforçam ou, ao contrário, contradizem e en-
fraquecem ideias e sentimentos. Os homens concretos que são os leitores de Benda constituem
frações das classes engajadas na luta de classes. As ideias e os sentimentos que Benda terá
reforçado ou enfraquecido influem especialmente sobre a consciência de classe desses homens.
Essa consciência de classe é, por sua vez, um fator decisivo na luta de classes, e Benda terá
assim agido na luta de classes e sobre ela!

O que é verdadeiro a respeito de Benda é verdadeiro a respeito de todos aqueles que


escrevem em uma sociedade onde existem classes e, por consequência, para aquele que escreve
em uma sociedade capitalista. Faça o que fizer, ele não poderá impedir que seu texto tenha uma
ação social, e uma ação social que consiste em fortalecer uma e enfraquecer a outra das duas
classes em luta. Benda declarou que retirava sua responsabilidade. Isso não passa de palavras

8
N. E. Julien Benda (1867-1956), filósofo e escritor francês de tendência racionalista, opositor da filosofia berg-
soniana na França e famoso pelo seu escrito de 1927 La Trahison des Clercs [A Traição dos intelectuais],
9
N. E. René Lalou (1889-1960), escritor e tradutor francês, contribuindo para diversas revistas culturais de ten-
dência socialista durante a Resistência e após a Libertação.
10
N. E. Benjamin Crémieux (1888-1944), crítico literário francês, contribuindo principalmente para a Nouvelle
Revue Française desde s anos 1920. Foi preso e executado pelo exército nazista em 1944.
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mágicas. No exato momento em que ele desengaja sua responsabilidade, a história a engaja.
Pois é precisamente essa declaração que, reforçando entre os intelectuais a ilusão de uma neu-
tralidade impossível, os impede de se reunirem ao proletariado revolucionário, coisa que os
mais honestos fariam se estivessem verdadeiramente persuadidos do caráter utópico da neutra-
lidade.

Da mesma forma, Crémieux proclamou-se “escritor sem epítetos”. Se a intenção de


ser um escritor sem epítetos tivesse o poder de abolir as classes e, por consequência, a luta de
classes, Crémieux poderia ser efetivamente um escritor-sem-epítetos. Mas somente a revolução
proletária tem esse poder! Quanto a Crémieux, proclamando-se escritor-sem-epítetos, só faz
obscurecer entre um certo número de intelectuais o problema da situação deles em meio à luta
de classes. Com isso, sem que tenha tido necessidade de desejá-lo, ele prestou um efetivo ser-
viço à burguesia. E nem as lágrimas, nem os protestos, nem as palavras espirituosas podem
apagar esse serviço, enquanto Crémieux professar, em meio à luta de classes, o sem-epitetismo.

Deve-se o fato de os escritores dificilmente admitirem que, a despeito de suas inten-


ções, intervêm na luta de classes, ao fato de que fazem dessa luta uma ideia totalmente esque-
mática. Não veem que, na vida de uma sociedade onde existem classes, a luta de classes se
reflete em todas as manifestações da vida.

No entanto, até mesmo a discussão em torno da pergunta “para quem você escreve?”
só pode ser claramente explicada pela luta de classes. Da mesma forma, eles não se dão conta
da variedade dos meios que essa luta mobiliza. Estou certo de que Edith Thomas não se deu
conta de que proclamar que se escreve para resolver conflitos pessoais representa, enquanto
resposta à pergunta colocada pela A.E.A.R., uma satisfação... para a burguesia, na medida em
que há nisso uma oposição ao marxismo sobre a base de uma plataforma puramente psicológica.

Mas se se considera toda a extensão e toda a profundidade da luta de classes, então


fica claro que a questão não é, para o escritor, saber se ele toma parte nela ou não. A questão é
saber como, e na conta de quem, ele toma parte nela; se ele representa o joguete inconsciente e
mais ou menos aperfeiçoado de forças sociais que ignora, ou se representa um fator consciente.
“Para quem você escreve?” significa antes de qualquer coisa: você sabe para quem escreve?
Significa em seguida: “as consequências sociais de seus textos correspondem às intenções que
o animam ao escrever? ”. E, por essa razão, penso que devemos manter e repetir incansavel-
mente a pergunta “para quem você escreve?”, e devemos inclusive responder no lugar daqueles

5
que, por si próprios, não responderão.

Resta o fato de que uma reunião como essa realizada pela A.E.A.R. — sejam quais
forem os redemoinhos e as interpretações que possa ter provocado — é boa, porque permite, ao
confrontar pontos de vista, mostrar claramente o que separa ainda certos escritores de nossas
concepções, permite dizer-lhes que o véu obscuro que ainda cobre para eles as questões do
marxismo-leninismo não é de forma alguma um obstáculo à colaboração deles conosco, e per-
mito segurar o fio, por tênue que seja, que os liga ao proletariado. Também é nosso dever, ao
agradecer àqueles que vieram, desejar que outros mais venham, e talvez, também, que aqueles
que vieram voltem, pois nós nos recusamos a levianamente taxar de inimigos aqueles que, ainda
procurando em si mesmos, pensam às vezes irritar-se com nossas certezas.

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